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A reabilitação psicossocial no atendimento em saúde mental: estratégias em construção

Resumos

Este estudo teve como objetivos identificar as representações elaboradas por profissionais de serviços substitutivos acerca da reabilitação psicossocial, e as dificuldades por eles encontradas na efetivação da assistência em Saúde Mental. Adotando abordagem qualitativa, a pesquisa teve a participação de quinze sujeitos, que foram ouvidos através da entrevista semi-estruturada. Identificou-se que a reabilitação é vista como processo complexo que enfrenta obstáculos diversos para a concretização de seus objetivos, e que as mudanças ocorridas na assistência solicitam, de cada profissional, disponibilidade e flexibilidade.

apoio social; saúde mental; formação de conceito


This study aims to identify the representations about Psychosocial Rehabilitation by Mental Health professionals working in open services, and also the difficulties they have met in the process of turning the care effective for the population. The study uses a qualitative methodology, collecting data by means of semistructured interviews with 15 subjects. The professionals identify the rehabilitation process as complex, meeting several obstacles and requiring their dedication and a flexible attitude to achieve the expected results.

social support; mental health; concept formation


La finalidad de este estudio es identificar las representaciones sobre la rehabilitación psicosocial por los profesionales de Salud Mental que trabajan en servicios abiertos, y también las dificultades que han encontrado en el proceso de hacer la atención eficaz para la población. El estudio utiliza una metodología cualitativa, recogiendo datos por medio de las entrevistas semi-estructuradas hechas con 15 personas. Los profesionales identifican el proceso de la rehabilitación como complejo, con varios obstáculos, a requerir su esmero y una actitud flexible para alcanzar los resultados previstos.

apoyo social; salud mental; formación de concepto


ARTIGO ORIGINAL

A reabilitação psicossocial no atendimento em saúde mental: estratégias em construção1 1 Trabalho extraído de Tese de Livre-Docência

Maria Alice Ornellas Pereira

Professor Adjunto da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Brasil, e-mail: malice@fmb.unesp.br

RESUMO

Este estudo teve como objetivos identificar as representações elaboradas por profissionais de serviços substitutivos acerca da reabilitação psicossocial, e as dificuldades por eles encontradas na efetivação da assistência em Saúde Mental. Adotando abordagem qualitativa, a pesquisa teve a participação de quinze sujeitos, que foram ouvidos através da entrevista semi-estruturada. Identificou-se que a reabilitação é vista como processo complexo que enfrenta obstáculos diversos para a concretização de seus objetivos, e que as mudanças ocorridas na assistência solicitam, de cada profissional, disponibilidade e flexibilidade.

Descritores: apoio social; saúde mental; formação de conceito

INTRODUÇÃO

O processo de transformação pelo qual vem passando a assistência psiquiátrica no país tem desencadeado complexas mudanças estruturais, levantando discussões sobre a necessidade de reorganização da prática dos profissionais da equipe multidisciplinar de Saúde Mental, frente às novas formas de assistência adotadas. A criação de novos serviços ligados às redes municipais e estaduais não significou somente alternativa à internação, mas a abertura de possibilidades de trabalho comunitário reintegrador ao contexto social, capaz de dar nova significação individual e social para as pessoas acometidas pelo transtorno mental e também para suas famílias.

A atual prática de assistência tende a seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde, no sentido de dotar recursos sempre menores aos hospitais psiquiátricos, deslocando-os em direção a estruturas comunitárias mais elásticas e contextualizadas. Embora os papéis que competem a cada um se encontrem em construção, não há dúvida quanto à necessidade de reorientação dos modelos de assistência, tendo em vista a importância da restituição do respeito à pessoa portadora de transtorno mental e o restabelecimento de seus laços sociais. Esse movimento de transformação traz conflitos e desafios a serem enfrentados, conduzindo a um outro saber que exige flexibilidade nas ações e papéis dos diversos profissionais da equipe.

Nessa ótica, a reabilitação psicossocial configura-se como conjunto de estratégias direcionadas a aumentar as possibilidades de trocas, a valorização das subjetividades e a proporcionar contratualidade e solidariedade, ultrapassando, assim, a mera implantação das redes de serviço.

