Objetivo:
descrever o processo de desenvolvimento e apresentar os resultados de um estudo piloto sobre o uso de simuladores artesanais de baixo custo para ensino e aprendizagem de obstetrícia.
Método: apresentação do processo de desenvolvimento de três simuladores de baixo custo, a partir de necessidades educacionais identificadas em contextos reais de formação. O processo de elaboração é apresentado em detalhes e cada simulador foi testado e re-testado, sendo submetido a processos de melhorias até sua versão final. Os simuladores apresentados são: bermuda simuladora de parto, útero de Neoprene para tratamento de hemorragias e simulador de sutura de lacerações perineais. Foi realizado estudo piloto de avaliação da percepção dos aprendizes, através de questionário estruturado, empregando o modelo de avaliação de Kirkpatrik. Os dados foram analisados de forma descritiva.
Resultados: os respondentes (31 aprendizes) avaliaram positivamente os simuladores, tendo percebido ganhos significativos em conhecimento teórico, habilidade para resolver problemas clínicos e diminuição da ansiedade para lidar com situações semelhantes às simuladas.
Conclusão: simuladores artesanais e de baixo custo são factíveis e efetivos, resultando em avaliações positivas dos aprendizes. A disponibilidade dos mesmos como tecnologia aberta permite a disseminação de seu uso.
Descritores: Simulação; Obstetrícia; Ensino; Materiais de Ensino; Educação em Enfermagem; Capacitação
Objective:
to describe the development process and present the results of a pilot study on the use of low-cost handmade simulators for teaching and learning Obstetrics.
Method: presentation of 3 low-cost simulators designing, based on educational needs identified in real-world training contexts. The developing process is presented in detail and each simulator was tested and re-tested, being submitted to improvements until their final version. The simulators presented are: delivery simulator shorts, Neoprene uterus for postpartum hemorrhage management, and perineal repair simulator. A pilot study was carried out to evaluate the perception of apprentices through a structured questionnaire, using the Kirkpatrick evaluation model. Data were descriptively analyzed.
Results: the respondents (31 apprentices) positively evaluated the simulators, perceiving significant gains in theoretical knowledge, ability to solve clinical problems and decreased anxiety to deal with situations similar to those simulated.
Conclusion: low-cost, handmade simulators are feasible and effective, resulting in positive learner evaluations. Their availability as open technology allows the dissemination of their use.
Descriptors: Simulation; Obstetrics; Teaching; Teaching Materials; Education, Nursing; Training
Objetivo:
describir el proceso de desarrollo y presentar los resultados de un estudio piloto sobre el uso de simuladores artesanales de bajo costo para la enseñanza y el aprendizaje de la obstetricia.
Método: presentación del proceso de desarrollo de tres simuladores de bajo costo, basado en necesidades educativas identificadas en contextos de capacitación reales. El proceso de elaboración se presenta en detalle. Cada simulador fue testeado una y otra vez y se sometió a procesos de mejora hasta su versión final. Los simuladores presentados son: pantalones cortos simuladores de parto, útero de neoprene para tratamiento de sangrado y simulador de sutura de laceraciones perineales. Se realizó un estudio piloto para evaluar la percepción de los alumnos, utilizando un cuestionario estructurado y se siguió el modelo de evaluación Kirkpatrik. Se practicó el análisis descriptivo de datos.
Resultados: los encuestados (31 aprendices) evaluaron positivamente los simuladores, habiendo notado ganancias significativas en el conocimiento teórico, capacidad para resolver problemas clínicos y disminución de la ansiedad para lidiar con situaciones similares a las simuladas.
Conclusión: los simuladores artesanales de bajo costo son factibles y efectivos, lo que resulta en evaluaciones positivas de los aprendices. Su disponibilidad como tecnología abierta permite la difusión de su uso.
Descriptores: Simulación; Obstetricia; Enseñanza; Materiales de Enseñanza; Educación en Enfermería; Capacitación
Introdução
A implementação de boas práticas obstétricas e a prevenção da morbidade e mortalidade materna e neonatal são os focos da assistência obstétrica, portanto o treinamento e capacitação de profissionais para a adequada assistência ao parto e a eficaz resolução de quadro de urgência e emergência são pontos centrais para a melhoria do cuidado(1). Neste contexto, a pesquisa e a experimentação voltada para o ensino de boas práticas obstétricas são particularmente relevantes para a Enfermagem, considerando a histórica e crescente inserção de enfermeiras obstétricas e obstetrizes (EOO) no cuidado à saúde materna e neonatal no Brasil e no mundo(2).
