Resumos
Em 1886, o psiquiatra Richard von Krafft-Ebing lançou a Psychopathia Sexualis, primeiro manual de diagnóstico de perversões sexuais e se tornou o responsável por articular uma nova perspectiva para o estudo da sexualidade. Sua abordagem atravessou séculos e até hoje tem consequências diretas na ideia de sexualidade humana contemporânea. Este estudo pretende retomar a história do conceito de fetichismo dentro da Psychopathia Sexualis para demonstrar como, na teoria psiquiátrica de Krafft-Ebing, o fetichismo se tornou mais do que uma patologia ou peculiaridade sexual, passando a designar a manifestação inicial do processo do instinto sexual nos seres humanos, convertendo-se em um conceito-chave para a teoria da sexualidade.
Palavras-chave: Krafft-Ebing; fetichismo; fetiche; perversões sexuais
In 1886, psychiatrist Richard von Krafft-Ebing published Psychopathia Sexualis, the first manual for diagnosing sexual perversions, thus creating a new perspective for the study of sexuality. To this day, his approach directly influences the idea of contemporary human sexuality. This study intends to resume the history of the concept of fetishism described in Psychopathia Sexualis to show how, according to Krafft-Ebing’s psychiatric theory, fetishism became more than a pathology or sexual peculiarity and designates the initial manifestation of the process of sexual instinct in human beings, thus becoming a key concept of the theory of sexuality.
Key words: Krafft-Ebing, fetishism, fetish; sexual perversions
En 1886, le psychiatre Richard von Krafft-Ebing a publié « Psychopathia Sexualis », premier manuel diagnostique de perversions sexuelles et a ainsi articulé une nouvelle perspective pour l’étude de la sexualité. Son approche a jusqu’à aujourd’hui des conséquences directes sur l’idée de la sexualité humaine contemporaine. Cette étude vise à reprendre l’histoire du concept du fétichisme au sein de la Psychopathia Sexualis pour démontrer, dans la théorie psychiatrique de Krafft-Ebing, comment le fétichisme est devenu plus qu’une pathologie ou une particularité sexuelle, désignant la manifestation initiale du processus de l’instinct sexuel chez l’homme et devenant, par conséquent un concept clé de la théorie de la sexualité.
Mots clés: Krafft-Ebing; fétichisme; fétiche; perversions sexuelles
En 1886, el psiquiatra Richard von Krafft-Ebing lanzó Psychopathia Sexualis, el primer manual para diagnosticar perversiones sexuales, y se convirtió en el responsable de la articulación de una nueva perspectiva para el estudio de la sexualidad. Su enfoque ha trascendido los siglos y hasta el día de hoy tiene consecuencias directas sobre la idea de la sexualidad humana contemporánea. Este estudio pretende reanudar la historia del concepto de fetichismo, dentro de Psychopathia Sexualis para demostrar cómo, en la teoría psiquiátrica de Krafft-Ebing, el fetichismo se convirtió en algo más que una patología o una peculiaridad sexual, comenzando a designar la manifestación inicial del proceso del instinto sexual en los seres humanos, convirtiéndose en un concepto clave para la teoría de la sexualidad.
Palabras-clave: Krafft-Ebing; fetichismo; fetiche; perversiones sexuales
Introdução
Em 1886, Richard von Krafft-Ebing publicou a primeira edição da Psychopathia Sexualis, obra que catalogava e procurava explicar as formas de sexualidade que desviavam da norma geral, entendida, basicamente, como o coito reprodutivo entre homem e mulher.
A obra é considerada o primeiro manual organizado a detalhar sistematicamente as perversões sexuais estudadas até aquele momento, nomeando as classes em que se incluíam e apresentando critérios para diagnósticos feitos por psiquiatras em âmbito jurídico (Pereira, 2009). O livro foi um sucesso estrondoso, tornando Krafft-Ebing o autor responsável por articular uma nova perspectiva para o estudo da sexualidade em geral (Oosterhuis, 2012).
Weeks (1985, p. 67) sugere dois momentos principais e decisivos para a emergência dos discursos científicos sobre a sexualidade humana. Um desses momentos, o primeiro, as obras de Darwin e, o segundo, a publicação da primeira edição da Psychopathia Sexualis. O trabalho foi a ferramenta que iniciou a articulação de uma visão científica da sexualidade normativa e da sexualidade desviante.
Para Oosterhuis (2012), nos dias de hoje, Krafft-Ebing não é mais um nome familiar para o público em geral, porque sua fama teria sido obscurecida por outros autores emblemáticos da investigação da sexualidade, tais como Freud ou Kinsey.
Um exame atento da obra de Krafft-Ebing e do contexto histórico na qual ela foi produzida permite perceber como suas teorizações permanecem, até os dias de hoje, conceitos fundamentais para o estudo da sexualidade.
Este artigo toma como objeto de estudo o conceito de fetichismo e sua abordagem na Psychopathia Sexualis. O fetichismo, partindo de seu nascimento dentro do estudo das religiões e de sua adaptação para a teoria da sexualidade por parte de Alfred Binet, funcionou como um conceito-chave para a teorização das perversões sexuais na Psychopathia, antes e depois da morte de Krafft-Ebing. Juntamente com o sadismo, a homossexualidade e o masoquismo, ele representa uma das quatro grandes patologias gerais da sexualidade trabalhadas pelo psiquiatra e esteve presente nas discussões de perversões e perversidades menores também criadas por ele.
O estudo pretende retomar a história do conceito de fetichismo na sexualidade e demonstrar como, na teoria psiquiátrica de Krafft-Ebing, o fetichismo se tornou mais do que uma patologia ou peculiaridade sexual, passando a designar a manifestação primordial do instinto sexual nos seres humanos. Essa formulação e suas implicações conceituais para as outras patologias gerais serão o ponto de chegada do percurso aqui delineado.
Breve nota sobre a criação do conceito fetichismo
A palavra fetiche nasceu do afrancesamento da palavra portuguesa fetisso (forma arcaica de feitiço). O termo fetisso aparece pela primeira vez a partir dos relatos dos marinheiros portugueses na costa da África Ocidental sobre o tipo de cerimônia realizada pelos africanos para a adoração aos fetissos, ou seja, objetos feitos à mão pelos líderes religiosos das tribos, os fetisseros (Bry, 1604, p. B2).
Em 1760, o escritor francês Charles De Brosses produz um longo estudo focado em argumentar uma comparação entre o culto africano dos fetiches e a religião do Egito antigo, muito discutida na época do autor (Pires, 2011, pp. 67-68).