A reabilitação, como estratégia, possibilita a recuperação da capacidade de gerar sentido, sendo capaz de restabelecer o exercício de cidadania, criando vínculos da pessoa que requer atenção com o serviço que a assiste. Assim, "a tarefa que tem o serviço de saúde mental é a de ajudar a pessoa que em algum momento de sua vida perdeu a capacidade de gerar sentido, acompanhando-a na recuperação de espaços não protegidos, mas socialmente abertos para a produção de novos sentidos"(1). Dessa forma, evidencia-se a mudança de relações de tutela para relações de contrato, fazendo emergir novas práticas nas instituições que adotam o processo de transformação da assistência psiquiátrica. Os atuais projetos voltados para o modelo de reabilitação psicossocial têm enfocado quatro aspectos: moradia, trabalho, família e criatividade (lúdico/artística).

Nos espaços criados também vagueiam inquietações e dúvidas sobre como fazer o cotidiano da assistência, como se direcionar para que os cuidados produzidos sejam de fato reabilitadores e produtores de sentido. É um desafio para os profissionais, em sua capacidade de estabelecer vínculos e estar receptivo ao outro. Torna-se imprescindível que os atores da transformação da assistência psiquiátrica sejam mais comprometidos eticamente com a assistência e com seu próprio desejo, e que se perguntem continuamente: "O que estou fazendo aqui?", e a cada dia reconstruam a sua resposta, configurando-se, assim, uma dinâmica de ir-e-vir de práticas representadas(2). Isso leva a refletir que a troca de experiências e o compartilhamento de saberes podem ampliar a compreensão, facilitando as intervenções reabilitadoras.

Tendo em vista o processo de transformação da assistência em Saúde Mental, este estudo teve como objetivos identificar as representações elaboradas por profissionais de serviços substitutivos acerca da reabilitação psicossocial, e as dificuldades por eles encontradas na efetivação das novas práticas.

METODOLOGIA

Esta pesquisa insere-se nos pressupostos do método qualitativo de investigação, onde se trabalha com a significação que um indivíduo ou um determinado grupo atribui aos fenômenos que lhe dizem respeito. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como fonte direta dos dados, e o pesquisador como seu principal instrumento(3).

Desenvolveu-se o estudo em dois serviços abertos da região de Ribeirão Preto, SP: o Hospital Dia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e o Núcleo de Atenção Psicossocial de Ribeirão Preto (NAPS/RP).

Os sujeitos participantes eram profissionais pertencentes às equipes técnicas do NAPS e HD: enfermeiros, psicólogos, médicos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Não se estabeleceu critérios prévios para a seleção. Foi feito convite aos profissionais, esclarecendo os procedimentos éticos da pesquisa, conforme projeto aprovado pelo Comitê de Ética da EERP/USP (Processo Nº 0292/2002). Houve adesão de todos os profissionais convidados que, no período de realização das entrevistas, se encontravam na ativa. As entrevistas foram gravadas, tendo a duração média de 30 minutos. Recorreu-se, aqui, à entrevista semi-estruturada para a coleta de dados. Eram colocadas para os sujeitos as seguintes questões: a) Como você entende a reabilitação psicossocial? b) O que considera importante para que ela ocorra? c) Quais são as dificuldades enfrentadas nesse processo?

A partir da "atenção flutuante"(4), foram feitas várias leituras dos textos transcritos, estabelecendo contato com o material obtido. A fase seguinte, constituiu-se da Análise Temática, que pertence à primeira fase do processo de Análise de Enunciação(5). A partir dessa fase, obteve-se cinco temas. Neste artigo, que é parte da pesquisa, apresenta-se os temas Autonomia e Inserção Social.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A reabilitação psicossocial aparece nas narrativas associada à idéia de autonomia, e remete à concepção do paciente enquanto pessoa a ser considerada em sua individualidade, valorizando as mudanças ocorridas como conquistas alcançadas.

... até ele vir e voltar para casa, estava lá dentro do quarto, isolado, sem se cuidar, não saía para nada, e agora o simples fato dele ser ativo, dele vir para o H.D. e voltar, eu acho que é reabilitação.

A consideração da pessoa em sua individualidade, associada às mudanças ocorridas no próprio profissional, que faz essa reflexão, valoriza os progressos no caminho da autonomia, abordando aspectos da vida diária.

... eu imaginava que a reabilitação seria colocar a pessoa em uma faculdade (...) hoje eu entendo que a reabilitação são pequenas coisas e que temos que valorizar (...) como tomar um banho, o auto-cuidado, cortar o cabelo, fazer a barba, cortar a unha.

