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Antigas ideias, novas patologias: a exclusão do psíquico e do social pela psiquiatria do século XXI

Caponi, Sandra. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2012. 210. 1ª Reimpressão: 2014

O presente estudo é fruto de pesquisa rigorosa no âmbito da história da psiquiatria e representa uma importante contribuição para a discussão sobre os fundamentos do diagnóstico psiquiátrico, a partir do exame da teoria da degeneração surgida no século XIX. A autora articula essa teoria, em geral vista no meio psiquiátrico como superada, fruto de concepções científicas ultrapassadas, ao surgimento de uma nova maneira de classificar as patologias mentais, vigente desde as últimas décadas do século XX até o momento atual, com diversas implicações no campo da saúde mental. Entre essas, em especial, a ampliação do campo do patológico no que diz respeito ao sofrimento subjetivo.

As sucessivas revisões propostas na classificação nosográfica da psiquiatria, consubstanciadas no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais da American Psychiatric Association (APA), cuja quinta versão (DSM-5) foi publicada nos EUA em 2013, caminharam no sentido da cres-cente fragmentação dos quadros clínicos clássicos em síndromes, conjuntos de sinais e sintomas que passaram a configurar as diferentes categorias psiquiátricas. Tal classificação pretende ser ateórica e isenta de qualquer subjetivismo, não levando em conta nenhuma escola ou corrente específica no que tange a considerações etiológicas. Seguindo essa concepção, o manual descreve as patologias mentais, doravante denominadas “transtornos”, objetivamente, enumerando características e “critérios diagnósticos” que compõem o quadro clínico de cada categoria da classificação, de modo que possa ser reconhecida e aplicada por qualquer psiquiatra ao redor do mundo de modo uniforme, facilitando a troca de informações para fins de pesquisa clínica.

Cabe salientar que a classificação proposta pela APA foi inicialmente elaborada como um instrumento que se destinava exclusivamente à pesquisa científica, mas aos poucos foi também sendo utilizada na prática clínica, no nível da assistência, tendo em vista a hegemonia mundial da psiquiatria norte--americana. Nesse sentido, ela passou também a influenciar o outro sistema classificatório de uso internacional já existente anteriormente, e ainda vigente, a Classificação Internacional de Doenças (CID), proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no capítulo referente aos transtornos mentais. Essa classificação, assim como o DSM, também sofre revisões sucessivas, sendo que a sua última versão, a CID-10, é muito próxima da concepção nosográfica da classificação da APA.

A difusão e universalização do uso de um instrumento como o DSM produz como efeito colateral o fato de que a própria classificação pode ser apreendida diretamente, dispensando a presença do psiquiatra, a partir da ampla divulgação de seu conteúdo na mídia. Tal fenômeno é potencializado pelo largo alcance da internet e das redes sociais, de forma que se torna viável a qualquer pessoa a possibilidade de se autodiagnosticar, a partir da seleção dos sinais e sintomas descritos nos diferentes quadros presentes na classificação. Assim, tornou-se frequente os profissionais de saúde mental receberem para tratamento pessoas que chegam já se autonomeando, por exemplo, “bipolar” ou tendo “depressão”, “pânico”, “compulsão”, “dependência química”, “déficit de atenção”, “anorexia” ou “bulimia” (estas últimas chegam a formar, por um processo de identificação, os frequentados grupos de “Anas” e “Mias”, visando o compartilhamento de suas experiências através das redes sociais).

Tendo como referência fundamental para sua análise a obra de Michel Foucault, especialmente as formulações sobre a biopolítica das populações, desenvolvidas nos seus últimos cursos ministrados no Collège de France na década de 1970, Caponi examina em profundidade nesse livro as concepções psiquiátricas do século XIX, particularmente a noção de degeneração proposta por Morel como um paradigma para a compreensão da alienação mental, evidenciando a continuidade existente entre as antigas concepções do alienismo e os novos paradigmas da psiquiatria do século XXI. Como destaca a autora, a biopolítica da população é a estratégia que possibilita que o biológico ingresse na política, sendo esse o momento em que o corpo e a vida se transformam “em alvo privilegiado de saber e de intervenções corretivas” (p. 23).

Conforme se depreende da argumentação da autora, as ideias de Morel, Magnan e outros defensores da relação causal entre degeneração e adoecimento mental influenciaram fortemente o pensamento de Kraepelin, o grande sistematizador da psiquiatria, considerado o pai da psiquiatria moderna. É notório o fato de que a classificação de Kraepelin está na base da formulação do DSM, como atestado pelo fato de se autodenominarem neokraepelinianos os autores norte-americanos que propuseram esse sistema classificatório. Mas não é sem um sutil aggiornamento que a degeneração vai persistir no pensamento psiquiátrico contemporâneo. Para Caponi

o conceito de degeneração não se limita a estabelecer uma articulação entre patologias mentais e hereditariedade. Ele possibilitou uma redefinição do campo da psiquiatria, deixando marcas profundas que ainda permanecem no discurso e nas intervenções da saúde mental [...] A classificação de comportamentos cotidianos e sofrimentos que fazem parte da condição humana como quadros patológicos indica a permanência dessa medicina do não patológico iniciada por Morel e Magnan. As ideias reducionistas defendidas pelos degeneracionistas limitam o campo dos sofrimentos psíquicos a causas orgânicas, restringindo a compreensão dos relatos dos pacientes e da escuta terapêutica. (pp. 182-183)

Tendo em vista todos esses pontos, o livro em questão é uma obra de leitura indispensável, não só para todos aqueles que militam no campo da saúde mental mas, também, para todos que, de um modo geral, se interessam pelo tema em questão.

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2016
  • Aceito
    14 Nov 2016
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