De Brosses (1988) argumenta que as cerimônias dos povos africanos corresponderiam a uma espécie rudimentar de culto de adoração equivalente aos rituais religiosos observados em outras tribos mais avançadas. De Brosses chama o culto dos fetissos (fetiches, na tradução francesa) de fetichismo. O fetichismo designaria, assim, o culto religioso que esses povos africanos prestariam aos fetiches, a saber, objetos materiais que seriam eles mesmos, divindades dotadas de poderes: “Estes fetiches divinos nada mais são que o primeiro objeto material que cada nação ou cada tribo particular tem o prazer de escolher e de consagrar em uma cerimônia por intermédio de seus sacerdotes” (De Brosses, 1988, p. 15; tradução nossa). De acordo com De Brosses, o fetichismo representaria o estágio mais primevo da ideia de religião (Müller, 1878/1901).
O fetichismo no campo da sexualidade
Antes de prosseguir com os dois autores que iniciaram os estudos do fetichismo no campo da sexualidade, a saber, Binet e Krafft-Ebing, é importante ressaltar que nenhum dos dois cita diretamente De Brosses quando foram escrever sobre fetichismo. Ambos citam brevemente as palestras do professor de filologia da Universidade de Oxford, Friedrich Max Müller, sobre origem e crescimento da religião, ilustrada pelos exemplos da religião indiana. As palestras ocorreram em 1878 através do financiamento da renomada agência Hibbert Trust para o apoio para realização de estudos sobre teologia e religião.1 O compilado escrito Lectures on the Origin and Growth of Religion, foi publicado com as transcrições das oito palestras.
Na segunda palestra, Müller se propõe a discutir se, de fato, o fetichismo seria a forma original de religião como pensado por De Brosses. Müller (1878/1901, p. 58) argumenta que propôs o retorno a esse tema pela sua desconfiança com ideias gerais com as quais muitos concordavam, tal qual era, como ele afirma, a ideia proposta por De Brosses de que o fetichismo fosse a forma original de religião. Müller (1878/1901) acredita ele mesmo que não, pois pelo estudo antropológico, ele teria reconhecido traços muito mais perceptíveis de fetichismo em religiões mais elaboradas - como, por exemplo, as religiões indianas alvo de suas palestras - do que em religiões primitivas. Sendo assim retomou diversos pontos do livro de De Brosses para rebater algumas ideias sobre o fetichismo.
Permanece obscuro até que ponto o desafio à conceituação de De Brosses por Müller incentivou que Binet retomasse o conceito, mas anos depois o médico francês lançava seu texto sobre o fetichismo no contexto amoroso citando a discussão proposta por Müller.
Alfred Binet apresenta o fetichismo sexual na obra intitulada Le fétichisme dans l’amour (Binet, 1888). De acordo com Binet (1888) o fetichismo poderia ser deslocado, por analogia, da esfera religiosa para a esfera amorosa. Seguindo exatamente a mesma conceituação do fetichismo religioso - a saber, um objeto físico dotado de poder especial e que passa a ser objeto de adoração - na sexualidade, o fetichismo significaria a atração sexual especialmente voltada para uma determinada característica do corpo humano.
Binet, logo na primeira página de seu artigo (1888, p. 1) afirma que a sua produção sobre o fetichismo iria apenas comentar e acrescentar às ideias de Jean-Martin Charcot e Valentin Magnan em 1882, apresentando casos de perversões e inversões do instinto genital, sinônimo para instinto sexual.
Binet chamou de fetichismo os relatos dos casos contemplados entre as páginas 306 e 320 do artigo de Charcot. Os casos descreviam: (a) um homem que se excitava ao ver a região glútea das mulheres; (b) o caso comunicado pelo médico Émile Blanche, sobre um homem que se excitava sexualmente com pés e sapatos femininos; (c) um homem que se excitava sexualmente com a visão de toucas de dormir. Nesse caso em especial, a simples imagem da touca era suficiente para que o homem se excitasse, independente de se a touca fosse usada por um homem ou por uma mulher. Sem a touca ou a memória da touca era impossível para ele ter relações sexuais: “Nos cinco anos em que ficou casado, reduziu-se ao mesmo expediente, permanecia impotente até a memória recordar sua imagem favorita” (Charcot & Magnan, 1882, p. 316); (d) um homem que se excitava por aventais brancos. Assim como o caso anterior, o homem se excitava somente com a visão e o toque do avental, independentemente se usado por homem, mulher ou se preso no varal.
Charcot e Magnan atribuíram essas perversões do instinto à heredi-tariedade mórbida e degeneração das funções físicas e mentais dos homens: “[...] E, no entanto, esses sintomas revelam neste homem a predisposição mórbida que ele mantém de seus pais: alucinações, obsessões de todos os tipos, impulsos, medos imaginários, emotividade extrema, tendências melancólicas, ideias de suicídio; não falta nada” (Charcot & Magnan, 1882, p. 317).2 No artigo, os dois não especulam maiores razões para esses fenômenos, tampouco as razões pelas quais cada paciente tinha como objeto de adoração sexual os objetos específicos apresentados, nem utilizam a nomenclatura fetichismo.
Tomando como ponto de partida o artigo de Charcot e Magnan, Binet (1888) afirma que existiriam dois tipos de fetichismo de amor: grande fetichismo amoroso e pequeno fetichismo amoroso (p. 4). Binet, como ele mesmo aponta na mesma página da referência anterior, cria esses dois conceitos - e acredita que isso daria um interesse excepcional ao assunto - a partir da ideia de grande histeria e pequena histeria, conceitos introduzidos por Charcot e seu pupilo Paul Richer.
A escola de Charcot tentava atenuar a tendência médica dos séculos anteriores de não estabelecer limites muito claros para a diferenciação da histeria e da epilepsia enquanto patologias. Charcot, em sua teoria, se propôs a diferenciar com muita exatidão a epilepsia da histeria para, então, separar a histeria como uma patologia distinta e universal. O grande ataque histérico -ou a grande histeria - era o mais intenso grau da histeria e lançaria luz sobre as outras formas menos acentuadas do ataque histérico (Faber, 1997, p. 275, 277).
Em linhas gerais, como classificação canônica, Richer (1881) descreve quatro estágios que apareceriam em sequência no grande ataque histérico: algumas manifestações iniciais seriam seguidas por fases similares à epilepsia, tais com agitação e contração da musculatura, logo após, atitudes e posturas corporais de trejeitos infantis e bizarros, seguidas pelas atitudes apaixonadas - em sentido de exacerbação, sensualidade e formas intensas de demonstrações afetivas -- e, por fim, os delírios de memória, que corresponderiam aos momentos de estado delirante com falas irracionais e relatos sobre memórias de conteúdos sexuais, sem que fosse possível dizer com certeza se aqueles conteúdos eram de fato memórias ou delírios. A pequena histeria seriam os casos menos acentuados do ataque histérico, passando apenas por alguns dos estágios em ordens distintas.
