Acessibilidade / Reportar erro

A amputação na percepção de quem a vivencia: um estudo sob a ótica fenomenológica

Resumos

Diante da inquietação com a questão da amputação, suas implicações e sentimentos experimentados pela pessoa que a vivencia, realizou-se esse estudo, com a proposta de compreender esse fenômeno. Inicialmente, a revisão da literatura possibilitou conhecer esse tema sob diversos enfoques, além de permitir a apropriação de algumas idéias do pensamento filosófico de Merleau-Ponty sobre o corpo e a percepção. Após o conhecimento sob essa ótica, realizou-se entrevistas com as pessoas submetidas à amputação, habitando seu mundo, ouvindo seus depoimentos. Compartilhando desses momentos, pôde-se compreender seus significados, a partir da experiência de quem os vivencia, expressando-os sob a forma de seis categorias temáticas. Desse modo, foi possível desvelar algumas facetas do fenômeno amputação, à luz do referencial fenomenológico, além de compreender a pessoa amputada em sua situcionalidade, tal como ela se mostra em si mesma, em sua essência.

amputação; enfermagem; reabilitação


This study aimed to understand the implications and feelings associated with the experience of amputation. The literature review allowed the knowledge of this phenomenon under several perspectives, besides the appropriation of some ideas of the philosopher Merleau-Ponty about body and perception. After this initial knowledge, interviews were performed with people who underwent amputation, by living in their world and listening to their statements. By sharing these moments, it was possible to understand meanings from the perspective of those who experience it, which led to six thematic categories. In addition to understanding those who underwent amputation in their context and in their essence, some facets of this phenomenon were revealed through the phenomenological referential.

amputation; nursing; rehabilitation


Frente a las circunstancias de amputación, sus implicaciones y sentimientos vividos, este estudio fue realizado con la propuesta de comprender este fenómeno. Inicialmente, la revisión de la literatura permitió conocer el tema desde diversos enfoques, además de permitir la adquisición de algunas ideas sobre el pensamiento filosófico de Merleau-Ponty con respecto al cuerpo y la percepción. Posteriormente al obtener conocimiento sobre esta óptica fueron realizadas entrevistas con las personas quienes fueron sometidas a una amputación, para poder introducirnos en su mundo y escuchar sus expresiones. A partir de esos momentos se pudo comprender el significado de quien lo vive; manifestaciones que son descritas por medio de seis categorías temáticas. De esta forma, fue posible mostrar algunas fases del fenómeno de amputación bajo la óptica del referencial fenomenológico, así como, comprender a la persona amputada en toda su magnitud, tal como ella se manifiesta en sí misma en su esencia.

amputación; enfermería; rehabilitación


ARTIGO ORIGINAL

A amputação na percepção de quem a vivencia: um estudo sob a ótica fenomenológica1 1 Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado

Gislaine Cristina de Oliveira ChiniI; Magali Roseira BoemerII

IEnfermeira, Mestre, e-mail: g.coc@ig.com.br

IIOrientador, Professor Associado Aposentado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: boemerval@terra.com.br

RESUMO

Diante da inquietação com a questão da amputação, suas implicações e sentimentos experimentados pela pessoa que a vivencia, realizou-se esse estudo, com a proposta de compreender esse fenômeno. Inicialmente, a revisão da literatura possibilitou conhecer esse tema sob diversos enfoques, além de permitir a apropriação de algumas idéias do pensamento filosófico de Merleau-Ponty sobre o corpo e a percepção. Após o conhecimento sob essa ótica, realizou-se entrevistas com as pessoas submetidas à amputação, habitando seu mundo, ouvindo seus depoimentos. Compartilhando desses momentos, pôde-se compreender seus significados, a partir da experiência de quem os vivencia, expressando-os sob a forma de seis categorias temáticas. Desse modo, foi possível desvelar algumas facetas do fenômeno amputação, à luz do referencial fenomenológico, além de compreender a pessoa amputada em sua situcionalidade, tal como ela se mostra em si mesma, em sua essência.