A Organização Pan-americana de Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), desde os anos 70, descrevem as funções e atividades das EOO, que abrangem tanto a assistência quanto a gestão, educação e pesquisa. Um relatório examinando o estado atual da obstetrícia em 73 países de baixa e média renda, incluindo o Brasil, apresentado em 2014 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em colaboração com a OMS e a Confederação Internacional de Parteiras (ICM), relata que é necessário um investimento urgente em melhorar a qualidade do cuidado em obstetrícia para prevenir cerca de dois terços de todas as mortes maternas e neonatais - o que salvaria milhões de vidas a cada ano. Os países selecionados para o relatório (africanos, asiáticos e latino-americanos) são responsáveis por 96% das mortes maternas globais, 91% das mortes fetais e 93% das mortes de recém-nascidos. Dentre as metas, destacam-se o acesso adequado das mulheres a serviços de obstetrícia; cuidado primário de qualidade e possibilidade de transferência direta para um nível seguinte quando necessário; aumento da disponibilidade de EOO e suas intervenções benéficas no cuidado ao binômio; e o fortalecimento das associações de EOO(3).
Diante da crescente valorização de EOO no desenvolvimento de boas práticas obstétricas para melhoria da qualidade do cuidado e prevenção de agravos importantes do ponto de vista da saúde pública, novos desafios relacionados à formação e educação permanente desses profissionais de enfermagem são evidenciados. Nesta direção, estudos referentes ao ensino de Enfermagem com simulação demonstram sua potencialidade na habilitação do estudante para lidar com situações de ansiedade e estresse próprios da prática de enfermagem clínica. Além de envolver aspectos do conhecimento teórico, do desenvolvimento de habilidades técnicas e do pensamento crítico, os estudantes podem vivenciar questões emocionais, espirituais e éticas no cuidado à pessoa e sua família, aplicáveis no contexto de simulação em enfermagem(4).
No ensino de Enfermagem, a prática pedagógica com simulação tem sido estimulada na literatura nacional e internacionalmente, por permitir uma abordagem eticamente adequada e promover a segurança do paciente, considerando que a primeira experiência do cuidado não será realizada com um paciente(5). No caso de estudantes de graduação, nem todas as situações de intervenção em saúde podem ser realizadas autonomamente por graduandos (como situações de urgência), de maneira que as atividades pedagógicas de simulação oportunizam a vivência de experiências que não seriam possíveis em ambientes reais de cuidado(4-6). Os ambientes simulados replicam um cenário clínico com situação controlada permitindo observação detalhada dos estudantes em ação, possibilidade de feedback e repetição o número de vezes que for necessário, sem nenhum dano a pacientes(5).
O uso de simuladores e ambientes de simulação para o ensino de profissionais de saúde está bem estabelecido na literatura(5,7-8). Embora a qualidade dos estudos seja heterogênea e com indicadores variados, as evidências vêm demonstrando que o ensino baseado em simulações é eficaz eleva a resultados melhores e mais duradouros que o ensino tradicional(7,9). Seu uso pode melhorar habilidades clinicas, técnicas, de comunicação, de trabalho em equipe, melhorar desempenho e reduzir erros(5). Há evidências de que educação médica baseada em simulações pode melhorar tanto o aprendizado em si, quanto o cuidado ao paciente, a prática clínica e ainda ter um efeito positivo na saúde pública(8,10).
Particularmente no ensino de obstetrícia, o uso de simuladores e ambientes simulados foi estudado para diversos cenários(8), principalmente emergências obstétricas como distócia de ombros(11-12), hemorragia pós parto(13-18), pré-eclâmpsia e eclâmpsia(16-17). Também existem evidências sobre a simulação para aprimorar habilidades cirúrgicas como sutura de lacerações vaginais e lacerações graves(19). Uma revisão de literatura de 2014 mostrou que após as simulações foi observado um aumento de conhecimento, habilidades técnicas, de comunicação e de trabalho em equipe(16). Um acompanhamento de dez anos de um treinamento em equipes com simulações de correção de distócias de ombros identificou um aumento do número de diagnósticos e diminuição no número de lesões neonatais de plexo braquial(11). Ao menos um estudo conduzido no México(1) conseguiu demonstrar que a implementação de um programa de ensino continuado que incluía simulações conseguiu modificar a prática obstétrica com melhores resultados em termos de adoção de boas práticas. Outro programa de treinamento com simulação na Tanzânia mostrou uma redução de 47% nas taxas de transfusão sanguínea pós-parto(13).