Sendo assim, para Binet, o pequeno fetichismo seria a atração física que uma pessoa sentisse por alguma peculiaridade da outra. Os casos citados no texto de Binet para ilustrar o pequeno fetichismo são algumas preferências por particularidades estéticas, como achar mais atraente que o par amoroso possua cabelos pretos ou uma estatura mais baixa. Essa manifestação seria natural para os seres humanos, fruto de uma preferência pessoal e serviria como um convite para a aproximação sexual (Binet, 1888).
O grande fetichismo seria uma manifestação patológica, devido à atração exacerbada dispensada à característica preferida: esse traço do corpo humano seria objeto exclusivo do interesse sexual e seria, por si só, suficiente para despertar os sentimentos mais profundos de desejo e as reações físicas de excitação sexual intensa. O caráter patológico resultaria que a intensidade das reações que o fetiche despertaria viesse associada à falta de discernimento sobre a ideia total da pessoa que possuísse aquela característica (Binet, 1888, pp. 3-4).Quando convertidos em grande fetichismo, essas atrações e preferências normais tornariam impossível um encontro amoroso prazeroso e duradouro na ausência daquela característica específica. Binet - assim como Charcot e Magnan - apresenta em seu artigo casos em que o fetiche seria partes do corpo feminino ou peças de vestuário femininos, os casos relatados até então como perversões sexuais.
A partir do artigo de Binet, o médico Krafft-Ebing, em sua Psychopathia Sexualis, apresenta o fetichismo no amor.
Fetichismo na Psychopathia Sexualis
Como aponta Hauser (1992), o estudo da obra de Krafft-Ebing encontra diversos desafios. Destaca-se aqui: ele ter sido um autor muito prolífico, com obras que geralmente tratavam de diversos conceitos com citações a diversos autores; e as diversas mudanças da Psychopathia Sexualis ao longo dos anos, a ponto de a obra continuar a ser editada mesmo após a morte de seu autor.3 É uma tarefa difícil recuperar e avaliar sua bibliografia- e as de todos os autores por ele citados - e as mudanças teóricas entre as edições da Psychopathia.
Une-se a isso o fato de Krafft-Ebing, desde a primeira edição da Psychopathia Sexualis, ter deixado claro que o livro tinha um público-alvo, médicos e juristas. Sendo assim ele não apresentava um trabalho tão didático em termos de explicar as fontes e as raízes dos conceitos que estava usando, ou repetir exaustivamente em cada obra ideias que para ele eram de conhecimento básico dos médicos da época, o que torna retomar os passos de suas influências teóricas uma tarefa de igual dificuldade.
Portanto, neste artigo, para tentar reconstruir o argumento de maneira mais coesa, a obra de Krafft-Ebing é lida como um todo possível, tomando as diversas edições da Psychopathia com mudanças mais profundas sobre o tema e os artigos que o autor escrevia entre elas, nos quais trazia questões relevantes que posteriormente eram incorporadas ou retomadas no texto principal.
Outro ponto é que Krafft-Ebing tomava como influência os argumentos de Darwin no que dizia respeito à autopreservação e à gratificação sexual como instintos fundamentais humanos (Oosterhuis, 2012, p. 133), na aplicação de teorias da seleção natural e seu caso específico, a seleção sexual (Sanday, 2015, p. 887), na dependência que atividades mentais sociais superiores, tais como religião, ética e arte teriam do instinto sexual. Todas essas ideias, comuns entre teóricos do final século XIX, só podem ser entendidas a partir da perspectiva da biologia evolucionária e das diferenciações entre a seleção natural e o caso da seleção sexual (Geyskens, 2005, pp. 25-26). Cita-se principalmente a ideia ainda mais antiga na biologia e medicina, e explicitada por Darwin como de caráter evolutivo, de que o instinto sexual teria como função primordial animar os seres ao coito com o sexo oposto para finalidade da propagação da espécie com uma prole mais apta para sobreviver. A noção dessas influências é essencial, pois esses temas caem na zona dos considerados por Krafft-Ebing como conhecimento prévio do público-alvo de seu livro.
Dentro desse contexto, em 1886, Krafft-Ebing apresentou a ideia de psicopatias sexuais - ou parestesias sexuais cerebrais ou neuroses sexuais parestésicas - como perversões do instinto sexual nas quais o próprio colorido emocional sobre as ideias sexuais seria degenerado em sua natureza. As ideias sexuais que em pessoas normais causariam desgosto ou nojo, provocariam, nas pessoas acometidas por essas afecções, emoções incontroláveis, prazerosas e excitadoras pervertendo a finalidade primordial do instinto sexual para outros alvos que tornariam mais problemático para o encontro sexual resultar em propagação de uma prole apta, portanto: “Com a oportunidade para a satisfação natural do instinto sexual, toda expressão dele que não corresponda ao propósito da natureza - a propagação - deve ser considerada perversa” (Krafft-Ebing, 1886/1898, p. 53).
Desde a terceira edição da Psychopathia, o médico apresenta o fetichismo apenas entre as quatro grande parestesias sexuais, como uma patologia, acompanhada de casos ilustrativos e sem muitas elaborações teóricas (Krafft-Ebing, 1886/1890).
Em 1891, Krafft-Ebing lança um capítulo à parte da Psychopathia, com algumas novas concepções sobre os estudos das quatro patologias gerais sexuais. Ali Krafft-Ebing apresenta o conceito de Fetischismus Eroticus, que foi adicionado ao texto integral da Psychopathia Sexualis. A partir daí, o psiquiatra passa a tratar o fetichismo em momentos distintos de seu texto, como tipos distintos de conceitos.
No fetichismo erótico (1891, p. 52) os fetiches consistiriam em qualidades físicas ou mentais de uma pessoa, ou mesmo apenas objetos que uma pessoa usou. Esses fetiches despertariam ideias associativas intensas sobre a personalidade da pessoa como um todo e, além disso, seriam sempre coloridos com uma viva sensação de prazer sexual.
Para Krafft-Ebing (1891, p. 53) o exame dos fatores que atuam na atração entre um homem e uma mulher e mantêm os vínculos entre eles, revelaria as infinitas possibilidades de escolhas de parceiros sexuais e representaria uma etapa com grande importância psicológica na evolução da sexualidade, pois consistiria no conceito de charme, entendido como sinônimo da atração sexual.
O charme - a razão pela qual uma pessoa se sente mais disposta ao amor e ao sexo com um par específico - envolveria uma associação mental que começaria a partir do encantamento motivado por características que tornariam uma pessoa mais atraente sexualmente do que as outras para um sujeito específico. A atração sexual também se enquadraria na analogia entre o fetisso das religiões e o pequeno fetichismo sexual, tal como tinha sido proposta por Binet: a característica que faria a pessoa mais atraente para outra - ou seja, o charme individual - seria um fetiche.
