Open-access Implantação do sistema e-SUS Atenção Básica: impacto no cotidiano dos profissionais da Atenção Primária à Saúde*

Resumos

Objetivo:  compreender como se tem processado a implantação do sistema e-SUS Atenção Básica e seu impacto no cotidiano das equipes de saúde.

Método:  pesquisa qualitativa, realizada em um município do interior do estado de São Paulo com profissionais que atuam na Atenção Primária à Saúde e utilizam o sistema e-SUS Atenção Básica, como ferramenta de trabalho. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas e análise temática dos dados com abordagem trifásica de Kotter.

Resultados:  foram entrevistados 17 profissionais, enfermeiros, médicos, odontólogos e agentes comunitários. A implantação do e-SUS Atenção Básica e seu impacto no cotidiano das equipes de saúde foram compreendidos em termos da implantação obrigatória; fragilidades para a implantação, como ausência de disponibilização de recursos materiais e implícita imposição para uso do sistema; frágil capacitação para a implantação e aprendendo com a experiência.

Conclusão:  observou-se um processo de incentivo danoso, conduzido sob a perspectiva de pressão institucional, utilização do sistema para justificar o trabalho realizado e, em contrapartida, houve a criação de mecanismos de aprendizagem colaborativa entre as equipes.

Descritores: Políticas de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Sistema de Informação em Saúde; Registros Eletrônicos de Saúde; Gestão em Saúde: Sistema Único de Saúde


Objective:  to understand how the implementation of the e-SUS Primary Care system has been processed and its impact on the daily life of the health teams.

Method:  a qualitative research study, conducted in a municipality in the inland of the state of São Paulo with professionals who work in Primary Health Care and use the e-SUS Primary Care system as a work tool. Semi-structured interviews and thematic data analysis were used with Kotter’s three-phase approach.

Results:  a total of 17 professionals, nurses, physicians, dentists and community agents were interviewed. The implementation of e-SUS Primary Care and its impact on the daily life of health teams were understood in terms of mandatory implementation; weaknesses for implementation, such as absence of material resources and implicit imposition for the use of the system; fragile training for deployment and learning from experience.

Conclusion:  a harmful incentive process was observed, conducted from the perspective of institutional pressure, use of the system to justify the work performed and, on the other hand, there was the creation of collaborative learning mechanisms between the teams.

Descriptors: Health Policies; Primary Health Care; Health Information Systems; Electronic Health Records; Health Management; Unified Health System


Objetivo:  comprender cómo fue el proceso de implantación del sistema de Atención Primaria e-SUS y su impacto en la vida diaria de los equipos de salud.

Método:  investigación cualitativa, realizada en una ciudad del interior del estado de San Pablo con profesionales que trabajan en Atención Primaria de la Salud y utilizan el sistema de Atención Básica e-SUS, como herramienta de trabajo. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas y análisis temático de los datos con el enfoque de tres fases de Kotter.

Resultados:  se entrevistaron 17 profesionales, enfermeros, médicos, odontólogos y agentes comunitarios. La implantación de la Atención Primaria e-SUS y su impacto en la vida diaria de los equipos de salud se entendieron en términos de implantación obligatoria; debilidades para la implantación, como la ausencia de recursos materiales y la imposición implícita del uso del sistema; escasa capacitación para la implantación y aprendizaje de la experiencia.

Conclusión:  hubo un proceso de incentivo nocivo, realizado bajo la perspectiva de presión institucional, uso del sistema para justificar el trabajo realizado y, en contrapartida, se generaron de mecanismos de aprendizaje colaborativo entre los equipos.

Descriptores: Políticas de Salud; Atención Primaria de Salud; Sistemas de Información en Salud; Registros Electrónicos de Salud; Gestión en Salud; Sistema Único de Salud


Introdução

A informação, no setor saúde, ampara o planejamento, processo decisório e implementação das políticas públicas, todavia, limitações relacionadas à permanência de registros de dados manuais, dificuldades de acesso a equipamentos de informática, e a deficiente capacitação de recursos humanos podem impactar negativamente na sua operacionalização1.