Observa-se, pelo relato, que a autonomia é um conceito a ser elaborado pelo profissional.

Às vezes os próprios profissionais ajudam a cronificar as pessoas. Acho que falta o projeto terapêutico real, que vise à autonomia.

Também se relaciona a autonomia com a idéia de independência:

... é quando ele consegue ser mais independente, acho que varia de acordo com o grau de dependência, grau de doença dessa pessoa.

Uma concepção mais elaborada da autonomia refere-se ao engajamento do paciente em um processo de auto-organização.

... é a pessoa ter controle das coisas que sente e poder fazer algo de fato pela própria vida.

... acho que a compreensão do indivíduo de entender o mecanismo de cura não fica só na mão do médico, do psicólogo ou do enfermeiro, mas possibilita ele ter outras possibilidades dentro do que ele tem de capacidade.

Outra concepção, mais simples, enfoca apenas a inserção social.

... nosso objetivo é ir trazendo ele de volta para a vida social ou o mais próximo possível para a condição básica que ele tenha antes.

A diversificação do olhar do profissional e o deslocamento de sua atenção do enfoque da doença estimulam descobertas importantes na assistência, possibilitando a ampliação de perspectivas para o paciente, e facilitando a disposição para o cotidiano da vida.

A autonomia é uma condição para a pessoa gerar normas, ordens para a própria vida, de acordo com as situações a serem enfrentadas. Há, ocasionalmente, entendimento equivocado das relações entre autonomia, auto-suficiência e independência. Todos temos dependências, porém, a pessoa com transtorno mental depende excessivamente de poucas relações/coisas, e essa situação limitada pode diminuir sua autonomia(6).

Nesse contexto, as relações de troca, com amplas dimensões, constitui-se em elo demarcador do processo de reabilitação, dando seqüência aos vários níveis de contratualidade, quer sejam afetivos, materiais, ou simbólicos. Na medida em que a pessoa aumenta o seu poder de efetuar trocas, cresce proporcionalmente o seu poder contratual, podendo estender-se à autonomia como condição adquirida pelo paciente através de sua participação no próprio processo reabilitador.

É evidente que o envolvimento, o compromisso e a participação do profissional são aspectos de grande valor e também facilitadores para que a pessoa em sofrimento psíquico possa reconstruir e retomar seu próprio caminho. Porém, esse caminho sem fim pré-determinado, terá o percurso que o caminhante puder/quiser andar, tendo o profissional como elemento catalisador e como referência importante nos percursos subjetivos.

As falas acima citadas também sugerem a consideração de possibilidades de ocorrência da auto-reorganização pessoal, originária da participação dinâmica do paciente enquanto principal ator no cenário das probabilidades. Após o "desabamento" ocasionado pela experiência de conviver com as questões próprias do transtorno mental, poderá se iniciar o período de reconstrução, quer seja do aparelho psíquico, da personalidade, de significações e de afetos. Essa diversidade exige projetos que considerem a subjetividade, que mantenham a idéia de conjunto com amplas interligações.

A reabilitação no sentido de inserção social foi trazida nas narrativas associadas à idéia de pertencimento e de movimento, que traz para si algo que ficou adormecido. Na autoridade do aparato manicomial, imbuído pela relação sujeito-objeto, ocorre a padronização de procedimentos, despersonalizando pessoas, num ciclo silencioso, que conduz a estados cronificados tanto do paciente, da instituição e dos profissionais. Ligada à inserção aparece a idéia de resgate.

... é reconstruir alguma coisa que se perdeu dentro do hospital (...) a gente pode tentar promover espaços para que ele possa retomar as suas coisas, incluindo, podendo participar.

O vínculo com empresas é bom, aqui a gente não tem essa parceria e é muito difícil que um paciente desses casos mais graves, voltem a trabalhar.

Assim, a noção de restituição de partes perdidas aparece ligada à possibilidade do paciente poder resgatar a si: "só aquilo que emerge do núcleo do ser de cada um pode ser vivenciado como real. Uma vida aparentemente normal pode ser mantida a partir do falso self, enquanto o indivíduo segue ausente de si mesmo, excluído da própria vida. É interessante notar que o falso self é, na verdade, uma defesa dissociativa que protege o verdadeiro self, enquanto este último permanece oculto"(7). Então, o que é ocultado dentro do hospital e configurado pelos sintomas de psicose pode conduzir ao processo de recuo da própria existência. A reconstrução do que parecia perdido tem dependência direta com os vínculos criados ao redor da pessoa, como têm ligação com a sensibilidade dos profissionais aos códigos desconhecidos.