Descritores: amputação; enfermagem; reabilitação

INTRODUÇÃO

Enquanto graduanda em enfermagem e aluna de Iniciação Científica, a autora convivia com a inquietação a respeito da amputação, suas implicações e sentimentos experienciados pela pessoa que a vivencia, sendo essa inquietação gerada por vivências pessoais. Em busca de maior aproximação ao tema, realizou um levantamento bibliográfico, o qual possibilitou conhecer a amputação sob o enfoque anátomo-fisiopatológico, bem como a produção de enfermagem sobre o assunto. Assim sendo, nas atividades teórico-práticas, passou a contactuar pessoas que experienciaram esse fenômeno.

A amputação é o mais antigo de todos os procedimentos cirúrgicos e, durante muito tempo, representou a única possibilidade cirúrgica para o homem. O termo designa, em cirurgia, a retirada de um órgão, ou parte dele, situado numa extremidade, porém, quando usado isoladamente, é entendido como amputação de membros. Seu conceito atual é de cirurgia reconstitutiva e não de simples ablação e deve ser o primeiro passo para o retorno do paciente a um lugar normal e produtivo na sociedade(1). A cirurgia deve ser vista como mais uma fase do tratamento, sendo a mutilação apenas do membro e não da alma dos doentes(2).

As amputações de membros superiores e inferiores podem ser realizadas em diversos níveis, sendo decorrentes de doenças vasculares periféricas (causa mais comum em pessoas idosas), deformidades congênitas, tumores, traumatismos (causa predominante em jovens) e infecções(1,3-5).

Não há estatísticas precisas sobre o número de amputados existentes, ou o número de amputações realizadas anualmente, porém, aproximadamente 85% de todas as amputações realizadas ocorrem em membros inferiores(1). Essas amputações são comuns em diabéticos com ulcerações de membros inferiores(6). A qualidade de vida também apresenta-se reduzida em diabéticos com amputações maiores(7). No entanto, pessoas incapacitadas podem ter boa qualidade de vida quando ultrapassam limites e conseguem equilíbrio entre mente, corpo e espírito(8) .

O enfermeiro tem se destacado no papel educativo das pessoas diabéticas e, cada vez mais, torna-se importante sua integração à equipe multidisciplinar, com vistas a contribuir para as estratégias educativas e na minimização de agravos à saúde(9). Entretanto, há escassez de publicações desses profissionais sobre o assunto, o que torna importante a realização e publicação de estudos sobre o tema(10).

Apesar da busca literária, algo permanecia oculto, pois, não se conseguia responder à permanente inquietação e, assim, compreender o ser humano submetido à amputação em suas emoções e sentimentos, ou seja, em sua vivência. Assim sendo, realizou-se esse estudo, buscando desvelar algumas facetas do fenômeno amputação, sob a perspectiva das pessoas que o vivenciam.

O CAMINHO METODOLÓGICO

A fenomenologia apresenta-se como ciência descritiva, rigorosa, que se preocupa com a essência do vivido(11), nos convocando à retomada do caminho qualitativo da existência, a redescobrir o sentido global do existir(12). O método fenomenológico busca o que transcende as particularidades empíricas de que se investe o fenômeno, permitindo compreendê-lo(13).

Partindo dos pressupostos filosóficos que fundamentam a fenomenologia, via-se a possibilidade de compreender o fenômeno "estar vivenciando uma situação de amputação" da maneira que ele se mostra em si mesmo, o que se constitui no objetivo deste estudo.

Para o estudo, previamente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, foi escolhido o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP)-Campus, mais precisamente as clínicas cirúrgicas vascular e ortopédica, pelo fato de aí haver maior possibilidade de encontrar pessoas vivenciando uma situação de amputação.

Buscando pelos depoimentos dos pacientes amputados, realizou-se entrevistas individuais, de janeiro a maio de 2005, quando se acompanhou o período de hospitalização de 13 pacientes adultos, desde o pré-operatório até a alta, sendo que esses se encontravam internados para a realização da cirurgia. Tal cuidado atende à proposta da fenomenologia, a qual busca pelos significados atribuídos pelas pessoas que vivenciam uma determinada situação. Realizava-se encontros de segunda a sexta-feira, em dias alternados, totalizando 52 encontros com esses pacientes. A coleta de depoimentos foi encerrada quando, por meio da leitura e interpretação dos 52 discursos obtidos, percebia-se o invariante, ou seja, o que permanece e aponta para o que o fenômeno é, em sua essência. Todas as entrevistas foram utilizadas para a análise.

