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Avaliação da esterilidade do instrumental laparoscópico de uso único reprocessado

Resumos

O presente estudo, experimental, laboratorial e comparativo, teve como objetivo avaliar a eficácia da esterilidade dos instrumentos laparoscópicos de uso único (ILUU): grasper, dissector, tesoura, agulha de Veress e sistema de sonda de eletrocirurgia, após contaminação desafio com esporos bacterianos e sangue de carneiro, e comparar os resultados dos testes de esterilidade com aqueles dos instrumentos equivalentes "permanentes". Para limpeza, utilizou-se lavadora ultrassônica com jato pulsátil e detergente enzimático, limpeza manual, água sob pressão e enxágue. Os ILUUs foram esterilizados por óxido de etileno, os instrumentos "permanentes" em autoclave. Os testes de esterilidade acusaram resultados 100% negativos para a recuperação dos micro-organismos contaminantes, nos dois grupos. Concluiu-se que, em relação ao alcance da esterilidade, é possível reprocessar ILUU.

Esterilização; Infecção Hospitalar; Laparoscopia; Cirurgia Vídeo-Assistida; Reutilização de Equipamento


This experimental, comparative, laboratory study evaluated the effectiveness of the sterilization of single-use laparoscopic instruments - SULIs (grasper, dissector, scissors, Veress needle and electrosurgical probe system), after contamination-challenge with bacterial spores and sheep blood, and compared the results of the sterilization tests with those of the equivalent reusable instruments. The cleaning methods used were; ultrasonic washer with pulsatile water jet and enzymatic detergent, manual cleaning, cleaning with pressurized water and rinsing. The SULIs were sterilized with ethylene oxide and the reusable instruments in an autoclave. Sterility tests showed 100% negative results for recovery of contaminate microorganisms in both groups. It was concluded that, regarding the sterilization, that it is possible to reprocess SULIs.

Sterilization; Cross Infection; Laparoscopy; Video-Assisted Surgery; Equipment Reuse


Se trata de un estudio, experimental, de laboratorio y comparativo, que evaluó la eficacia de la esterilidad de los instrumentos laparoscópicos de uso único(ILUU): grasper, disector, tijera, aguja de Veres y el sistema de sonda electroquirúrgica, después de "contaminación desafío" con esporas bacterianas y sangre de carnero; los resultados de las pruebas de esterilidad fueron comparados con los de los instrumentos equivalentes "permanentes". Para efectuar la limpieza se utilizó: lavadora ultrasónica con chorro pulsante y detergente enzimático, limpieza manual, agua bajo presión y enjuague. Los ILUU fueron esterilizados con óxido de etileno, los instrumentos "permanentes" en autoclave. Las pruebas de esterilidad mostraron resultados 100% negativos para la recuperación de los microorganismos contaminantes en los dos grupos. Se concluye que, en relación al alcance de la esterilidad, es posible reprocesar los ILUU.

Esterilización; Infección Hospitalaria; Laparoscopía; Cirugía Asistida por Video; Equipo Reutilizado


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação da esterilidade do instrumental laparoscópico de uso único reprocessado1

Cristiane de Lion Botero Couto LopesI; Kazuko Uchikawa GrazianoII; Terezinha de Jesus Andreoli PintoIII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Hospital Universitário, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: crisdelion@hu.usp.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: kugrazia@usp.br

IIIFarmacêutica, Doutor em Fármaco e Medicamentos, Professor Titular, Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. E-mail: tjapinto@usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O presente estudo, experimental, laboratorial e comparativo, teve como objetivo avaliar a eficácia da esterilidade dos instrumentos laparoscópicos de uso único (ILUU): grasper, dissector, tesoura, agulha de Veress e sistema de sonda de eletrocirurgia, após contaminação desafio com esporos bacterianos e sangue de carneiro, e comparar os resultados dos testes de esterilidade com aqueles dos instrumentos equivalentes "permanentes". Para limpeza, utilizou-se lavadora ultrassônica com jato pulsátil e detergente enzimático, limpeza manual, água sob pressão e enxágue. Os ILUUs foram esterilizados por óxido de etileno, os instrumentos "permanentes" em autoclave. Os testes de esterilidade acusaram resultados 100% negativos para a recuperação dos micro-organismos contaminantes, nos dois grupos. Concluiu-se que, em relação ao alcance da esterilidade, é possível reprocessar ILUU.

