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Violência conjugal na perspectiva de profissionais da "Estratégia Saúde da Família": problema de saúde pública e a necessidade do cuidado à mulher

Resumos

OBJETIVO:

construir uma matriz teórica a partir dos significados das interações e ações experienciadas pelos profissionais sobre as práticas de cuidado de enfermagem e saúde às mulheres em situação de violência conjugal, no âmbito da Estratégia Saúde da Família.

MÉTODOS:

pesquisa fundamentada na Grounded Theory. Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, foram entrevistados 52 profissionais em Santa Catarina, Brasil. A análise baseou-se nas codificações aberta, axial e seletiva.

RESULTADOS:

o modelo teórico foi delimitado a partir do fenômeno "Reconhecendo a violência conjugal como problema de saúde pública e a necessidade de gestão do cuidado à mulher", que reflete a vivência dos profissionais no que tange ao cuidado à mulher, bem como os significados atribuídos a esse cuidado.

CONCLUSÕES:

o fenômeno permite a compreensão do movimento de ação e interação acerca do cuidado à mulher em situação de violência conjugal.

Violência Contra a Mulher; Saúde da Família; Assistência Integral à Saúde; Enfermagem; Assistência à Saúde


OBJECTIVE:

to construct a theoretical matrix based on the meanings of the interactions and actions experienced by the professionals regarding the nursing care practices and the health of women in situations of conjugal violence in the ambit of the Family Health Strategy.

METHODS:

research based in Grounded Theory. Following approval by the Research Ethics Committee, 52 professionals were interviewed in Santa Catarina, Brazil. The analysis was based on open, axial and selective codifications.

RESULTS:

the theoretical model was delimited based on the phenomenon "Recognizing conjugal violence as a public health problem, and the need for management of the care for the woman", which reflects the experience of the professionals in relation to care for the woman, as well as the meanings attributed to this care.

CONCLUSIONS:

the phenomenon allows one to understand the movement of action and interaction regarding the care for the woman in a situation of conjugal violence.

Violence Against Women; Family Health; Comprehensive Health Care; Nursing; Delivery of Health Care


OBJETIVO:

construir una matriz teórica a partir de los significados de las interacciones y acciones experimentadas por los profesionales sobre las prácticas de cuidado de enfermería y salud prestada a las mujeres en situación de violencia conyugal en el ámbito de la Estrategia de Salud de la Familia.

MÉTODOS:

se trata de una investigación fundamentada en la Grounded Theory. Después de aprobada por el Comité de Ética en Investigación, fueron entrevistados 52 profesionales en Santa Catarina, Brasil. El análisis se basó en la codificación abierta, axial y selectiva.

RESULTADOS:

el modelo teórico fue delimitado a partir del fenómeno "Reconociendo la violencia conyugal como un problema de salud pública y la necesidad de administrar el cuidado a la mujer", que refleja la vivencia de los profesionales en lo que se refiere al cuidado de la mujer, así como los significados atribuidos a ese cuidado.

CONCLUSIONES:

el fenómeno permite la comprensión del movimiento de acción e interacción acerca del cuidado a la mujer en situación de violencia conyugal.

Violencia Contra la Mujer; Salud de la Familia; Asistencia Integral en Salud; Enfermería; Prestación de Atención de Salud


Introdução

Violência conjugal consiste em uma violação dos direitos humanos, com importante repercussão sobre a saúde da mulher e a produtividade econômica, o que tornou a violência contra a mulher problemática vastamente discutida na área da saúde e pesquisada em todo o mundo, desde o final dos anos 80.

Considera-se violência contra a mulher a ação ou omissão, baseada na desigualdade de gênero, que gera dano físico, sexual, psicológico ou patrimonial( 11. Lei Maria da Penha (BR).Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília: Presidência da República; 2006. ). A noção de gênero foi introduzida nos Estados Unidos com o termo gender, no campo da antropologia e abriu caminho para a compreensão das desigualdades entre homens e mulheres, superando a visão de que os atributos e papéis, definidos com base nos aspectos biológicos, são naturais e inquestionáveis. A categoria de gênero passou a ser amplamente usada, denunciando o poder patriarcal, seus efeitos de opressão sobre as mulheres e a consequente violência de gênero, sobretudo aquela que se dá no espaço do lar( 22. Meyer DE. Teoria e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Rev Bras Enferm. 2008;57(1):13-8. - 33. Oliveira KL, Gomes R. Homens e violência conjugal: uma análise de estudos brasileiros. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(5):2401-13. ).

As repercussões da vivência de violência conjugal já vêm sendo apontadas em estudos científicos. As mulheres que a vivenciam apresentam mais problemas de saúde, de diversas dimensões e complexidade, que vão desde lesões físicas, como hematomas, até aquelas relacionadas aos aspectos psicoemocionais, tal como depressão e suicídios( 44. Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Life-long domestic violence against women: prevalence and immediate impact on health, work, and family. Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. - 55. Junior PCA, Moraes CL. The domestic violence against the elderly within the Family Health Program of Niterói (RJ, Brazil). Ciênc Saude Coletiva. 2010;15:2983-95. ). Analisando os gastos do SUS e ainda os custos sobre os processos de cunho jurídico-policial e de licenças médicas, em decorrência da violência, os danos da violência contra a mulher representam cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro( 66. Superintendência de Política para Mulheres (SPM) (BR). Violência contra a mulher custa 10% do PIB brasileiro [Internet]. [acesso 31 out 2012]. Disponível em: http://www.spm.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=405&Itemid=2.
Disponível em: http://www.spm.salvador.b...
).