Dos pacientes, nove eram homens e quatro mulheres, com idade variando entre quarenta e quatro e oitenta anos; sete sofreram amputações suprapatelares, cinco infrapatelares e uma de mão, todas resultantes de doenças crônicas. O acesso aos pacientes ocorreu por meio da observação diária da escala cirúrgica, o que permitiu verificar a realização de alguma amputação no dia seguinte, e diálogo com as enfermeiras das clínicas.

No primeiro encontro com o paciente, que seria submetido à amputação, solicitava-se a sua colaboração para o desenvolvimento do estudo, por meio de seus depoimentos. Sendo expresso por ele o desejo de colaborar com o projeto e, assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, iniciava-se a coleta dos depoimentos, seguindo a cronologia indicada.

- A primeira entrevista, sempre que possível, era realizada na véspera do dia programado para a amputação. Para essa entrevista, propunha ao paciente a seguinte questão norteadora: como a cirurgia de amanhã se mostra ao(à) Sr.(a)?

- As entrevistas subseqüentes ocorreram a partir do primeiro dia do período pós-operatório até a alta hospitalar. Tiveram como base para a descrição do fenômeno a questão norteadora: qual o significado dessa amputação para o(a) Sr.(a)? Descreva para mim.

A maioria das entrevistas foi gravada, com permissão dos pacientes, e transcritas posteriormente. Quando não se utilizava o gravador, transcrevia os relatos imediatamente após a realização da entrevista, tendo em vista a maior fidedignidade possível. Em consonância com a proposta metodológica, não houve a determinação de pacientes quanto ao sexo, cor, estado civil, nível socioeconômico, idade, motivo da internação ou patologia que levou à amputação.

A CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS

Durante a leitura dos cinqüenta e dois discursos, obtidos das entrevistas, foi buscado, inicialmente, a familiarização com a experiência vivida. Posteriormente, foram identificadas as unidades de significado, expresso os significados nelas contidos e, enfim, as mesmas foram sintetizadas para chegar-se à essência do fenômeno. Essa síntese se deu sob a forma de construção das categorias temáticas(14).

Fundamentando a análise dos discursos, recorreu-se ao pensamento filosófico de Merleau-Ponty, uma vez que ele é filósofo da existência, do corpo e fenomenólogo da percepção. Percebo e sou percebido através de meu corpo, pois ele é o veículo do ser-no-mundo e, dessa forma, não se tem um corpo, mas é-se um corpo. O "corpo próprio" ou o "corpo vivido" é aquele que, através do sensível, exerce a comunicação vital com o mundo, sendo esse aquilo que se vive e não o que se pensa. O corpo é nosso meio de ter o mundo e é por ele que há a relação com os outros, com as coisas, com o próprio mundo, experienciando o próprio corpo(15).

Em uma pessoa amputada, essa relação do corpo com o mundo é alterada, pois é interrogada, no corpo, uma parte que não mais existe e que silencia. Dessa forma, a amputação foi percebida pelos sujeitos dessa pesquisa, da maneira indicada.

Vivendo o pré-operatório numa tentativa de manter as aparências

Durante o pré-operatório o paciente experiencia ambigüidade de sentimentos, pois esse momento da vida em que a pessoa está prestes a assumir um novo modo de ser-no-mundo, desperta uma infinidade de sentimentos, verbalizados ou não.

Apesar de os pacientes afirmarem que concordavam com a cirurgia, apresentavam expressões de desânimo, dor, angústia, medo, tristeza e choro, permanecendo cabisbaixos. Os gestos comunicavam, a todo momento, a dificuldade em viver na iminência de uma cirurgia mutilante.

