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O trabalho do enfermeiro em unidade de terapia intensiva: sentimentos de sofrimento

Resumos

O presente estudo objetivou investigar os sentimentos de sofrimento no trabalho de enfermeiros de Unidade de Terapia Intensiva e as estratégias usadas para enfrentarem esses sentimentos. Consiste em estudo descritivo, com abordagem qualitativa, tendo como eixo condutor a análise de conteúdo e, como suporte complementar, os estudos da Psicodinâmica do Trabalho. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas, transcritas, categorizadas e subcategorizadas. Os resultados demonstraram que as vivências do sofrimento estão relacionadas com cuidar do paciente crítico jovem, levando os problemas para casa, a família do paciente, o trabalho em equipe, a falta de reconhecimento do trabalho realizado e a tecnologia no trabalho. Com relação às estratégias defensivas utilizadas, há destaque para a busca de força na religião, promoção de inter-relacionamento entre os membros da equipe, realização de atividade física e afastamento do paciente.

estresse psicológico; unidades de terapia intensiva; saúde do trabalhador


The purpose of this study was to investigate the feelings of suffering that Intensive Care Unit (ICU) nurses experience, and the strategies they use to face these feelings. It is a descriptive study using a qualitative approach and based on content analysis. The study used previous studies on Work Psychodynamics as complementary groundwork. Data collection occurred by means of semi-structured interviews, which were transcribed, categorized, and subcategorized. Results showed that suffering is related to: taking care of a young patient in critical condition, taking problems home, the patient's family, the team's work, and technology at work. As for the defense strategies used, emphasis is given to the search for strength in religion, promoting inter-relationships among team members, engaging in physical activity, and withdrawing from the patient.

stress; psychological; intensive care units; worker's health


El presente estudio tuvo como objetivo investigar los sentimientos de sufrimiento en el trabajo de enfermeros de una Unidad de Terapia Intensiva y las estrategias usadas para enfrentar esos sentimientos. Consiste en un estudio descriptivo, con abordaje cualitativo, teniendo como eje conductor el análisis de contenido y, como soporte complementar, los estudios de la Psicodinámica del Trabajo. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas semiestructuradas, transcritas, clasificados en categorías y subcategorías. Los resultados demostraron que las vivencias del sufrimiento están relacionadas con: el cuidar del paciente crítico joven, llevar los problemas para casa, la familia del paciente, el trabajo en equipo, la falta de reconocimiento del trabajo realizado y la tecnología en el trabajo. Con relación a las estrategias defensivas utilizadas, se destaca la búsqueda de fuerzas en la religión, la promoción de relaciones entre los miembros del equipo, la realización de actividades físicas, y el alejarse del paciente.

estresse psicológico; unidades de terapia intensiva; salud del trabajador


ARTIGO ORIGINAL

O trabalho do enfermeiro em unidade de terapia intensiva: sentimentos de sofrimento

Júlia Trevisan MartinsI; Maria Lúcia do Carmo Cruz RobazziII

IProfessor Assistente da Universidade Estadual de Londrina, Brasil, Aluna de Doutorado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail jtmartins@uel.br

IIProfessor Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail avrlmccr@eerp.usp.br

RESUMO

O presente estudo objetivou investigar os sentimentos de sofrimento no trabalho de enfermeiros de Unidade de Terapia Intensiva e as estratégias usadas para enfrentarem esses sentimentos. Consiste em estudo descritivo, com abordagem qualitativa, tendo como eixo condutor a análise de conteúdo e, como suporte complementar, os estudos da Psicodinâmica do Trabalho. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas, transcritas, categorizadas e subcategorizadas. Os resultados demonstraram que as vivências do sofrimento estão relacionadas com cuidar do paciente crítico jovem, levando os problemas para casa, a família do paciente, o trabalho em equipe, a falta de reconhecimento do trabalho realizado e a tecnologia no trabalho. Com relação às estratégias defensivas utilizadas, há destaque para a busca de força na religião, promoção de inter-relacionamento entre os membros da equipe, realização de atividade física e afastamento do paciente.

