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Self, a serviço de quem?

Self, at whose service?

As múltiplas faces do selfWalterTrincaSão Paulo: Vetor, 2016, 142 págs.

As múltiplas faces do self, de Walter Trinca (2016) retrata o self e suas implicações na vida psíquica como uma importante instância reguladora do desenvolvimento emocional da pessoa. Por tratar-se de um receptáculo que possui mobilidade, plasticidade, características variadas e peculiares, abriga e movimenta inúmeras forças advindas da mente, do organismo e do mundo externo, sofre influências destas e torna-se um campo de conflitos. O self guarda estreita relação com o ‘ser interior’ que é considerado o núcleo de existência do indivíduo. O autor dá ênfase à influência benéfica que o ‘ser interior’ (força vital) exerce sobre o self, promovendo o desenvolvimento emocional, a integração e o bem-estar da pessoa, e a ‘má influência’ da pulsão de morte, sob a forma de ‘constelação do inimigo interno’ (Trinca, 2007, 2011), provocando embates e conflitos que podem culminar com a ‘ação da fragilidade ou a presença da sensorialidade’ no self. Ou seja, as ações do self dependerão da maior ou menor influência do ‘ser interior’.

Vale a pena enfatizar que a fragilidade do self decorre do predomínio da pulsão de morte, voltada para o indivíduo, que provoca angústias intensas pelo ‘medo do terror de passagem à inexistência’, e pode resultar desde o enfraquecimento até o esvaziamento do self. Já a sensorialidade corresponde a uma ocupação do self que ‘tende a se constituir como um modo de ser, de representar o mundo e de estar no mundo’ (p. 27). Esses e outros aspectos são abordados com muita propriedade, oferecendo ao leitor uma compreensão profunda levando-o a reflexões acerca da dinâmica do self e outros elementos a ele relacionados, como também as implicações dos possíveis arranjos nele estabelecidos, para o bem e para o mal, que determinam as condições emocionais de cada pessoa em diferentes momentos da sua vida. O autor dedica um capítulo sobre algumas concepções de self, destacando a que embasa o teor desse livro. Discorre sobre a natureza, a estrutura, a dinâmica do self e sua importância para os processos psíquicos. Retoma o conceito de ‘ser interior’, a interlocução deste com o self e a influência do instinto de morte. Destaca a necessidade do contato da pessoa com o seu próprio ser. Esclarece que a condição de a pessoa desenvolver patologias está relacionada ao distanciamento de contato, enquanto a expansão da consciência decorre de contatos crescentes com o ‘ser interior’. Propõe um modelo de organização e estruturação do self no âmbito da psicanálise compreensiva, no qual os fatores psicológicos fundamentais se evidenciam na clínica psicanalítica desde que observados numa abordagem de conjunto, a partir das manifestações do self.

Trinca esclarece que o livro em tela complementa suas ideias sobre o self e o ‘ser interior’, descritas em duas obras anteriores: O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos (2007) e Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto (2011). As concepções sobre a constituição e o funcionamento do self descritas nesse livro foram respaldadas por sua ampla prática clínica e seus conhecimentos teóricos. Embora o autor tenha abordado as funções do self e sua interlocução com o ser interior nas outras obras citadas, nesta, ao dar destaque ao self, como uma engrenagem fundamental dentre os determinantes psíquicos, convida o leitor a aprofundar seus conhecimentos e observar o resultado de algumas das possíveis interações que ocorrem nesse campo de conflitos na prática clínica.

Destaco do capítulo intitulado “As derivações do mundo humano”, as conjeturas do autor ao transpor conhecimentos da psicanálise para a compreensão de fenômenos sociais. Refiro-me às possibilidades de o self, dado à qualidade e à natureza do que nele se instalam, tornar-se uma força coletiva, produto da interação e projeção de muitos selfs individuais que favorecem a criação de ‘instrumentos e ideologias de destruição em massa, guerras e extermínios’ (p. 73). As correlações estabelecidas entre o self projetado e a manifestação da desumanização, que se faz presente na própria vida e no ambiente, dão uma dimensão da importância e das consequências dos direcionamentos tomados pelo self projetado quando o self se encontra envolvido por um grande distanciamento de contato, preenchido pela sensorialidade, pela ação da constelação do inimigo interno e outros fatores.

O autor aborda, também, como identificar a manifestação da libertação e da prisão da mente (cap. 11). De um lado, a libertação se apresenta em um self não sensorial, originada pela influência do ‘ser interior’, permitindo ‘uma apreensão do mundo real feita em sintonia com os sentidos e significados que estão contidos nos relacionamentos’ (p. 93). De outro, a prisão promove o estreitamento mental como consequência do afastamento de si próprio, comprometendo ‘a percepção, a cognição, o pensamento e o sentimento’ e daí decorrem os prejuízos à vida e ao viver. Retoma a necessidade de manter o self sob a influência do ‘ser interior’, para que aquele mantenha a unicidade e a coesão, resultando na mobilidade psíquica da pessoa.

Assim, esse livro, além de retratar um panorama dinâmico das funções do self e das possíveis interações que esse mantém com o ‘ser interior’ e com as forças pulsionais, especialmente as provenientes da pulsão de morte, é útil ao leitor por possibilitar uma reflexão acerca das manifestações dessas interações na prática clínica e, com isso, proporcionar à pessoa atendida o gerenciamento de sua vida alicerçada em seus aspectos genuínos de existência. Outra razão para a leitura do livro é a forma como o autor aborda o conteúdo, transitando da psicanálise à filosofia e à sociologia proporcionando, ao mesmo tempo, um sentido poético e científico.

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2017
  • Aceito
    12 Out 2017
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