Podia cortar hoje. Acabava com isso (choro intenso). Carinho - E1* * As pessoas, participantes deste estudo são identificadas, a fim de se manter o anonimato e preservar suas identidades, com nomes fictícios, que expressam os sentimentos que permaneceram após a realização deste estudo. A abreviatura E(nº) indica a entrevista de onde foi extraída a citação. Todos os grifos são da autora

Perder uma parte do corpo é ter alterada toda uma existência, é viver uma incompletude que traz consigo uma série de alterações no existir. É ter que se adaptar/readaptar, aprender a viver novamente, agora assumindo uma outra perspectiva no mundo para si, para os outros, para os objetos. O paciente em pré-operatório busca afastar de si o que considera doloroso, afirmando que se sente bem apesar das circunstâncias. Esse esforço não passa de uma tentativa, pois o corpo expressa tudo aquilo que as palavras não dizem e, nesse caso, as expressões verbais e não-verbais divergem.

Apesar do sofrimento vivenciado em razão da iminente perda, o paciente vê na família um motivo para tentar mascarar a dor sofrida. Preservar o familiar do sofrimento vivenciado parece ser questão primordial. De certo modo, a preocupação com a família mostra-se como algo determinante para a tentativa de manutenção das aparências e do contínuo esforço para não deixar transparecer a dor vivida.

... ficou tudo lá em casa, chorando. Eu não choro, vai resolver. Eu decido. Força - E1

A experiência cirúrgica se mostra ao paciente em suas possibilidades, pois torna possível uma existência de modo diferente. Pode-se ver a perspectiva de uma existência incompleta, pois há perda de parte do corpo, ou pode ser simplesmente a perspectiva de abertura a novas vivências, livre da dor, da parte deformada, da parte orgânica que também traz sofrimento e que, muitas vezes, modifica o movimento do ser-no-mundo.

Vivência permeada por um dualismo: o lógico e o vivencial

Vivenciar uma amputação implica em experiência marcada por alterações biopsicossociais, espirituais e culturais, repleta de estigmas, decorrentes da deficiência instalada e de sentimentos diversos, convergentes e divergentes, que se entrelaçam e se unem formando um todo. É uma vivência constituída por sentimentos que se confundem, sendo permeada pela razão, que visualiza a cirurgia como necessária, e a emoção que não aceita a perda.

Aproximando-se da amputação, enquanto fenômeno, percebe-se que pode ser, aos olhos de quem a vivencia, boa e ruim, alegre e triste, feliz e infeliz, fácil e difícil. Co-existem, em um mesmo cenário, sensações e sentimentos opostos, mas unidos entre si. Como, então, considerar boa uma cirurgia que é mutilante e leva a alterações tão importantes na vida do ser humano e de sua família? Essa experiência torna-se mais amena à medida em que é percebida, pela pessoa amputada, como fonte de esperança para o retorno à vida, para continuar vivendo, como ser-aí-no-mundo, singular em suas vontades e seus desejos.

No caso dos pacientes acometidos por problemas vasculares, o alívio definitivo da dor mostra-se como algo prioritário. A dor é desconfortante, insuportável, triste e limitante e, nesse momento, qualquer tentativa para aliviar/eliminar a dor é bem vista, mesmo que custe a perda de uma parte do corpo. A amputação passa a ser vista como mal necessário.

... ficar seis meses sem dormir é duro... deitado doía, em pé doía, é duro, é triste, sofria demais, demais, demais. Agora, se fosse para fazer outra vez, eu faria novamente, porque acaba todo o sofrimento... Força - E2

Além de alternativa para o alívio da dor, a amputação constitui-se como possibilidade de manutenção da vida, principalmente para pacientes portadores de neoplasias. É visualizada como um procedimento que deve ser feito, apesar de todas conseqüências físicas e psicológicas se, por meio dele, conseguir prolongar a existência. A esperança na salvação do corpo todo é fator imprescindível para a tomada de decisão e opção pela cirurgia. A morte é finitude que deve ser evitada, sendo valorizado o sacrifício de perda de uma parte do corpo.

... se não fizesse podia morrer. Eu tava te falando: fico entre a cruz e a espada. É melhor dar um tiro certo. Então, vamos tocar . Eu falei para ele: Dr., faça o que for preciso... Garra - E2

A dependência como possibilidade de uma existência marcada pelo sofrimento diário

A dependência é questão que se mostrou ser motivo de preocupação da pessoa amputada. Tornar-se dependente é assustador, motivo de infelicidade, de insegurança, de medo. A não realização de atividades cotidianas, ou a realização com auxílio, leva o paciente a sentimentos de inferioridade, baixa auto-estima e preocupação.