A falta de habilidade pode ser vista como barreira no cotidiano dos profissionais, quando se trata de manter a qualidade dos dados, seja por falta de habilidade, seja por restrição de tempo2. Esses impactos negativos podem ser minimizados por meio da percepção dos profissionais sobre os fatores de qualidade do sistema de informação e por motivação para utilizá-lo3. Sendo que é essencial atentar-se à interação entre as demandas do profissional, a tecnologia e o contexto pretendido4.

Na saúde, as mudanças são reconhecidamente importantes, contudo, são entremeadas de desafios em virtude da complexidade administrativa desse setor, sendo que, para que a implementação de qualquer mudança seja bem-sucedida, há necessidade das organizações de saúde terem condições para gerenciar tal processo. Há aspectos que podem ser citados como impeditivos para a implantação de sistemas de informação informatizados no Brasil, como impasses no decorrer da implantação, dificuldades no preparo dos profissionais, bem como a deficiência da estrutura organizacional5.

Nesse processo de implantação, elementos como visão, habilidades, incentivo, recursos e plano de ação conduzem a uma real mudança, porém, a ausência de um desses elementos no processo pode causar sentimentos como ansiedade, confusão e frustração6.

No Brasil, as informações são utilizadas como instrumento para a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), relacionado à vigilância em saúde, acompanhamento de produção e transferência financeira, podendo dar destaque à gestão administrativa e distanciando-se, muitas vezes, das necessidades dos serviços de saúde7.

Até 2013, era utilizado na Atenção Primária à Saúde (APS) o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), porém não havia estrutura para responder às necessidades da população. Sendo assim, foi pensada uma nova estratégia para atendê-las, com a instituição do e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB). Essa implantação trouxe mudanças tanto nos serviços de saúde, a exemplo de novas tecnologias, quanto nas formas de coleta, processamento e uso das informações no processo de cuidado e gestão, por meio do e-SUS AB, com foco na gestão local, e o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), com foco na gestão municipal, estadual e federal8.

Atualmente, 72,8% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) dos municípios do Brasil possuem o sistema e-SUS AB implantado, sendo que 43,9% utilizam Coleta de Dados Simplificada (CDS) e 29% utilizam o Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC)9.

Na implantação de sistemas de informação são necessários estrutura e suporte técnico para apoiar o processo e, mesmo quando disponibilizados, podem ainda ocorrer entraves em nível local. O critério do Ministério da Saúde para determinar se as UBS utilizam o sistema é o envio de dados para o SISAB, entretanto, não há informações ou análises sobre o real cenário de implantação e tampouco como o processo foi inserido e percebido pelos profissionais. Dessa forma, neste estudo teve-se como objetivo compreender o processo de implantação do sistema e-SUS AB e seu impacto no cotidiano das equipes de saúde.

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada em município com população aproximada de 25 mil habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto (entre 0,7 e 0,8)10, no interior do estado de São Paulo, em 2018. A rede de saúde do município é composta de sete equipes de estratégias de saúde da família, um pronto atendimento, um serviço de atenção domiciliar, um centro de atendimento odontológico especializado, um ambulatório de especialidades e um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O cenário de estudo foi composto por seis estratégias de saúde da família que possuíam o sistema e-SUS AB com PEC implantado, localizadas em três em zonas periféricas e três zonas centrais da cidade.

A população do estudo foi composta de 17 profissionais da equipe de saúde (enfermeiros, agentes comunitários de saúde, odontólogos, médicos e técnicos de enfermagem) que possuíam experiência de utilização do sistema e-SUS AB de seis meses, no mínimo, e mostraram-se abertos ao diálogo, selecionados por conveniência. Foi utilizado como critério a repetição e saturação dos dados, para determinar o número de entrevistas, e, no mínimo, dois profissionais por categoria11.

