Open-access Anorexia nervosa e transmissão psíquica transgeracional

Anorexia nervosa und generationsübergreifende psychische Übertragung

Anorexia nervosa and transgenerational transmission

Anorexie nerveuse et transmission psychique transgénérationnelle

La anorexia nerviosa y la transmisión transgeneracional

Resumos

O estudo investigou a transmissão psíquica em três gerações de mulheres de uma família - avó, mãe e filha, esta última com diagnóstico de anorexia nervosa. Utilizou-se como estratégia metodológica o estudo de caso familiar e o enfoque da transmissão psíquica para análise dos dados. Perceberam-se dificuldades e sofrimentos decorrentes de conteúdos psíquicos transmitidos sem elaboração na sucessão intergeracional, fomentando relações truncadas e conflagradas, veladas por segredos familiares e empobrecimento subjetivo.

Anorexia nervosa; relações familiares; relação entre gerações


In dieser Studie wurde die psychische Übertragung über drei Generationen von Frauen einer Familie untersucht - Großmutter, Mutter, Tochter, letzte mit Diagnose von Anorexia nervosa. Die methodologische Strategie der Studie bestand aus der Untersuchung eines Familienfalls, mit Schwerpunkt auf der psychischen Übertragung zurDatenuntersuchung. Es wurden Schwierigkeiten und Leiden infolge von psychischen Inhalten festgestellt, die unverarbeitet generationsübergreifend vermittelt worden sind und Beziehungsstörungen und aufgestachelte Beziehungen gefördet haben, die von familiären Geheimnissen und subjektiver Verarmung verdeckt worden waren.

Anorexia nervosa; Familienbeziehungen; Generationsbeziehungen


This study consists of an investigation into psychic transmission in three generations of women in a single family - grandmother, mother and daughter, the last diagnosed with anorexia nervosa. The family case study approach was used as a methodological strategy, and the psychic transmission theory for analyzing data. Difficulties and suffering resulting from psychic contents transmitted through intergenerational relationships without being worked through brought about partial and conflictive relationships, veiled by family secrets and the impoverishment of subjectivity.

Anorexia nervosa; family relations; intergenerational relations


Notre étude porte sur la transmission psychique entre trois générations de femmes de la même famille: la grand-mère, la mère et la fille, celle-ci ayant été diagnostiquée d'anorexie nerveuse. On a utilisé comme stratégie méthodologique l'étude de cas de la famille, ainsi que la théorie de la transmission psychique pour analyser les données. Notre recherche a révélé des difficultés et des souffrances qui résultent de contenus psychiques transmis sans élaboration dans la succession intergénérationnelle, ce qui favorise le développement de rapports mutilés et conflictuels, voilés par des secrets de famille et par l'appauvrissement subjectif.

Anorexie; rapports de famille; rapports entre les générations


El estudio investigó la transmisión psíquica en tres generaciones de una familia de mujeres - abuela, madre e hija, esta última con diagnóstico de anorexia nerviosa. Fue utilizado como método para el análisis de datos el estudio de caso familiar y el enfoque de la transmisión psíquica. Se percibió que las dificultades y los sufrimientos procedían de contenidos psíquicos no elaborados transmitidos en la sucesión intergeneracional, que fomentaron relaciones truncadas y devastadas, ocultadas por secretos de familia y empobrecimiento subjetivo.

Anorexia nervosa; relaciones familiares; relaciones entre generaciones


ARTIGOS

Anorexia nervosa e transmissão psíquica transgeracional

Anorexia nervosa and transgenerational transmission

Anorexie nerveuse et transmission psychique transgénérationnelle

La anorexia nerviosa y la transmisión transgeneracional

Anorexia nervosa und generationsübergreifende psychische Übertragung

Élide Dezoti ValdanhaI; Fabio Scorsolini-CominII; Manoel Antônio dos SantosIII

IPsicóloga e Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - CAPES; Pesquisadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS-USP-CNPq; Psicóloga do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares - Grata, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br)