Ambientes simulados e simuladores de alta fidelidade, apesar de comprovadamente úteis, tem barreiras para sua utilização no ensino, sendo a principal o seu custo(5,17). Com objetivos de aprendizagem bem estabelecidos, a utilização de simuladores artesanais e de baixo custo pode ser uma alternativa viável e eficaz no processo de ensino e aprendizagem(15,17-21). Assim, existem diversos exemplos de simuladores produzidos de forma artesanal e com custo reduzido, tanto para o ensino de obstetrícia(17-19,22), quanto para outras especialidades/situações(23).Não há evidências demonstrando que a hiper-realidade do simulador melhore a aprendizagem do participante, o baixo custo e, por vezes, até a baixa fidelidade de um simulador não parecem representar um empecilho para seu uso(20-21).
No entanto, diferenças culturais, de estruturação de curriculum das faculdades de enfermagem não permitem afirmar com os dados existentes que a utilização de simuladores artesanais seja eficaz para o ensino e aprendizagem, necessitando de mais estudos. Também não foram encontrados estudos na realidade brasileira sobre simuladores de baixo custo no contexto de ensino de obstetrícia.
Tendo em vista este contexto mais amplo, os objetivos deste artigo são: descrever a criação e uso de simuladores artesanais para ensino de obstetrícia e apresentar os resultados de um estudo piloto sobre o uso dos simuladores artesanais como tecnologias educativas, na percepção de profissionais de enfermagem (EOO), médicos residentes em Obstetrícia e estudantes de graduação (aprendizes) que participaram de aulas com o uso dos simuladores.
Método
Trata-se de um estudo piloto, do tipo transversal, para avaliar a percepção dos aprendizes sobre a utilização de simuladores artesanais de baixo custo para o ensino de obstetrícia, com base na experiência prática docente dos desenvolvedores. O escopo da análise caracteriza-se como um estudo de melhora da qualidade do cuidado em saúde, através do aprimoramento do ensino e aprendizagem de profissionais de saúde, tendo sido adotada a diretriz SQUIRE para publicações deste tipo. Os métodos serão discutidos em duas etapas: o processo de desenvolvimento dos simuladores e os métodos utilizados para o estudo piloto.
Os simuladores foram criados ou adaptados (com base em ideias sugeridas através de painéis de especialistas e/ou disponíveis na Internet) e confeccionados pelas autoras, a partir de necessidades educacionais levantadas com alunos de oficinas de treinamento prático para profissionais e estudantes de enfermagem obstétrica, obstetrícia e medicina em obstetrícia oferecidas de forma sistemática desde 2014. Todos os simuladores têm uma licença Creative Commons e estão disponíveis para serem reproduzidos ou adaptados em outros serviços no site http://saudesimuladores.paginas.ufsc.br/.
Os simuladores apresentados neste artigo são: (i) Bermuda simuladora de parto com boneco; (ii) Útero de Neoprene para simulação do manejo de hemorragia pós-parto; (iii) Simulador de sutura de laceração perineal e laceração perineal grave.
O processo de montagem dos simuladores iniciou-se com a identificação de uma necessidade educacional observada em contexto real de treinamento. A partir dessa necessidade, buscaram-se alternativas já existentes para resolução, através da busca de simuladores já existentes. As fontes de busca foram filmes e sítios de internet com conteúdo sobre Obstetrícia e treinamento em Obstetrícia, além da constante troca de ideias e sugestões de pares. A partir dessa busca avaliou-se a viabilidade do simulador e, quando este pareceu viável - em termos de custo, possibilidade de aquisição e manutenção de material, tamanho -, um protótipo foi montado e testado. Os testes foram feitos a partir de avaliações de especialistas (profissionais de notório saber na área de Obstetrícia e que atuam no treinamento prático de outros profissionais). Buscou-se estabelecer uma validade de face (avaliar o realismo, aspecto) e de conteúdo (valor pedagógico, efetividade em resolver o problema proposto)(5,24). Ressalta-se que a validade de face e de conteúdo depende do objetivo de aprendizagem. Um pedaço de tecido de curvim (couro sintético), por exemplo, não tem o aspecto da pele humana, mas com a montagem adequada pode ter validade para treinamento de suturas. Considera-se que a estrutura da simulação é um processo, e não um produto, e que o treinamento simulado precisa de um planejamento estratégico para ser eficaz(14).