Incomoda, né. Talvez a pessoa te ajuda agora, depois você chama ele outra vez. Talvez ele vem te ajudar com a mesma boa vontade que fez na primeira vez, mas na sua mente você não pensa assim. Eu penso assim, tô perturbando a pessoa demais... Fica difícil (pausa)... fazer o quê? (silêncio). Superação - E1

É extremamente doloroso e desconfortante ser dependente e, em alguns casos, o paciente chega a preferir a morte a ser motivo de piedade, compaixão ou mesmo trabalho/esforço para seus familiares.

... eu quero viver, mas se não der trabalho para a família. Se eu der trabalho, prefiro ir. Eu não quero ir (morrer). Garra - E1

As pessoas amputadas preocupam-se com a dependência e apresentam dificuldade em visualizar as ações que podem executar. Os idosos, principalmente, mostram-se dependentes para a realização de atividades diárias, sendo importante que o profissional de saúde estimule o paciente ao auto-cuidado, à aceitação de suas limitações e ao retorno às atividades(16).

Numa perspectiva fenomenológica, entende-se que há necessidade de um olhar multi e interdisciplinar que ajude a pessoa a redimensionar seu existir, abrindo-se para novos projetos de vida que os contemple nesse novo modo de ser-no-mundo. Receber cuidados individualizados e planejados é essencial para que o processo de reabilitação se dê de forma mais adequada possível e consiga atingir os objetivos almejados.

A reabilitação deve ser considerada como mais uma etapa do tratamento, pois permite que a pessoa continue a lançar-se no mundo e a viver novas experiências. O retorno às atividades traz consigo uma sensação de plenitude, onde as possibilidades tornam-se concretas e deixam de fazer parte de um mundo desejado para um mundo vivenciado.

A dificuldade em habitar o mundo do hospital

A hospitalização mostra-se de forma assustadora e desumana aos pacientes, os quais passam a habitar um mundo distinto do seu, permeado por situações tensas e tristes, igualmente habitado por pessoas desconhecidas, com quem vão interagir de alguma forma, compartilhando vivências. O conviver nesse novo mundo gera angústia e apreensão.

A desinformação está presente não só nas situações mais graves, permeando todo o período de hospitalização, manifestando-se em forma de datas imprecisas, resultados de exames que são feitos e refeitos, diagnósticos não confirmados, promessas não cumpridas, realização de procedimentos e administração de medicamentos desconhecidos ou não informados aos pacientes, entre outros. Nesse sentido, pode-se observar a fala a seguir:

(Hospital) tem dia que eu acho bom, tem dia que eu acho ruim. Acho ruim porque eles põem fantasia na cabeça da gente: tal dia vai fazer o exame e na hora cancela. A gente fica esperando... Força - E3

Os pacientes internados ficam fragilizados e submissos à vontade do profissional de saúde, principalmente no que se refere ao médico, detentor do conhecimento científico. Há impessoalidade na relação vivida entre médico e paciente, pois os médicos são tratados como mestres, mas sempre pelo plural, de forma anônima. Não há posicionamento humanitário de aproximação ao paciente, nem o estabelecimento de vínculo emocional e afetivo na relação. Em nenhum momento se considera a subjetividade e o existir do doente.

Para a pessoa doente, o tempo de hospitalização é, prioritariamente, ocupado com a expectativa da sua melhora e conseqüente alta hospitalar. O tempo, para o homem, é o tempo vivido e não o cronológico que se escoa por entre os dias e que não pode ser retomado.

E não gosto de nada. Eu não quero. Eles sacanearam. Quebraram o trato. Trato é trato. Cortaram a perna e não me deixam ir embora agora. Tem que deixar, nem que seja três dias, eu preciso ir embora. Eu tenho que ir. Perseverança - E5

A alta hospitalar acaba sendo visualizada como o "passaporte" para a vida e para o retorno às atividades. A pessoa afirma que fará, fora do hospital, tudo aquilo que fazia antes da cirurgia, muitas vezes negando as limitações impostas pelo procedimento cirúrgico, bem como sua nova condição no mundo.