IIProfessor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e do Trabalho da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM (Uberaba, MG, Br); Doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br); Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS-USP-CNPq

IIIProfessor Associado 3 do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br); Livre-docente em Psicoterapia Psicanalítica pela USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br); Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS-USP-CNPq. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1C; Psicólogo do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares - Grata, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Élide Dezoti Valdanha LEPPS - Depto. de Psicologia - FFCL Av. Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre 14040-901 Ribeirão Preto, SP, Br E-mail: elidevaldanha@usp.br

RESUMO

O estudo investigou a transmissão psíquica em três gerações de mulheres de uma família - avó, mãe e filha, esta última com diagnóstico de anorexia nervosa. Utilizou-se como estratégia metodológica o estudo de caso familiar e o enfoque da transmissão psíquica para análise dos dados. Perceberam-se dificuldades e sofrimentos decorrentes de conteúdos psíquicos transmitidos sem elaboração na sucessão intergeracional, fomentando relações truncadas e conflagradas, veladas por segredos familiares e empobrecimento subjetivo.

Palavras-chave: Anorexia nervosa, relações familiares, relação entre gerações

ABSTRACT

This study consists of an investigation into psychic transmission in three generations of women in a single family - grandmother, mother and daughter, the last diagnosed with anorexia nervosa. The family case study approach was used as a methodological strategy, and the psychic transmission theory for analyzing data. Difficulties and suffering resulting from psychic contents transmitted through intergenerational relationships without being worked through brought about partial and conflictive relationships, veiled by family secrets and the impoverishment of subjectivity.

Key words: Anorexia nervosa, family relations, intergenerational relations

RESUMÉ

Notre étude porte sur la transmission psychique entre trois générations de femmes de la même famille: la grand-mère, la mère et la fille, celle-ci ayant été diagnostiquée d'anorexie nerveuse. On a utilisé comme stratégie méthodologique l'étude de cas de la famille, ainsi que la théorie de la transmission psychique pour analyser les données. Notre recherche a révélé des difficultés et des souffrances qui résultent de contenus psychiques transmis sans élaboration dans la succession intergénérationnelle, ce qui favorise le développement de rapports mutilés et conflictuels, voilés par des secrets de famille et par l'appauvrissement subjectif.

Mots clés: Anorexie, rapports de famille, rapports entre les générations

RESUMEN

El estudio investigó la transmisión psíquica en tres generaciones de una familia de mujeres - abuela, madre e hija, esta última con diagnóstico de anorexia nerviosa. Fue utilizado como método para el análisis de datos el estudio de caso familiar y el enfoque de la transmisión psíquica. Se percibió que las dificultades y los sufrimientos procedían de contenidos psíquicos no elaborados transmitidos en la sucesión intergeneracional, que fomentaron relaciones truncadas y devastadas, ocultadas por secretos de familia y empobrecimiento subjetivo.

Palabras clave: Anorexia nervosa, relaciones familiares, relaciones entre generaciones

ZUSAMMENFASSUNG

In dieser Studie wurde die psychische Übertragung über drei Generationen von Frauen einer Familie untersucht - Großmutter, Mutter, Tochter, letzte mit Diagnose von Anorexia nervosa. Die methodologische Strategie der Studie bestand aus der Untersuchung eines Familienfalls, mit Schwerpunkt auf der psychischen Übertragung zurDatenuntersuchung. Es wurden Schwierigkeiten und Leiden infolge von psychischen Inhalten festgestellt, die unverarbeitet generationsübergreifend vermittelt worden sind und Beziehungsstörungen und aufgestachelte Beziehungen gefördet haben, die von familiären Geheimnissen und subjektiver Verarmung verdeckt worden waren.