Embora reabilitação, inserção e contexto também tenham sido trazidos pelos sujeitos como fatores interdependentes, aparece o descrédito quanto à possibilidade de existência de um conjunto de procedimentos ou estratégias interligadas à ampliação de redes interativas promotoras de trocas reais.

... é poder estar inserindo a pessoa no seu contexto, eu trabalho mais com o termo inserção do que com reabilitação, porque a reabilitação tem o pressuposto de estar integrando todos aspectos da pessoa e muitas vezes isso não é possível.

A narrativa do sujeito encontra contraposição nos pressupostos teóricos da conduta humana, quando se refere ao significado da conduta em uma determinada situação vivida(8). A qualidade do objeto é relacional e deriva das relações e condições nas quais se encontra cada objeto em cada momento.

Uma concepção frequente da reabilitação psicossocial a identifica como um processo complexo.

... envolve muitos fatores, está dentro de uma política transformadora de saúde mental e é um trabalho para levar a pessoa de volta à vida.

A complexidade da reabilitação psicossocial sugere a existência de contradições, indeterminações, probabilidades, dificuldades e ligações que contradizem o pensamento simplificador:

Vejo como um processo bastante amplo, complexo, bastante difícil para definir até onde vai, onde começa, porque o tanto de variáveis que a gente percebe interligadas ao processo de adoecimento são tantas e grandes.

... é complexo... engloba um olhar, uma atenção à revisão dos papéis sociais. Os familiares e o lugar do paciente na sociedade é um lugar que favorece o adoecimento ou a saúde.

A complexidade, referida nas narrativas dos sujeitos deste estudo, lembra a abrangência das interações entre as partes, que interferem e constróem o todo dinâmico, o qual nunca se esgota nem se reduz à soma dos elementos. A especifidade de cada parte, em contato com outras, modifica-se, como também se modifica o todo.

... são muitos os fatores diferentes, mas encaro reabilitação como uma teia, cada um dependendo do outro para construir alguma coisa.

A própria existência dessa "teia", trazida pelo sujeito, sugere vida e nessa estão implícitas dependências, contradições e ambigüidades que conduzem a nova compreensão e entrelaçamento dos fenômenos.

Dentre variáveis e contradições trazidas pelos sujeitos, a família e a posição do paciente na sociedade foram citadas como fatores que influenciam o processo saúde/doença. Assim, há extensão de fronteiras de referência significativas para o grupo social mais amplo, não se limitando apenas à família, mas incluindo o conjunto de vínculos interpessoais, considerando a cultura, o trabalho, os amigos, e entendendo a importância dessa visão social sendo metabolizada também pelos profissionais.

... a complexidade do trabalho de reabilitação exigiria altíssimos investimentos no desenvolvimento dos profissionais que tratam e no desenvolvimento de metodologias de tratamento.

Para o sujeito, a dificuldade encontra-se focalizada no preparo e na competência dos profissionais que assistem pessoas em situações complexas, deixando transparecer expectativas pessoais remotas sobre a efetivação do processo reabilitador, como se houvesse distanciamento de possibilidades reais para que tal fato aconteça. Entre as condições que os profissionais consideram importantes para que ocorra a reabilitação psicossocial, identifica-se a necessidade de uma equipe preparada e assistida, assim como a necessidade de maior informação para o paciente e a sociedade e, também, a necessidade de assistência deslocada do "foco doença". Emerge como ponto comum na fala a importância do concurso de várias linhas de atuação na construção de uma nova assistência, a qual não comporta a supremacia de um conhecimento único.

Uma boa equipe, justamente pelos fatores serem diversificados, o que vai implicar no esforço de vários profissionais de diferentes áreas, trabalhando de forma conjunta.

O trabalho em equipe é importante, é fundamental que a equipe tenha competência para o diagnóstico de necessidades.