Em muitas ocasiões, os testes determinaram mudanças no protótipo. Este foi refeito e re-testado quantas vezes fossem necessárias. No momento em que se obteve uma versão de cada simulador que foi ponderada adequada, ele foi considerado finalizado e disponível para implementação. Mesmo depois de implementados, considera-se que os simuladores devem continuar sendo testados e podem sofrer melhorias e modificações. Busca-se que os simuladores sejam recriados e adaptados em diversas realidades, com citação da autoria original.
Para o simulador bermuda de parto com boneco, a necessidade educacional identificada foi a necessidade de treinamento de manobras que exigem mudança de posição da parturiente, como no caso da distócia de ombros(25) e do atendimento ao parto pélvico emergencial(26). Os simuladores de parto de plástico ou borracha rígidos (pelve materna e feto) não permitem realizar essas manobras de forma adequada, e dificultam o treinamento da interação assistente/parturiente, incluindo os efeitos dinâmicos da movimentação da parturiente no manejo de distócias. O modelo consiste em uma bermuda de Lycra com um orifício e uma costura em ziguezague que simulará o períneo materno no parto. O boneco utilizado é um bebê de brinquedo comprado em lojas de brinquedos infantis (membros e cabeça de plástico duro e corpo de pano, tamanho semelhante a de um recém-nascido a termo) com uma placenta feita de crochê, como apresentados na Figura 1).
Simulador Bermuda de parto com boneco (bermuda com esquema para costura, boneco bebê com placenta de crochê e simulação de distócia de ombro)
Um(a) estudante ou atriz veste a bermuda e pode vivenciar o parto, enquanto outro estudante pode assistir o parto, identificar e corrigir distócias. Este simulador permite o treinamento de habilidades e atitudes referentes à assistência ao parto normal, à resolução de distócias e complicações obstétricas (particularmente útil para distócias que requerem mudança de posição). Foi também utilizado para a discussão de modelos de assistência e habilidades de comunicação, já que permite que os aprendizes se coloquem no papel de parturiente. É uma solução de baixo custo com um valor final aproximado USD 26,91 (taxa de conversão de 1 USD = BRL 3,97, em 29 de Maio de 2019) e permite a apresentação e simulação em ambientes diversos - escolas, grupos de gestantes, além de ambientes de treinamento profissional.
Para o simulador útero de Neoprene, a necessidade educacional identificada foi o treinamento de habilidades e atitudes para o tratamento da hemorragia pós-parto, que é um quadro de prevalência alta e uma das principais causas de morte materna no Brasil(27). Existem simuladores no mercado, inclusive testados com excelentes resultados(13,28). No entanto, apesar de serem considerados de baixo custo (comparados com os demais do mercado), não são acessíveis para nossa realidade.
Foi criado um simulador de útero feito com tecido de Neoprene (elastômero sintético policloropreno) em uma máquina de costura doméstica. Inicialmente foi feito um modelo com uma bola de plástico semi-inflada dentro que permite simular a contratilidade uterina quando apertada. Esse modelo pode ser utilizado no treinamento para o diagnóstico da hipotonia uterina, realização da massagem uterina abdominal, compressão bi-manual (pressão vaginal e abdominal concomitante)(27) e, quando a mão do instrutor comprime a bola internamente, também é simulado o retorno do tônus uterino após o tratamento. Após os testes iniciais, o mesmo modelo apresentado na Figura 2 foi aprimorado para permitir a inserção de um balão de tamponamento uterino, que é uma medida conservadora importante para o tratamento da hemorragia pós-parto recomendada em diretrizes nacionais e internacionais(27).
