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Epistemologia, ontologia e política Epistemology, ontology and politics

Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas. . Beer, Paulo. Perspectiva: Prefácio de Nelson da Silva Jr.2023. 288

Este livro apresenta uma contribuição importantíssima para o campo da produção científica em Psicopatologia. A partir de pesquisas nas quais se encontraram em placebos efeitos similares aos das medicações para sintomas de depressão, Paulo Beer indica que é preciso rever não apenas a separação entre discurso e organismo, mas também o organicismo como modelo explicativo para as causas do sofrimento psíquico. Para tanto, Beer recupera a discussão sobre a verdade na produção de conhecimento. Com esse objetivo, ele retoma dois autores que se ocuparam da relação entre a incompletude da linguagem e os limites da verdade: o filósofo canadense Ian Hacking e o psicanalista Jacques Lacan. Em seu livro anterior, Psicanálise e ciência: um debate necessário, Beer (2017)Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: um debate necessário. Blucher. já iniciara um diálogo entre os dois autores quando analisara a noção de verdade no contexto da crítica à noção de evidência.

O livro atual é composto por cinco capítulos, além da Introdução e do capítulo final, nomeado “Menos certezas e mais ciência”. O primeiro capítulo discute verdade e conhecimento tomando como fio condutor a distinção entre verdade e veracidade: a verdade, ao ser dita, demanda que alguém a diga, e é nesse ato de enunciação que se passaria à veracidade, mas é preciso incluir aí a historicidade. Nesse primeiro capítulo Beer percorre as contribuições de Hacking a partir da introdução da história como campo incontornável para a compreensão da atividade científica, contribuindo para suplantar uma tradição da filosofia com forte tendência epistemológica e fundacionista. Com seu conceito de “realismo de entidades”, Hacking postula que é possível a existência de algo sem que seja necessária uma descrição completa, mas pelos efeitos produzidos por intervenções.

No segundo capítulo, Beer analisa os estudos de Hacking sobre o efeito performativo da linguagem sobre os objetos, o nominalismo dinâmico (efeitos de looping), que pode ser assim resumido: “categorias de pessoas passam a existir na mesma hora em que tipos de pessoas passam a existir de modo a se encaixarem nessas categorias, e há uma interação de mão dupla entre esses processos” (Hacking, 2009, p. 63Hacking, I. (2009). Ontologia histórica. Editora Unisinos.).

Nos processos de categorização de objetos é preciso um discurso sobre esse objeto, há casos em que esse discurso modifica o objeto (tipos interativos); e outros em que o discurso não modifica o objeto (tipos “naturais” ou indiferentes). O filósofo canadense considera que, na Psicopatologia, se lidaria com determinados problemas, como a depressão, que podem ser entendidos como sendo compostos simultaneamente por tipos interativos e indiferentes:

a depressão é um caso de uma doença biológica — o que considera então como um tipo indiferente —, mas que se expressa a partir de elementos culturais, sendo também um tipo interativo. Ademais, apresenta efeitos de biolooping, uma vez que tratamentos comportamentais podem modificar níveis de serotonina. (Beer, 2023, p. 66Beer, P. (2023). Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas. Perspectiva.)

Entretanto, observa Beer (2023)Beer, P. (2023). Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas. Perspectiva., “o autor parece não reconhecer o efeito retroativo que o próprio entendimento da depressão enquanto um objeto biológico — e portanto, indiferente — pode causar” (p. 67). Esse caso ilustra como em enunciados científicos se articulam política e ontologia. Não há como negar os efeitos de apresentar um tipo interativo como indiferente, nem os efeitos de poder decorrentes de se tomar características contingentes como necessárias.

Com a expressão “inventar pessoas”, Hacking (2009)Hacking, I. (2009). Ontologia histórica. Editora Unisinos. descreveu como a existência não está separada do modo como se pensa a existência, e mudanças nos modos de pensar a existência modificam os modos de experienciar a mesma. Ou seja, trata-se de considerar que há entrelaçamento entre epistemologia e ontologia.

No terceiro capítulo, com o título “Uma forma própria de verdade”, Beer vai abordar a verdade na teoria e na clínica em psicanálise. O ponto que vai ser destacado será a negatividade, isto é, a impossibilidade de positivação total.

O quarto capítulo, com o título de “Um sujeito histórico”, vai percorrer uma leitura crítica de Koyré (2011)Koyré, A. (2011). Estudos de história do pensamento científico. (3a ed.). Forense., esse historiador das ciências no qual Lacan (1965/1998)Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Zahar. (Trabalho original publicado em 1965). se apoiou para trabalhar não apenas a articulação entre o cogito cartesiano e a ciência moderna, mas também a precedência da conceituação, pois, como Koyré mostrou, em Galileu a conceitualização precedia a experiência. Beer mostra que a relação entre o cogito, o sujeito da ciência moderna e o sujeito da Psicanálise, tal como Lacan propôs, excede uma questão epistemológica. Será então possível apontar para a aproximação entre Lacan e Hacking no que se refere ao entendimento histórico da produção de um sujeito específico: ontologia histórica em Hacking; reconhecimento da emergência do sujeito em determinado momento histórico em Lacan. Ainda é possível encontrar uma segunda aproximação entre os dois autores, visto que ambos subscrevem uma inseparabilidade entre epistemologia e ontologia: as formas de pensamento modificam as possibilidades de experiência dos indivíduos.

No quinto capítulo, “Problemas e caminhos”, com base em dois estudos, um de Watters (2010)Watters, E. (2010). Crazy Like Us: The Globalization of American Psyche. Free Press., sobre a depressão no Japão, no qual ficou evidente a eficácia do discurso tanto na produção de uma doença, a depressão, onde antes não havia, quanto na obtenção de bons resultados da medicação introduzida especialmente para os sintomas de depressão. A partir do outro estudo, de Kirsch (2014)Kirsch, I. (2014). Antidepressants and the Placebo Effect. Zeitschrift für Psychologie, 222(3), 2014. Recuperado em jan.2024 de: <https://doi.org/10.1027/2151-2604/a000176>.
https://doi.org/10.1027/2151-2604/a00017...
, Beer mostra que a proximidade entre o efeito placebo e o resultado da medicação revelou que os medicamentos antidepressivos funcionam, mas os placebos também. Retornando aos tipos interativos de Hacking, esses estudos constataram que a interatividade é muito mais ampla do que as teorias biologicistas parecem perceber. No capítulo final, “Menos certezas e mais ciência”, Beer conclui que se a ciência se faz através de um movimento entre verdade e saber, devemos cuidar tanto daquilo que já está estabelecido quanto daquilo que pode irromper.

Referências

  • Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: um debate necessário. Blucher.
  • Beer, P. (2023). Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas Perspectiva.
  • Hacking, I. (2009). Ontologia histórica. Editora Unisinos.
  • Kirsch, I. (2014). Antidepressants and the Placebo Effect. Zeitschrift für Psychologie, 222(3), 2014. Recuperado em jan.2024 de: <https://doi.org/10.1027/2151-2604/a000176>.
    » https://doi.org/10.1027/2151-2604/a000176>.
  • Koyré, A. (2011). Estudos de história do pensamento científico. (3a ed.). Forense.
  • Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Zahar. (Trabalho original publicado em 1965).
  • Watters, E. (2010). Crazy Like Us: The Globalization of American Psyche Free Press.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    28 June 2024
  • Date of issue
    2024

History

  • Received
    27 Dec 2023
  • Accepted
    22 Jan 2024
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