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Reflexões sobre o ensino de enfermagem na pós-modernidade e a metáfora de uma lacuna teórico-prática

Resumos

Trata-se de uma reflexão teórica acerca do ensino de enfermagem. Inicialmente é feita uma contextualização em relação ao mundo globalizado e as repercussões de seus paradigmas sobre o homem e, conseqüentemente, sobre o aprendizado do estudante de enfermagem. Em seguida é enfocada a lacuna teórico-prática estabelecida no aprendizado da enfermagem. Dos educadores é esperado que mostrem a relevância da integração destes diferentes saberes aos alunos. Além disto, que sejam o pivô de um processo que ajude os estudantes a aplicar o conhecimento teórico nas situações práticas, reduzindo a diferença entre o que é considerado ideal e o que é real no trabalho. O modelo bio-psico-social-econômico-cultural valoriza o cuidado ao indivíduo nos diferentes contextos das organizações e pode vir a fundamentar a prática. Outro questionamento suscitado é quanto temos cuidado do outro na sua dimensão corporal, mental, espiritual e noética, além da atenção ao indivíduo que cuida.

enfermagem; ensino; educação em enfermagem; aprendizagem


This article presents a theoretical reflection on nursing teaching. First, we contextualize the topic regarding the globalized world and the repercussions of its paradigms on mankind and, consequently, on nursing students' learning. Next, we focus on the theory-practice gap established in the nursing learning. Educators are expected to show students the relevance of integrating these different types of knowledge. Moreover, to play a pivotal role in a process that helps students to apply theoretical knowledge in practical situations, reducing the difference between what is considered ideal and what is real. The bio-psycho-social-economic-cultural model values the care for the individual in the different organizational contexts and can base the practice. Another inquiry that emerged is about the extent to which we have assisted others in their corporal, mental, spiritual and noetic dimensions, in addition to the attention delivered to the care-giver.

nursing; teaching; nursing education; learning


Se presenta una reflexión sobre la enseñanza de enfermería. Inicialmente fue realizada una contextualización con relación al mundo globalizado y las repercusiones de sus paradigmas sobre el hombre y, en consecuencia, sobre el aprendizaje del estudiante de enfermería. Seguidamente se enfoca la laguna entre la teoría y la práctica durante el aprendizaje de enfermería. De los profesores se espera que muestren la importancia de la integración de los diversos conocimientos para los alumnos. Así como, que sea la base de un proceso que permita a los estudiantes aplicar el conocimiento teórico en situaciones prácticas, reduciendo la diferencia entre lo ideal y lo real en el trabajo. El modelo bio-psico-social-económico-cultural valora el cuidado al individuo en sus diversos contextos organizacionales y fundamenta la práctica. Una otra discusión se suscita cuando cuidamos del otro en su dimensión corporal, mental, espiritual y fenomenológica, además de la atención dada al individuo que cuida.

enfermería; enseñanza; educación en enfermería; aprendizaje


ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Reflexões sobre o ensino de enfermagem na pós-modernidade e a metáfora de uma lacuna teórico-prática

Zeyne Alves Pires SchererI; Edson Arthur SchererII

IProfessor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, Brasil, e-mail: scherer@eerp.usp.br

IIMédico Psiquiatra, Doutorando, Assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO

Trata-se de uma reflexão teórica acerca do ensino de enfermagem. Inicialmente é feita uma contextualização em relação ao mundo globalizado e as repercussões de seus paradigmas sobre o homem e, conseqüentemente, sobre o aprendizado do estudante de enfermagem. Em seguida é enfocada a lacuna teórico-prática estabelecida no aprendizado da enfermagem. Dos educadores é esperado que mostrem a relevância da integração destes diferentes saberes aos alunos. Além disto, que sejam o pivô de um processo que ajude os estudantes a aplicar o conhecimento teórico nas situações práticas, reduzindo a diferença entre o que é considerado ideal e o que é real no trabalho. O modelo bio-psico-social-econômico-cultural valoriza o cuidado ao indivíduo nos diferentes contextos das organizações e pode vir a fundamentar a prática. Outro questionamento suscitado é quanto temos cuidado do outro na sua dimensão corporal, mental, espiritual e noética, além da atenção ao indivíduo que cuida.

Descritores: enfermagem; ensino; educação em enfermagem; aprendizagem

INTRODUÇÃO

O contexto social contemporâneo tem exigido a formação de recursos humanos cada vez mais capacitados. No Brasil e em todo o mundo, a educação, desde o final do século XX, vem sofrendo modificações e trazendo uma revolução do conhecimento. Conseqüentemente, têm sido requeridas das universidades novas tecnologias de informação e comunicação nos processos pedagógicos, crescente qualificação, novas habilidades e competências e articulação com a sociedade, culminando com novas demandas pessoais e profissionais(1).