... os profissionais às vezes têm no rótulo papéis diferentes, na etiqueta da embalagem mas o conteúdo não é diferente, você abre e são todos do mesmo cheiro, do mesmo aspecto então aí, o processo de R.P.S. já fica manco porque eles têm saberes e competências diferenciadas, não são capazes de fazer diagnósticos diferenciados e muito menos planejamento terapêutico diferenciado.

Embora as narrativas considerem a importância da equipe, demonstram inquietações quanto ao produto derivado de seu desempenho, o qual, segundo os sujeitos, pode não ser capaz de apreender as necessidades reais das pessoas. Isso sugere que os procedimentos executados pelo conjunto da equipe, nem sempre poderão trazer os benefícios das necessidades satisfeitas, ou seja, na produção de ações, nem sempre está presente a dinâmica esperada entre necessidades identificadas e intervenções possibilitadoras de vida.

A questão da delimitação de papéis é bastante difícil na Saúde Mental, lembrando que, especificamente nessa área, o bom relacionamento da equipe é imprescindível(9). Entretanto, a não-rigidez de papéis, a flexibilização desses, respeitando-se a formação profissional de cada um, e a fluência dinâmica do cotidiano do atendimento nos serviços abertos, solicitam a competência, responsabilização e compromisso frente à demanda que se apresenta. O tipo de serviço e a organização da equipe, que presta atendimento, são variáveis que determinam a evolução do processo de doença e a eficácia das intervenções, sendo essas pautadas pelos vínculos estabelecidos no acolhimento e na solidariedade(1).

A preocupação em desenvolver aprimoramento de dispositivos capazes de lidar com a gama de solicitações, trazidas por cada paciente, é bastante presente no discurso dos sujeitos.

A boa equipe é importante, o que acontece é que muitas vezes o serviço se torna uma colônia de férias, uma coisa assim, porque é um espaço protegido, às vezes o paciente melhora porque proteção faz bem, mas se passa longe de perceber as reais necessidades do paciente. A conseqüência disso é uma abordagem mais superficial porque se tem uma certa melhora, mas depois vem a recaída rápida.

A possibilidade do profissional ter um olhar plural aumenta a sua competência, e a sua responsabilidade para com a assistência que busque a geração de significados subjetivos, redescobrindo recursos de acordo com o tempo e o limite de cada um. Também evidencia a importância do profissional desenvolver condições de suportar o sofrimento psíquico do outro que se apresenta à sua frente, e organizar sua própria experiência.

Os serviços abertos precisam se caracterizar como lugares de acolhimento, porém não de permanência das pessoas(10). Observa-se que tal pensamento está diretamente ligado às condições desenvolvidas pelos profissionais para compreender as experiências subjetivas do sofrimento e, conseqüentemente, desenvolver intervenções que de fato alcancem as reais necessidades do paciente.

Os sujeitos revelam a importância da diversidade de conhecimentos na assistência.

... é necessário que haja competências técnicas distintas, específicas, método de trabalho específico para desenvolver os diferentes planejamentos de Reabilitação.

No contexto da classificação de tecnologias para a assistência em saúde, considera-se que, aquelas baseadas na existência de vínculos, de acolhimento, de promoção de autonomia, não possuem campos específicos ou rígidos para nenhum profissional, mas são a base para a atuação de todos, através da mediação de saberes construtores de estratégias de intervenções efetivas(11). Entretanto, a proximidade com o sofrimento psíquico, advindo do transtorno mental, provoca a busca de dispositivos ou recursos internos do profissional que, muitas vezes, são sentidos como difícieis de serem vividos.

... a equipe tem uma tarefa das mais difíceis que é trazer o paciente para perto, para o serviço porque não dá para tratar de longe. O tratamento depende do vínculo, tem que tratar de perto. Isso exige alto treinamento e também muito ajuda. De uma maneira geral, isso não faz parte da realidade das pessoas que trabalham em saúde mental.

A narrativa, além de revelar uma queixa sobre a carência de cuidados com quem cuida, demonstra a dificuldade de lidar com questões abstratas, ter continência, estabelecer vínculos e ter como instrumento maior de trabalho a própria pessoa. Se o objeto de cuidado é o ser humano, a prática desse cuidado está ligada às reflexões e revisões da vida de quem presta a assistência, o que solicita do profissional a percepção de seus próprios sentimentos, e a ampliação contínua das possibilidades de lidar com eles. Isso pressupõe que as qualidades do objeto são sempre relacionais; dessa forma, o emergente é situacional, e deriva de um campo(8). Tal pensamento nos ajuda a refletir a respeito da importância da flexibilidade e da possibilidade de desenvolvimento de relações interpessoais positivas.