... No momento o que tá mais me preocupando é a vontade de ir para casa. É o que tá mais me preocupando. Cansei, enjoa. A casa da gente não tem igual. Em casa tem minha cadeirinha que eu posso andar para a rua... eu vou para todo lado, vou na igreja. Esperança - E9

A hospitalização, principalmente prolongada, permite que aflore uma infinidade de sentimentos, que exigem do paciente esforço em direção ao equilíbrio e à superação de todas as crises que possam vir. Nesse sentido, torna-se importante a convivência humanitária com o profissional de saúde, a fim de que se minimize os efeitos negativos da hospitalização.

O membro fantasma como a extensão do corpo próprio

Como forma de se manter a expressão e fala do corpo, há, em maior ou menor intensidade, a presença do membro fantasma. O membro ausente toma forma e habita de maneira contínua o mundo do amputado, pois, os projetos que garantem integridade ao ser humano são possíveis se eles estiverem corporalmente íntegros e, no amputado, isso é possível pela presença, incontestável, do membro fantasma. O sentir é tão intenso e verdadeiro, que a pessoa consegue descrever detalhes das sensações vivenciadas.

Dói no peito do pé. Lateja. Dá agulhada. Mas é assim, no peito do pé... Vontade - E.1

O membro fantasma é um meio do ser-no-mundo, manter-se íntegro, aberto às ações do mundo, em plenitude, e às possibilidades do seu vir-a-ser, dos seus projetos existenciais. Na tentativa de se descrever a crença no membro fantasma e a recusa da mutilação, forma-se a idéia de um pensamento orgânico pelo qual se tornaria concebível a relação entre o psíquico e o físico. O membro fantasma não admite nem uma explicação fisiológica, nem psicológica, nem mista, embora possa ser relacionado às duas séries de condições. Na explicação fisiológica o fenômeno se dá como a simples persistência das estimulações interoceptivas e na explicação psicológica, o membro fantasma torna-se uma recordação, uma percepção(15).

Partindo dessas explicações objetivas e mecanicistas, fisiológicas e/ou psicológicas, fixando somente nelas, reduzir-se-ia muito a dimensão existencial do fenômeno membro fantasma e sua importância para o paciente amputado. Ligar o fisiológico ao psicológico, relacionando-os, é possível, então, quando os mesmos estão integrados à existência.

É. Faz parte da minha vida (perna amputada). Sente, sem dúvida. O funcionamento do resto do corpo também pertence a ela (perna amputada). Esperança - E9

Assim, o que encontramos atrás do fenômeno de substituição é o movimento do ser-no-mundo, não sendo o membro fantasma um simples efeito de causalidade objetiva. O paciente parece ignorar a mutilação e contar com o seu fantasma como um membro real(15).

... eu fui ver que tava sem a perna. Coçava, coçava o pé. Eu procurava esse outro pra coçar o pé que tava coçando. Eu pedia para o rapaz trazer a perna, a perna amputada para eu coçar, mas ele não sabia onde é que tava, perguntei para o enfermeiro: eu preciso coçar a perna amputada e ele falou que ia ver se achava ela por aí, mas não achou não. Engraçado a gente sente. Agora mesmo eu tô sentindo formigar o pé... (breve silêncio).Esperança - E1

O membro fantasma, parte integrante do corpo próprio, vem para manter o amputado em plenitude no mundo, tentando, na substituição, suprir a falta que a parte do corpo faz.

A prótese como forma de se manter no mundo em plenitude

Acredita-se que a prótese possibilite a realização de qualquer atividade, melhorando a auto-estima e, portanto, minimizando os efeitos negativos resultantes da amputação. Apesar de serem adequadas a quaisquer níveis de amputações, aquelass realizadas em níveis mais distais proporcionam reabilitação mais eficiente. A reabilitação, então, vem sendo considerada cada vez mais importante, pois se o processo ocorrer de forma adequada, o paciente terá uma vida praticamente normal, podendo realizar todas as atividades que quiser ou necessitar.

O custo das próteses, normalmente, é elevado, tornando-se motivo de preocupação para o amputado, pois é sonho que, muitas vezes, não se realizará, impedindo o movimento em direção ao mundo.