A pesquisa foi desenvolvida pela autora principal, que possuía experiência prévia em coleta e análise de dados qualitativos, não possuindo vínculo interpessoal com os participantes do estudo. Houve contato prévio com o campo e com os participantes por meio de visitas, para apresentação do projeto, realização de entrevistas piloto e agendamento para a coleta de dados. Utilizou-se roteiro de entrevista semiestruturado para a coleta de dados, em ambiente privativo disponibilizado pelos gestores das UBS.

As entrevistas foram estimadas em até 60 minutos, gravadas em dois dispositivos de áudio simultaneamente. As questões das entrevistas abordaram o processo de implantação do sistema e-SUS AB. As entrevistas foram transcritas na íntegra, codificadas conforme a sequência em que foram realizadas e identificadas, considerando-se a localização em que as UBS estavam inseridas, Zona Central (ZC) e Zona Periférica (ZP), seguido da categoria profissional e número ordinal.

Para tratamento dos dados provenientes das entrevistas, utilizou-se análise temática contemplando as etapas: familiarização com os dados; geração de códigos iniciais; pesquisa, revisão, definição e nome dos temas e produção do relatório12. Após transcritas, com auxílio do editor de texto Google Docs, por meio da ferramenta “digitador por voz”, as entrevistas foram codificadas de acordo com a categoria profissional e número ordinal e, a partir disso, iniciou-se a leitura do material transcrito com a inserção de comentários registrados pela pesquisadora, na medida em que os verbetes lhe chamavam a atenção.

Na sequência, deu-se a elaboração dos códigos iniciais e, posteriormente, a fase de agrupamento e/ou separação dos mesmos12. Os códigos iniciais foram inseridos no editor de texto Word, em uma página em branco, para verificar a possibilidade de agrupamento entre eles, buscando-se sempre garantir a correlação entre as informações. Posteriormente, os potenciais temas foram transferidos para folha de papel e, com recurso de canetas coloridas e papéis adesivos, construiu-se a lista e revisão dos temas e, por fim, chegou-se ao tema central.

Foi utilizada, como referencial, a gestão da mudança na saúde, que incorpora a abordagem trifásica de Kotter8. A abordagem trifásica de Kotter para gestão de mudança é baseada em três fases distintas: gerar clima para a mudança, engajar e capacitar a organização e implementar e sustentar a mudança. Esse modelo direcionado à saúde pode ser usado para planejar mudanças na forma de cuidar dos pacientes até mudanças no uso de tecnologias para proporcionar mais segurança e qualidade8.

Durante o processo de análise, para conferir credibilidade, consistência e confirmabilidade, foi realizada discussão entre os membros do grupo de pesquisa, bem como a devolutiva aos participantes.

O Projeto de Pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob Protocolo CAAE: 73772817.3.0000.5393, atendendo às Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, aprovadas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde 466/12.

Resultados

Participaram do estudo quatro agentes comunitários de saúde, quatro enfermeiros, três médicos, quatro odontólogos e dois técnicos de enfermagem. Desses, 15 (88%) eram do sexo feminino, 2 (22%) do sexo masculino, com média de idade de 35 anos, variando de 29 a 51 anos, 12 (70%) possuíam ensino superior completo e cinco (30%) ensino médio completo, encontrando-se em atividade nas UBS de 1 a 17 anos, com média de 6,7 anos de trabalho.

Para análise dos dados das entrevistas, o material codificado possibilitou observar, na organização das falas, que os temas evidenciados se referem ao processo de implantação. Dessa forma, há quatro categorias, a saber: “Implantação obrigatória. ‘Tem que implementar’”; “Fragilidades para a implantação do sistema”; “Frágil capacitação para se conseguir a implantação” e “Aprendendo com a experiência”.

Implantação obrigatória. “Tem que implementar”

Nas unidades de saúde da APS, a pressão institucional para a implantação da Estratégia e-SUS AB, culminou na implantação e uso obrigatório do sistema de informação.

[...] Eles falaram: a partir do mês que vem precisa usar o e-SUS... E aí jogaram assim [...] (ZPENF03).