Descritores: estresse psicológico; unidades de terapia intensiva; saúde do trabalhador

INTRODUÇÃO

Refletir sobre o sofrimento como aquele de trabalho do enfermeiro em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) requer compreender as situações vivenciadas por esse profissional, seja pela densidade e ritmo do trabalho, pela diversidade tecnológica utilizada, pela responsabilidade sem interrupção desse labor que, muitas vezes, não se finaliza quando termina o turno laboral e, portanto, pode ser mais prolongado e sofrido do que se imagina.

O trabalho realizado em UTI é complexo, pois os pacientes são considerados críticos e apresentam risco iminente de vida. Os profissionais de enfermagem enfrentam dificuldades relacionadas à complexidade técnica da assistência aos pacientes, estão expostos às exigentes solicitações dos pacientes, familiares, médicos e instituições, podendo levá-los a vivenciar sentimentos de sofrimento(1).

Frente aos aparatos tecnológicos existentes nas UTIs e a grande quantidade de procedimentos a que são submetidos os pacientes que ali se encontram, o ambiente é reconhecido como um dos mais traumatizantes e agressivos tanto pela ótica dos usuários como pelos prestadores de serviços. Além do mais, o estresse que envolve a equipe de saúde, devido ao fator da presença constante da morte, propicia sentimento de sofrimento(2).

O trabalhar com o sofrimento, dor e presenciar a morte levam os enfermeiros a crescente estresse decorrente do labor. É fato também que o cuidar de pacientes críticos, nos quais pode haver instabilidade do quadro clínico, constantemente, é fator desencadeante de desgaste e, por conseqüência, do sofrimento do enfermeiro(3).

Mesmo o trabalho sendo fonte de sofrimento é importante no conjunto da vida. Pode ser compreendido não apenas como forma de subsistência, mas está intrinsecamente relacionado ao status social. Na enfermagem, apresenta relação direta com as atividades desenvolvidas pela equipe de enfermagem, nível de divisão de tarefas por categorias, indivíduos doentes, morte, ritmo laboral acelerado, entre outros.

Ocupando grande parte do cotidiano, o trabalho pode ser a gênese de realização e de prazer, o meio da pessoa desenvolver-se individual e coletivamente, fator essencial para o equilíbrio e crescimento, o que possibilita manter a saúde. Ao mesmo tempo, pode ser fonte de cansaço físico, psíquico e cognitivo, de sofrimento, tensões, angústia e estresse(4).

O labor é considerado como ponto central do prazer e sofrimento, porém, o prazer muitas vezes fica pouco visível para os trabalhadores, cria-se então espaço para o surgimento do sofrimento. Dessa forma, torna-se fundamental desvelar esses sentimentos, buscando alternativas para sanar ou amenizar os efeitos nocivos desse sentimento.

Assim sendo, o presente estudo objetivou investigar os sentimentos de sofrimento vivenciados por enfermeiros que atuam em UTIs e as estratégias defensivas utilizadas por esses trabalhadores para enfrentar tais sentimentos.

Pretendeu-se, então, com esta pesquisa, oferecer elementos para a realização de mudanças que poderão trazer repercussões positivas na vida desses enfermeiros, na instituição onde estão inseridos e nas relações pessoais; espera-se, também, compartilhar os resultados obtidos com outros profissionais, buscando alternativas para amenizar ou superar os sentimentos de sofrimento que surgem no ambiente de trabalho.

CONCEPÇÃO TEÓRICA

Essa concepção teve suporte nos estudos da Psicodinâmica do Trabalho, pautada por situações da realidade dos trabalhadores, entendendo que o trabalho e o homem não se constituem em conjunto rígido, mas estão em constante movimento, portanto, flexível e dinâmico(5).