... agora, as duas... Fica difícil pra pobre. Quem tem dinheiro é mais rápido; não tem condições de comprar uma prótese, é caro, custa oito mil reais a mais barata. O hospital demora, é muita gente. Superação - E1

Adquirir a prótese parece ser sonho imprescindível; é desejado por todo amputado e os acompanha desde o pré-operatório. A própria equipe médica, ao comunicar a necessidade da cirurgia, já aborda a questão da reabilitação com o uso da prótese, talvez na tentativa de amenizar o sofrimento causado pela amputação.

...o médico falou que é rápido. Três meses tratando aqui, eu coloco a prótese e ando direitinho...Força - E1

Embora a prótese seja vista como de extrema importância para a pessoa já submetida à amputação, em alguns momentos ela é visualizada como algo que traz dificuldades, sofrimento, que requer adaptação, requer um começar e recomeçar novamente. A pessoa reconhece que não é mais a parte orgânica do seu corpo que está ali.

A prótese, para o amputado, assume caráter de algo além, uma vez que não é só um objeto facilitador e sim algo que será parte integrante do corpo próprio. Representa um horizonte de possibilidades. Tornar-se-á parte fundamental do corpo, permitindo a percepção plena, de modo integral e completa, de forma semelhante ao membro fantasma.

REFLEXÕES SOBRE O DESVELADO

Com a realização deste estudo foi possível desvelar algumas facetas do fenômeno amputação, num momento de transição na vida do paciente, na passagem da possibilidade de um vir-a-ser à concretude dessa possibilidade, com a realização da cirurgia. Há uma infinidade de sentimentos envolvidos no processo de alteração do corpo e, portanto, de todo o existir, já que o corpo tem importância vital enquanto meio de inserção e relação com o mundo, pela percepção.

A amputação é dotada de sentimentos ambíguos que interagem entre si e permanecem unidos, permeando a existência, no pré-operatório, durante a hospitalização e, possivelmente, após a alta. Perder parte do corpo é doloroso e impõe um novo modo de viver, de estar-no-mundo e se relacionar com ele, exigindo um redimensionar, pois o corpo foi afetado e, conseqüentemente, a percepção do mundo e das coisas. Por mais que seja difícil ou doloroso ser uma pessoa amputada, o paciente se rende à situação limite/limitante em que se encontra, na doença crônica, e opta pela realização da cirurgia, com esperança de acabar com a dor física ou de se manter no mundo, afastando a idéia de morte próxima.

Na relação com o mundo, ao se questionar uma parte do corpo que não mais existe, haverá uma resposta real e não mais ideal ou habitual. Essa nova realidade gera medo, dor, angústia, pois ter que se readaptar a um novo modo de existir e transpor barreiras em direção às possibilidades reais é, num primeiro momento, algo complexo e difícil.

Enquanto o paciente não visualiza claramente as possibilidades que se apresentam, que requerem redimensionamentos, sofre pela falta de perspectivas e a dependência ganha amplitude na vivência. O amputado passa a preocupar-se com a dependência, vislumbrando-a como um futuro marcado por sofrimento. Dessa forma, torna-se evidente a importância do desenvolvimento harmônico do processo de reabilitação, pois reabilitar um paciente não é só devolvê-lo à sociedade como uma pessoa independente, apesar da deficiência. A reabilitação deve ser capaz de levar ao paciente perspectivas de um fazer cotidiano ideal, de um existir modificado, que permita manter a abertura ao mundo e às coisas.

Os pacientes mostraram que viver uma amputação é triste, difícil, doloroso, porém, apesar de todas as dificuldades e sofrimento, não se deixam abater. A expectativa de uma nova vida é motivo de felicidade e desejo de querer continuar vivendo. A cirurgia é incorporada ao existir e, como parte dele, é aceita, mas não desejada.