[...] Só falaram meio assim, jogando medo: tem que fazer; tem que aprender, foi assim [...] (ZCDEN01).

Essa pressão gerou dois segmentos, um positivo, refletido como a concretização para o funcionamento do processo de registro, envio, processamento e devolutiva das informações para cumprir o seu propósito e o negativo, evidenciado pelo não planejamento do processo que culminou em uma implantação acelerada para cumprir os prazos estabelecidos para efetivo uso e envio dos dados. Os profissionais que vivenciaram essa fase a descrevem de maneira negativa.

[...] Eu não lembro mais o ano... mas foi de um mês para o outro. E assim, eles deixaram para última hora, então apresentaram para nós mais ou menos... Então em um mês a gente jogou todos no computador... e foi aquela briga, em um mês a gente atacou [registrou] a área toda, então assim, revezamos entre nós aqui [...] (ZPACS04).

[...] Não teve muito tempo, já foi falando e a gente teve que correr com os cadastros, mudando rápido assim, acho que faltou um pouco de tempo [...] (ZPACS01).

Fragilidades para a implantação do sistema

A ausência de disponibilização de recursos materiais permeou a experiência dos profissionais de saúde, na fase de implantação e de uso do sistema e-SUS AB.

[...] A dificuldade... no começo foi a falta de internet porque, assim, tinha dias que tinha, tinha dias que não ... mas hoje não, hoje a internet é difícil o dia que não tem internet [...] (ZPENF04).

[...] No começo teve um pouco de briga porque eram duas equipes antigamente, a UBS A e a B, então eles discutiam em relação à escala de computador, que um ficava mais que o outro, aí prejudicava para passar a produção [digitar fichas] [...] (ZCENF02).

Sobre processo de implantação, outro ponto importante a se destacar é que não veio incorporado de engajamento da equipe, a respeito da importância da Estratégia e do sistema e-SUS AB, e, sim, de implícita imposição para que os profissionais iniciassem o registro.

[...] Sabe aquela coisa assim... Tem que, tem que implementar... Só que assim, tem esse tempo, aí parece que a pessoa aproveitou esse tempo para não passar [implantar], e aí faltava um mês para passar: vamos fazer senão vai perder verba! [...] (ZPACS04).

[...] Eles falaram assim, bom vocês tem que melhorar o número de atendimentos. Tal lugar tem muito atendimento, tal lugar tem menos para comparar as unidades, sabe? Mas só [...] (ZCMED01).

Frágil capacitação para se conseguir a implantação

As narrativas dos participantes acerca da ausência de capacitação suficiente e adequada, anterior ou durante o processo de implantação, evidenciam dúvidas sobre como utilizar o sistema e-SUS AB em toda a sua potencialidade, escassez do entendimento do propósito da Estratégia, bem como da sua relevância para a APS. Além disso, foram relatadas tentativas de capacitação, contudo, identificadas como insuficientes para sanar as dúvidas, gerando impasse para registrar os dados no novo sistema.

[...] Veio um moço pedindo para a gente não estar saindo da unidade que ele ia estar passando para explicar o e-SUS, e a gente ficou o dia inteiro na unidade, o dia todo... aí chegou... e a gente até questionou, que nosso horário é das sete horas da manhã até as quatro horas da tarde, ele chegou aqui 15h55 da tarde... Nosso serviço é no horário que a gente está aqui, depois a gente quer ir embora. Então como ele chegou 15h55h a gente simplesmente assinou a folha e foi embora [...] (ZPACS04).

[...] A gente não teve um treinamento, nem nada, foi uma coisa assim bem basicão e falaram: tem que fazer isso, isso e isso. Aí as dúvidas a gente foi tirando ao longo do dia a dia, conforme fui usando. Mas... eu não consigo assim, que eu tenho dúvidas ainda [...] (ZPENF03).