Considerando que a vivência violência afeta significativamente o processo saúde/doença das mulheres, o setor saúde representa lócus privilegiado para identificação dessas situações. Nesse contexto, os profissionais devem estar preparados para identificar o fenômeno, que nem sempre deixa marcas visíveis( 77. Vieira EM, Perdona GSC, Santos MA. Fatores associados a violência física por parceiro íntimo em usuárias de serviço de saúde. Rev Saúde Pública. 2011;45(4):730-7. ). Compreendendo a violência como uma questão de saúde e para a saúde, a Estratégia Saúde da Família (ESF) representa porta de entrada dos casos de violência, podendo configurar-se enquanto espaço de acolhimento e elaboração de projetos de apoio à mulher em situação de violência( 55. Junior PCA, Moraes CL. The domestic violence against the elderly within the Family Health Program of Niterói (RJ, Brazil). Ciênc Saude Coletiva. 2010;15:2983-95. ).

Pesquisas corroboram a ESF pela ampla cobertura e vínculo, favorece a identificação de agravos à saúde da população, desvelando-se enquanto cenário estratégico para o reconhecimento da violência doméstica no âmbito da comunidade. Todavia, estudo realizado com profissionais que atuam na Saúde da Família mostrou que, embora muitas das queixas das mulheres estejam associadas à vivência de violência, os profissionais têm dificuldade de reconhecer tal agravo e proceder com relação às pessoas em situação de violência( 88. Borsoi TS, Brandão ER, Cavalcanti, MLT.Ações para o enfrentamento da violência contra a mulher em duas unidades de atenção primária à saúde no município do Rio de Janeiro. Interface.2009;13(28):165-74.

9. Gomes NP, Diniz NMF, Silva CC Filho, Santos JNB. Enfrentamento da violência doméstica contra a mulher a partir da interdisciplinaridade e intersetorialidade. Rev Enferm UERJ. 2009;17(1):14-7.

10. Gomes NP. Trilhando caminhos para o enfrentamento da violência conjugal [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2009.
- 1111. Ferraz MIR, Lacerda MR, Labronici LM, Maftum MA,Raimondo ML. O Cuidado De Enfermagem a Vítimas de Violência Doméstica. Cogitare Enferm. 2009;14(4): 5-17. ).

O Ministério da Saúde reconhece a importância da ESF no processo de identificação de mulheres em vivência de violência doméstica e, também, defende que o vínculo estabelecido entre as pessoas/famílias/grupos e profissionais/equipes favorece a construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde, o que facilita a promoção à saúde e a prevenção de agravos( 1212. Superintendência de Políticas para Mulheres (SPM) (BR). Balanço semestral do ligue 180 (janeiro à junho/2012). Brasília: Presidência da República; Secretaria de Políticas para Mulheres; 2012. ). Nesse sentido, questiona-se: quais os significados das interações e ações experienciadas pelos profissionais sobre as práticas de cuidado de enfermagem e saúde às mulheres em situação de violência conjugal no âmbito da ESF? Frente a isso, o estudo teve como objetivo construir uma matriz teórica, a partir dos significados das interações e ações experienciadas pelos profissionais sobre as práticas de cuidado de enfermagem e saúde às mulheres em situação de violência conjugal, no âmbito da ESF.

Métodos

Trata-se de estudo com abordagem qualitativa, utilizando como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados (TDF) ou Grounded Theory ( 1313. Strauss A, Corbon J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed; 2008. 288 p. ). Essa metodologia tem por finalidade identificar, desenvolver e relacionar conceitos/categorias a partir dos dados coletados, analisados e comparados de maneira sistemática e concomitante, visando a construção de um referencial teórico, formando, assim, um marco teórico explicativo de um fenômeno social( 1313. Strauss A, Corbon J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed; 2008. 288 p. - 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ). Com base na TFD, buscou-se explorar a diversidade da experiência dos profissionais de saúde que atuam na ESF e assim ampliar o conhecimento acerca do cuidado à mulher em situação de violência conjugal, a fim de oferecer subsídios para ações de enfrentamento do fenômeno.

O estudo foi realizado com 52 profissionais que atuam nas 17 equipes de saúde da família que integram as cinco unidades de saúde de um determinado distrito sanitário, em um município no Estado de Santa Catarina, Brasil. Conforme preconiza a TDF, a inclusão dos sujeitos se deu respeitando os princípios de amostragem teórica. O primeiro grupo amostral foi constituído por técnicos de enfermagem (17), enfermeiros (13) e médicos (12), buscando obter respostas sobre a questão: como se dá o cuidado à mulher em situação de violência conjugal no âmbito da ESF? A análise dos dados se deu concomitante à coleta de dados e permitiu descobrir os códigos e as categorias. Diante da ausência de dados novos, considerou-se que a saturação teórica havia sido alcançada, totalizando 42 entrevistas.

