Open-access Reflexões sobre o dualismo metodológico nas pesquisas em saúde

EDITORIAL

Membro da Comissão de Editoração da Revista Latino-Americana de Enfermagem, Professor Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, daUniversidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, Brasil, e-mail: furegato@eerp.usp.br

A enfermagem congrega conhecimentos oriundos de diferentes ciências teóricas e de diferentes áreas aplicadas envolvendo o biológico, o humano e o social. A produção deste conhecimento específico visa contribuir para melhorar a qualidade do cuidado e obter melhores níveis de saúde para os seres humanos.

Partindo do pressuposto de que a verdade do conhecimento é a base que determina o entendimento de como as pessoas se relacionam, vale questionar os adjetivos que a ela são atribuídos e as ações empreendidas em sua direção, em contextos que podem ser reais ou não: qual é o alcance da racionalidade dos saberes? qual é a extensão da diversidade do conhecimento? é possível confiar nestes saberes e na sua racionalidade?

A superação dos antagonismos entre as perspectivas antes consideradas opostas, excludentes e incompatíveis nas suas posições epistemológicas e ontológicas sobre a natureza da investigação e da sociedade torna obsoleto defender o positivismo descritivo de números em contraposição às escolas qualitativas descritivas de palavras.

Entretanto, há que se repensar as formas de legitimidade do conhecimento, aproximando-se a verdade do fato (quantitativo), da verdade do discurso(qualitativo).

A pesquisa quantitativa, positivista, procura documentar fatos objetivos da realidade e tem interesse na expressão numérica dos fenômenos. Supõe a separação entre sujeito observador e "objeto" observado. Sustenta a existência de uma realidade objetiva, submetida a leis "imutáveis".

A pesquisa qualitativa procura reconstruir os padrões simbólicos, expressos de modo intersubjetivo; está interessada na heterogeneidade e na lógica relacional, expressa em palavras e imagens. Admite o papel da ideologia assim como da subjetividade.

Em principio, são formas paradigmáticas distintas de conceber a realidade, de conceber os eixos determinantes do tecido social, de estratégias e instrumentos metodológicos, de reflexões ideológicas sobre os problemas humanos.

Entretanto, as ciência exatas não são isentas de valores pois no ato de conhecer existe o interesse em transformar. Por outro lado, a subjetividade, isoladamente não dá conta do contexto onde se forma ou que transforma. Além disso, a falta de materialidade da qualidade sugere "falsamente" sua imponderabilidade.

A matematização do mundo coincide com o surgimento da sociedade burguesa. O século XX marca o fortalecimento das bases teóricas e epistemológicas questionadoras, sob a perspectiva quantitativa e estatística. Procura descobrir leis independentemente do contexto sócio, cultural, histórico e político. A relação causa-efeito está presente no desenho de variáveis dependentes e independentes onde são válidos os conhecimentos dos fenômenos que podem ser contados, medidos ou comprovados.

O marxismo provocou uma intensa reflexão sobre as bases do conhecimento porém trouxe uma supervalorização do social.

O "neo" positivismo exclui a ingenuidade objetiva, reconhece a falta de sustentação radical sujeito/objeto e utiliza diferentes métodos de forma complementar. Considera a ciência livre de valores pré concebidos, buscando a explicação, a predição e o controle dos fenômenos, não apenas em números mas também em palavras.

O paradigma construtivista opõe-se ao positivismo quando não pretende predizer, nem controlar e nem transformar o mundo natural mas busca reconstruir e entender o universo, a partir da mente dos seres que o constroem.

Nos campos aplicados como a saúde, a integração dessas diferentes perspectivas tem sido cada vez mais frequentes devido à complexidade e ao grau de conhecimento relativo aos problemas humanos e sociais. Por isso, o uso de métodos mistos ou múltiplos é uma tendência presente na enfermagem(1).

O crescente interesse da enfermagem pela busca de conhecimentos, os investimentos na formação de pesquisadores e na produção de conhecimento próprio encontra resposta nas revistas especializadas que publicam mais e melhores trabalhos nesta área.

Entretanto, em centros de pesquisa, em instituições de fomento e nos meios de divulgação continua prevalecendo o interesse por resultados de pesquisas quantitativas. Os veículos de publicação internacionais são financiados e sustentados por agências que esperam resultados e, portanto, publicam preferencialmente pesquisas reproduzíveis e de "impacto".

A critica maior em relação aos métodos qualitativos é tanto a falta de rigor como a insuficiente reflexão teórica. Encontram-se muitos estudos que não explicam claramente suas metodologias, nem critérios de validade e confiabilidade de seus instrumentos de busca e dizem muito mais dos pesquisadores do que dos objetos ou sujeitos do estudo, ficando seus resultados no nível intuitivo.

A escolha do tema de estudo, a delimitação do universo de trabalho, as variáveis de interesse, os critérios de seleção dos sujeitos, as técnicas de observação, de coleta, de organização e de tratamento dos dados podem ter por base uma busca qualitativa, susceptível de ter seus dados apresentados de forma numérica mesmo quando não se pretende exatidão ou generalização.

É possível medir fenômenos e predizer condutas com enfoque qualitativo. Mais do que verificar hipóteses ou teorias, busca-se identificá-las, durante o processo investigativo, tal como nos casos de pesquisas sobre os conhecimentos, atitudes, opiniões relativas a um objeto específico.

Os testes psicométricos, diversos tipos de escalas, técnicas projetivas, softwares com análises semânticas são exemplos de recursos usados pelos pesquisadores na busca de sentido e significação dos fenômenos, através da expressão dos sujeitos, medidas com recursos estatísticos.

Supõe-se, nestes casos, que diversos instrumentos de medida e de observação estão sendo desenvolvidos, admitindo-se circulação consciente entre as diferentes perguntas da pesquisa.

A integração de métodos qualitativos e quantitativos, tanto na fundamentação teórica como nas pesquisas aplicadas valoriza o rigor em todos os procedimentos científicos, desde seu desenho até as suas conclusões.

Dessa forma, o processo de investigação em saúde utiliza-se de técnicas de obtenção dos dados que evocam os processos de vida cotidiana contextualizados e que permitem avançar no conhecimento dos fenômenos que determinam o estado de saúde e da doença bem como os avanços terapêuticos e de cuidado a estes sujeitos.

Portanto, da dicotomia na qual se baseia o positivismo em direção ao paradigma do trabalho cientifico que contempla toda a sua complexidade e o caráter processual da realidade, o foco não deve estar no método mas no desenho e na seriedade de condução da pesquisa ou do estudo.

Por um lado, as informações qualitativas recebem o aporte do contexto relacional para entendimento da subjetividade mas, por outro lado, a quantificação assegura a incorporação de técnicas e procedimentos de decisão, aumentando o alcance e o valor das explicações.

Aceitando-se que o saber é algo construído através da relação do homem com o mundo, aceita-se a fórmula sujeito-objeto-sujeito, superando assim a dicotomia entre objeto puro e sujeito puro, pois toda a realidade humana implica em perspectivas múltiplas.

Superar este dualismo permite ao pesquisador produzir novos níveis de elaboração teórica e de contribuição para o avanço do conhecimento e das práticas da enfermagem.

REFERÊNCIAS

Referências bibliográficas

  • Driessnack M, Souza VD, Mendes IAC. Revisão dos desenhos de pesquisa relevantes para a enfermagem. Parte 3: Métodos mistos e múltiplos. Rev Latino-Am. Enfermagem 2007;15(5):1048-9.
  • Reflexões sobre o dualismo metodológico nas pesquisas em saúde
    Antonia Regina Ferreira Furegato
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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