Esse processo mental seria complexo e, principalmente, individual. Para Krafft-Ebing (1906, p. 19) a experiência mostraria que o acaso controlaria, em grande parte, essa associação mental e que por essa razão a natureza do fetiche seria variável e de acordo com a personalidade do indivíduo, despertando os mais variados tipos de simpatias ou antipatias. Krafft-Ebing (1891, p. 53) compara essa exaltação do todo da pessoa pelo colorido positivo advindo do fetiche com o ditado popular “o amor é cego”. A partir do fetiche reconhecido, divinizar-se-iam como ídolos os amados, em um verdadeiro culto à devoção daquela pessoa, exaltando até outros atributos que objetivamente a pessoa não possuiria. Assim, seria possível entender por que o amor às vezes se pareceria mais com uma paixão ou às vezes como um estado mental formal e excepcional que anuviava as outras percepções externas sobre a pessoa amada e o próprio amor atingiria coisas impossíveis, obliterando a consciência e tornando o feio em bonito ou o profano em sublime.
Mas apesar dessa subjetividade capaz do impossível, ele ressalta, a partir de uma referência ao antropólogo francês Gabriel de Tarde, que os tipos de fetiche poderiam variar tanto entre as pessoas e entre as nações, mas que o ideal de beleza permaneceria o mesmo entre os povos civilizados da mesma era (Krafft-Ebing, 1886/1898, p. 17). Tarde (1890) acreditava que o amor mórbido (sinônimo para perversão do instinto sexual) seria de tipo fisíco e social. No segundo caso, porque a ocorrência de perversões em sociedades decadentes era quase que inevitável, uma vez que o amor normal procuraria os fins vitais de propagar as geração e fins sociais, de continuar a grandeza patriótica, a preservação da família e da pureza das maneiras e a decadência moral diluiria essas metas. Sendo assim, em estado natural, existiriam elementos considerados atraentes que se aproximariam de um ideal de beleza latente no coração dos homens. Esses ideais seriam efeito da hereditariedade, educação e sugestão ambiental das civilizações.
A partir da edição da Psychopathia de 1898, Krafft-Ebing desenvolve mais essa linha de pensamento sobre fetiches que seriam menos marcados pela subjetividade, acrescentando o caso do charme para o sexo feminino. Para mulheres, mais do que uma infinidade de preferências por partes do corpo e depois por algumas qualidades mentais - como no caso dos fetiches masculinos - as qualidades mentais se sobressairiam antes das físicas. O sexo feminino buscaria, em primeiro lugar, qualidades psíquicas, tais como caráter, vontade e retidão, ou seja, características mais ligadas à função masculina de proteção e provimento da prole.4
Essas movimentações teóricas marcam um dos avanços do conceito de fetichismo erótico como estrutural da sexualidade humana. Apesar da subjetividade envolvida no despertar da atração sexual, existiriam traços que funcionariam, por analogia, como fetiches, e que seriam mais atraentes em bases menos subjetivas para ambos os sexos, por estarem ligados à seleção sexual e à propagação, nas palavras do próprio Krafft-Ebing (1886/1898): “O fetichismo do corpo e da alma não deixa de ter importância na propagação; favorece a seleção do mais apto e a transmissão das virtudes físicas e mentais” (p. 20).
A analogia do fetichismo serviria, portanto, para a própria finalidade do instinto sexual, uma vez que os fetiches seriam orientados a buscar o par amoroso mais apto, exercendo o papel de gatilho do encontro sexual. Com isso, dentro da articulação de conceitos apresentados por Krafft-Ebing, o fetichismo erótico passaria a ser o núcleo inicial de um processo que resultaria no ato sexual, na própria emoção do amor e, mais além, na própria possibilidade de propagação da espécie, onde todos seriam fetichistas eróticos por natureza. Isso no caso de que algum evento não desviasse a parte do processo no qual a impressão do fetiche seria suprimida.
Krafft-Ebing (1888) parte do pressuposto de que todas as doenças mentais, incluindo as patologias sexuais, teriam suas raízes na vida mental normal do ser humano. Porém, devido às degenerações e maus hábitos sexuais como a masturbação, esse estado mental natural sexual passaria a ser pervertido. O fetichismo patológico (Krafft-Ebing, 1891) decorreria do fetichismo erótico, com base em uma disposição mórbida degenerativa, principalmente hereditária.
Na patologia fetichismo, todo o interesse sexual estaria concentrado na impressão causada por apenas uma parte da pessoa do sexo oposto, de modo que todas as outras impressões desapareceriam ou se tornariam indiferentes. A masturbação seria priorizada e o coito, quando efetivamente buscado, também priorizaria a visão ou o contato com o fetiche. O coito normal poderia, no entanto, ser possível para um fetichista mesmo longe do seu objeto de fetiche, mas de qualquer maneira, sem o fetiche, seria sempre insatisfatório e exaustivo.
Para melhor compreensão do conceito de perversão sexual, é importante ressaltar que o fetichismo patológico, em suas formas mais extremas, seria uma manifestação de caráter egoísta. A palavra egoísta aqui tem sentido único de sintetizar a ideia de que nas perversões não seria necessário o envolvimento de outra pessoa para que qualquer ato sexual fosse realizado, pois os atos sexuais mais satisfatórios seriam, na maior parte dos casos, constituídos pela ação solitária da masturbação e gasto exacerbado de vita sexualis com atividades sem possibilidade de procriação, pervertendo portanto, o instinto sexual de sua finalidade natural e transformando o ato sexual numa mera obtenção de prazer físico. A gratificação corporal do sexo, em seu estado natural, era apenas uma ferramenta da natureza para animar os seres à propagação da espécie, sendo o próprio instinto de propagação de caráter altruísta (Maudsley, 1876, p. 398). Esse era, na história da medicina, um pilar central da ideia de comportamentos sexuais desviantes. Os rudimentos dessa ideia são muito anteriores a Binet, Krafft-Ebing e ao influente psiquiatra inglês Henry Maudsley, citado anteriormente, e estavam presentes desde os escritos de médicos clássicos que traziam os males físicos e mentais que o engajamento exacerbado em qualquer atividade sexual poderia causar para os seres (Hare, 1962) pelo desperdício do líquido seminal, principalmente em atividades sexuais solitárias e improdutivas (Tissot, 1756). Nos discursos sobre sexualidade desviante no século XVIII - majoritariamente explicando os males da masturbação e ainda sem limites claros entre o que era considerado ciência e questões religiosas e sociais - acreditava-se que o desperdício do líquido seminal eventualmente tornaria impossível a procriação, sendo uma ação, em última instância, egoísta com as próprias Leis da Natureza.