Descritores: Esterilização; Infecção Hospitalar; Laparoscopia; Cirurgia Vídeo-Assistida; Reutilização de Equipamento.

Introdução

Os materiais de uso único (MUU) são utilizados há mais de meio século na assistência à saúde. Inicialmente, foram fabricados com o objetivo de solucionar problemas enfrentados pelos profissionais da saúde, decorrentes da sobrecarga de trabalho em central de material e esterilização (CME), além da vantagem de garantir a disponibilidade e a qualidade de material, sempre de primeiro uso. Entretanto, alguns desses materiais passaram a ter custo muito elevado para serem descartados após o uso único, em razão da tecnologia avançada incorporada em sua fabricação: circuitos eletrônicos, tecnologia de membrana, componentes de óptica de alto custo e componentes miniaturizados. Como estratégia para contornar o problema, os estabelecimentos de saúde passaram a reutilizá-los(1).

Os MUUs, geralmente, são produzidos a partir de matérias-primas termossensíveis e menos nobres, como plásticos e elastômeros. A maioria desses não é desmontável e possui espaços internos de difícil acesso para a limpeza. Essa situação gera dúvidas quanto à permanência dos resíduos de matéria orgânica, no material e na segurança, acerca do processo de esterilização.

No Brasil, a legislação atual proíbe a reutilização de instrumental de uso único, utilizado para cirurgias laparoscópicas. No entanto, essa proibição oficial não foi pautada em evidências científicas, mas, sim, em decorrência de conflitos de interesses, que resultaram de consultas públicas (as de nº98, em 6/12/2001, e de nº17, em 19/3/2004) e também de uma audiência pública em 3/6/2005. Dessa forma, os instrumentos laparoscópicos de uso único (ILUU) foram incluídos na lista de materiais proibidos de serem reutilizados; embora outros MUUs, não menos complexos, como estabilizadores de miocárdio, cateter de angioplastia, sondas para vitrectomia posterior, apenas para citar alguns, não tivessem sido incluídos(2).

Considerando que o reuso dos ILUUs ocorreu com relativa intensidade em várias regiões do Brasil, antes da sua proibição, justificou-se a realização da presente investigação, como forma de avaliar o risco de infecção hospitalar cruzada para pacientes que foram submetidos a procedimentos com ILUUs reutilizados (grasper, dissector, tesoura, agulha de Veress e sistema de sonda de eletrocirurgia). Acredita-se, também, que o presente trabalho contribua para elucidar aspectos da segurança do reprocessamento de materiais de conformação complexa.

Em revisão da literatura, foi encontrada apenas uma pesquisa(3) que teve como objetivo avaliar a obtenção da esterilização da tesoura laparoscópica - um dos materiais estudados nesta investigação. Na referida pesquisa, a esterilização da tesoura laparoscópica não foi alcançada. No entanto, tal resultado é incompatível com aquele alcançado ao longo de anos da utilização de ILUUs reusados. Percebe-se, portanto, a necessidade de maior número de pesquisas sobre esse tema. Com base nessa argumentação, conclui-se que o assunto ainda permanece controverso.

Partindo-se do pressuposto que a limpeza cuidadosa e adequada dos materiais é o principal determinante dos resultados da esterilização eficaz(4-5), especialmente quando o método é a baixa temperatura, a hipótese inicial deste estudo foi a de que, mesmo frente à contaminação desafio das amostras, com 1 milhão de bactérias esporuladas, acrescentadas ao sangue, a esterilidade poderá ser alcançada quando aplicada a tecnologia apropriada para o processamento, especialmente na limpeza.

Objetivos

Avaliar a eficácia da esterilidade de instrumentos laparoscópicos de uso único, utilizados em videocirurgia laparoscópica, após contaminação desafio.

Comparar os resultados dos testes de esterilidade com os dos instrumentos equivalentes, "permanentes".

Material e Método

Trata-se de pesquisa experimental, laboratorial e comparativa, na qual todas as variáveis puderam ser controladas.