Os códigos iniciais de análise revelaram que os casos de violência conjugal, identificados na ESF, são referenciados para psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), situação que direcionou a novas questões a serem investigadas. Nesse sentido, o segundo grupo amostral foi composto por psicólogos (2), assistente social (1) e psiquiatras (2), a fim de melhor compreender o processo de cuidado à mulher por esses profissionais. Foram entrevistados todos os psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais que integram o Nasf do distrito sanitário elegido como lócus do estudo. A análise dos dados sinalizou a pouca disponibilidade desses profissionais, situação que limita as ações de assistência e promoção à saúde. O terceiro grupo amostral foi constituído pelos cinco coordenadores das unidades de saúde, a fim de melhor compreender a realidade desse cuidado, sobretudo no que tange à gestão. A análise dos dados respaldaram as categorias previamente identificadas.

À medida que as entrevistas eram realizadas e transcritas, os dados foram inseridos no software NVIVO(r), que possibilitou a organização e classificação das informações coletadas. A análise substantiva dos dados foi realizada através da codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva, com base no paradigma de análise de dados, proposto por Strauss e Corbin, a partir dos cinco conceitos estruturais: contexto, condição causal, condição interveniente, estratégias e consequências. As relações, associações e interações entre essas categorias se dá até se definir a categoria central, representativa do fenômeno do estudo( 1313. Strauss A, Corbon J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed; 2008. 288 p. ). A validação do modelo paradigmático foi realizada com 37 sujeitos da pesquisa nas cinco unidades de saúde estudadas e com dez pesquisadores com experiência em TFD.

O projeto, financiado pela FAPESB, foi submetido à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (nº21560/2012). Realizaram-se as entrevistas de maio a agosto de 2012, no espaço físico das unidades, em uma sala reservada, a fim de garantir a privacidade dos sujeitos. Esses foram identificados pela inicial maiúscula da categoria profissional ou a letra C, no caso dos coordenadores, precedida de um algarismo arábico.

Resultados

As categorias que representam os elementos do modelo paradigmático, permitindo emergir o fenômeno central, estão a seguir apresentadas:

Fenômeno

O modelo teórico foi delimitado a partir do fenômeno "Reconhecendo a violência conjugal como problema de saúde pública e a necessidade de gestão do cuidado à mulher", que reflete a vivência dos profissionais que atuam na ESF no que tange ao cuidado à mulher, bem como os significados atribuídos a esse cuidado (Figura 1).

Figura 1
Modelo teórico da Teoria Substantiva

Considerando que o fenômeno representa o acontecimento central sobre um conjunto de ações ou interações realizadas pelos sujeitos, esse sinaliza para o que está acontecendo( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ). Assim sendo, os profissionais entrevistados entendem ser a violência conjugal um importante agravo à saúde da mulher, com implicações sobre o setor saúde e a produtividade econômica. Percebem a necessidade de, enquanto unidades de saúde, melhor prepararem-se para o cuidado à mulher, o que envolve o reconhecimento da violência conjugal como causa associada à sua busca pelo serviço e ao atendimento propriamente dito. Esse complexo fenômeno encontra-se em movimento e se configura na dinâmica das interações de saberes, ações e articulações no sentido de promover o cuidado integral à mulher.

As categorias que constituíram o modelo paradigmático, possibilitando o surgimento do fenômeno, foram: contexto, condições causais, condições intervenientes, estratégias de ação e consequências.

Contexto

Entende-se por contexto o conjunto específico de acontecimentos, fatos ou condições relacionadas ao fenômeno, sobre o qual se define as estratégias de ação/interação( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ).

O fenômeno apresenta, como contexto, a categoria "Desvelando a violência conjugal como problema de saúde pública e o cuidado à mulher", que integra as subcategorias a seguir.

Revelando significados da violência conjugal

Os profissionais que atuam na ESF compreendem que violência conjugal traz repercussões para a mulher e repercute na vida dos filhos e na produtividade econômica. [...] física, psíquica é tudo uma coisa só. Muitas vezes há somatização (Pc-2). Atendi um caso de problema conjugal que acabou desencadeando uma crise psiquiátrica [...] ela estava bem deprimida [...]. Ela estava sem trabalhar (Pq-1). [...] às vezes, tu vês o teu pai batendo na tua mãe a vida inteira e tu achas que aquilo é normal e tu vai pegar e vai bater na mulher. [...] pode levar para uma morte, um assassinato, uma coisa pior. É um problema de saúde pública [...] pela falta no trabalho, diminuição de produtividade (M-4).

