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A crítica como princípio epistemológico

Criticism as epistemological principle

A ciência da psicanálise: metodologia e princípios. . Elia, Luciano. Edições: Prefácio de Andréa Maris Campos Guerra, 2023. 70. 280

O livro de Luciano Elia, A ciência da psicanálise: metodologia e princípios, lançado em 2023, chegou em boa hora. O prefácio é assinado por Andréa Guerra que destaca a força de transmissão do autor. O título é inspirado em uma interrogação que Lacan endereçou aos universitários em 1965: “O que é uma ciência que inclua a psicanálise?” (Lacan, 1964/2003a, p. 195Lacan, J. (2003a). Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (Resumo do Seminário de 1964). In Outros Escritos (pp. 195-197). Jorge Zahar.)

O livro é composto por seis capítulos. No primeiro deles, acompanhamos um percurso pela epistemologia no século XX, com autores que estudam e estudaram criticamente as ciências, advertidos da incontornável presença da ideologia na ciência. Contrasta-se o espírito científico que florescia nos anos 1960 com a asfixia sofrida desde a emergência do neoliberalismo, na medida em que este vem se pautando pela ligação entre capitalismo e ciência, a qual vem produzindo uma sociedade medicalizada.

No segundo capítulo, o autor apresenta seis metodologias tematizadas desde sua pesquisa de doutoramento, quando abordou, psicanaliticamente, a clínica das psicoses. Essa proposta exigira um trabalho metodológico, pois as psicoses “têm a curiosa vocação de interrogar as entranhas epistêmicas dos saberes que com ela se intrometem” (Elia, 2023, p. 59Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: metodologia e princípios. Edições 70.).

O termo metodologias no plural é a forma de reconhecimento de distintos saberes, incluindo a consideração à historicidade, aproximando-se da concepção foucaultiana de episteme. O método científico, tal como concebido por Galileu Galilei, também denominado Método hipotético-dedutivo, é congênito à ciência moderna. No livro, ele será apresentado como a primeira das seis metodologias. Sendo que as outras cinco metodologias serão apresentadas como derivações dessa primeira. O autor nos lembra que esse método já passou por revisão a partir da consideração da perspectiva da flecha do tempo, isto é, da irreversibilidade temporal. Nesse sentido, a ciência produziu uma desestabilização da verdade eterna, universal e atemporal. Assim também foi preciso admitir a existência do que não pode ser inteiramente visível, objetivável, palpável em sua positividade empírica, como é o caso do átomo, e que no entanto produz efeitos, como o inconsciente. Mas e o empírico? Luciano Elia nos lembra que as ciências que se definem pela delimitação de um objeto, como um recorte do real, “dito impropriamente empírico, posto que essa empiricidade, que aparentemente apenas designaria o objeto real ou factual, contamina o próprio método como se o conhecimento sobre esse objeto emanasse da mera observação de sua condição de objeto” (Elia, 2023, p. 63Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: metodologia e princípios. Edições 70.). É aqui que entram os modelos teóricos. Freud tinha os seus. Nesse sentido, o método hipotético-dedutivo faz parte da pesquisa em psicanálise através da conjunção entre teoria e clínica, tal como a conjunção entre racionalização e experimentação. A “prática clínica” da psicanálise, não cessa de trazer “fatos ou fenômenos novos” e os impõe ao trabalho teórico, que deve, assim, modificar-se para assimilá-los. Mas não podemos esquecer que os fatos novos são também leituras a partir de uma teoria, de uma racionalidade, não emanam da mera observação.

A segunda metodologia é o materialismo histórico ou dialético, tornado viável a partir da ciência da história introduzida por Hegel. A terceira metodologia, que emerge a partir da ciência moderna, é a metodologia psicanalítica que despoja o sintoma histérico da corporeidade neurológica, na continuidade do esvaziamento das qualidades do cogito. O capítulo dois segue com as outras três metodologias derivadas do galileísmo: a fenomenologia, o estruturalismo e a arqueologia (e depois genealogia) com Foucault.

O terceiro capítulo, ao apresentar uma reflexão sobre o que é ciência, propõe uma discussão muito atual sobre o lugar da verdade e da experiência na mesma. O quarto capítulo faz uma releitura da produção epistemológica em Psicanálise. É subdividido em nove temas, entre os quais o conceito de pulsão. Na avaliação de Luciano Elia, com o conceito de pulsão como limite entre somático e psíquico, Freud explodiu a unidade psicofísica do indivíduo, assim como a dicotomia natureza e cultura. O autor nos lembra que o conceito de limite remete ao campo matemático, de forma que é o conceito de pulsão, e não ela própria, que é limítrofe. Ainda no quarto capítulo, um dos nove temas é o papel da ficção na ciência: “Se no método hipotético-dedutivo, o método científico por excelência, a verificação só comparece como última etapa, é justamente para dar lugar ao que possa haver de ficcional (hipóteses e deduções das hipóteses) na elaboração teórico-conceitual, e que justamente se submeterá à verificação através da lógica e da função do escrito (não há lógica fora da escrita)” (Elia, 2023, p. 197Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: metodologia e princípios. Edições 70.).

No quinto capítulo, com o título “Eixos estruturais do método freudiano”, Luciano Elia usa as seis metodologias descritas no segundo capítulo para analisar a materialidade e a abstração em Psicanálise. Freud verificou e afirmou que as paralisias motoras histéricas seguiam não as leis do cérebro, mas o conhecimento que o senso comum tem da anatomia tal como é escutado na materialidade concreta e discursiva, literalmente, reintroduzindo o sujeito foracluído da ciência.

O sexto capítulo, “Metodologia da pesquisa em psicanálise”, apresenta princípios metodológicos na forma de uma heurística abrangendo 15 tópicos que incluem questões éticas e políticas do pesquisante na relação com o saber, seja pela topologia, o furo no saber, seja pela questão da transmissão. O autor nos lembra que o saber é do inconsciente e está do lado do sujeito e não do profissional nem do cientista; logo, a interseccionalidade será considerada, mas não suposta: quem é suposto é, a cada vez, o sujeito falante. Vale destacar os tópicos: verdade e validade na pesquisa e na práxis da psicanálise; a “imanência” da entrada no inconsciente; modos de verificação da teoria e da práxis clínica; a pesquisa em psicanálise e a “ética do consentimento”; efeitos de estrutura na clínica e na pesquisa. Nesse tópico, retornamos ao ano de 1966, quando Lacan é entrevistado sobre seu livro recentemente publicado:

Meus Escritos reúnem as bases da estrutura numa ciência que está por construir — e estrutura quer dizer da linguagem —, na medida em que a linguagem como realidade fornece ali os fundamentos. O estruturalismo durará tanto quanto duram as rosas (...) Já a estrutura não está nem perto de passar porque se inscreve no real, ou melhor, porque nos dá uma oportunidade de dar sentido a essa palavra, real (...) (Lacan, 1966/2003b, p. 230Lacan, J. (2003b). Pequeno discurso na ORTF. In Outros Escritos (pp. 226-231). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).)

O livro de Luciano Elia nos indica que inscrição da estrutura no Real é comparável à noção de causa imanente, aquela que é inseparável de seus efeitos.

Referências

  • Elia, L. (2023). A ciência da psicanálise: metodologia e princípios Edições 70.
  • Lacan, J. (2003a). Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (Resumo do Seminário de 1964). In Outros Escritos (pp. 195-197). Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (2003b). Pequeno discurso na ORTF. In Outros Escritos (pp. 226-231). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2023
  • Aceito
    15 Jan 2024
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