O fetichismo patológico, cujo núcleo faria parte desse processo natural, e dito altruísta, do encontro sexual, seria a forma de perversão mais ilustrativa de conceitos mais clássicos que ajudaram a construir a ideia de perversão sexual, pela sua peculiaridade de tomar o objeto como o todo do desejo sexual e necessitar somente dele sem a ideia ou a presença de um corpo humano com muito mais frequência que qualquer outra psicopatia sexual conhecida até então. Quanto mais suficientes para o prazer e mais distantes os fetiches fossem dos corpos humanos, mais a associação patológica teria sido gerada pelo prazer egoísta e mais completos seriam os quadros patológicos.
Quanto aos níveis de degeneração patológica do fetichismo, Krafft-Ebing acabou por traçar uma hierarquia mais clara e com mais possibilidades que Binet. Os casos mais leves seriam os fetiches que envolvessem partes do corpo feminino explicadas anteriormente por Charcot, Magnan e Binet. No domínio patológico, as mesmas partes do corpo tornar-se-iam os únicos objetos de interesse sexual, formando a primeira categoria: o fetichismo por partes do corpo feminino (Krafft-Ebing, 1886/1894, p. 157). Essa categoria seria a de menor grau de degeneração e maior preservação da faceta altruísta do instinto, envolveria mais casos de encontros sexuais entre pares e compreenderia os casos em que o coito só pudesse ser sentido como satisfatório - ou, em alguns casos, possível - com a visão do objeto do fetiche. Esse fetichismo não implicaria necessariamente que a parte do corpo fosse considerada esteticamente bela. Haveria casos em que os defeitos corporais poderiam se tornar fetiches e a falta de uma parte do corpo também poderia ser objeto de fetiche. Nas primeiras edições da Psychopathia Sexualis que passaram a abordar o fetichismo, Krafft-Ebing menciona brevemente o fetichismo por alguma parte do corpo faltante como fetichismo negativo (Krafft-Ebing, 1886/1894, p. 162). Depois da sétima edição, no entanto, essa menção desaparece dando lugar para a subcategoria fetichismo por defeitos corporais.
Tomando como base o número de casos pertencentes a cada categoria que aparecia nas cortes criminais, para o autor o crime mais comum dentro dos casos de fetichismo apareceria na forma dos saqueadores de cabelos. Saqueadores de cabelos eram homens que, sem consentimento, cortavam ou arrancavam cabelos de meninas e mulheres, sem ferir gravemente as vítimas. O cabelo era posteriormente usado para masturbação.
A partir dessa categoria dos saqueadores de cabelo, é possível retraçar o percurso que, na teoria de Krafft-Ebing, conduz, por abstração, a ideia do corpo da mulher do fetiche propriamente dito, representando o primeiro passo para patologias mais graves. Isso porque os saqueadores de cabelos, apesar de ainda terem seu fetiche entrelaçado à ideia de que aquele cabelo pertença a uma mulher, já conseguiriam amar o cabelo apenas como um objeto independente, sem que ele estivesse ligado fisicamente ou, mesmo, metaforicamente à totalidade do corpo feminino.
A próxima categoria apresentada por Krafft-Ebing corresponde ao fetichismo por artigos do vestuário feminino. Na terceira forma dessa categoria, a mais frequente e mais patológica, o interesse sexual estaria tão concentrado nesse determinado artigo de vestuário feminino, que a luxúria despertada pelo objeto ficaria totalmente separada da ideia da forma e dos componentes do corpo feminino, tal qual o caso dos aventais brancos.
A próxima categoria inclui o fetichismo por materiais especiais (Krafft-Ebing, 1886/1894, p. 134), tais como peles, lãs e cetim. A diferença entre essa categoria e a anterior seria a total falta de relação direta entre o fetiche e as características sexuais do corpo humano que as peças de roupa ainda conservariam.
A última categoria de fetichismo patológico - e a mais grave, segundo o autor - seria a zoophilia erotica (Krafft-Ebing, 1898, p. 181). Esses fetichistas se sentiam sexualmente atraídos por animais, de modo que a relação entre o fetiche e o corpo humano teria se desvanecido completamente. Na forma de zoofilia erótica, não ocorreriam relações sexuais efetivas com animais, nem desejadas, nem consumadas.5
O caráter descritivo da apresentação acima, que acompanha o próprio estilo descritivo de Krafft-Ebing, serve para ressaltar que o fetichismo patológico era uma patologia também emblemática sobre os limites da normalidade e degeneração. Enquanto as categorias das outras patologias são apresentadas como pendulares, com estados de degeneração internos que poderiam oscilar entre um quadro sintomático e outro, o fetichismo é apresentado de maneira mais linear, como categorias de gradações bem marcadas, desde sua naturalidade até categorias como a zoofilia, que mostrariam a total degeneração do instinto sexual, sendo complicado traçar até mesmo qual seria a base subjetiva para um fetiche tão distante da ideia natural do alvo instinto sexual.
Fetichismo e suas relações com as outras grandes patologias
Em uma nota de rodapé pequena, mas vital para as considerações de Krafft-Ebing (1886/1894, p. 160) o autor cita a ideia de Binet de que toda perversão sexual, sem exceção, dependeria de um acidente agindo sobre um sujeito no qual a predisposição mórbida causaria uma ligação anormal entre um dado específico (que viria a ser o fetiche) e a potência do desejo sexual.6
Dentro dessa concepção, invariavelmente todas as perversões sexuais seriam manifestações sempre adquiridas. E nessa situação argumentativa, todas as perversões sexuais seriam formas análogas de fetichismo pelos mais variados fetiches, tais como pessoas do mesmo sexo ou agressividade sexual.
Kraffft-Ebing, por sua vez, acreditava na existência de perversões com casos principalmente congênitos, como o sadismo e o masoquismo; mistas, com casos em igual proporção de adquiridos e congênitos, como a inversão sexual, e o fetichismo como única perversão sexual com casos apenas adquiridos, sendo assim a única totalmente explicada pelo acidente. A situação metodológica criada aqui permeou as considerações sobre perversão desse ponto em diante na obra do autor.
A partir de uma leitura das obras completas de Krafft-Ebing é possível argumentar se, dentro da teoria do autor, seria possível um mesmo indivíduo ser acometido por mais de uma das patologias gerais. Tendo em mente que a própria Psychopathia era a tentativa do autor de fornecer um manual detalhado para sanar dificuldades e estabelecer diagnósticos precisos para os júris, sem margem para a dúvida entre uma situação e outra, a posição aqui defendida é a de que ele permaneceu ambíguo sobre essa questão. Em suas publicações não houve elaboração explícita sobre duas patologias sexuais gerais concorrendo em igual proporção na mesma pessoa e nem recomendação para que o médico jurista testemunhasse sobre essa possibilidade. Pode-se entender que o autor usava a noção de elementos patológicos: uma patologia poderia apresentar manifestações clínicas de outras ou ter características fundamentais complementares, porém, apenas uma patologia geral seria a dominante.7
O fetichismo era a mais comum dessas tendências nas outras três patologias.