As etapas da pesquisa foram realizadas nos seguintes laboratórios: de Ensaios Microbiológicos do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), no de Controle de Medicamentos, Cosméticos, Domissanitários, produtos afins e as respectivas matérias-primas (Confar) do Departamento de Farmácia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e na Central de Materiais e Esterilização do Hospital Universitário da USP.

Para este estudo foram utilizados 120 materiais comercializados, como sendo de uso único, no grupo experimental: 25 para os testes de validação do método e 95 para a coleta de dados propriamente dita. Utilizou-se também 35 instrumentos "permanentes" como grupo comparativo, durante as diferentes fases da pesquisa. O tamanho da amostra do grupo experimental teve um poder de 99,9%.

Os MUUs utilizados nesta pesquisa foram adquiridos da Empresa Ethicon® Endo-Surgery, inc, em cujas embalagens constavam as seguintes identificações: pinça Grasper: 1 ENDOPATH - 5mm Grasper with Ratchet Handle - lote V42R89, 2009-08, ref 5 DCG; tesoura: 1 ENDOPATH – 5mm Curved Scissors with Monopolar Cautery – lote R4RC42, 2007-01, ref 5 DCS; pinça dissectora: 1 ENDOPATH – 5mm Curved Dissector with Monopolar Cautery – lote V42E5K, 2009-07, ref 5DCD; aspirador/irrigador: 1 ENDOPATH - Electrosurgery Probe Plus II – lote V41H8K, 2009-05, ref EPH01- Pistol Foot Control; haste/eletrocautério: 1 ENDOPATH - Electrosurgery Probe Plus II – lote R4TH60, 2007-06, ref EPS03 - 5mm Right; agulha de Veress: 1 ENDOPATH – Ultra Veress Insuflation Needle with Luer Lock Connector – lote X43W1L, 2009-11, ref UV 120 - 120mm Ultra Veress.

Os MUUs foram intencionalmente contaminados com uma suspensão de, aproximadamente, 106 UFC (unidades formadoras de colônias)/ml de esporos de Bacillus atrophaeus var.niger (American Type Culture Collection - ATCC 9372) quantificados, padronizados e diluídos em sangue de carneiro desfibrinado estéril. Injetou-se o inóculo contaminante nos espaços internos existentes nos materiais.

Em seguida, os instrumentos foram deixados por 80 minutos sobre superfície forrada e coberta por campos impermeáveis esterilizados, mantendo o contato com o inóculo contaminante. A escolha desse micro-organismo justificou-se pelo fato de esse ser o indicador biológico padronizado para monitorar os ciclos de esterilização, por meio do óxido de etileno (ETO), método esse escolhido para os experimentos devido à sua alta difusibilidade e compatibilidade com os materiais termossensíveis(6).

O instrumental equivalente ‘permanente’ foi submetido ao mesmo processo de contaminação, porém, com Geobacillus stearothermophilus - ATCC 7953, por ser o micro-organismo padronizado nos indicadores biológicos para monitorar os ciclos de autoclave a vapor, tipo de esterilização indicada para materiais reprocessáveis de aço inoxidável(7).

A seguir, os instrumentos contaminados e ressecados foram mergulhados em água potável, de torneira, por cerca de 30 minutos, a fim de umectá-los. Na sequência, todos os materiais foram submetidos à limpeza com detergente enzimático, inicialmente em lavadora ultrassônica com jato pulsátil; lavagem essa posteriormente complementada com limpeza manual, em atendimento ao protocolo teste descrito abaixo, elaborado para reprocessamento, tanto para os materiais de uso único como para os ‘permanentes’.

São etapas do protocolo teste: desmontagem das pinças laparoscópicas "permanentes"; umectação do material por imersão em água de torneira por 30 minutos; imersão das peças em solução de detergente enzimático

Cabe ressaltar que, preliminarmente aos experimentos, toda a metodologia microbiológica analítica foi validada pela equipe técnica do laboratório Confar da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, utilizando as seguintes fases: (FASE 1) amostras de cada um dos materiais, tanto os de uso único quanto permanentes, foram submetidas à contagem de UFC por unidade de material (UFC/material) após a contaminação microbiana e após o procedimento de limpeza e antes da esterilização (FASE 2). Em ambas as etapas assegurou-se a recuperação dos contaminantes, o que atestou a capacidade de aderência do inóculo no instrumental, e consequente desafio para a fase da esterilização, dando-se prosseguimento aos experimentos. Tal validação do método constituiu-se um controle positivo e teve o propósito de garantir a presença dos micro-organismos testes nos materiais, para desafiar a esterilização.