A Psicodinâmica do Trabalho busca modificar as vivências do sentimento do sofrimento, por meio da sua transformação. Quando o sofrimento pode ser ressignificado, transformado em criatividade, torna-se benéfico para a identidade do homem, uma vez que lhe proporciona o aumento da defesa aos perigos de desestabilização física e psíquica. Dessa maneira, o trabalho torna-se equilibrante para a saúde, mas o oposto pode funcionar como mediador da fragilização dessa saúde, ou seja, transforma-se em sofrimento patogênico. Isso ocorre quando não há mais espaço para a liberdade, para a flexibilização na organização do trabalho, para as mudanças, bem como espaço para ouvir os trabalhadores(6).

A estabilidade visível da relação homem-trabalho está diretamente ligada ao equilíbrio livre e aberta para a evolução e modificações, equilíbrio constante, em permanente deslocamento. Se for refreada, bloqueada, prolongada ou permanente, a estabilidade leva à ineficiência da produção e a qualquer instante pode provocar ruptura. Dessa forma, a psicodinâmica analisa a dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pelo ato de confronto do indivíduo com a sua realidade(5-6).

É por defrontar com a história singular, crenças, desejos, significado de vida, construídos a partir das particularidades de cada homem que se vê o mundo objetivo, as tarefas a serem executadas. É na razão do sujeito e na ação que se permite relacionar o sofrimento e procurar com que o trabalho seja o intermediador do prazer(7).

Para que o labor seja mediador do prazer, o trabalhador deve utilizar estratégias defensivas que surgem a partir do conflito entre a organização laboral e o funcionamento psíquico, reconhecido como fonte de sofrimento. Tais estratégias são mecanismos por meio dos quais o trabalhador busca modificar, transformar e minimizar sua percepção da realidade que o faz sofrer. É processo praticamente interno do indivíduo, já que ele geralmente não consegue muitas vezes mudar a pressão imposta pela organização do trabalho(6,8).

As estratégias defensivas podem ser usadas individual ou coletivamente. As individuais constituem-se em processo intrapsíquico e existe mesmo sem a presença do objeto que gerou o conflito. As coletivas, por sua vez, caracterizam-se pela presença de condições externas que geram sofrimento e são construídas a partir do estabelecimento de regras e consenso dos trabalhadores(6). Ao se utilizar de estratégias defensivas quer sejam individuais ou coletivas os trabalhadores estão procurando um meio para se proteger do elevado nível de sofrimento no trabalho, para poderem continuar a trabalhar(8).

Mesmo as estratégias sendo importantes, podem trazer conseqüências, no sentido de transformar a percepção da realidade, favorecendo a alienação dos trabalhadores e criando obstáculos à sua luta contra as pressões indesejáveis da organização do trabalho. Assim, o desafio da psicodinâmica está diretamente ligado às ações que podem modificar o destino do sofrimento e favorecer a transformação(6).

METODOLOGIA

Foi utilizada a pesquisa qualitativa. Para inclusão neste estudo, os critérios estabelecidos foram: enfermeiros pertencentes ao quadro ativo de funcionários há pelo menos um ano, que estavam trabalhando no período da coleta dos dados e consentiram em participar do estudo. Foram excluídos os enfermeiros que se encontravam em férias ou licença.

O número total de enfermeiros a serem entrevistados não foi definido a priori, pois, na pesquisa qualitativa, a coleta permanece até o momento em que houver convergências suficientes para configurar o fenômeno do estudo. A saturação dos conteúdos emergentes nos discursos permite a garantia de que as informações contêm grande diversificação e abrangência em relação à reconstituição do objeto no material do estudo, confirmando assim a formação do todo(9). Neste estudo, a saturação dos dados foi alcançada com oito entrevistas obtidas com enfermeiros que atuavam no período matutino, vespertino e noturno.

A coleta de dados foi realizada entre os meses de janeiro a março de 2007, por meio de entrevista semi-estruturada, com perguntas norteadoras e utilizando-se de gravador a fim de garantir a fidedignidade do registro das respostas. Posteriormente, as fitas foram transcritas na íntegra. As perguntas norteadoras foram: - você já vivenciou ou vivencia sentimentos de sofrimento no trabalho ao atuar na UTI? - Quais? - Como você lida com esses sentimentos?