Descrevendo o processo de cuidado à mulher

Os profissionais da equipe mínima, ao identificar mulheres em situação de violência, as referenciam para psicólogos e assistentes sociais do Nasf. Por estarem vinculado a várias unidades de saúde, tais profissionais não conseguem atender a demanda, o que compromete o cuidado à mulher. A gente é aberto para todos os tipos de atendimento, mas não é algo que a gente vivencia aqui (M-1). Essa parte de violência fica mais com assistente social e psicólogo mesmo e continua sempre com a enfermeira e o médico que faz a coordenação do cuidado e tem que saber o que cada um está fazendo e a gente acaba tendo as reuniões com todos eles (M-3). Uma dificuldade que eu vejo é de nós do Nasf, de não poder estar a todo tempo na unidade. [...] a proposta é de promoção, mas acaba que às vezes fica do outro lado da assistência. E, no nosso caso, uma assistência mais voltada no apoio porque ela ainda se subdivide (PC-2).

Com base no exposto, o contexto "Desvelando a violência conjugal como problema de saúde pública e o cuidado à mulher" desvela que os profissionais que atuam no âmbito da ESF compreendem ser a violência conjugal um importante agravo à vida das mulheres e também de seus filhos. Os profissionais da equipe mínima referem não serem frequentes casos de violência conjugal no âmbito da ESF, o que sinaliza a pouca visibilidade do fenômeno na comunidade. Vale salientar que, ao identificar mulheres nesse contexto, as referenciam para o apoio psicossocial junto ao Nasf. No entanto, a pouca disponibilidade de psicólogos e assistentes sociais não permite atender as necessidades das usuárias.

Condições causais

As condições causais consistem em eventos, fatos ou acontecimentos que influenciam o fenômeno, estando associadas à sua ocorrência ou ao desenvolvimento(14). Três categorias refletem as condições causais, mostradas a seguir.

Elencando as causas da violência conjugal e da permanência da mulher na relação

Os profissionais mencionam que a construção da violência conjugal encontra-se associada ao uso de álcool ou drogas pelo companheiro. Eu acho que o que leva a violência entre o casal é o uso de drogas, como o álcool, a cocaína (E-13).

A situação econômica foi percebida como motivo para a permanência na relação com o companheiro. A pessoa não tem dinheiro, tem filhos em idade escolar [...] se ela se separar do companheiro, ela vai ter mais dificuldade de conseguir criar os filhos (E-11).

O tráfico de drogas nas comunidades também foi citado pelos profissionais, que consideram o envolvimento do homem com o tráfico como uma situação que favorece o silêncio das mulheres. Normalmente, a pessoa não fala porque tem envolvimento com tráfico e sabe que se abrir a boca vai ter retaliação e o problema se torna muito maior (M-5).

A construção social ancorada na desigualdade de gênero, responsável pela naturalização do poder do homem sobre a mulher e pela crença do casamento como realização feminina, foi apontada como causa associada à ocorrência da violência e a permanência da mulher na relação. É uma relação que ela tem uma concepção de que aquilo é normal: a relação de marido e mulher é assim mesmo (C-2). [...] ela vai em uma vinculação de dependência de que o outro vai me suprir em alguma coisa, mas ela acha que não pode viver sozinha. Aí, ela se sujeita a essa situação (Pc-1).

Revelando despreparo dos profissionais para o cuidado à mulher

Essa categoria revela que os profissionais não se sentem preparados para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal, que perpassa pelo reconhecimento do agravo, encaminhamentos, conhecimento dos serviços, do fluxo e a notificação dos casos. Sinaliza-se ainda a pouca (ou nenhuma) abordagem da temática durante a graduação. Esses eventos guardam relação com a não percepção da violência por parte dos profissionais da equipe mínima. A gente não tem no currículo. [...] por falta desse olhar, às vezes, a pessoa chega ali, e você não percebe. [...] às vezes tem uma demanda grande de pessoas, que não relatam que seja violência [...] (E-5). Existe a notificação, mas eu acho que raramente é notificado. [...] algumas situações, a equipe fica até recuada, sem saber o que fazer, qual fluxo seguir, que caminho tomar. [...] fica como um apoio pessoal (C-2).

Apontando a não articulação dos serviços

A não articulação dos serviços constitui-se enquanto uma situação que compromete o cuidado à mulher. A rede não sabe trabalhar muito bem ainda com violência. Acho que ela está um pouco desarticulada ainda. As coisas se perdem muito: o que é função de um, o que é função do outro, os fluxos. É bem difícil de organizar e o que acontece é que daí fica todo mundo perdido, ninguém sabe para onde mandar (C-3).

Considerando as categorias que integram as condições causais, percebe-se que os profissionais atribuem a desigualdade de gênero, a dificuldade econômica e a realidade das drogas à construção da violência na conjugalidade, bem como ao silêncio da mulher e à permanência na relação com o companheiro. Apontou-se, ainda, o despreparo por parte dos profissionais entrevistados para o atendimento à mulher em situação de violência conjugal, inclusive a necessidade de articulação intersetorial.

Condições intervenientes

São consideradas condições intervenientes os eventos, as situações ou os acontecimentos que alteraram o impacto das condições causais no fenômeno, de forma a facilitar, dificultar ou restringir as estratégias de ação/interação em um contexto específico( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ).