Os testes de esterilidade consistiram em experimentos para a verificação da recuperação dos micro-organismos testes nos meios de cultura padrão, que, previamente, haviam proliferado. Os materiais contaminados, após sua limpeza e esterilização, foram cultivados diretamente em meio de cultura caseína de soja, considerado indicado para a recuperação de um possível micro-organismo teste sobrevivente aos métodos de reprocessamento. O período de incubação foi de 14 dias, com leitura diária da turvação do meio de cultura, sendo os Bacillus atrophaeus incubados a 37ºC e o Geobacillus stearothermophilus a 56ºC.

Nos MUUs, os testes foram destrutivos. Sob fluxo laminar, cada material foi quebrado utilizando-se um alicate esterilizado para que as amostras mergulhassem completamente no meio de cultura. Os instrumentos do grupo comparativo foram desmontados e também mergulhados diretamente no meio de cultura.

Resultados

Os resultados das culturas microbiológicas dos materiais de videocirurgia laparoscópica, comercializados como de uso único e os "permanentes", após contaminação desafio, limpeza e esterilização estão apresentados na Tabela 1.

Conforme a Tabela 1, nenhum crescimento microbiano do Bacillus atrophaeus - ATCC 9372 ou do Geobacillus stearothermophilus - ATCC 7953 foi recuperado nas respectivas amostras do grupo experimental e nem do comparativo.

Discussão

Esta investigação trouxe evidências científicas da possibilidade técnica de se esterilizar materiais comercializados como sendo de uso único para videocirurgia laparoscópica, produzidos a partir de plásticos e elastômeros, não desmontáveis e de conformação complexa, quais sejam: grasper, dissector, tesoura, agulha de Veress e sistema de sonda de eletrocirurgia.

Estudos com objetivos similares aos da presente investigação - verificação da segurança do reprocessamento de MUU quanto ao alcance da esterilidade - foram desenvolvidos por alguns autores(2,8-10), que chegaram a resultados diversos:

No ano 2002, pesquisadores(3) realizaram testes de esterilidade em tesouras e bisturis laparoscópicos, previamente contaminados com suspensão de esporos de Bacillus atrophaeus – ATCC 9372, submetidos à limpeza e posterior esterilização em ETO, e não obtiveram sucesso. Esse resultado contraria os da presente investigação, que mostrou a eliminação de todos os mesmos micro-organismos esporulados, após limpeza e esterilização em ETO. A análise dos procedimentos metodológicos empregados pelos autores do referido trabalho permitiu atribuir o insucesso na esterilização ao fato de os materiais não terem sido limpos com o uso dos recursos tecnológicos adequados, uma vez que os pesquisadores optaram por lavá-los em em lavadora termodesinfectora (jatos d’agua sob pressão), equipamento esse indicado para lavagem de materiais de conformação simples, pois seu poder de remoção de sujidade é menor do que os métodos de limpeza empregados na presente pesquisa. A ação da cavitação da lavadora ultrassônica para limpeza de materiais com lúmen estreito e conformações complexas, associada ao jato pulsátil na lavagem, é, teoricamente, recurso de maior poder de limpeza. Não há, no trabalho citado, referência à limpeza manual que, nessa categoria de materiais, deveria complementar ou anteceder a limpeza automatizada. Isso posto, pode-se inferir que o fato de não se ter alcançado a esterilidade esteja atribuído à ineficácia na limpeza, corroborando a premissa de que a limpeza é o núcleo central do reprocessamento.

Outro fator que pode ter conduzido a desfecho oposto no trabalho analisado foi o fato de os materiais terem sido expostos à metade do tempo de esterilização, por ETO, praticada na assistência e recomendada pela literatura. Essa decisão imputou maior desafio aos experimentos e foi baseada na norma ISO 14937, que indica um desafio adicional para testes de validação da esterilização.