Essas questões constituem-se em desafios para os órgãos de formação e produção de saber, demandando amplas discussões. As universidades, hoje, estão engajadas não só na busca incondicional da verdade como também na construção da sociedade(1). Vive-se em um mundo com avanços nas ciências e nas tecnologias, que valoriza as habilidades e competências pessoais e não apenas a quantidade de informações adquiridas. É exigido dessas a incrementação de estratégias alternativas e integradoras favoráveis à construção coletiva de uma sociedade mais justa e mais humana.

A formação, dessa maneira, deve ter como premissas a "necessidade de considerar a flexibilidade, a interdisciplinaridade, a contextualização, a unicidade da relação teoria-prática e o respeito aos valores éticos, estéticos e políticos"(2). Nessa perspectiva, as escolas de enfermagem têm procurado adotar propostas que integrem os diversos aspectos dos problemas de saúde, considerando a complexidade do ser humano, o meio em que vive e viabilizando recursos que possibilitem a formação de profissionais competentes para lidar com os desafios do século XXI(3).

A GLOBALIZAÇÃO E SUAS REPERCUSSÕES

Na atualidade, vive-se o momento da pós-modernidade, com seus desdobramentos paradigmáticos de um mundo globalizado. A certeza e a ordem têm sido substituídas pela cultura de incertezas e indeterminação, gerando mudanças acompanhadas de crises e rupturas(4).

A globalização tanto divide quanto une. A compressão tempo/espaço, onde o tempo é acelerado e o espaço comprimido, separa as elites cada vez mais globais do restante da população, cada vez mais "localizada", abrindo um fosso entre os que têm e os que não têm. O advento do computador se traduz no declínio do espaço verdadeiramente público. O ser humano passou a ser mais facilmente localizado e, conseqüentemente, controlado. Quem está no controle da situação? Apesar das ações humanas serem dadas em escala global, não se é capaz de ditar os acontecimentos. Observa-se, apenas, princípios, instituições e fronteiras deslocando-se de forma veloz e imprevisível. Será que os mais necessitados estão sendo assistidos de forma mais rápida e eficiente? A situação dos pobres melhorou ou piorou? Quem terá acesso maior ao emprego nesta nova hierarquia da mobilidade? Assim, o que se observa é o homem sendo sobrecarregado de ansiedades ligadas à insegurança e à incerteza, geradas pela existência atual(5).

Diante dessa realidade, o ser humano torna-se vulnerável às crises. A crise pode ser compreendida como um momento de transição no qual dois modelos opostos convivem de forma simultânea. É um momento instável, pois a ordem anterior deixa de existir e a nova não está clara o suficiente para fornecer parâmetros definidos de comportamento. A transição não apenas exige o enfrentamento do desconhecido, mas aciona a capacidade criativa da pessoa. A postura rígida tende a levar o indivíduo a perceber a crise como o caos. Para conviver com novos modelos supõe-se, portanto, uma visão mais flexível. É esperado, dessa forma, que esse momento seja compreendido como redefinição para o desenvolvimento.

É necessário estar atento para não deixar que fenômenos que desumanizam, que coisificam o ser humano, impregnem esse novo capítulo da história evolutiva do homem. O novo paradigma cultural (pós-moderno) vem possibilitar o surgimento de um outro estilo de sociedade que traz à tona o desejo comunitário e a cultura do sentimento. Esse renascimento cultural coloca em tela uma comunicação relacional solidária que tem sido o princípio essencial que fundamenta a prática da enfermagem, embora seja reconhecida uma valoração pela lógica racionalista, tecnicista e cientificista causando lacunas de humanização na arte de cuidar do outro(6).

A assistência oferecida ao paciente tende, ainda, a ser realizada de forma fragmentada. Há uma dicotomia entre o discurso e a ação, entre a teoria e a prática, na qual o aspecto expressivo da assistência de enfermagem é pouco desenvolvido em comparação ao aspecto instrumental que continua tendo a maior atenção por parte do enfermeiro, levando-o ao afastamento do ser humano(7).

A METÁFORA DE UMA LACUNA TEÓRICO-PRÁTICA

Na situação específica do ensino de enfermagem, a metáfora de uma lacuna entre a teoria e a prática é firmemente estabelecida. Alguns autores argumentam que ela sempre existirá, pois há diferentes tipos de conhecimento envolvidos. Um desses, por exemplo, refere-se à teoria como o conhecimento "saber que" adquirido dos livros; e a prática como o conhecimento "saber como" ganho da experiência direta de uma situação(8). Essa dicotomia parece existir porque os conceitos teóricos estão fora de época, portanto, é sugerido que a teoria de enfermagem necessite ser reconceitualizada, de tal forma que teoria e prática se informem e se desenvolvam uma da outra(9). Há estudioso que acredita não haver uma lacuna teoria-prática, mas uma lacuna teoria-teoria por existirem duas perspectivas teóricas de enfermagem diferentes, utilizadas por professores e profissionais enfermeiros(10). Para tentar resolver os problemas causados por tal lacuna é esperado que os educadores mostrem a relevância da integração desses diferentes saberes aos alunos. Além disso, que sejam o pivô de um processo que ajude os estudantes a aplicar o conhecimento teórico nas situações práticas, reduzindo a diferença entre o que é considerado ideal e o que é real no trabalho da enfermagem.