Simulador de útero de neoprene para tratamento da hemorragia pós-parto em compressão bimanual; inserção de balão de tamponamento uterino; visualização do balão
O custo de produção é em torno de USD 17,63 por unidade. Esse simulador foi validado por 18 especialistas da área (médicos, enfermeiras obstétricas e obstetrizes), que consideraram que o mesmo replica as estruturas anatômicas e a sensação tátil da massagem uterina abdominal e bi-manual(29).
O simulador pode ser utilizado em uma bancada para visualizar/sentir/treinar a técnica de massagem e inserção de balão. Também permite que seja colocado em uma bermuda similar à bermuda de parto - adaptado com velcro - para a simulação de uma situação clínica de hemorragia pós-parto com atriz como paciente, que permite o treinamento dos diversos passos do tratamento, a comunicação com a paciente e o trabalho em equipe. Essa simulação, realizada em ambiente real (centro obstétrico) permite reconhecer dificuldades (de acesso de material, de comunicação, de divisão de tarefas) e busca de soluções.
No parto vaginal podem acontecer lacerações perineais, usualmente lacerações espontâneas com diversos graus de gravidade, sendo que a maioria delas são superficiais, sem necessidade de tratamento. Algumas lacerações de segundo grau (ou lacerações menos extensas com questões anatômicas ou ainda com sangramento ativo) necessitam de sutura, que pode ser realizada tanto por profissionais de enfermagem quanto por médicos. A melhor técnica para sutura de lacerações de segundo grau (envolvendo pele e/ou mucosa e músculos) é a sutura contínua dos planos com um único fio(30) e muitos profissionais não estão familiarizados com essa técnica.
As lacerações graves (terceiro e quarto graus) atingem o esfíncter anal externo e a mucosa retal, respectivamente. São menos frequentes e têm um potencial de sequelas e patologias permanentes se não forem adequadamente suturadas(19). Sua reparação é da competência do médico obstetra, mas muitos residentes e profissionais formados sentem-se inseguros e não aptos a realizar a sutura(19), dada sua raridade e a pouca exposição ao procedimento na formação.
Deste modo, no que diz respeito ao simulador de sutura de lacerações perineais de 2º grau e de lacerações perineais graves, a necessidade educacional encontrada, portanto, foi de treinamento de sutura perineal pós-parto. Diversos modelos foram testados e chegou-se a dois simuladores diferentes. Um modelo de espuma para treinamento das lacerações perineais de segundo grau e um modelo com preservativo masculino, tecido e carne bovina para lacerações de 3º e 4º graus, conforme a Figura 3. Esses simuladores não permitem simular a situação clínica, mas permitem treinar conhecimentos e habilidades específicas das técnicas de sutura. O simulador de espuma tem um custo aproximado de USD 5,03 e o de laceração grave aproximadamente USD 2,52.
Para avaliar os simuladores, três grupos diferentes de aprendizes responderam a um questionário estruturado: alunos de graduação de medicina, médicos residentes de ginecologia e obstetrícia e enfermeiras obstétricas ou obstetrizes que participaram de um treinamento de emergências obstétricas com uso dos simuladores. O único critério de inclusão para responder ao questionário foi ter participado de uma aula com simulação utilizando ao menos um dos simuladores. Os simuladores vêm sendo desenvolvidos e empregados em oficinas de simulação prática desde 2014 e o estudo foi realizado em março de 2019.
Os participantes foram convidados a participar de forma voluntária e sem nenhum prejuízo a suas atividades ou benefício. Todos foram informados sobre os objetivos do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Um questionário semiestruturado foi criado pelos pesquisadores especificamente para avaliar os simuladores. Foi respondido pelos próprios sujeitos de forma anônima e continha perguntas para avaliar a reação, a autopercepção de aprendizado e comportamento, além de questionar sobre a imersão na situação clínica que o simulador permitiu. Era composto por oito questões fechadas, com respostas em escala tipo Likert. O questionário também apresentava uma pergunta aberta sobre o uso dos conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridos na simulação em situações reais do dia a dia e um espaço para observações.