Os instrumentos "permanentes", para videocirurgia laparoscópica, são extremamente difíceis de serem limpos, pois apresentam reentrâncias e espaços que possibilitam o acúmulo da matéria orgânica. Na presente investigação, mesmo com cuidadosas práticas para a remoção da sujidade, uma pinça "permanente" da marca Stors® e dois aspiradores/irrigadores "permanentes", da marca Edlo®, permaneceram com resíduos de sangue, constatados no momento da secagem dos materiais com ar sob pressão e durante a inspeção visual.

Notou-se que as agulhas de Veress "permanentes" foram tão vulneráveis à retenção de matéria orgânica quanto as de uso único. Se, por um lado, observou-se que a agulha "permanente" pôde ser desmontada em 4 partes, possibilitando que os artefatos tivessem melhor acesso para a limpeza do canhão, por outro, o metal utilizado na fabricação do canhão inviabiliza a visão da parte interna do lúmen para a checagem da limpeza. Na agulha equivalente, de uso único, não há possibilidade de desmonte do canhão, porém, esse é totalmente transparente e permite completa visão de eventuais resíduos de matéria orgânica, após a limpeza interna por sonificação. A parte mais longa da agulha propriamente dita, que penetra nos tecidos do paciente, é idêntica nos dois tipos; nenhum deles permite a visão do espaço interno ou acesso de artefatos para a limpeza do lúmen, sendo possível apenas a limpeza com lavadora ultrassônica com jato pulsátil.

A mesma semelhança entre os materiais de uso único e reprocessáveis é encontrada na caneta de bisturi de uso único e sua equivalente reprocessável. A comparação entre os dois modelos, em relação ao sucesso da limpeza e esterilização, também foi objeto de pesquisa. Os resultados não evidenciaram diferença significativa no alcance da esterilização entre eles(11).

Um paradoxo referente às agulhas de Veress é o fato de a agulha de uso único acoplar-se com maior firmeza ao terminal da lavadora ultrassônica com jato pulsátil, o que não acontece com as "permanentes". Nessas, a pressão de fluxo no lúmen da agulha é menor, em razão do "vazamento" do fluxo de água pelos orifícios laterais, decorrentes da própria desmontagem do material.

A análise dos resultados negativos da contagem de UFC de micro-organismos, por material do grupo experimental e do comparativo "permanente", após a contaminação desafio com desfechos similares, evidencia a necessidade de rever o conceito de material "de uso único" de alto custo, uma vez que, comprovadamente, foi possível esterilizar os materiais mesmo com a contaminação desafio que, dificilmente, seria um cenário real na prática assistencial.

No caso das canetas de bisturi, os melhores desempenhos na eficácia da esterilização foram alcançados quando a técnica de limpeza automatizada foi aplicada(11).

Uma pesquisa(10) realizada com trocartes de uso único, reprocessados após o primeiro uso em pacientes submetidos à colecistectomia laparoscópica eletiva, encontrou resultados de alcance da esterilidade em 100% da amostra, após limpeza e esterilização, por três diferentes métodos, à baixa temperatura (óxido de etileno, vapor à baixa temperatura e formaldeído, e plasma de peróxido e hidrogênio). O baixo impacto dos resultados deste estudo deveu-se a não terem sido utilizados micro-organismos esporulados acrescidos de matéria orgânica, o que configura real desafio para o seu reprocessamento. No estudo em questão, somente 46,5% de materiais da amostra acusaram presença de micro-organismos antes da limpeza, caracterizando baixo desafio frente ao objetivo da pesquisa.

Em 2009, uma pesquisa(12) que avaliou a carga microbiana em instrumentos, utilizados em cirurgias ortopédicas limpas, encontrou o máximo de 102 UFC do gênero Bacillus, por instrumento, micro-organismo esse capaz de esporular em condições ambientais adversas. Na presente investigação, o desafio microbiano esporulado foi da ordem de 106 UFC/instrumento.