Schlüsselwörter: Anorexia nervosa, Familienbeziehungen, Generationsbeziehungen

Introdução

Na era contemporânea nota-se uma crescente visibilidade social conferida aos transtornos alimentares (TA), dentre eles a anorexia nervosa (AN). Os significativos índices de mortalidade que acompanham os TA têm convertido esses quadros em importante problema de saúde pública (American Psychiatric Association [APA], 2011; Andrade & Santos, 2009; Scorsolini-Comin, Souza & Santos, 2010). Os TA estão cada vez mais ocupando espaço na mídia mundial, sendo muitas vezes caracterizados como psicopatologias que se alinham às "patologias do vazio" que definiriam o contemporâneo (Peres & Santos, 2011). Por vezes esses quadros são descritos como "novas patologias", ignorando-se o fato de que sintomas do comportamento alimentar são descritos e estudados há séculos (Fuks & Pollo, 2010), ganhando maior ou menor destaque em função de aspectos socioculturais, como a hipervalorização do corpo magro e esguio, e a hiperinflação do corpo como objeto de consumo e de desejo (Wolf, 1992; Hoogland, 2002).

Para Fernandes (2003; 2006), os TA constituem não apenas um quadro, mas um processo psicopatológico no qual o comportamento alimentar remete ao modo como o sujeito se relaciona com o mundo. Nessa compreensão, a AN pode ser compreendida como um sintoma psíquico, por meio do qual a via corporal é utilizada para dar respostas aos conflitos internos, o que faz do corpo um palco de inscrições do psíquico e do somático.

De acordo com Fernandes (2006), o vocábulo anorexia deriva da palavra grega anorektos, com significado de "sem desejo, sem apetite", tendo sido integrado ao vocabulário latino em 1984. Os primeiros relatos de mulheres com sintomas desse transtorno mental remontam à Idade Média, quando se acreditava que o não comer permitiria o acesso a uma forma de ascese e desenvolvimento espiritual, marcado pela busca de um corpo sem carne, que se afastava do caminho do pecado. Somente séculos depois essa condição adquiriu o status de "doença da alma" (Weinberg & Berlinck, 2010).

Fortes (2011) nomeia a persistência da paciente anoréxica em não comer como uma ferrenha obstinação, que pode ser analisada em duas vertentes: a negação do alimento como afirmação de seu desejo inconsciente de se separar da relação simbiótica com a mãe, ou então como uma estratégia de aniquilação de tal desejo, situação em que a paciente estaria servindo ao objeto ideal (mãe). A intensidade da resistência da paciente seria proporcional ao nível de invasão vivenciada por ela. A recusa alimentar apareceria, assim, como um sintoma que remete ao período de cuidados na infância e ao estilo de vinculação materna.

Benghozi (2010) utiliza a metáfora do corpo "tubo" para se referir à pessoa anoréxica, sendo que a AN da adolescente seria um sintoma de um corpo psíquico familiar esburacado, campo conflagrado de uma adolescência em crise, que poderia se complicar, gerando uma adolescência-catástrofe, na qual incidem outros sintomas associados, difratados sobre os diferentes membros da família. O vazio do não comer seria a expressão de uma hemorragia narcísica, como se houvesse uma fuga de substância psíquica pelos dilaceramentos dos continentes esburacados, ou seja, por meio da fabricação psíquica de um corpo "tubo".

Comumente, os pacientes associam a instalação dos sintomas com uma reação a um evento estressor, como comentários recorrentes sobre seu peso, término de relacionamento amoroso ou perda de ente querido (Borges, Sicchieri, Ribeiro, Marchini & Santos, 2006; Fernandes, 2006; Sicchieri, Santos, dos Santos & Ribeiro, 2007). Desse modo, o meio social (família, escola, redes de contato) estaria diretamente relacionado não apenas ao aparecimento dos sintomas iniciais da AN, como à sua evolução e perpetuação. Inseridas no contexto de tratamento dos TA desde a década de 1970, as famílias vêm ganhando espaço em diferentes abordagens, possibilitando uma compreensão atual de que o ambiente familiar deve ser incluído não como "causador" desses transtornos, mas como recurso de tratamento (Santos, Oliveira, Moscheta, Ribeiro & Santos, 2004; Souza & Santos, 2007, 2009a, 2009b, 2010; Gazignato, Scorsolini-Comin, Souza, Kazan & Santos, 2008).