Existem diversos modelos para a avaliação da efetividade do processo de simulação sendo um dos mais utilizados o modelo de Kirkpatrik. Esse modelo, proposto inicialmente pelo autor na década de 1960, é amplamente aceito e utilizado desde então(8,31).A popularidade desse modelo se deve ao fato de que resulta em um sistema bem definido para demonstrar os resultados de uma intervenção ou treinamento(31). Apesar de estar sujeito a críticas (pode ser incompleto /pode assumir associações causais irreais), simplifica o complexo processo de avaliação de treinamentos(32). Para mensurar o impacto da intervenção, foram formuladas questões baseadas no modelo de avaliação de Kirkpatrik, que propõe 4 níveis de avaliação: reação (avalia a reação dos participantes ao programa de treinamento), aprendizado (conhecimento, habilidades e atitudes adquiridas com o treinamento), comportamento (que conhecimentos e/ou habilidades adquiridos no treinamento foram aplicados no trabalho do aprendiz e/ou resultaram em uma melhoria de performance) e resultados (impacto do treinamento na resolução de um problema existente e/ou nos indicadores/objetivos organizacionais)(8-31). As questões fechadas buscaram avaliar a reação (satisfação e imersão do aprendiz na simulação), o aprendizado (teórico, prático e geral), o comportamento (melhoria nas habilidades, diminuição de stress) e os resultados (capacidade de resolver situações clínicas após a simulação). A questão aberta buscou conhecer no plano qualitativo se e como os aprendizes utilizaram o aprendizado do curso com os simuladores em situações reais, para análise tanto do nível comportamento como do nível dos resultados do modelo de Kirkpatrick.
Os dados quantitativos foram transcritos para uma planilha eletrônica e analisados utilizando estatística descritiva. Uma vez que se trata de um estudo piloto, não foram empregados testes de hipótese e cálculo do tamanho amostral não é aplicável.
A análise qualitativa da questão aberta teve função complementar ao estudo e foi orientada pelo método de análise de conteúdo(33), na modalidade temática, com objetivo de revelar o significado da experiência para os participantes. Para isto, desenvolvemos as etapas de pré-analise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação, procedendo-se: 1) ordenação dos dados, que englobou a transcrição, a releitura e a organização das respostas; 2) Em seguida, categorização das informações, após leitura exaustiva e repetida dos textos, para a definição da categoria de análise; e 3) A terceira etapa foi desenvolvida a partir da relação observada entre a interpretação das respostas e a avaliação emitida pelo participante, permitindo o delineamento da seguinte categoria de análise: “treinamento ajuda o profissional a se sentir mais seguro e confiante”.
Foram respeitados os preceitos éticos que envolvem pesquisa com seres humanos, e o projeto foi aprovado sob parecer de nº 71272017.4.0000.0121 do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina atendendo a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde.
Resultados
Para a avaliação dos simuladores através do estudo piloto, foram convidados a participar 12 médicos residentes em ginecologia e obstetrícia, 15 alunos de graduação em medicina e 11 enfermeiras obstétricas ou obstetrizes que participaram de um treinamento de emergências obstétricas com uso dos simuladores. Foram obtidas 31 respostas ao questionário: 10 médicos residentes, 12 alunos de graduação e 9 enfermeiras obstétricas, com uma taxa de resposta de 81,58%, semelhante em todos os grupos.
A média de idade de todos os respondentes foi de 29,68 anos (DP 6,36). Entre as enfermeiras obstétricas (já formadas e com especialização) a média foi de 35,44 (DP 7,45) anos. Entre os residentes a média foi de 28,7 (DP 3,56) anos e entre os alunos de medicina 26,17 (DP 4,24) anos. Todos os estudantes de medicina estavam no quinto ano do curso e participaram da simulação há menos de 6 meses. Entre os residentes, dois estavam no primeiro ano, três no segundo ano e quatro no terceiro ano da formação. Os residentes do primeiro ano participaram da simulação há menos de 6 meses. Os do segundo e terceiro anos vem participando das simulações desde o início de sua especialização, de forma repetida e sistemática. As enfermeiras obstétricas têm, em média, 8,89 (DP 8,65) anos de experiência e todas participaram do mesmo curso de emergências com o uso dos simuladores nos 24 meses anteriores à aplicação do questionário.
As respostas ao questionário estão sintetizadas na Tabela 1).
Percepção dos aprendizes sobre o ensino com simuladores artesanais de baixo custo (n=31), Florianópolis, SC, Brasil, 2019
A pergunta aberta sobre utilização do aprendizado obtido em situações reais foi respondida pelas enfermeiras obstétricas e residentes. Segundo as respostas, quando as situações simuladas ocorrem na prática de assistência, o treinamento ajuda o profissional a se sentir mais seguro e confiante, diminuindo a ansiedade e melhorando a performance.