A outorga do selo uso único está fortemente sustentada no fato de o material de uso único ser complexo e não desmontar para a limpeza, além da sua matéria-prima não nobre (plásticos e elastômeros) que não resiste a métodos agressivos e repetitivos de limpeza e esterilização. Comparando as pinças de videocirurgia laparoscópica "permanentes" com as de uso único, nota-se que, nessas, praticamente não há espaços internos vazios na estrutura, podendo-se até considerá-las um "material sólido", o que pode justificar o sucesso no alcance da sua limpeza e esterilização na presente investigação.

Ressalta-se que os resultados do presente estudo foram obtidos após contaminação desafio (106 UFC/ml de micro-organismos esporulados diluídos em sangue), o que fortalece os achados da possibilidade técnica de esterilizar os MUUs. A grande contribuição trazida pela presente investigação é a clareza de que o reuso de materiais de uso único pode ser possível se o processo de trabalho para o seu processamento for de qualidade.

Outros estudos similares foram publicados com desfechos semelhantes ao deste trabalho quanto à eliminação de micro-organismos inoculados como desafio. Em 2003, uma pesquisa(8) comparou as limpezas manual e automatizada para o reprocessamento de papilótomos de uso único, com triplo lúmen. Seu uso foi simulado com a contaminação do material com ATS (Artificial Soil Test - patente nº6,447,990, 24/02/2001, www.uspto.gov, composto de meio básico, sangue de carneiro esterilizado (10%v/v), endotoxina >2.000.000UE/ml derivada de E.coli 0127:B8, proteína: 85,2mg/ml, carboidrato: 12,3mg/ml e hemoglobina: 4,12mg/ml, acrescido de Enterococcus faecalis e Bacillus stearothermophilus). Foram realizados testes diretos e indiretos para detectar resíduos de proteínas, carboidratos e hemoglobina para a avaliação da eficácia da limpeza e presença de endotoxinas, atingindo superioridade dos resultados para os materiais submetidos à limpeza automatizada, por meio de lavadora ultrassônica com retrofluxo, quando comparada à limpeza manual. Na pesquisa para avaliação da esterilidade por meio do ETO, os resultados acusaram eliminação total dos micro-organismos testes.

Outra pesquisa(9) avaliou a eficácia da limpeza e da esterilização de cateteres de angiografia cardiovascular, após uso clínico e contaminados artificialmente. Os cateteres de uso único foram submetidos à contaminação intencional com Artificial Soil Test (ATS), acrescido de Enterococcus faecalis e Pseudomonas aeruginosa. Os resultados dos testes microbiológicos, após a esterilização dos cateteres por ETO 100%, foram negativos para todas as unidades amostrais. Quanto aos resultados dos testes de presença de endotoxina, o estudo mostrou que o método mais indicado foi o enxágue dos cateteres com água tratada por osmose reversa esterilizada após a limpeza, pois obteve ausência total de endotoxinas nos materiais testados. A eficácia da limpeza foi avaliada por meio de testes bioquímicos diretos e indiretos nos cateteres, após o primeiro uso clínico e em situações de simulação com ATS de até 5 reusos. Como resultados dos testes de limpeza, nenhum dos métodos foi eficaz na remoção completa do resíduo orgânico, intencionalmente adicionado aos cateteres. Esses resultados podem ser indicativos da presença de biofilmes nesses dispositivos. Na conclusão do trabalho, a autora reforça a necessidade de estabelecer parâmetros máximos aceitáveis de resíduos orgânicos e realizar estudos observacionais clínicos, que permitam determinar a significância clínica da presença desses resíduos (carboidrato, proteína e hemoglobina) e das endotoxinas.

Preocupação relevante, quando se trata de reprocessamento de materiais, são os biofilmes que podem estar presentes principalmente em locais de difícil acesso para a limpeza. Biofilmes são "comunidades estruturadas de células de micro-organismos, embebidas em uma matriz polimérica e aderente – exopolissacarídeos - a uma superfície inerte ou viva"(13). Sabe-se que um material não totalmente desmontável para completa limpeza é mais susceptível à presença de biofilmes e que bactérias e fungos podem proteger-se de fatores externos e multiplicarem-se nos biofilmes, representando risco potencial de infecção cruzada.

Teoricamente, é factível a formação de biofilme em material cujas superfícies não podem ser completamente friccionadas a cada processo de limpeza, como os da presente investigação. Esse fato reforça a categorização desses materiais como "uso limitado".