Para a análise dos dados identificados pelas questões norteadoras, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, entendida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, com a finalidade de obter, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, os indicadores que permitem deduzir conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dessas mensagens(10).

A análise seguiu três momentos: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. Nesse tipo de análise, para compor as unidades de registro e de contexto são utilizados recortes semânticos que originam as categorias analíticas, compreendidas como uma afirmação sobre um assunto, uma frase, ou uma frase composta, ou frase sintetizada por influência da qual se pode abranger grande conjunto de formulações individuais(10).

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário e os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Foi estabelecido um código (E1, E2...) para preservar o anonimato e utilizado símbolos como [...] significando que parte da fala foi omitida e [ ] na pausa dos depoimentos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise das entrevistas possibilitou a construção de duas categorias analíticas, a primeira relacionada ao sofrimento no trabalho e a segunda às estratégias defensivas, ambas abrangendo as suas subcategorias.

A primeira categoria, que aborda o sofrimento no trabalho dos enfermeiros de UTIs, surgiu das subcategorias mostradas a seguir.

Sofrimento com o paciente crítico jovem e levando os problemas para casa

Os sentimentos de sofrimento dos enfermeiros, nos quais a perspectiva da morte como finitude é algo inevitável, bem como o sofrimento relacionado aos vínculos estabelecidos com os pacientes foram identificadas nas falas a seguir.

[...] é um sofrimento a morte de pacientes mais novos, adolescente é muito complicado de aceitar (E6).

[...] não conseguir desligar, então no plantão do outro colega eu ligo para saber como está o paciente. Eu levo isso para casa [...] (E3).

A morte de pessoas jovens não é vista como processo natural, mas sim que há expectativa que nascemos, crescemos, vivemos por um determinado tempo. A morte é mais bem aceita quando se tem o sentimento de que a pessoa já cumpriu as etapas de sua vida.

Em estudo realizado com a finalidade de compreender as vivências de enfermeiras em UTI, os resultados encontrados mostraram que, para essas profissionais, a morte de pacientes mais jovens e criança foge ao controle emocional de toda equipe, ou seja, todos sofrem(11).

Na fala de E3 fica desvelado que o enfermeiro sabe que não deveria levar para casa o que se passa na UTI, porém, apesar de ter a clareza da necessidade de "desligar", de buscar diminuir o demasiado envolvimento, ainda são fortes os vínculos estabelecidos.

O vínculo com os pacientes pode estar relacionado ao tempo de sua internação na unidade, pois, muitas vezes, permanecem internados por muito tempo, propiciando aos enfermeiros maior aproximação. Esse fato é importante para o cuidado mais humanizado, porém, há que se estabelecer limites; ao se constituir o vínculo, o enfermeiro corre o risco de projetar o sofrimento para si mesmo, misturando os sentimentos.

Os vínculos estabelecidos podem estar correlacionados com o aspecto humanístico, característico da enfermagem, fazendo com que aflore a necessidade de dedicação, consideração, envolvimento e abnegação, gerando sentimentos de sofrimento diante da fragilidade dos doentes em especial daqueles que se encontram em estado crítico(12).

Sofrimento com a família do paciente crítico

Os discursos dos entrevistados demonstram que há sofrimento no que tange aos familiares, por perceberem que eles estão sofrendo pelo ente querido, havendo identificação com o sofrimento deles, como é revelado na fala abaixo.

Saber o que aquela pessoa significa para a família [...] quanto mais você se envolver na história do paciente, mais afeta o seu emocional e quanto mais você se envolver na história mais você sofre (E2).

Ao cuidar do paciente, os enfermeiros de UTIs convivem muito com os familiares, ocorrendo aproximação entre eles; há envolvimento para além do paciente.

Quando os enfermeiros se identificam com os parentes, sentindo o que eles sentem ou têm pena dos pacientes que são cuidados por eles, sentem-se incapazes por não conseguirem ajudar por sua própria limitação pessoal, ou porquê há situações em que nada mais pode ser feito, vivenciando sentimentos de sofrimento(13).

Sofrimento ao trabalhar em equipe

Há sentimentos de sofrimento no trabalho em equipe, conforme demonstrado a seguir.