Os profissionais expuseram dificuldades provenientes dessa pseudocapacitação concomitante às atualizações do sistema. Houve atualizações desde a implantação do sistema e-SUS AB 2.0 até o momento da realização das entrevistas (e-SUS AB 3.0). Isso, somado à ausência de capacitação, deixa os profissionais imbuídos em dúvidas que se acumulam a cada versão.

[...] Eles chamaram, explicaram... eu acho que não foi todo mundo junto, foi enfermeiro e auxiliar primeiro e depois os agentes de saúde... mas, assim, teve poucas vezes. Aí depois mudou, aí depois que mudou também não me explicou, então, assim, os agentes de saúde acabam tendo muita dificuldade durante o dia a dia [...] (ZPENF04).

[...] Porque eu acho assim, parece que ele (e-SUS AB) de tempo em tempo, não sei se é de mês em mês, ele dá uma modificação. Para melhor eu acho [...] (ZPACS04).

[...] Se o e-SUS, igual agora, o sisprenatal não vai existir mais, vai ser tudo no e-SUS, então eu acho que eles deveriam investir mais nessa capacitação, eles estão expandindo sistema [...] (ZCENF02).

As dúvidas recorrentes geraram nos odontólogos insegurança e desconfiança quanto ao sistema.

[...] Eu tenho [os atendimentos], só que tudo guardado e todo dia 30 eu imprimo um relatório também de tudo que foi atendido. Eu gosto de arquivar (ZCDEN02).

[...] Geralmente trava o sistema ou a internet falha. Então eu não confio 100%... Então eu prefiro ter no papel anotado tudo certinho. E eu não jogo fora esse que foi anotado, é arquivado comigo. E para minha sorte, porque há pouco tempo, foi feito um levantamento dos procedimentos realizados e veio... muito abaixo do que eu tinha realizado. Então mais um motivo para eu continuar fazendo essa situação de colocar no papel e na ficha, porque uma maneira de eu me resguardar [...] (ZPDEN04).

Frente à ausência de suporte técnico para capacitação de novos profissionais e atualizações recorrentes, foi acrescida ao enfermeiro gestor da unidade e a alguns ACS que possuíam conhecimentos e habilidades com o uso de tecnologias, a função de capacitador.

[...] Eu não sei, acho que muito bem jogado, assim sabe, a gente que teve que aprender. Tanto é que entra médico, eles não têm uma capacitação para, para usar o e-SUS, a gente, como enfermeira, é que tem que ficar lá: “ó, faz assim”... não... não é uma parte que a gente usa e não é nem dá... nossa responsabilidade ficar treinando médico ou outros profissionais [...] (ZPENF03).

[...] Eu sinto que chega um período do mês que eles, os agentes, eles ficam pressionados de ter que jogar a produção, e a enfermeira fica sobrecarregada por ter que ficar pedindo. Sobre enfermagem, e auxiliar, enfim, eu sinto também porque isso acaba dificultando, lentifica o trabalho dela [enfermeira], porque a pessoa não sabe mexer tanto assim na parte de computador, depende de outra [...] (ZCMED01).

Aprendendo com a experiência

Ao se perceberem imersos nesse processo descrito anteriormente, associado com a utilização do novo sistema para realização do seu trabalho, os profissionais desenvolveram ao longo do tempo mecanismos de aprendizagem, seja esse individual, seja cooperativo, dentro da mesma unidade ou entre as unidades de saúde.

[...] A princípio ninguém sabia nada do e-SUS. Nós fomos aprendendo sozinhos basicamente. Eu tinha um colega que trabalhava comigo que entendia de informática, a gente foi entendendo e ensinando os outros colegas também (ZCACS02).

[...] A gente vai perguntando aqui uma para outra. A gente não tem... tem um rapaz para te falar a verdade, que chama [nome] e ele é agente de saúde [nome da UBS], que dizem que ele gosta muito dessa situação da informática e ele vai achando alguma saída. Então já houve uma situação ou duas que eu perguntei para ele (ZPDEN04).

[...] Quem me explicou como que usa foi a médica anterior que estava. Um dia a gente estava junto aqui e ela explicou mais ou menos como usa (ZPMED03).