Após a aula com simulador tive que manejar um caso de hemorragia pós-parto e consegui seguir os passos com confiança (Residente do 2º ano); Resolvi sozinha um caso de hemorragia (Residente do 3º ano); Antes da aula com simulador, tinha muita dificuldade até em identificar os planos. Após a aula me sinto mais segura e confiante. Os residentes após o treinamento já ensinaram alguns médicos do serviço as novas técnicas de sutura (Residente do 2º ano); Estive diante de uma distócia de ombro e me senti mais calma para resolver (Residente do 3º ano); Adquiri maior agilidade para resolução de casos de hemorragia (Enfermeira Obstétrica).
No campo para observações, ao menos três respondentes referiram que utilizaram ou pretendem utilizar simuladores artesanais de baixo custo, para treinamento de outros profissionais ou para grupos de gestantes. Esta observação indica que uma das inovações que os modelos trazem, além da segurança e confiança com as simulações realísticas, é a possibilidade de uma fácil reprodutibilidade em seus contextos, fazendo com que o conhecimento se torne mais democrático.
Discussão
Buscou-se descrever o processo de desenvolvimento de modelos de simuladores artesanais de baixo custo que permitem aos aprendizes adquirir conhecimentos, aumentar habilidades e treinar atitudes referentes a diversos procedimentos obstétricos. Foi também realizada avaliação da percepção dos alunos e profissionais que utilizaram os simuladores em contexto real de treinamento, adotando-se metodologia de avaliação dos simuladores que permitiu considerar a reação dos estudantes. Nesta amostra, todos os que responderam o questionário ficaram satisfeitos com a simulação. A satisfação do aprendiz é frequentemente alta em ambientes simulados(8,34), o mesmo valendo para simuladores de baixo custo/artesanais(17,19).
A autopercepção do aprendizado adquirido foi positiva, sendo que todos os respondentes consideraram que a aula com simulador aumentou seu conhecimento teórico e suas habilidades. Fato também observado em diversos estudos, principalmente quando a avaliação é feita pelo próprio aprendiz(18-20,34). O uso de simuladores apresenta diversas vantagens como a possibilidade de repetição do procedimento, de correção de erros, de percepção das dificuldades (pessoais e inerentes ao procedimento)(35). Com isso, espera-se uma melhora no desempenho em situações reais.
Atualmente, as evidências são bastante consistentes para afirmar que treinamentos com simulação em obstetrícia melhoram conhecimentos e habilidades. A melhoria da prática clínica e cirúrgica está emergindo com bastante consistência. Melhorias nos resultados populacionais são menos consistentes, mas algumas evidências existem, principalmente referentes a resultados neonatais(1,8,11,20). As diferenças entre simuladores de baixo e alto custo/ alta fidelidade não estão estabelecidas e dão margem a novos estudos(17-18,28).
A avaliação da aplicação prática dos conhecimentos e/ou habilidades adquiridos no treinamento - comportamento e resultados na classificação de Kirkpartik - foi feita pelas três últimas perguntas do questionário fechado e pela questão aberta. Entre os respondentes que estão no momento atuando em centros obstétricos e maternidades (residentes e enfermeiras obstétricas), a maioria referiu que o uso dos simuladores os ajudou a resolver problemas. Os mais citados foram a condução de casos de hemorragias pós-parto, distócia de ombros e sutura de lacerações. Quase todos os respondentes também acreditam que a aula com simuladores diminuiu sua ansiedade/ stress para lidar com uma situação como a apresentada. Fato em consonância com outras pesquisas(17,19,36).
Por ser um estudo piloto, restringiu se à opinião e vivência dos aprendizes. Alguns aprendizes consideraram que, pelo fato de os simuladores serem simples, não permitiram o aprendizado ideal. De fato, para permitir que o estudante se envolva com a simulação, a mesma deve ser desafiadora e exigir esforço para resolução. Uma das perguntas foi sobre se o simulador permitiu que o estudante se sinta em um cenário clínico real. Oito respondentes concordaram com essa afirmação. Os dados apresentados podem indicar que, quanto mais avançado o aprendiz, maior precisa ser a fidelidade do simulador para que o mesmo se sinta imerso na simulação(36).
