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“Ciência pouca é bobagem...” ou o rasgar-se e o remendar-se da psicanálise diante dos críticos

"Little science is nonsense..." or the tearing and mending of psychoanalysis in the face of critics

Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociencia. . Dunker, Christian; Iannini, Gilson. Ubu: Prefácio de Tatiana Roque, 2023. 288

De partida, os autores Christian Dunker e Gilson Iannini, psicanalistas, professores universitários e trabalhadores decididos pela transmissão da psicanálise, anunciam “o jogo bastante perigoso” (Lopes, 2018Lopes, A. (2018). Um jogo bastante perigoso. Moinhos.) em que se meteram e que nos levarão conjuntamente, ao longo da leitura deste “livro-resposta” (p. 31). E acrescentamos, um livro-aposta.

O livro traça um percurso que vai mais além das respostas cirúrgicas diante dos críticos. Estabelece um diálogo honesto com estes, com destaque aos divulgadores científicos brasileiros, que lançaram recentemente uma publicação que aproxima psicanálise e pseudociência (Pasternak & Orsi, 2023Pasternak, N., & Orsi, C. (2023). Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. Contexto.). A estratégia de Dunker e Iannini dá lugar a outras e novas questões, que se somam aos esforços de outros autores nacionais que levaram de maneira séria essa discussão (Beer, 2017Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: Um debate necessário. Blucher. https://www.blucher.com.br/psicanalise-e-ciencia_9788521211822
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; Elia, 2023Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: Metodologia e princípios. Edições 70.). Um livro que marca o esforço de diálogo que não recua “diante das bobagens de pseudoepistemólogos” (p.18) e da chamada crítica destitutiva, que “advoga a inexistência ou ilegitimidade da psicanálise entre os saberes instituídos” (p.67), bem como entre os saberes instituintes, inclusive.

Nesse criterioso trabalho, que guarda certo “esforço de poesia” (Miller, 2016Miller, J.-A. (2016). Un esfuerzo de poesía: Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain-Miller. Paidós.), os autores abrem brechas para um debate possível entre psicanálise e ciência, sem, contudo, perder de seu (belo) horizonte, a subjetividade de nossa época (Lacan, 1966/1998Lacan, J. (1998). Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).).

Já de entrada, podemos citar a urgência de “(...) recolocar o debate sobre a cientificidade da psicanálise em seu devido lugar” e a defesa de uma postura esclarecida diante “(...) do viés epistemológico dos críticos que denunciam a psicanálise como pseudociência” (p. 9). Ou seja, os autores partem da premissa de que “a epistemologia que permite compreender a singularidade da psicanálise não separa a ciência da história da ciência”.

Em sua introdução, destacamos a escansão feita entre cientificismo e ciência, sendo o primeiro conceito encarado como um “excesso de confiança arrogante da ciência em si mesma” (p. 16), um delírio da ciência, em outros termos. Em certa medida, o livro contribui para uma espécie de “tratamento” desses excessos em torno da ciência, que, aos moldes do recalcado, retornam como sintomas sociais, como o negacionismo ou na divulgação científica rasa e tendenciosa, ou mesmo a crença insuflada nas práticas “baseadas em evidências”, vistas como acéticas, ateóricas e precisas, num terreno vital em que “viver não é preciso”, como dizia certo poeta português.

Nessa desmontagem de consensos cristalizados em torno de certa “psicanálise”, o livro ganha volume e tração. Para isso, os autores são, antes de tudo, freudianos. Retornam às origens, resgatam da sega cortante da psicanálise, inquietações freudianas que seguem sendo atuais. Como bússola, retomam as três dimensões da definição de psicanálise, consagradas pela letra freudiana: “um método de tratamento (Behandlungsmethode), um procedimento de investigação (Forschungsmethode) e uma nova ciência (neues Wissenschaft)” (p. 26).