As condições intervenientes emergiram da integração entre três categorias, a seguir.

Referindo sobre interação e ação no âmbito da ESF

As ações e interações dos profissionais podem ser agentes facilitadores ou dificultadores sobre as condições causais. Desvelado, enquanto facilitador, o trabalho multiprofissional, permitindo a troca de saberes e uma visão mais ampliada acerca da realidade. Antigamente eu era sozinha, não tinha PSF. A assistente social fazia o trabalho dela, a enfermeira fazia o trabalho dela. Era mais individual, não era conjunto. A gente não sentava juntos, todos os profissionais para discutir. Hoje, o Programa de Saúde da Família tem como sentar e discutir como ajudar aquela paciente (E-6).

Acreditando que a violência conjugal não é ação prioritária na ESF

Ações de prevenção e enfrentamento da violência conjugal não foram significadas como prioritárias pelos profissionais entrevistados. Esses revelam a necessidade de um programa que oriente o reconhecimento do agravo e atendimento à mulher em situação de violência; queixam-se quanto à disponibilidade de apenas uma psicóloga e uma assistente social para diversas equipes e unidades, bem como do tempo de consulta e da rotatividade dos profissionais, o que compromete as ações da ESF. Esses eventos agem sobre as condições causais dificultando mudança do contexto. [...] tem programa para diabetes, hipertensão, mas não tem para violência [...] direcionaria melhor o que fazer (TE-8). [...] eu acredito nesse modelo de Saúde da Família, mas não eu acredito nas proporções de um Nasf para tantas Equipes de Saúde da Família. [...] é um absurdo. Como é que uma assistente social vai conseguir alguma coisa e ainda conseguir fazer promoção? (M-7).

Despertando para os problemas sociais na comunidade

Os profissionais percebem que, na comunidade, há outros problemas sociais, além da violência conjugal. Tais problemas agem sobre as condições causais e demandam por apoio psicossocial. Precisa de atendimento psicossocial para as vítimas, que pode ser violência sexual, doméstica, tanto a violência moral [...] e não é só as mulheres: tem a violência contra o idoso, a criança (E-13). Infelizmente, a gente tem pessoas aqui que perderam um filho para violência [...] para as drogas; pessoas que precisam de psicoterapia (M-7).

Na visão dos entrevistados, o tráfico de drogas, que permeia as comunidades de abrangência do distrito sanitário estudado, configura-se enquanto evento que interfere nas condições causais agravando o contexto. Diante de tal realidade, muitos profissionais buscam não se envolver. Todavia, a não intervenção profissional dificulta o processo de empoderamento da mulher para o enfrentamento do fenômeno. Não tem como o profissional de saúde se meter na vida delas. É até arriscado [...] a gente vive em uma área que tem pessoal violento, traficantes. Então, ninguém se mete (TE-3). [...] o rapaz faz parte da questão do tráfico de drogas aqui, que é muito forte. Então, os próprios profissionais têm medo de represália e não notificam mesmo (E-1).

O estudo mostrou que as diversas questões sociais que demandam por apoio psicossocial e a não adoção da violência conjugal, como ação básica prioritária, constituem situações que dificultam as condições causais. Todavia, a interação multiprofissional, sobretudo pelo matriciamento, interfere de forma positiva. A esse conjunto de eventos denomina-se condições intervenientes.

Estratégias

As estratégias consistem em interações ou ações realizadas, ou a serem implementadas, percebidas como pertinentes e estratégicas para realizar ou responder a um fenômeno( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ). A fim de modificar o contexto, foram propostas as estratégias abaixo.

Propondo a inclusão da temática nos currículos

A inclusão da temática violência contra a mulher nos currículos da graduação, através de estágios de vivência e da clínica, foi pensada como ação que favoreceria o melhor preparo profissional para o cuidado à mulher. Eu acho importante estudar isso na formação [...] a parte de vivência: de vir às unidades, de atender na comunidade, de fazer visita, andar com assistentes sociais, ver como é a comunidade, vivenciar o atendimento junto e dentro da unidade. Acho que é importante para saber o que está te esperando na realidade [...] para poder lidar e para identificar porque, às vezes, as pessoas não falam nada (M-3).

Defendendo a necessidade de articulação dos serviços

A articulação intersetorial foi mencionada como estratégia que viabiliza o processo de enfrentamento da violência conjugal, sendo essa uma necessidade expressa pelos profissionais que atuam na ESF. [...] é preciso reforçar um vínculo dessas entidades com a Saúde da Família [...]. Eu acho que o caminho é esse. [...] se a gente tivesse esse vínculo com o órgão responsável pela saúde da mulher, facilitaria bastante (E-2).