Ao contrário do antigo sistema de informação, SIAB, o sistema e-SUS AB permite interação dos profissionais devido sua interface, o que viabilizou a descentralização do trabalho, reduzindo a responsabilidade quanto à produção da equipe, como também a diminuição da carga do profissional de enfermagem que, em grande maioria, assumia o papel de reunir as fichas de atendimento da equipe e registrar no SIAB.

[...] A gente está bem mais em contato. Eu acho mais fácil. Esse SIAB a gente preenchia a folha aqui... uma folha branca, a enfermeira passava e ficava... ficava por isso mesmo, então, eu acho que esse aqui a gente tem mais acesso, do que esse SIAB [...] (ZCDEN02).

[...] Você gastava mais um dia. Você tinha que passar todos os agentes de saúde, de auxiliar, eu acho que agora cada um faz o seu, eu acho que isso assim... cada um é responsável. Porque querendo ou não eles acabam sendo responsáveis pela produção deles porque não era. Assim, fazia ou não fazia quem ia passar era eu mesmo. E até quem iria responder era eu mesma, então eu achei que isso ajudou bastante [...] (ZPENF04).

[...] O SIAB não era a gente que alimentava... a gente simplesmente mandava a produção para o coordenador e ele alimentava o SIAB. A gente nunca fez essa alimentação direta. Entendeu? Então eu acho. Não deixa de ser... tipo um controle, mas uma situação mais íntima da gente com, com a alimentação. Isso eu achei legal [...] (ZPDEN04).

Mesmo utilizando mecanismos paralelos de aprendizagem, nota-se a não implementação do sistema e uso das informações como elemento de qualificação do cuidado, mas, sim, como prestação de contas/justificativa para os gestores.

[...] A gente tem que fazer uma referência que a gente está ali, lidando, do que a gente está fazendo aqui. De certa forma uma prestação de contas, para... uma organização financeira e de para saber exatamente o que está se gastando, quanto que é necessário contribuir no serviço. Então eu acho que é nesse sentido [...] (ZPDEN03).

[...] Para saúde? Não… para eles lá [governo], para a geração de renda, para nós não? Um controle, uma... como que eu vou falar… Organização da unidade [...] (ZCTE011).

[...] Para a gente... poder registrar as informações que a gente tem dos pacientes... pra poder ter uma... forma quantitativa também, qualitativa das coisas que a gente faz... para poder ficar registrado, tanto questões de... informações sociais, geográficas entre outras coisas e também procedimentos que a gente tem... para o ministério saber quanto que ele gasta com tudo isso e também... em relação às informações... da população mesmo [...] (ZCENF01).

Discussão

Em 2018, o município estudado estava com situação do Sistema com PEC implantado, diante dos dados do Ministério da Saúde (jan/2019), além disso estava entre os municípios da região com maior volume de dados enviados ao SISAB.

O clima de mudança, durante a implantação do sistema, sustentado pela primeira fase de Kotter, gerou sentimentos de desapontamento e confusão nos profissionais diante das falhas ocorridas durante o processo de aceitação e utilização do sistema. Essas dificuldades já foram identificadas na implantação de outros sistemas de informação, da Atenção Primária, no Brasil13 Além disso, a verticalização das políticas e normativas14 pode contradizer as ações em nível local. Nesse caso, tal verticalização foi permeada de aspectos obrigatórios e punitivos que reverberam principalmente na esfera municipal15, influenciando o processo de gestão de mudança.

Quando se trata de gestão da mudança, está previsto estabelecer metas, contudo, apenas estipular datas não concretiza processos. A falta de planejamento ficou evidenciada ao se comparar o período de implantação no município ante os prazos estipulados pelo MS para implantação da Estratégia e-SUS AB, iniciada em agosto de 2013, com o primeiro prazo em julho de 2014, o segundo prazo em dezembro de 2015, com interrupção de repasse de verbas agendado a partir de abril de 20168,16.