Na parte I, destacamos o debate em torno das fake news na ciência. Os autores denunciam como a psicanálise pode ser incômoda para certa ciência tida como “um substituto do catecismo abandonado, os mesmos que professam o mito da razão única e sua versão operacional e metodológica” (p. 77).

Já na parte II, recortamos as contribuições críticas da psicanálise diante do “discurso da tecnociência e da pseudotecnologia” (p. 207), que merecem ser mais explorados pelas pesquisas brasileiras. E, finalmente, na parte III, ressaltamos a importância do debate em torno de uma epistemologia freudiana que fosse capaz de “desfazer o preconceito de equivaler conhecimento e saber” (p. 243). Tal posição teria como efeito a emergência do “sujeito da psicanálise”, cuja ênfase se localizaria nesse “entre”, entendido como espaço de intersecção e conflito, entre o litoral e o literal (...)” (p. 259).

Em suma, esse livro privilegia o dinamismo e a efervescência da psicanálise, que se reinventa a cada novo encontro faltoso, que se renova por suas mudanças conceituais e se recria a partir das experiências clínicas. Nem uma ciência, nem uma pseudociência, mas várias, portanto, uma nova ciência, marcada pela relação variável com a verdade, como acentuou Lacan com o neologismo “varité” (varidade), efeito da condensação entre os significantes “vérité” (verdade) e “variété” (variedade), enunciado em um de seus últimos seminários (Lacan, 1976-77Lacan, J. (1976-1977). O seminário. Livro 24. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (inédito). Recuperado em: 2 jan. 2024 de: <http://staferla.free.fr/S24/S24%20L’INSU....pdf>.
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; tradução nossa).

É um livro-resposta, cuja premissa ética é cristalina, como as águas da nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra, em São Roque de Minas: “(...) a aposta de que cada tratamento é absolutamente singular, no sentido de que a psicanálise se reinventa a cada novo caso, pois ele traz em si próprio as amarrações e soluções que cada um inventa para si” (p. 278).

Que possamos desconfiar dos Cientistas Verdadeiros, nos inquietar diante das questões levantadas pelo livro, dando outro status às bobagens, aos “divinos detalhes” (Miller, 2020Miller, J.-A. (2020). Los divinos detalles: Los cursos psicoanalíticos de JacquesAlain Miller. Paidós.) e ao “resto incalculável pulsional, real que se esvai por entre as garras do protocolo” (Dunker & Iannini, 2023, p. 282). Um livro que reaviva a relação intensiva entre ciência e psicanálise. Eco para a seguinte pontuação, que desvela a posição/função por excelência da/do psicanalista: “quem se ocupará das ‘bobagens’ que nos fazem sofrer?” (p. 19).

Apreciem bobamente esta leitura sóbria e generosa, um convite ao reconhecimento do vivo que emerge entre psicanálises e ciências. Boa leitura!

Referências

  • Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: Um debate necessário Blucher. https://www.blucher.com.br/psicanalise-e-ciencia_9788521211822
    » https://www.blucher.com.br/psicanalise-e-ciencia_9788521211822
  • Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: Metodologia e princípios Edições 70.
  • Lacan, J. (1976-1977). O seminário. Livro 24. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (inédito). Recuperado em: 2 jan. 2024 de: <http://staferla.free.fr/S24/S24%20L’INSU....pdf>.
    » http://staferla.free.fr/S24/S24%20L’INSU....pdf>.
  • Lacan, J. (1998). Escritos Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Lopes, A. (2018). Um jogo bastante perigoso Moinhos.
  • Miller, J.-A. (2016). Un esfuerzo de poesía: Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain-Miller Paidós.
  • Miller, J.-A. (2020). Los divinos detalles: Los cursos psicoanalíticos de JacquesAlain Miller Paidós.
  • Pasternak, N., & Orsi, C. (2023). Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério Contexto.
  • Rosa, J. G. (2006). Grande Serão: Veredas Nova Fronteira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2023
  • Aceito
    10 Jan 2024
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