Organizando-se para a gestão do cuidado à mulher

Ainda como estratégia, foi indicada a organização da unidade de saúde para a gestão do cuidado à mulher em situação de violência. Os profissionais propuseram a maior divulgação dos serviços para os quais as mulheres possam buscar apoio e apresentação do quadro epidemiológico do agravo. Sinalizaram-se, ainda, ações no sentido de melhor prepará-los, o que pode se dar por meio de capacitações, treinamentos, discussões em reuniões, inclusive através de parceria com a universidade. Eu acho que em um primeiro momento esse dado de violência deveria ser exposto para a equipe: o quanto isso ocorre [...] para que, em cima desses dados, a gente trabalhar através de educação permanente trazendo elementos para equipe, capacitando melhor a equipe para detectar esse tipo de situação (C-5). Eu acho que a gente mesmo, tendo um tempo de discussão em reuniões mensais, a gente pode trazer o que aqui não está funcionando (M-4). [...] fazer uma parceria com o apoio das universidades, com o apoio das pessoas que estão ali fazendo estudos e aprimorando (E-1).

A inclusão da temática violência doméstica nos currículos dos cursos de graduação, a articulação intersetorial e a gestão da unidade para o cuidado à mulher, em situação de violência, foram consideradas estratégias de enfrentamento da violência conjugal.

Diante das estratégias elencadas, o estudo sinaliza a complexidade que permeia a temática violência conjugal, visto que as duas primeiras categorias transcendem o poder local de resolutividade, requerendo interações e ações com diferentes segmentos sociais e institucionais, de âmbito local, municipal, estadual e federal, para a sensibilização e implementação de estratégias que garantam a inclusão temática nos currículos bem como a articulação intersetorial.

Consequências

Por consequências, entende-se o resultado ou expectativas das estratégias de ação/interação( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ). Assim sendo, as consequências foram representadas a partir da categoria "Promovendo o cuidado integral à mulher no âmbito da ESF". As falas a seguir permitem visualizar os significados atribuídos pelos profissionais às consequências das estratégias para o processo de cuidar das mulheres em situação de violência conjugal. [...] não tomar atitude que no final vão piorar a situação. [...] aprender como agir nessas situações, saber como lidar, como encaminhar e saber como abordar também (E-3). [...] a gente deve conduzi-la [...] para que não volte para situação de agressão de novo (TE-1).

Percebe-se que, se implementadas ou intensificadas, as estratégias de ação/interação, propostas pelo estudo, os profissionais estarão mais preparados para reconhecer a violência conjugal como causa associada à demanda da mulher pelo serviço de saúde, em qualquer espaço de interação com a usuária, seja nas consultas, nas atividades educativas etc. Estarão também mais preparados para o atendimento à mulher, que requer notificação dos casos suspeitos e confirmados, encaminhamentos das mulheres considerando suas demandas e acompanhamento dos casos. Estar preparado para o reconhecimento do agravo e o atendimento à mulher podem empoderá-las para o enfrentamento da violência vivenciada na relação conjugal.

Discussão

Sendo abstrata e interpretativa, a compreensão teórica não se dá a partir do raciocínio linear e sim em conexões( 1414. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed;2009. 272 p. ). Nesse sentido, o fenômeno "Reconhecendo a violência conjugal como problema de saúde pública e a necessidade de gestão do cuidado à mulher" emerge das conexões entre as categorias representativas do modelo paradigmático, que expressa o contexto, as condições causais, as condições intervenientes, as estratégias e a consequência, referentes ao que está acontecendo no cenário do estudo.

Os significados atribuídos pelos profissionais à violência conjugal revelam compreensão acerca de sua complexidade e magnitude. A desigualdade de gênero, a dependência econômica, o uso de álcool, drogas pelo companheiro e/ou seu envolvimento no tráfico de drogas foram apontados como eventos relacionados à ocorrência da violência conjugal e a permanência da mulher na relação. Como consequências foram mencionadas as implicações sobre a saúde da mulher e dos filhos, sobre o SUS e sobre a produtividade econômica.

Independente da forma como se expresse, a vivência de violência desencadeia nas mulheres problemas de saúde de ordem física, psicológica e comportamental, tais quais: hematomas, queimaduras, danos relacionados à somatização da violência vivenciada, como hipertensão, dores epigástricas, cefaleia, aborto, ansiedade, depressão, síndrome do estresse pós-traumático e tentativa de suicídio( 1010. Gomes NP. Trilhando caminhos para o enfrentamento da violência conjugal [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2009. , 1515. Ministério da Saúde (BR).Secretaria de políticas para as mulheres. Balanço central de atendimento à Mulher [Internet]. 2010. [acesso 1 dez 2011]. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2010. Disponível em: http://www.sepm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2010/10/balanco-da-central-de-atendimento-a-mulher.
Disponível em: http://www.sepm.gov.br/no...

16. Taft CT, Resick PA, Watkins LE,Panuzio J. An investigation of posttraumatic stress disorder and depressive symptomatology among female victims of interpersonal trauma. J Familiar Violence. 2009;24:407-15.
- 1717. Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. The violence of gender and health-disease process of women. Esc Anna Nery. 2009;13(3):625-31. ).