Com amparo da segunda fase de Kotter, o engajamento e a capacitação dos profissionais foram evidenciados por ausência de habilidade em utilizar o sistema devido à não capacitação de recursos materiais que, na perspectiva dos profissionais, tornou frustrante o processo da mudança. Em outros cenários, houve a mesma dificuldade quanto à capacitação dos profissionais para uso do sistema e-SUS AB, sendo essas capacitações determinadas como ineficientes17-18.

Considerando experiências de implantação internacionais, o treinamento impacta positivamente na experiência dos profissionais, bem como no conhecimento para gerenciar o processo de implantação e na transição entre os sistemas19-20. Em complemento a isso, um estudo mostra que fazer uso dos aspectos da gestão da mudança, durante a implantação de um prontuário eletrônico, melhora a transformação digital no serviço de saúde21.

Na tentativa de sustentar as mudanças, como proposto na terceira fase de Kotter, os profissionais desenvolveram redes de aprendizagem colaborativa entre os membros das equipes e entre as UBS. Considera-se o trabalho de equipe na saúde como maneira de se relacionar dentro de um processo de grupo, no qual ocorrem trocas de saberes e interesses formando uma rede de relações entre pessoas22.

Os mecanismos de aprendizagem incorporaram troca de saberes entre os profissionais da mesma equipe ou em grupos para compartilhamento de mensagens, sendo relatados como fundamentais para a utilização do sistema e, consequentemente, para o desenvolvimento do trabalho dos profissionais durante o inicio de envio dos dados para o SISAB. Em outro estudo, realizado em Minas Gerais, foi evidenciada também a colaboração entre os colegas com uso de grupo em multiplataforma de mensagens instantâneas relacionadas ao sistema e-SUS AB15.

Cabe refletir que mesmo sendo a cooperação para o aprendizado um ponto positivo, há preocupação com a fidedignidade do que é repassado entre os colegas, a diversidade de maneiras de registrar e o entendimento sobre a proposta do sistema para a gestão e qualificação do cuidado. Esses fatores podem gerar, respectivamente, inconsistências e falta de integridade nos registros inseridos pelos profissionais, no prontuário eletrônico, bem como afetar a qualidade da informação23.

Como limitante deste estudo, destaca-se a não inclusão dos profissionais integrantes das comissões responsáveis pela implantação no cenário do estudo, o que permitiria uma compreensão ampliada desse processo. Todavia, este estudo contribui como ferramenta de gestão para os órgãos gestores no processo de mudança na saúde, como o da implantação do sistema e-SUS AB e o impacto no cotidiano das equipes de saúde.

Conclusão

Observou-se um processo de implantação iniciado com sentimentos de confusão e desapontamento. Pode-se evidenciar a ausência de visão, habilidade e recursos, além de um processo de incentivo danoso, conduzido sob a perspectiva de pressão institucional, associado à possível ausência de planejamento. Em contrapartida, a partir das experiências e para suprir as necessidades de ausência de habilidade da utilização do sistema, foram criados mecanismos de aprendizagem colaborativa.

Essas experiências compartilhadas podem ser direcionadas em ações mais assertivas pelos órgãos gestores, ante a implantação do sistema e-SUS AB, como melhoria na formação dos usuários, garantia dos recursos necessários de infraestrutura e fornecimento de suporte, visando garantir a qualidade do sistema, da informação e do serviço de saúde.

A avaliação periódica da situação de implantação e uso do sistema no Brasil é necessária, pois, além de ser uma realidade emergente, pode auxiliar na melhoria das políticas para alcançar os objetivos da Estratégia e-SUS AB e sua cobertura nacional.

  • *
    Artigo extraído da tese de doutorado dupla titulação “Experiências dos profissionais com o uso do sistema e-SUS Atenção Básica”, apresentada à Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil e à Universidad Autónoma de Madrid, Faculdad de Medicina, Madrid, Espanha. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - e com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 2018/12376-9, Brasil.

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Editado por

  • Editora Associada: Sueli Aparecida Frari Galera

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    29 Out 2020
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