Compreender esse momento é essencial para que o profissional de saúde desempenhe suas atividades de modo mais efetivo e completo. Olhar a pessoa amputada, a partir da sua perspectiva, permite um cuidar direcionado à singularidade da pessoa e à particularidade da experiência por ela vivida. A enfermagem necessita despertar para o que vai além da dimensão biológica, pois o objetivo da profissão é o cuidar, que deve ser feito de modo que ganhe amplitude na vivência. Abrindo-se ao mundo particular da vivência abre-se ao ser humano, que está ali, proporcionando a si mesmo um fazer completo e humanitário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 28.11.2005

Aprovado em: 26.10.2006

  • 1. Luccia N, Goffi FS, Guimarães JS. Amputações de membros. In: Goffi FS, Tolosa EMC, Guimarães JS, Margarido NF, Lemos PCP. Técnica Cirúrgica: Bases anatômicas, fisiopatológicas e técnicas cirúrgicas. 4 ed. São Paulo (SP): Atheneu; 2001. p.180-99.
  • 2. Ramacciotti O, Luccia N de, Freitas MA da S. Amputações de membros inferiores. In: Maffei FHA, Sastória S, Yoshida WB, Rollo, HA. Doenças vasculares periféricas. 3 ed. Rio de Janeiro (RJ): Medsi; 2002. v.2, p.943-65.
  • 3. Chaves DA. Aparelhos ortopédicos. In: Chaves DA. Lições de clínica ortopédica. 1º Tomo. Rio de Janeiro (RJ): Estado da Guanabara; 1961. p.140-8.
  • 4. Smeltzer SC, Bare BG. Avaliação a assistência aos pacientes com distúrbios vasculares e problemas na circulação periférica. In: Smeltzer SC, Bare BG. Tratado de enfermagem médico- cirúrgica. 7.ed. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 1992. v. 2, p. 633-66.
  • 5. Tooms RE. Amputações. In Crenshaw AH. Cirurgia ortopédica de Campbell. 8 ed. São Paulo (SP): Manole Ltda; 2003. v. 2, p. 719- 57.
  • 6. Gils CCV, Wheeler LA, Mellstrom M, Brinton EA, Mason S, Wheeler CG. Amputation prevention by vascular surgery and podiatry collaboration in High-Risk Diabetic and Nomdiabetic Patients. Diabetes Care 1999 May; 22(5): 678-83.
  • 7. Tennvall GR, Apelqvist J. Health-related quality of life in patients whith diabetes mellitus and foot ulcers. Diabetes Complications 2000; 14: 235-41.
  • 8. Albrecht GL, Devlieger PJ. The disability paradox: high quality of life against all odds. Soc Med 1999; 48: 977-88.
  • 9. Rodrigues CDS. A contribuição do diabetes mellitus nas amputações de membros inferiores. [dissertação]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP 2002.
  • 10. Chini GC de O, Boemer MR. As facetas da amputação: uma primeira aproximação. Rev Bras Enfermagem 2002 março/abril; 55(2): 217-22.
  • 11. Capalbo C. Alternativas metodológicas de pesquisa. In: Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem 3; 1984; Florianópolis, Brasil. Florianópolis, Universidade de Santa Catarina; 1984. p.130-57.
  • 12. Merighi MAB. Fenomenologia. In: Merighi MAB, Praça N de S. Abordagens teórico- metodológicas qualitativas: a vivência da mulher no período reprodutivo. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 2003. p.31-9.
  • 13. Carvalho AS. Metodologia da entrevista: uma abordagem fenomenológica. Rio de Janeiro (RJ): Editora Agir; 1987.
  • 14. Boemer MR. A condução de estudos segundo a metodologia de Investigação fenomenológica. Rev Latino- am Enfermagem 1994 janeiro; 2(1): 83-94.
  • 15. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes;1994.
  • 16. Diogo MJD'E, Campedelli MC. O idoso submetido à amputação de membros inferiores e as alterações nas atividades da vida diária. Rev Paul Enfermagem1992 maio-agosto; 11(2); 92-9.
  • 1
    Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado
  • *
    As pessoas, participantes deste estudo são identificadas, a fim de se manter o anonimato e preservar suas identidades, com nomes fictícios, que expressam os sentimentos que permaneceram após a realização deste estudo. A abreviatura E(nº) indica a entrevista de onde foi extraída a citação. Todos os grifos são da autora
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Recebido
      28 Nov 2006
    • Aceito
      26 Out 2006
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br