[...] gera sofrimento, ansiedade, quando existe uma falta de responsabilidade de alguém da equipe. A equipe nota isso [...] influencia negativamente o resto da equipe (E7).

O trabalho na enfermagem exige coletividade, cooperatividade, compromisso, responsabilidade, dentre outros, em especial nas UTIS, diante da gravidade dos pacientes, aos quais é imposta a necessidade de manusear equipamentos de alta complexidade, realizar avaliações clínicas constantes, executar ações em ritmo de trabalho acelerado, procedimentos complexos e tomada de decisões imediatas, na maioria das vezes(1,14).

Nas UTIs, as atividades são tão intensas que é fundamental uma equipe unida, harmoniosa e comprometida com assistência de qualidade, sendo preciso buscar comunicação construtiva, a amizade e o respeito mútuo(14).

As dificuldades do trabalho em equipe devem ser discutidas e compartilhadas para que se possa estabelecer melhor integração e, por conseqüência, reverter em benefícios para a equipe, paciente, família, instituição, dentre outros

Sofrimento relacionado ao rodízio de funcionários e o absenteísmo

Identificou-se que há sentimentos de sofrimento quando ocorre rodízio de funcionários e absenteísmo como expressos nos depoimentos.

Ter que fazer rodízio, isso cansa a gente, [...] a rotina de dia é uma, a rotina da noite é outra (E7).

[...] muita falta de funcionário, absenteísmo é grande [...] então essa parte é muito desgastante (E1).

O rodízio é entendido como insatisfatório, uma vez que os membros da equipe têm apenas relacionamento cordial, não havendo cooperação entre os mesmos. A qualidade da assistência e do relacionamento interpessoal só é possível se houver proximidade real, ou seja, trabalhando juntos.

Quando há impossibilidade de manter a equipe integrada, pela rotatividade e absenteísmo de trabalhadores, fica difícil estabelecer trabalho que contribua para aumentar as relações sociais, podendo instaurar o sofrimento(6).

É preocupante o absenteísmo, pois desorganiza o trabalho, gerando insatisfação e sobrecarga entre os trabalhadores, diminuindo a qualidade da assistência ofertada aos pacientes(15).

Falta de reconhecimento no trabalho

O não ser reconhecido por colegas pelo trabalho realizado, é visto como incompreensão pelo que fazem, causando-lhes sofrimento. O discurso a seguir ilustra tal situação.

[...] o que me causa sofrimento às vezes é passar o plantão, porque de manhã você passa o plantão para o colega enfermeiro, você ficou doze horas ali, [...], toma as condutas, aí de manhã o pessoal fala em bom tom de voz, mas você não podia ter feito isso? Por que não fez assim? O paciente agora estaria melhor? [ ] por mais que fizemos os colegas não reconhecem [...] (E5).

O reconhecimento é o processo de valorização do esforço e do sofrimento investido para a realização do trabalho, que possibilita ao sujeito a construção de sua identidade, ou seja, a vivência do prazer e de realização de si mesmo(16).

Para a Psicodinâmica do Trabalho, a construção da identidade mobiliza processo de retribuição simbólica, de reconhecimento do trabalhador em sua singularidade pelo outro, por meio das suas contribuições à organização do trabalho(7).

Tecnologia na UTI

Os resultados mostraram que os enfermeiros sofrem, desgastam-se, ficam angustiados e sentem medo com os equipamentos existentes, pois não suprem as necessidades dos pacientes como é demonstrado no discurso abaixo.

[...] tem equipamentos de última geração convivendo com equipamentos obsoletos que estão aqui desde o começo da UTI [...] então eu sinto medo, angústia porque eu já vivenciei panes nos equipamentos de pacientes com risco eminente de morte e se a gente não atender a tempo [ ] o alarme muitas vezes não funciona, então a gente está sempre ligado (E6).