O psicanalista francês Eiguer (1985) desenvolveu uma teoria que delineia um campo de forças psíquicas inconscientes no grupo familiar, que é resultado do trabalho reiterado de sucessivas gerações: a transmissão psíquica transgeracional. De acordo com Käes (2001) e Benghozi (2010), o que é mobilizado por via transgeracional é o que foi transmitido psiquicamente sem ser devidamente simbolizado, o que impossibilita sua reelaboração posterior, tanto pela família quanto pelo indivíduo. A proibição de conhecer algo origina diferentes configurações familiares, de acordo com o investimento mobilizado para se preservar o segredo temido (Magalhães & Féres-Carneiro, 2004).

Eiguer (1995) delineia três organizadores psíquicos da vida familiar que, dada a sua dimensão inconsciente, seriam determinantes da transmissão psíquica transgeracional. Tais organizadores apresentam aspectos específicos: a escolha do objeto (ou escolha do parceiro), o eu familiar (ou o si familial) e os fantasmas partilhados ou interfantasmatização. Este último organizador refere-se ao desenvolvimento de um espaço transicional de intercâmbios, humor, criatividade e compartilhamento de relatos de histórias pessoais e de seus ancestrais. A interfantasmatização familial designa o desejo ou a fantasia da mãe ou do pai em relação à criança, e também as fantasias vinculadas à linhagem e à comunidade, mobilizadas pela identificação primária. A intersubjetividade antecede o sujeito, origina-se no espaço das trocas familiares, favorecendo os investimentos narcísicos e a promoção de separação e individuação. É no campo da intersubjetividade que acontecem as identificações (Magalhães & Féres-Carneiro, 2004) que tecem o emaranhado de fios que dão consistência fantasmática à subjetividade.

Para Eiguer (1985), o fantasma se manifesta, inicialmente, na constituição do psiquismo, no momento da união e encontro do casal parental. O fantasma é o fator que liga as representações conscientes, pré-conscientes e inconscientes, apontando o conteúdo recalcado. Tais representações transgeracionais pertencem ao universo de objetos inconscientes, organizados a partir da escolha sexual, ou seja, do primeiro organizador familiar, estando projetadas no contexto dos vínculos libidinais de objeto. Assim, cada membro da família relaciona-se com o outro de acordo com o modelo objetal dessas representações, que são dinâmicas e, portanto, passíveis de transformação no tempo.

Para Soifer (1980), a pessoa que adoece é aquela que denuncia o conflito familiar a ser desvendado e elaborado por todo o grupo familiar. Segundo essa concepção, o filho repete a história não simbolizada da figura parental com quem se identifica, em uma tentativa de elaborar o que, anteriormente, não pôde ser elaborado pelas gerações anteriores. De acordo com Cobelo, Gonzaga e Weinberg (2010), famílias que têm um de seus membros diagnosticado com TA são famílias com dificuldade em delimitar fronteiras entre eu e o outro, que não conversam a respeito de conflitos e sentimentos, e que raramente estabelecem trocas na vivência dos papéis e funções de cada um, o que favorece uma reorganização do grupo familiar em torno de segredos e não ditos.

A partir dessas considerações, este estudo teve por objetivo investigar a transmissão psíquica em três gerações de mulheres, oriundas de uma mesma família, que apresenta um membro acometido pela AN, buscando elucidar como fenômenos transgeracionais podem influenciar o curso do TA.

Método

Trata-se de um estudo de caso, de corte transversal, amparado na metodologia qualitativa de pesquisa. Na condução do estudo foram respeitados os preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos (Parecer nº 14557/2009). Os nomes próprios foram substituídos por nomes fictícios.