Expostas a um cotidiano de violência familiar na infância e juventude, as crianças apresentam dificuldades no aprendizado escolar, tendendo a reproduzir a violência como forma de solucionar os conflitos interpessoais nas relações sociais, inclusive nas relações conjugais( 1010. Gomes NP. Trilhando caminhos para o enfrentamento da violência conjugal [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2009. , 1818. Gomes NP, Diniz NMF. Experiencing familiar violence: men who commit violence against their mates. Rev Bras Enferm. 2005;58(2):176-9. ). Esses dados corroboram os significados atribuídos pelos entrevistados no que tange às implicações da violência conjugal sobre a vida dos filhos.

A respeito das implicações para a produtividade econômica revelada pelo estudo, é importante salientar que o sofrimento físico e/ou mental compromete o desenvolvimento social e produtivo das mulheres, estando associado ao absenteísmo e ao impacto nas condições de trabalho da mulher( 44. Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Life-long domestic violence against women: prevalence and immediate impact on health, work, and family. Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. ), com impactos sobre o PIB( 66. Superintendência de Política para Mulheres (SPM) (BR). Violência contra a mulher custa 10% do PIB brasileiro [Internet]. [acesso 31 out 2012]. Disponível em: http://www.spm.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=405&Itemid=2.
Disponível em: http://www.spm.salvador.b...
), corroborando o entendimento do fenômeno enquanto problema de saúde pública.

Embora demonstrem conhecimento teórico acerca da temática, o estudo revela a dificuldade de alguns profissionais em identificar a violência conjugal como causa associada à busca da mulher pelo serviço de saúde. Revelou-se também, neste estudo, o despreparo para o atendimento, inclusive no que tange às notificações e encaminhamentos.

Muitas vezes, os profissionais de saúde não se sentem preparados para lidar com os sentimentos que envolvem a abordagem à mulher inserida em um contexto de violência doméstica, refletido na ambiguidade entre negar a situação e o dever de ajudar a mulher. Estudos revelam que muitos profissionais referem não conhecer os serviços, seu fluxo, e não se articulam com eles, situação que compromete os encaminhamentos. Tais situações sugerem o despreparo profissional e vem sendo mencionado em diversos estudos, sendo a ausência da temática na graduação um dos motivos apontados( 1010. Gomes NP. Trilhando caminhos para o enfrentamento da violência conjugal [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2009. , 1919. Tomaz SNM, Galvão LLLF, Melo COM,Azevedo GD. Violencia física contra la mujer en la perspectiva de profesionales de la salud. Rev Saúde Pública. 2008;42(6):1053-9. - 2020. Santi LN, Nakano AMS, Lettiere A.Domestically abused Brazilian women's perceptions about support and received support in its social context. Texto Contexto Enferm. 2010;19:417-24. ).

É importante que os profissionais estejam preparados para o reconhecimento de sinais e sintomas relacionados à vivência de violência, bem como exercitem a escuta sensível, a fim de identificar seus anseios. São as demandas das mulheres que direcionarão a conduta profissional, a qual deve primar por assistência dentro dos preceitos constitucionais da integralidade, a fim de que a mulher seja contemplada em diversos campos de necessidades. Para isso, torna-se essencial as articulações intersetoriais. Isso porque o cuidado à mulher requer o conhecimento sobre serviços de saúde e também aqueles vinculados à esfera jurídica, policial, social, psicológica e, ainda, das redes de apoio informal( 2020. Santi LN, Nakano AMS, Lettiere A.Domestically abused Brazilian women's perceptions about support and received support in its social context. Texto Contexto Enferm. 2010;19:417-24. ).

Diante do exposto e considerando o papel da ESF na promoção à saúde, pesquisas assinalam a necessidade de capacitação dos profissionais e desenvolvimento de ações específicas para a prevenção de agravos como a violência( 1010. Gomes NP. Trilhando caminhos para o enfrentamento da violência conjugal [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2009. , 2121. Minayo MCS, Souza ER. Is it possible to prevent violence? Reflections in public health area. Ciênc Saúde Coletiva. 1999;4(1):7-32. ). A necessidade de organização da unidade de saúde para a gestão do cuidado à mulher em situação de violência foi mencionada pelos profissionais entrevistados enquanto estratégia de enfrentamento do fenômeno, o que inclui a divulgação dos serviços e articulação intersetorial e capacitações dos profissionais para o reconhecimento e atendimento à mulher, inserida no contexto da violência conjugal. A parceria com a universidade e a inclusão da temática violência contra a mulher nos currículos da graduação também foram referidas como ações estratégicas.

A inclusão da temática nos currículos da graduação, através de estágios de vivência e da clínica, foi sugerida como estratégia para superação desse contexto. Infelizmente, ainda é limitada a preocupação dos órgãos formadores com a inserção do tema violência intrafamiliar nos currículos dos cursos de enfermagem e medicina, sendo encontrada nas ementas de 16% das disciplinas de enfermagem e 23% nos cursos de medicina( 2222. Souza ER, Penna LHG, Ferreira AL,Tavares CMM, SantosNC. O tema violência intrafamiliar em currículos de graduação em enfermagem e medicina. Rev Enferm UERJ.2008;16(1):13-9. ). Vale salientar que a Lei Maria da Penha preconiza a inclusão de conteúdos sobre gênero e violência doméstica e familiar contra a mulher nos currículos escolares de todos os níveis de ensino( 11. Lei Maria da Penha (BR).Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília: Presidência da República; 2006. ).