Criado por Krafft-Ebing em 1891, o conceito masoquismo designa a perversão sexual na qual o instinto teria como objeto sexual a humilhação pelas mãos da pessoa amada. Teve sua primeira menção estruturada na literatura médica em relação à autoflagelação religiosa. Ao contrário do nascimento dentro da religião do fetichismo, a ideia dessas flagelações religiosas aparecia num contexto não completamente alheio à sexualidade, devido à ligação entre o fanatismo religioso, entendido como sentimento de adoração irracional e exagerado pela divindade, e a sensação sexual física do ato violento. A sensação do ato violento de penitência seria, inconscientemente, vivida como plenitude e prazer pois o fanatismo religioso sempre traria em si um sentimento inconsciente de amor sexual pela divindade (Meibom, 1665).
As primeiras aparições do fetichismo patológico na Psychopathia foram como manifestações secundárias em casos masoquistas. A própria criação da categoria dos fetiches por materiais especiais teve inspiração, assim como o próprio nome da patologia masoquismo, na obra Venus in Furs de Leopold von Sacher-Masoch.
O sadismo, por sua vez, apareceu na literatura sob a forma dos atos sexuais criminosos praticados por estupradores e assassinos em série, até ser nomeada por Krafft-Ebing em 1891. Assim como o masoquismo, Krafft-Ebing (1891) traça a perversão a partir do componente natural e evolutivo da agressividade. A condição degenerativa criava uma relação não natural entre a luxúria e a crueldade, tornando esta última o alvo principal do instinto sexual. O psiquiatra homenageou o Marquês de Sade com o nome da perversão. Os casos de sadismo com manifestações fetichistas revelariam uma faceta naturalmente criminosa que Krafft-Ebing acreditava que o fetichismo patológico em si mesmo não teria, expandindo mais as possibilidades do encontro sexual e da impressão que o fetiche causaria, podendo por vezes resultar em uma saída incomum, na qual o fetichista, apesar da devoção extrema ao fetiche, sentiria desejos de destruí-lo.
O fetichismo também apareceu como um sintoma relacionado à patologia geral da inversão sexual - ou homossexualidade, quando o instinto tomaria como objeto sexual o par do mesmo sexo. Em alguns casos, homossexuais apresentariam tendências e manifestações clínicas associadas de fetichismo em relação ao vestuário e partes do corpo do sujeito do mesmo sexo.
A razão pela qual o fetichismo seria a mais frequente entre as tendências em outras patologias nunca foi explicada satisfatoriamente por Krafft-Ebing. Ele também não elaborou de maneira definitiva em que momento dentro do colorido patológico pré-existente um acidente associaria a excitação sexual com um fetiche dentro de um contexto já adoecido. Nem como seriam diferenciadas as patologias dominantes em cenários patológicos menos explícitos, sendo esse um problema que permeou suas últimas elaborações enquanto vivo.8
Krafft-Ebing recorre a uma tentativa: os fetichistas corporais seriam monstrum per defectum, no sentido de o desviante da sexualidade seria o que não os afeta, pois a falta de interesse pelas outras partes além do fetiche é caráter anormal da perversão. Enquanto os sádicos e masoquistas seriam monstrum per excessum, uma vez que a exacerbação da raiz natural do que os afeta é o anormal da perversão.
Krafft-Ebing (1891, p. 32) tenta traçar subcategorias limítrofes para explicar elementos masoquistas em fetichistas e elementos fetichistas em sádicos. Para o masoquismo, a subcategoria dos fetichistas por sapatos. Para o autor, esses teriam, de maneira inconsciente, um masoquismo latente, pois ser pisoteado e lamber sapatos sujos seriam humilhações recorrentes em diversos casos de masoquismo, com fortes indícios de excitação pela humilhação que as ideias atreladas ao sapato trariam, mas o sapato teria se tornado um fetiche independente da influência masoquista. Para o sadismo, em certa medida, sadismo com objetos inanimados em vez de pessoas humanas, sendo esses objetos análogos ao fetiche.
A pederastia - ou seja, casos em que homens sem a perversão sexual da homossexualidade9 tivessem relação com outros homens ou meninos - e a sedução de menores - adultos abusadores de crianças menores de 14 anos - representavam os desafios conceituais para o autor, pois ele mesmo relatou a dificuldade de separar quando os abusadores de menores de 14 anos seriam sujeitos sem nenhuma patologia ou quando seriam casos dominados por outras patologias. Por essa razão ele tinha alguns casos não publicados até que encontrasse elementos mais definitivos (Krafft-Ebing, 1896).
Na tentativa de elaborar essa questão, no ano de 1896, Krafft-Ebing cunhou o termo Paedophilia erotica, a perversão psicossexual de disposição mórbida em que crianças e adolescentes de ambos os sexos, antes da idade da puberdade, eram tomados como objeto sexual, podendo ser vítimas de abusadores de qualquer um dos sexos (Krafft-Ebing, 1896, p. 249), hoje comumente conhecida como pedofilia.
Desde a primeira publicação, Krafft-Ebing ligou a pedofilia e seu par, a gerontofilia - atração sexual por pessoas de idade avançada - como potenciais fenômenos fetichistas. Na primeira versão do artigo, Krafft-Ebing apresenta casos de fetichistas de outras categorias, como os saqueadores de cabelos, que teriam se tornado paedophilos mais tarde na vida, por evento de associação, como nos casos do fetichismo clássico. Nesses casos, muito mais claramente do que quaisquer outros apresentados até então, o autor admite que uma outra influência que teria modificado o desenho de outro comportamento sexual pervertido original através de uma impressão mais profunda no colorido emocional previamente degenerado, mas mesmo nesses casos um evento teria suprimido o outro e seriam casos de uma mesma patologia. Em 1901, Krafft-Ebing assume abertamente ambas como subtipos do fetichismo.
Para tanto, Krafft-Ebing parte do seu próprio pressuposto sobre a duração do instinto sexual. O instinto sexual existiria durante toda a vida sexual do sujeito, mas teria variação no nível e na intensidade ao longo desse período. Krafft-Ebing assume a divisão que separa a potência sexual em dois tipos, cada um com funções distintas: a potentia generandi, potência que propicia a procriação, a continuação da espécie, que duraria até os sessenta e dois anos no máximo em um homem e até a menopausa na mulher; e a potentia coeundi, potência de coabitar, de conseguir manter relações sexuais que poderia ser encontrada até em pessoas idosas. Os alvos sexuais da gerontofilia e da pedofilia estariam fora dos períodos de atividade da potentia generandi, caracterizando esses interesses como desviantes, nos quais o fetiche estaria justamente nas alterações da idade.
Fuchs, a partir de 1907 acrescenta a gerontofilia ao capítulo do fetichismo patológico, como fetichismo por idade, tornando o fetichismo uma das psicopatias sexuais mais modificadas ao longo das edições. A pedofilia, porém, continuou como uma perversão própria, mas de tendência fetichista (Krafft-Ebing, 1886/1923).