Considerando-se que o fator financeiro é o principal determinante para o reuso de MUU de alto custo, o número de reusos deve ser prioriotariamente direcionado pelos custos unitários desses. Um estudo(14) concluiu que 10 reusos de acessórios de videocirurgia laparoscópica, para o local do estudo, compatibilizou os altos custos unitários desses.

É consenso que a eficácia da esterilização deva ser explorada por meio da destruição de esporos bacterianos, tal qual os indicadores biológicos que monitoram os ciclos de esterilização na rotina de uma CME. No entanto, como futura investigação, vale explorar o assunto "segurança microbiológica no reuso de MUU", por meio da contaminação desafio com micro-organismos formadores de biofilmes como a P.aeruginosa, considerando que os MUUs não desmontam, via de regra, para serem limpos, o que, em tese, favorece a formação de biofilmes.

Um dos alertas na discussão do reuso de materiais de uso único é a avaliação da funcionalidade do material, antes de se explorar a possibilidade do alcance da esterilidade. Pesquisa, realizada na Alemanha, no ano 2008, demonstrou confiabilidade no bisturi ultrassônico laparoscópico de uso único, reprocessado uma vez, quando comparado ao novo(15).

Nesse sentido, em nosso meio, pode-se afirmar que a validação da reutilização dos acessórios de videocirurgia laparoscópica, quanto à sua funcionalidade, já foi empiricamente aprovada junto aos cirurgiões, usuários diretos desses materiais. Anteriormente à proibição explícita, pela legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)(2), a prática do reuso dos materiais investigados nesta pesquisa foi frequente dentro da realidade nacional, e muitos cirurgiões afirmavam preferir o material de uso único reprocessado no lugar dos "permanentes", o que contribuía para reforçar a prática do reuso. Desse modo, é possível afirmar que a prática assistencial já testou e aprovou a funcionalidade desses materiais de uso único reusados, ainda que sem fundamentação científica e na ilegalidade.

Este estudo restringiu-se à investigação do alcance da esterilidade. Porém, outros riscos potenciais poderão estar presentes no material, mesmo esterilizado: presença de biofilmes, endotoxinas, resíduos de proteínas sanguíneas e de produtos tóxicos utilizados no reprocessamento, entre outros. Esses riscos merecem estudos futuros para efetivamente eximir a prática do reuso desses materiais de qualquer risco e reverter, se pertinente, o registro desses materiais para reuso limitado e não uso único.

Conclusão

A presente investigação permitiu confirmar a hipótese inicial da pesquisa: houve o alcance da esterilidade dos acessórios de uso único, utilizados em videocirurgia laparoscópica (grasper, dissector, tesoura, agulha de Veress e sistema de sonda de eletrocirurgia), assim como dos materiais equivalentes "permanentes", frente à contaminação desafio com micro-organismos esporulados.

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    H.Stratnner
    ®); lavagem manual complementar de cada peça com escovas de 2mm de diâmetro (lavagem interna do canhão da agulha de
    Veress, haste e punho do sistema de sonda de eletrocirurgia), e escovas delicadas para lavar as serrilhas da parte ativa das pinças; cremalheiras, empunhaduras e demais reentrâncias e frestas de todas as peças; enxágue do material com auxílio de pistola de água sob pressão, direcionada para a estrutura interna do instrumento; último enxágue com água destilada esterilizada; apoio dos materiais em cestos forrados com campos brancos por alguns minutos para facilitar a secagem e a inspeção do resíduo de sangue; secagem com ar comprimido medicinal e compressas macias; inspeção rigorosa quanto à limpeza e integridade dos materiais com o auxílio de lente intensificadora de imagem com foco de luz; montagem das pinças "permanentes"; acondicionamento individual dos materiais em embalagem dupla de papel grau cirúrgico, colocando no interior do pacote um integrador químico multiparamétrico (classe 5); esterilização dos MUUs por gás óxido de etileno e dos instrumentos "permanentes" em autoclave a vapor, saturado sob pressão com pré-vácuo; encaminhamento das amostras esterilizadas para teste de esterilidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      09 Out 2009
    • Aceito
      10 Dez 2010
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