COMENTÁRIOS FINAIS

Os profissionais da equipe multidisciplinar de Saúde Mental representam a reabilitação psicossocial como um processo complexo de desenvolvimento da autonomia dos portadores de transtorno mental, possibilitando sua inserção social e o abandono de uma visão unilateral dos sintomas. Os profissionais consideram importante, para a ocorrência da reabilitação psicossocial, a elaboração do planejamento terapêutico, juntamente com equipe competente, que faça o diagnóstico das necessidades dos pacientes, fornecendo-lhes maior informação e melhoria do tratamento, ao se considerar as potencialidades de cada um, ao invés do enfoque nas limitações acarretadas pela doença mental.

Dentre as dificuldades e desafios encontrados para se colocar em prática a reabilitação psicossocial, foram citadas a falta de preparo adequado dos profissionais, aliada à política de saúde mental indutora da dependência do paciente e à complexidade do trabalho a ser desenvolvido (envolvendo as famílias dos pacientes e parcerias com agentes sociais), dificuldades que são agravadas pelos preconceitos, estigmas e prévio processo de exclusão social sofrido pelos pacientes.

Os resultados obtidos neste estudo sugerem que o processo de transformação da assistência psiquiátrica está em curso, produzindo resultados nos serviços onde está sendo implantado. Mesmo que ocorram dificuldades em sua implantação, nota-se que muitos dos profissionais ouvidos têm desenvolvido a consciência do novo enfoque adotado. Alguns deles evidenciam, através de suas falas, uma concepção sistêmica da pessoa humana portadora de transtorno mental e de seu ambiente social, aproximando-se, assim, da proposta de um entendimento sistêmico da saúde. Assim como os fatores sistêmicos influenciam nas vulnerabilidades, geradoras do transtorno e/ou de seu agravamento, podem também, através da ação da equipe, serem redimensionados, propiciando, ao usuário dos serviços, novas alternativas de reabilitação.

Os referenciais teóricos da reabilitação psicossocial baseiam-se em conceitos como autonomia, socialização, cidadania e contratualidade. Os discursos elaborados pelos sujeitos demonstram que esses referenciais têm sido em parte assimilado, o que leva a pensar: será que tais determinações teóricas, embora necessárias, seriam suficientes para guiar o processo de transformação? Não seria preciso considerar também os aspectos subjetivos, por exemplo, como os usuários avaliam os serviços, em termos das melhorias de qualidade de vida que os mesmos lhes propiciam?

O contexto em que ocorre a reabilitação psicossocial é polissêmico, tendo em vista a pluralidade de sujeitos envolvidos, o que solicita formas de atuação que lhes sejam adequadas. Encontrar possibilidades singulares a cada pessoa, nas diferentes situações de suas vidas, pede a todo instante o olhar e a escuta que reconheçam as subjetividades. Desse modo, a proximidade com a pessoa que sofre a experiência de transtorno mental, coloca em confronto as diversas possibilidades interpretativas, interroga competências, pede sensibilidade do profissional, e o entendimento de que o sofrer psíquico não pode ser visto como algo a ser eliminado ou combatido, mas pode levar à redescoberta do real, da compreensão da experiência emocional de quem a sofre.

Torna-se relevante a consciência dos profissionais sobre a historicidade da loucura, todo o seu percurso, assim como seu processo de transformação que vai determinando a assistência prestada. Isso ajuda no entendimento das rupturas ocorridas ao longo do percurso e no reconhecimento da produção social da loucura, evidenciando os desafios, as contradições presentes e a importância dos serviços abertos. Desse modo, a responsabilidade de cada um é solicitada no cenário de mudanças, rumo a um futuro desconhecido e não predeterminado. O compromisso profissional, social, solidário, afetivo, visando a melhoria de tudo o que nos rodeia, se faz necessário na construção cotidiana de vínculos, de transformações, de esperança e de promoção contínua de vida. Talvez assim se possa manter sempre acesa a luz criativa e o desejo presente de buscas constantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 27.4.2006

Aprovado em: 10.5.2007

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    Trabalho extraído de Tese de Livre-Docência
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      10 Maio 2007
    • Recebido
      27 Abr 2006
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