Essas criações de novas possibilidades de objeto de fetiche foram as últimas alterações do fetichismo na Psychopathia Sexualis, tornando assim esse conceito um dos mais modificados dentro da história da obra.
Considerações finais
A teoria de Krafft-Ebing, que começou como uma descrição das degenerações do instinto sexual, foi gradativamente se relativizando ao longo dos anos para uma teoria da sexualidade humana. O fetichismo, como aponta Oosterhuis (2000, p. 284) foi um dos pontos pelos quais Krafft-Ebing tentou entender a atração sexual em geral, e pelo qual ele conseguiu traçar com mais clareza a ideia da sexualidade como uma instância humana com muitas facetas além das descritas como anormais. A própria dificuldade do autor em diferenciar alguns casos do fetichismo, o aparecimento constante do fetichismo em outras perversões sexuais e o conceito de fetichismo erótico são fortes indicadores da elaboração pela qual o conceito e seus limites passavam constantemente.
Como se argumentou no artigo, o fetichismo começou como um conceito fácil de ser identificado como patológico e emblemático do que eram as definições de perversões sexuais aplicadas na prática do consultório médico. Ainda assim foi exaustivamente trabalhado pelo autor.
Foi a única patologia a ser explicada por ele em termos de uma naturalidade constitucional humana, com parte ativa em todo o longo processo que possibilitaria o encontro sexual dos seres até sua faceta patológica. Todas as outras patologias firmavam suas explicações a partir de suas facetas desviantes.
Considera-se aqui o fetichismo erótico uma forma ainda mais natural da constituição humana que o pequeno fetichismo de Alfred Binet, pois Krafft-Ebing estrutura essa forma originária de fetichismo em uma teoria completa sobre o início de um processo que favoreceria a própria propagação da espécie, devido à generalidade original de certos tipos de fetiches. O fetichismo erótico pode ser entendido, então, como o passo inicial e mais geral do processo mental de seleção sexual do par amoroso pela qual a própria função do instinto sexual dos humanos tem início.
Nenhuma outra patologia sexual, apesar de todas serem explicadas como tendo raízes naturais na vida humana, teve o mesmo status de conceito geral da sexualidade que o fetichismo na teoria de Krafft-Ebing, nem mesmo o par sadismo e masoquismo, também citado por Oosterhuis. Apenas o fetichismo tinha um papel ativo e positivo, fazendo parte do próprio encontro amoroso como um todo, e sua patologia seria a desvirtuação desse caráter positivo. As outras patologias teriam um papel sempre negativo para o encontro amoroso, pois nasciam de raízes diversas, não ligadas à sexualidade.
Sadismo e masoquismo, com seus pilares congênitos nunca questionados na Psychopathia Sexualis, estiveram sempre confinados como perversões que nada poderiam trazer em si mesmas para a vida sexual humana enquanto manifestações fisiológicas, uma vez que suas próprias raízes naturais seriam a agressividade e o sentimento de excitação tátil da dor, fatores destrutivos que jamais poderiam ser ligados a nada que favorecesse as relações de amor. A homossexualidade, ainda que finalmente retirada por Krafft-Ebing em 1901 das degenerações - e apresentada em um dos seus últimos artigos como uma variação do instinto sexual - também não, pois seus encontros em nenhuma configuração resultariam em um encontro amoroso dito natural.
O próprio estilo de categorização que Krafft-Ebing conferiu ao feti-chismo o destaca. A partir da concepção do fetichismo erótico, seu papel no processo primordial do instinto sexual até a perversão de suas raízes - que seria a única degenerada a ponto de nem considerar o outro ser humano para o ato sexual - é possível perceber um resumo, traduzido em manifestações clínicas, da própria ideia de perversão sexual do autor: a raiz natural, sua degeneração e a partir daí os gradativos desenhos de como as psicopatias sexuais poderiam ter alvos infinitos e cada vez mais distantes da finalidade natural do instinto sexual. Nenhuma das outros patologias apresentou uma elaboração de ideias tão organizada nesse sentido.
Apesar do caráter por muitos anos normativo da teoria de Krafft-Ebing, sua visão das diversas modalidades daquilo que considerava desvios do instinto sexual não pode ser considerada como um todo monolítico e homogêneo. A análise detalhada de seus argumentos permite descobrir nuances que conferem um aspecto mais complexo e multifacetado à sua teoria. Teoria essa que procurava desvendar os fatores biológicos, socioculturais e históricos que atuavam na composição do fenômeno total da sexualidade humana. Por isso a abordagem do fetichismo é, como procurou ser demonstrado aqui, crucial.
A partir da noção de Krafft-Ebing do fetichismo como um dado estrutural, as teorias sexuais e psicológicas a partir dele expediram o fetichismo para além de uma patologia.
Agradecimentos: Este trabalho é parte da pesquisa de doutorado, Instinto e objeto sexual nas teorias de Kraftt-Ebing, Albert Moll e Sigmund Freud. Agradecemos à CAPES pelo financiamento da pesquisa, ao programa de pós-gradução de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e à Universidade de Durham (Reino Unido) pela possibilidade de concretização deste projeto. Agradecemos também aos professores dr. Andreas Holger Mahele e dr. Lutz Sauerteig pelas valiosas contribuições.
-
1
A partir dessa palestra, outras foram financiadas anualmente pela Hibbert Trust ficando conhecidas como as Hibbert Lectures.
-
2
O termo degeneração e suas variações se referem ao conceito de teoria da degeneração. Para Benedict Morel (1857), em linhas gerais, a degeneração era uma deterioração progressiva, hereditária, mórbida e irreversível de componentes fisicos e mentais nos sujeitos. Sintomas vistos como patológicos, como era o caso dos comportamentos sexuais nas ditas perversões, eram sinais de degeneração.
-
3
Os psiquiatras Alfred Fuchs e Albert Moll, colaboradores e amigos de Krafft-Ebing, continuaram a editar a obra.
-
4
Esse é o único momento que o fetichismo no sexo feminino é abordado. Krafft-Ebing reconhecia não ter elementos da patologia em mulheres, apesar de relatar casos de manifestações fetichistas patológicas em mulheres com outras patologias gerais. A teoria da sexualidade desviante do médico era pensada e relatada a partir do sexo masculino. Para o autor, em termos de psicologia sexual, o sexo feminino era superior ao masculino, pelo apego maior aos sentimentos refinados da sexualidade e do amor.
-
5
A forma de perversão sexual que se caracterizaria pelo desejo e pela consumação de relações sexuais com animais foi denominada por Krafft-Ebing como zooerastia (Krafft-Ebing, 1886/1898, p. 341) um quadro perverso independente e com causas próprias, geralmente relacionada com o fetichismo. O autor reconhece que pessoas sem qualquer degeneração mental, mas com fraquezas em suas noções morais e de caráter, poderiam cometer a perversidade da bestialidade, a relação sexual com animais por motivos diversos do imperativo de uma perversão do instinto sexual.