Uma das limitações do estudo é o número reduzido de respondentes, em razão de sua característica de estudo piloto. Adicionalmente, pode haver um viés de cortesia nas respostas recebidas, apesar de garantidos o sigilo e a confidencialidade da fonte das informações. Não se pode afastar a hipótese que justamente os menos satisfeitos com as aulas e simulações não tenham respondido o questionário. Também por ser um estudo piloto, não foi feita uma avaliação objetiva de conhecimentos antes e após a simulação, como seria o ideal(8). Além disto, o desenho e natureza do estudo não permitiram a avaliação completa do 4º nível de Kirkpatrik(8,20), que é o impacto nos resultados, que necessitaria de uma análise mais abrangente.
A proposta do projeto de simuladores artesanais é que as pessoas possam acessar e reproduzir os simuladores, ampliando os recursos que docentes que atuam na formação de novos profissionais têm à mão para aumentar a efetividade de suas estratégias pedagógicas. Busca-se publicar livremente o modo de fazer os simuladores e mantê-los como uma tecnologia aberta (open source). A publicação de novas ideias e novos simuladores e a reprodução e alteração dos já existentes é permitida e incentivada.
Um achado inesperado do projeto e desta pesquisa foi o envolvimento dos aprendizes com o projeto e confecção dos simuladores, dando sugestões e participando de fato do desenvolvimento dos mesmos. Esse envolvimento favorece o aprofundamento do conhecimento, uma vez que, para montar um simulador, é necessário acessar e colocar em uso conhecimentos de anatomia, obstetrícia, técnica cirúrgica, fisiologia etc. Adicionalmente, a participação dos aprendizes no processo de desenvolvimento criou oportunidades de aprendizado de conhecimentos, habilidades e atitudes usualmente tidas como extracurriculares, mas úteis e interessantes para uma atuação profissional mais rica e ampliada, como pesquisa e busca de materiais, costura, bricolagem em geral, criatividade na solução de problemas, adaptação a situações de baixos recursos etc. Adicionalmente, ao menos três pessoas que responderam aos questionários citaram que já desenvolveram ou pensam desenvolver simuladores similares para treinamento, a partir do uso dos aqui descritos. Não foram encontrados dados similares na literatura, sendo uma inovação do trabalho apresentado.
Novas pesquisas podem ampliar o conhecimento sobre o desenvolvimento e uso de simuladores para treinamento prático em Obstetrícia, Enfermagem e outras áreas da saúde. Especificamente, estudos de avaliação com maior número de participantes, empregando outras metodologias que permitam avaliar não apenas a percepção dos aprendizes, mas também o efeito sobre suas práticas e os resultados objetivos do treinamento na redução de complicações obstétricas e neonatais.
Este estudo permitiu demonstrar a eficácia de simuladores artesanais, construídos pelos próprios professores e a um custo reduzido para aprimorar o ensino de obstetrícia. Mostra que é possível não apenas que os simuladores sejam de baixo custo, mas que sejam criados pelos professores e alunos, com bons resultados. O uso desse tipo de simuladores foi além da melhoria na prática, estimulando os estudantes a aprofundar seus conhecimentos e até a desenvolver novos ambientes de simulação. É um estudo pioneiro no Brasil e espera-se que os modelos testados sejam replicados e utilizados em outros locais e situações. Espera-se também que o estudo estimule novas pesquisas na área.
Conclusão
O estudo piloto revelou que os aprendizes percebem que os simuladores favorecem a ampliação do conhecimento teórico e das habilidades para resolver problemas clínicos, além da redução da ansiedade para lidar com situações semelhantes às simuladas. A aprendizagem baseada em simulações é amplamente reconhecida na literatura como método efetivo no contexto da formação de profissionais de saúde e a disponibilização de simuladores simples e de baixo custo contribui para ampliar o acesso de estudantes, docentes e profissionais a este recurso. A tecnologia aberta permite e incentiva que esses simuladores sejam reproduzidos e melhorados em outros cenários.
Referências bibliográficas
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Editado por
-
Editora Associada: Evelin Capellari Cárnio
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
26 Jun 2019 -
Aceito
15 Mar 2020