Situações comuns de trabalho são permeadas por acontecimentos inesperados, panes, incidentes, anomalias de funcionamento, incoerência organizacional, imprevistos provenientes de materiais, de instrumentos, das máquinas e também dos próprios trabalhadores. Assim, há discrepância entre o prescrito e a realidade concreta da situação, não há como prever a lacuna entre o real e o prescrito, decorrente disso o trabalhador pode vivenciar sentimentos de sofrimento(4,7).

A segunda categoria que identificou as estratégias defensivas utilizadas pelos enfermeiros das UTIS foi identificada por meio das subcategorias apresentadas logo a seguir.

Buscando força na religião

A crença, a fé, a oração são formas utilizadas pelos enfermeiros para enfrentar as dificuldades que geram sofrimento, conforme os depoimentos abaixo.

[...] eu rezo bastante, faço minha oração peço para o Divino Espírito Santo me dar forças (E3).

Eu vejo a oração, a crença, a fé, como uma estratégia, uma válvula de escape (E6).

O apego à religiosidade e a busca de apoio em "entidades" superiores, a crença em algo supremo ajudam os enfermeiros a lidar com os sentimentos de sofrimento provocados por situações difíceis que enfrentam(13).

Tais válvulas de escape são importantes no cotidiano, entretanto, devem ser identificadas pelos trabalhadores, pois, se forem utilizadas como única alternativa e especialmente de modo individual podem provocar a alienação e tornar comum o sofrimento.

Promovendo o inter-relacionamento entre os membros da equipe

A importância que os enfermeiros atribuem ao bom relacionamento interpessoal, por meio do qual são estabelecidos laços de amizade, de confiança, de aliviar as tensões, de ajuda mútua o que pode propiciar o diálogo e impulsionar os indivíduos à realização de seu potencial, está demonstrada na fala a seguir.

Não é porque somos a chefia, nós temos que manter nossa conversa, eu e o funcionário [...] brincar um pouquinho, relaxar e assim tentar o relacionamento da melhor maneira possível, as amizades concretizam, nós relaxamos, conversamos sobre tudo [...] fazemos festinhas (E4).

Quando existem momentos, que fortalecem o grupo, o trabalho em equipe, a amizade, o companheirismo são momentos importantes, pois propiciam o compartilhar de experiências, vivências e conhecimentos e proporcionam o estabelecimento da confiança entre os membros da equipe.

Para se conhecer as características dos indivíduos e de grupo há que se criar momentos de descontração e possibilidades do trabalhador expressar seus sentimentos, necessidades, dificuldades, dúvidas, dentre outros, para que possa haver trabalho solidário em equipe, mais tranqüilo e prazeroso(1,7).

Realizando atividades físicas

A realização de atividade física como a de caminhar e freqüentar uma academia é maneira de diminuir o estresse, conforme as expressões mostradas abaixo.

[...] então o que eu faço todo dia eu tenho uma atividade física, [...] isso diminui o meu estresse (E2).

Eu vou à academia, procuro fazer uma caminhada, pois me acalma e diminui meu estresse (E7).

A atividade física contribui para a qualidade de vida das pessoas e, dentre as contribuições importantes para a saúde mental a curto prazo, destaca-se a diminuição do estresse e da ansiedade, em longo prazo, há alterações positivas na depressão moderada, no estado de humor e na auto-estima(17).

Afastando-se do paciente e do familiar

Os enfermeiros utilizam como estratégia para se defender, ou amenizar o sofrimento, afastar-se do paciente quando não há mais chances de sobrevida e buscam não se envolver com os familiares para não sofrerem junto com os mesmos, conforme revelado nos depoimentos.

A minha estratégia é está [ ] conforme o paciente vai afundando eu também vou me afastando (E1).

[...] eu não me deixo envolver muito com a família [...] não misturo as coisa é muito sofrimento (E8).

Ao se depararem com pacientes com morte iminente, os enfermeiros vão se afastando, isso pode acontecer por não estarem preparados para enfrentar a morte, e, também, porque nos cursos de graduação o ensino está mais voltado para salvar vidas, curar, prevenir e promover a saúde.