-
6
Binet falava nesse trecho sobre a hiperestesia como predisposição principal, ou seja, uma condição mórbida que exacerbava a níveis anormais a disposição sexual.
-
7
Isso fica mais claro para as perversões sadismo e masoquismo. Krafft-Ebing as apresenta como complementares, de mesma raíz, mas com saídas diferentes. Mas, mesmo em casos de sintomas concorrentes entre as duas patologias, a perversão original seria a mais acentuada. Não havia certeza científica da existência de sujeito sádico-masoquista em mesma proporção, mas de elementos sadistas-masoquistas em casos das patologias gerais, mas também nunca a ponto de concorrer com o diagnóstico principal.
-
8
Tomando a ideia do psiquiatra sobre uma raiz natural na constituição humana para as perversões sexuais é possível especular que o fetichismo fosse a tendência mais presente por ter a raiz mais estrutural de todas, o processo do charme. Em um contexto previamente afetado por degenerações, alguma marca da degeneração do processo de atração sexual poderia se converter em sintoma. Mas essas razões permanecem ainda muito especulativas.
-
9
Krafft-Ebing fazia uma diferença entre perversão sexual e perversidade sexual: Nessa última, atos sexuais desviantes eram cometidos por sujeitos imorais, mas sem degenerações físicas e psíquicas, portanto fora dos quadros clínicos da perversão sexual. Exemplo: a homossexualidade era uma perversão. O ato da pederastia, crime para o código penal, poderia ser praticado como consequência da inversão sexual ou por um homem não homossexual. K. Ebing recomendava que o psiquiatra jurídico testemunhasse a favor de que o sujeito sem patologia fosse condenado como criminoso e de que o acometido pela perversão fosse absolvido de pena prisional e enviado para tratamento.
-
Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.
-
Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior - Capes (Brasilia, DF, Br) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br) / This work is supported by Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior - Capes (Brasilia, DF, Br) and by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br)
Referências
- Binet, A. (1888). Le fétichisme dans l’amour. In A. Binet (Ed). Études de psychologie expérimentale (pp. 1-200). Paris, FR: Octave Doin.
- Bry, T. J. (1604). Indiae Orientalis (Band 6) Frankfurt, GER: Wolfgang Richter Editors.
- Charcot, J. M., & Magnan, V. (1882). Inversion du sens génital. Archives de neurologie, 3(4), 296-322.
- De Brosses, C. (1988). Du culte des dieux fétiches ou parallèle de l’ancienne religion de l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie Paris, FR: Fayard.
- Faber, D. (1997). Jean-Martin Charcot and the Epilepsy/Hysteria Relationship. Journal of the History of the Neurosciences, 6(3), 275-290
- Geyskens, T. (2005). Our Original Scenes: Freud’s Theory of Sexuality Lauven, BE: Lauven University Press.
- Hare, E. H. (1962). Masturbatory Insanity: The History of an Idea. Journal of Mental Science, 108(452), 1-25.
- Hauser, R. (1992). Sexuality, Neurasthenia and the Law: Richard von Krafft-Ebing (1840-1902) (Tese de Doutorado não publicada) University College London, Londres.
- Lanteri-Laura, G. (1994). Leitura das perversões: história de sua apropriação médica Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
- Krafft-Ebing, R. (1888). Lehrbuch der Psychiatrie Sttutgart, GER: Enke.
- Krafft-Ebing, R. (1890). Psychopathia Sexualis (3rd ed.). Stuttgart, GER: Enke. (Trabalho original publicado em 1886).
- Krafft-Ebing, R. (1891). Neue Forschungen: Auf Dem Gebiet Der Psychopathia Sexualis Stuttgart, GER: Enke.
- Krafft-Ebing, R. (1894). Psychopathia Sexualis (7th ed.). Stuttgart, GER: Enke. (Trabalho original publicado em 1886).
- Krafft-Ebing, R. von (1896). Ueber Unzucht mit Kindern und Pädophilia erotica. Friedreich’s Blätter für gerichtliche Medizin und Sanitätspolizei, 47(4), 261-83.
- Krafft-Ebing, R. (1898). Psychopathia Sexualis (10th ed). Stutgart, GER: Enke.(Trabalho original publicado em 1886).
- Krafft-Ebing, R. (1901). Neue Studien auf dem Gebiete der Homosexualität. Magnus Hirschfeld Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen, 1(3), 1-36.
- Krafft-Ebing, R. (1906). Psychopathia Sexualis Stuttgard, GER: Enke.
- Krafft-Ebing, R. (1923). Psychopathia Sexualis Paris, FR: Payot. (Trabalho original publicado em 1886).
- Meibom, J. (1665). De flagrorum usu in re veneria Londr, UK: Sem nome da editora.
- Maudsley, H. (1876). Physiology of Mind Londres, UK: The MacMillan CO.
- Morel, B. Traité des dégénérescences Paris, FR: Bailliere.
- Müller, M. (1901). Lectures on the Origin and Growth of Religion Londres, UK: Longamns, Green &Co. (Trabalho original publicado em 1878).
- Oosterhuis, H. (2000). Stepchildren of nature: Krafft-Ebing, psychiatry and the making of sexual identity Chicago, Ill: University of Chicago Press.
- Oosterhuis, H. (2012). Sexual modernity in the works of Richard von Krafft-Ebing and Albert Moll. Medical History, 56(2), 133-155.
- Pereira, M. E. C. (2009, junho). Krafft-Ebing, a Psychopathia Sexualis e a criação da noção médica de sadismo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 12(2), 379-386.
-
Pires, R. B. W. (2011). Pequena história da ideia de fetiche religioso: de sua emergência a meados do século XX.Religião & Sociedade, 31(1), 61-95.https://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872011000100004
» https://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872011000100004 - Richer, P. (1891). Études cliniques sur l’Hystéro-épilepsie ou Grande Hystérie Paris, FR: Adrien Delahaye et Emile Lecrosmer, Editeurs.
- Sanday, P. R. (2015). Rape and Sexual Coercion. International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, 2(19), 887-891.
- Tarde, G. (1890). L’amour morbide. Archives de l’anthropologie criminelle, 5(30), 585-595.
- Tissot, A. D. S (1756). L’onanisme Lausanne: M. Chapilo.
- Weeks, J (1985). Sexuality and its discontents: meanings, myths & modern sexualities London, UK: Routlegde & Kegan Paul.
-
Editora/Editor: Profa. Dra. Ana Maria G. R. Oda
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Abr 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2021
Histórico
-
Recebido
05 Fev 2020 -
Revisado
18 Jun 2020 -
Aceito
11 Out 2020