Participaram deste estudo três mulheres da família Monteiro: Caroline, 26 anos, diagnosticada com AN do subtipo restritivo em comorbidade com transtorno de personalidade borderline; sua mãe Maria, 46 anos, cozinheira; e sua avó materna, dona Elizabeth, 82 anos.

Para a coleta de dados, foram utilizados roteiros de entrevistas semiestruturadas, aplicadas em situação face a face, em sala reservada do serviço (filha e mãe) e na residência (no caso da avó).

As entrevistas foram transcritas na íntegra e literalmente para posterior análise. Foram analisadas as relações que permeiam as díades mãe-filha, considerando a linha materna de transmissão psíquica entre as gerações: de avó para mãe, e desta para a filha acometida pela AN, de modo a que se pudesse compreender a história de vida familiar e os significados atribuídos à maternagem, ao alimento e à alimentação. O referencial utilizado foi o da transmissão psíquica intergeracional, especificamente os estudos de Eiguer (1985) e Benghozi (2010) sobre transgeracionalidade.

Resultados e discussão

Dona Elizabeth é mãe de Maria e avó de Caroline. Atualmente, mora com uma das filhas, o marido desta e a neta. Mal iniciamos nossa conversa e dona Elizabeth diz sentir-se muito triste, já que perdera um filho havia pouco tempo, em decorrência de cirrose hepática. Por conta dessa perda, teve de se mudar da outra cidade, na qual residia com ele, para a casa da filha, onde mora atualmente, o que a entristeceu ainda mais. Sobre sua infância e adolescência, parece guardar boas lembranças, pois apenas relata vivências positivas. Conta que teve uma boa infância na roça, ao lado de seus pais e de nove irmãos. Dona Elizabeth traz um relato comovente de sua infância e adolescência, permeadas por trabalho árduo, que unia crianças e adultos da família em torno de tarefas extenuantes. O envolvimento exaustivo com esses afazeres próprios do mundo adulto tornava as crianças e os adultos muito próximos na convivência diária, ao compartilharem dessas funções, mas também os fazia indistintos e indiscriminados, como se não houvesse um lugar com fronteiras demarcadas no qual se pudesse "ser criança". Desse modo, os limites entre o universo infantil e adulto se borravam.

Nas narrativas da infância de dona Elizabeth estão ausentes brincadeiras, tempo ocioso e escola. Os cuidados que os adultos dispensavam às crianças se reduziam à dimensão da satisfação de necessidades físicas, concretas, em detrimento dos aspectos emocionais. Nesse universo marcado pela concretude e pela necessidade de garantir o próprio sustento, a faina diária da família almejava tão somente assegurar a sobrevivência de "muitas bocas" esfaimadas, que precisavam ser alimentadas. Era uma época difícil, salienta dona Elizabeth, relatando uma vida marcada pela necessidade de sobrevivência de uma família de parcos recursos materiais, na qual havia pouco espaço para a expansão da fantasia e da imaginação criadora.

Em relação ao desenvolvimento afetivo-sexual e às relações amorosas, conta que conheceu seu marido trabalhando na lavoura. Namoraram cerca de um ano e depois se casaram. Depois de dois ou três meses de namoro, ela soube que seu marido procurava e "saía" com uma antiga namorada, enquanto dona Elizabeth ficava em casa. Quando o casal já havia se casado e tinha tido os dois primeiros filhos, o marido saiu de casa e foi morar com a amante, com quem teve uma filha. Após um tempo vivendo separados, tentou reatar com dona Elizabeth, que acabou por aceitá-lo de volta. Ele, então, voltou para casa, segundo ela, depois de lhe infligir muito sofrimento. O casal e os dois filhos mudaram-se para a cidade em que morava a mãe de dona Elizabeth, e depois tiveram mais duas filhas. Dona Elizabeth afirma que essa foi a única crise enfrentada no casamento, e que, quando tinham outras brigas, ela se calava e chorava, muitas vezes às escondidas.