Com os esforços, no entanto, dos educadores para resolver o problema da lacuna teórico-prática acabam por voltar a atenção às condições do ambiente no qual o aluno aprende. A cognição do estudante embora real não tem substrato palpável, além de ser própria de cada um e, por isso, inacessível ao professor. Além disso, é sabido que o conhecimento teórico e o prático são trazidos juntos pelos aprendizes, mostrando não serem experiências separadas uma da outra(11). Há, ainda, carência de estudos sistematizados que contemplem esses aspectos relativos à pessoa do aluno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta época de reflexão eclode a percepção de que os problemas globais e de inter-relação gerados pelo paradigma positivista, até então hegemônico, e sua ênfase no desenvolvimento tecnológico, têm levado ao afastamento dos aspectos humanitários (envolvimento e afetividade). Os objetivos explícitos da tecnologia, sob a égide positivista, são o controle, a produção em massa e a padronização, refugiando-se na racionalidade, na técnica, no organicismo, acreditando na ilusão de um crescimento ilimitado. No sistema educacional ainda vigente, compromissado com a valorização da auto-afirmação manifestada como poder, controle e dominação de outros pela força (padrões predominantes em nossa sociedade), baseada no comportamento competitivo, idéias originais e questionamento da autoridade são desencorajados. Portanto, fica clara a promoção da competição em detrimento da cooperação. A ação passa a ser direta, instala-se a rotina tecnicista e saem de cena as reflexões, o pensar e a criatividade. Como resultado é possível concluir que, enquanto essa situação de desagregação do todo persistir, nossa prática se faz insuficiente e incompleta(4).

Repensar essas posturas possivelmente influenciará as atitudes frente às pessoas às quais se assiste, à medida que se fundamenta no modelo biopsicossocial-econômico-cultural que valoriza o cuidado ao indivíduo nos diferentes contextos das organizações (instituições de saúde, ensino e outros). Há também que se questionar sobre o quanto se tem cuidado do outro na sua dimensão corporal, mental, espiritual e noética. E refletir, também, sobre o indivíduo que cuida. Será que o cuidador tem se preocupado com sua totalidade humana?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 10.11.2005

Aprovado em: 13.9.2006

  • 1
    Ministério da Educação (BR) [homepage na Internet]. Brasília: Ministério da Educação; [Acesso em 2004 fevereiro 19]. Seminário Internacional Universidade XXI: novos caminhos para educação superior: o futuro em debate. Resultados do Seminário: Declaração de Brasília; [3 telas]. Disponível em: http://www.mec.gov.br/univxxi/pdf/declara_p.pdf
  • 2. Forum Nacional do Profae, 1;. Relatório geral: construindo uma política pública de formação profissional em saúde. Brasília (BR): Ministério da Saúde, 2003. p. 145-71.
  • 3. Clapis MJ, Nogueira MS, Mello DF, Corrêa AK, Souza MCBM, Mendes MMR. O ensino de graduação na escola de enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo ao longo dos seus 50 anos (1953-2003). Rev Latino-am Enfermagem 2004 janeiro; 12 (1): 7-13.
  • 4. Gomes JB, Casagrande LDR. A educação reflexiva na pós-modernidade: uma revisão bibliográfica. Rev Latino-am Enfermagem 2002 setembro; 10(5): 696-703.
  • 5. Bauman Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar; 1999.
  • 6. Ferraz CA, Trevizan MA, Mendes IAC, Nakao JRS. Reflexões sobre a ação comunicativa na arte de cuidar do outro em tempos pós-modernos. In: Mendes IAC, Carvalho EC, coordenadores. Comunicação como meio de promover saúde. 7º Simpósio Brasileiro de Comunicação em Enfermagem; 2000. junho 5-6; Ribeirão Preto, São Paulo. Ribeirão Preto: FIERP; 2000.p.137-41.
  • 7. Scherer ZAP, Luis MAV. Percepções e significados atribuídos pelos pacientes à vivência da queimadura. Acta Paul Enfermagem 1998 maio; 11(2): 64-72.
  • 8. Burnard P. Towards an epistemological basis for experiential learning in nursing. J Adv Nurs 1987; 12:189-93.
  • 9. Corlett J. The perceptions of nurse teachers, student nurses and preceptors of the theory-practice gap in nurse education. Nurse Educ Today 2000; 20: 499-505.
  • 10. Dale AE. The theory-theory gap: the challenge for nurse teacher. J Adv Nurs 1994; 20: 521-4.
  • 11. Gallagher P. How the metaphor of a gap between theory and practice has influenced nursing education. Nurse Educ Today 2004; 24: 263-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2005
  • Aceito
    13 Set 2006
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