Entender a complexidade em torno da violência conjugal favorece o reconhecimento do agravo e permite ampliar o olhar para a violência como objeto da saúde, incitando a incorporação de atitudes, crenças e práticas que transcendem o cuidado puramente técnico( 2121. Minayo MCS, Souza ER. Is it possible to prevent violence? Reflections in public health area. Ciênc Saúde Coletiva. 1999;4(1):7-32. , 2323. Carneiro AA, Fraga CK. Maria da Penha's Law and the legal protection to women who are victims in the city of São Borja (Rio Grande do Sul): from reported violence to violence silenced. Serv Social Soc. 2012;(110):369-97. ). Uma prática que vem sendo incorporada no município diz respeito à experiência de interação multiprofissional entre profissionais da equipe mínima e do Nasf. Enfermeiros e médicos entrevistados declararam que diante de situações de violência conjugal referenciam as mulheres para apoio psicossocial junto ao Nasf e que o matriciamento favorece uma abordagem mais ampliada. O Nasf é composto por profissionais de diferentes áreas do saber e sua atuação vem reduzindo a peregrinação das mulheres na busca de suporte para o enfrentamento da violência( 1212. Superintendência de Políticas para Mulheres (SPM) (BR). Balanço semestral do ligue 180 (janeiro à junho/2012). Brasília: Presidência da República; Secretaria de Políticas para Mulheres; 2012. , 2424. Andrade CJM, Fonseca RMGS. Considerações sobre violência doméstica, gênero e o trabalho das equipes de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):591-5. ).

Os entrevistados, contudo, se queixam quanto ao reduzido número de profissionais psicólogos e assistentes sociais para atender a demanda da comunidade, cujos problemas sociais não se limitam à violência contra a mulher. Essa situação leva a se questionar a responsabilização da Atenção Primária à Saúde, porta de entrada do usuário, no acompanhamento da mulher nos níveis de atenção necessários para que essa tenha sua demanda atendida. Tal contexto é preocupante, pois a não intervenção profissional dificulta o processo de empoderamento da mulher para o enfrentamento do fenômeno e viola as premissas do SUS, sobretudo no que diz respeito à promoção da saúde e à prevenção de agravos no âmbito da ESF( 2424. Andrade CJM, Fonseca RMGS. Considerações sobre violência doméstica, gênero e o trabalho das equipes de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):591-5. ).

Considerando a responsabilidade pela saúde das pessoas na abrangência de seu território, o que engloba a busca por resposta independente do nível de sua complexidade, a atenção primária deve buscar táticas para garantir o cuidado à mulher em situação de violência conjugal, respeitando, assim, o princípio de equidade.

As políticas públicas precisam estar em conformidade com esse princípio constitucional, no sentido de considerar as singularidades e especificidades do modo de viver dessas mulheres, de adoecer e de ter suas demandas atendidas. É preciso dar visibilidade à discriminação de gênero - e muitas vezes de raça e classe social, a que as mulheres em situação de violência conjugal são historicamente vitimizadas. A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres defende a necessidade de políticas para o empoderamento das mulheres, prevenção e enfrentamento das discriminações de gênero e da violência contra as mulheres( 2525. Superintendência de Políticas para as Mulheres (SPM) (BR). Politica nacional de enfrentamento à violência contra a mulher. Brasília: Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres; Secretaria de Políticas para as Mulheres; 2011. ).

Conclusão

O fenômeno "Reconhecendo a violência conjugal como problema de saúde pública e a necessidade de gestão do cuidado à mulher", apreendido a partir dos significados atribuídos pelos profissionais que atuam na ESF, permite compreender o movimento de ação e interação acerca do cuidado à mulher em situação de violência conjugal.

Embora os profissionais entrevistados demonstrem entender a violência conjugal como agravo à saúde pública, o contexto emerso sinaliza para a pouca visibilidade da violência conjugal no âmbito da ESF e referência dos casos identificados para atendimento psicossocial junto ao Nasf. É essencial uma formação com o olhar para a violência doméstica como objeto da saúde, seja pelo contato no espaço assistencial seja pelo vínculo na ESF. Em especial para enfermagem, chama atenção o fato de que o enfermeiro integra a equipe mínima da ESF e vem ocupando os cargos de gestão da unidade de saúde.

A abordagem da temática na formação profissional e espaços de capacitações nos serviços permitirão melhor preparo profissional para o cuidado à mulher. Daí a necessidade de gestão das unidades de saúde, o que requer preparo dos profissionais para o reconhecimento do agravo e articulação intersetorial para a realização de encaminhamentos. Acredita-se que a gestão do serviço para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal aumentaria as chances da identificação desse agravo e as possibilidades de a mulher ser ajudada, contribuindo para o fortalecimento do SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2014

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2012
  • Aceito
    31 Out 2013
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