É tão penoso para o enfermeiro trabalhar com situação às vezes insuportável, especialmente no contato direto com os pacientes e familiares, que ele desenvolve estratégias defensivas como a fuga e o afastamento para diminuir o próprio sofrimento(4).

CONCLUSÕES

Os depoimentos dos enfermeiros expressaram sentimentos de sofrimento no trabalho, relacionados ao paciente crítico jovem, ao fato de levarem os problemas para casa, aos familiares dos pacientes, trabalho em equipe, rodízio de funcionários e absenteísmo e à tecnologia nas UTIs.

Os sentimentos de sofrimento, advindos desses fatores, demonstraram dificuldades enfrentadas na realização do trabalho dos enfermeiros, as quais podem interferir na assistência ao paciente, familiares e na saúde psíquica desses profissionais.

Com relação às estratégias defensivas, foram utilizadas pelos enfermeiros individualmente, expressas como buscar forças na religiosidade, realizar atividades físicas e afastar-se do paciente e familiares.

As estratégias defensivas são fundamentais para a proteção contra o sofrimento, porém, quando utilizada coletivamente fortalece mais a equipe, por meio da união entre os trabalhadores, pois o trabalho não deve ser compreendido apenas como uma tarefa, mas uma experiência de viver em comum, de enfrentar a resistência do real, construindo o sentido do trabalho, da situação e do sofrimento(18).

O estudo identificou as teias dos sentimentos de sofrimento e as estratégias defensivas utilizadas pelos enfermeiros que trabalham em UTIs, não como um postulado de uma ciência experimental em busca de puros resultados, mas como ciência interpretativa em busca de significados.

Os resultados encontrados contribuíram enquanto espaço de trabalho, em si, por um lado reafirmou a dinâmica dos processos psíquicos/sofrimento e, por outro, o valor social que confere ao homem o poder de enfrentar as adversidades do trabalho e se desenvolver como trabalhador e pessoa.

Os sentimentos de sofrimento que foram identificados neste estudo refletiram a realidade, pois foi originado do próprio trabalho, porém, parece haver uma naturalização desse sentimento, como se ele não pudesse ser ultrapassado e, portanto, considerado como inerente à profissão e aceito como tal.

Inexistem fórmulas para os trabalhadores enfrentarem o sofrimento em seu ambiente de trabalho, cada ser humano tem sua crença, cultura, significado de vida dentre outros. Mas isso não significa que não se tenha que buscar coletivamente, refletir e tentar novas formas de organização de trabalho em que os homens não sejam apenas conjuntos de regras intransponíveis, nos quais somente se busca justificar os próprios comportamentos.

É necessário despertar nos trabalhadores maior reconhecimento dos seus sentimentos e da própria vida existencial no mundo e, para isso, é preciso criar novas habilidades, nova consciência, ou seja, novos seres capazes de ser ao mesmo tempo de ter. Assim, poderão cuidar melhor da sua vida psíquica e física. Sendo isso um ato de responsabilidade direta do próprio ser humano e indiretamente das pessoas e instituições que os rodeiam.

Os resultados deste estudo apresentam consonância com pesquisa realizada com enfermeiros de UTI, na qual o nível de estresse se encontrava relacionado a fatores como morte de pacientes, sentimentos de desvalorização, falta de poder, erros cometidos, dentre outros(19). Outra investigação desenvolvida junto aos enfermeiros, que trabalham em unidades oncológicas, evidenciou que óbito de crianças e de adolescentes, problemas relacionados com equipe de trabalho e a falta de pessoal foram situações percebidas como estressantes para os enfermeiros e a estratégia de coping mais utilizada por eles foi a reavaliação positiva, a resolução de problemas e o autocontrole(20) .

Para finalizar, salienta-se que, apesar das limitações que este estudo apresentou como a subjetividade expressa pelos pesquisados e a interpretação singular de cada enfermeiro sobre o trabalho na UTI, alguns caminhos foram percorridos e certamente poderão contribuir para reafirmar e comparar com investigações já realizadas sobre esse tema, bem como para desvelar novos conhecimentos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2009

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2007
  • Aceito
    27 Out 2008
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