Do ponto de vista da relação mãe-filha, na perspectiva da entrevistada, a relação com a filha, Maria, aparenta ser tranquila, vivenciada de forma positiva por dona Elizabeth. Ela relata não "ser chegada" no marido de Maria, que é "muito esquisito, diferente". Sobre Maria, como mãe, dona Elizabeth relata que é uma boa mãe, porém muito nervosa, discute com as meninas, que também discutem muito entre si. Ela acha que Maria cuida bem das filhas, associando tal cuidado a afazeres domésticos como lavar, passar e cozinhar nas horas certas, valorizando a ordem, a disciplina demonstrada na realização de tais atividades de organização dos hábitos cotidianos. Em sua narrativa permeada de concretude, os cuidados parentais não contemplam aspectos emocionais. Em relação à AN, dona Elizabeth mostra-se consciente do transtorno que acomete sua neta. Demonstra ter uma compreensão de que é uma "perturbação" de origem psicológica e elabora uma representação etiológica também psicogênica ao culpabilizar diretamente o pai de Caroline pela condição mórbida.

Maria, 46 anos, é a terceira filha de dona Elizabeth. É casada e tem três filhas. Quando declarou sua idade chamou-nos a atenção, pois aparentava ser bem mais velha. Inicia sua narrativa biográfica falando de sua infância: "A minha vida. Eu tive uma infância muito... Uma infância sofrida, assim. O meu pai era muito mulherengo, teve uma filha fora do casamento, sabe, isso me entristecia muito, até hoje". No que concerne aos relacionamentos com os pais, Maria conta que sofreu muito com seu pai durante a infância, pois ele bebia muito. Ela saía para comprar bebidas a pedido dele; sua mãe, enfurecida, quebrava as garrafas. Depois Maria saía novamente para comprar mais bebidas para o pai.

Aflora na fala de Maria um conflito familiar que não havia sido mencionado por dona Elizabeth. Maria conta que sua experiência mais marcante quando criança foi ter uma irmã (por parte de pai) fora do casamento de seus pais, situação que ela não aceitou e que a levou a "não perdoar" o pai. Além disso, os significados atribuídos por ela ao modo de ser do pai, seu funcionamento psíquico instável e o alcoolismo, que eram deflagradores de desavenças na relação conjugal e turbulência na vida familiar, constituem a tessitura de um não dito familiar, evidenciando os fantasmas individuais e a circulação de fantasias no grupo familiar, segundo Eiguer (1985).

Maria parece ter sido eleita como a filha a quem o pai incumbia de trazer para dentro do lar aquilo (a bebida) que se configuraria como o pivô das brigas constantes entre pai e mãe. Mas que também era expressão do desejo do pai. A situação triangular que se constituiu tem um nítido colorido edípico ao reforçar o vínculo filha-pai marcado pela cumplicidade que, por sua vez, suscitava a ira e o descontrole emocional da mãe. Por outro lado, logo se daria a quebra do encantamento da relação idílica entre filha e pai, quando esta descobre a traição conjugal que resultara em uma outra irmã, filha bastarda, potencial rival de Maria junto à preferência da atenção do pai.

Em relação ao período da juventude, Maria conta que sofreu muito com o controle coercitivo de seu irmão, que não a deixava sair para se divertir, relatando que por isso se casou cedo. Ela conta que se casou aos 18 anos e que não teve adolescência, pois estava na "melhor fase da vida". Quando conheceu seu marido, seus familiares se mostraram contra o relacionamento. O casal resolveu "fugir" para outra cidade e lá ficou por uma semana. Quando voltaram, foram morar na casa dos pais do namorado de Maria. Decorridos quatro meses os dois já estavam casados, pois o pai de Maria asseverou que, como haviam fugido juntos, deveriam se casar. Maria conta que resolveu fugir com o namorado porque tinha medo de "ficar falada" na pequena cidade onde morava.

Maria relata que o início de seu casamento não foi bom, pois sofria muito com o ciúme doentio que sentia do marido. Tempos depois veio a notícia inquietante. Teve confirmado um diagnóstico de câncer, foi hospitalizada, submeteu-se à cirurgia e a um longo tratamento. Nessa época tumultuada de sua vida, o marido foi embora de casa "com uma prostituta da idade da Caroline". Ele havia mantido com ela um relacionamento extraconjugal por um tempo, depois saiu de casa para morar com a amante.

Maria conta que, inicialmente, ela e as filhas não sabiam o exato motivo pelo qual o marido estava saindo de casa. Acreditavam que era por questões de dinheiro, já que a situação financeira da família estava abalada. Depois ele confessou que estava morando com outra mulher, o que fez Maria sofrer muito. Acrescenta que ele também sofreu muito, que ambos perderam dez quilos em um mês, de tanto sofrimento e tantas lágrimas derramadas, e que as filhas ficaram muito decepcionadas com o pai, especialmente Caroline que, segundo Maria, desde pequena sempre foi o troféu do pai.

Após certo período, o marido rompeu com a amante e procurou Maria, dizendo estar arrependido e desejoso de voltar para casa. Ela o aceitou de volta, mas Caroline não. A filha saiu da casa dos pais por um tempo, pois não perdoava a traição paterna. Assim como Maria, durante a adolescência, não perdoara o relacionamento extraconjugal de seu pai, Caroline também não se conformava com sua falta de lealdade e "se encheu de raiva" dele.

O casamento de dona Elizabeth era permeado por não ditos, em que não se podia conversar abertamente sobre os conflitos vivenciados. A traição de seu marido parece não ter encontrado tempo e espaço para ser conversada e elaborada pelos integrantes da família, tornando-se um conteúdo transmitido para a outra geração em estado bruto, sem possibilidade de elaboração. Desse modo, seu poder tóxico permanece intacto, não metabolizado pelo aparelho psíquico familiar. A família de Maria repete o que aconteceu com seus pais. Os metabólitos psíquicos não podem ser digeridos. A situação de infidelidade torna-se um fantasma, uma sombra que paira sobre o espaço familiar e, incólume, atravessa gerações. Para Eiguer (1985), esse fantasma se manifesta, inicialmente, na constituição do psiquismo, no momento da união e encontro do casal, ligando as representações psíquicas que cada cônjuge traz de seu passado familiar e apontando o conteúdo recalcado. O fantasma originário é responsável pela manutenção de um determinado padrão de relacionamento disfuncional. Nesse caso, o padrão de relacionamento perturbado está intimamente vinculado à vivência edípica não elaborada.

Dona Elizabeth, ao aceitar o esposo de volta em sua casa após ter descoberto o relacionamento extraconjugal, muda-se com ele e os filhos para outra cidade, na tentativa de se afastar dos problemas e da possibilidade de reincidência do marido no adultério. Maria repete essa situação frente ao conflito vivenciado no relacionamento conjugal, do qual busca se evadir ao "fugir" da cidade em que vivia, por sentir-se envergonhada por ter recebido o marido novamente em sua casa após a humilhação sofrida.

Do ponto de vista da relação mãe-filha, a percepção de Maria sobre Caroline é de que ela é "uma menina que sempre foi triste [...] sempre foi diferente, sempre". Durante a infância mostrava-se como uma criança perfeccionista e não teve adolescência, pois passou por muitos sofrimentos que a fizeram amadurecer logo. Maria conta que a filha nunca teve namorado, apenas "aventuras" com rapazes estrangeiros que visitavam o país, ou relacionamentos a distância por meio da internet. A mãe relata que a vida afetiva da filha é frustrante e que Caroline declara que nunca se casará. Justifica a descrença no casamento alegando que não aceitaria que um homem lhe fizesse o que seu pai fez com a mãe.

Em relação ao modo como se percebe como filha, Maria julga-se uma boa filha para sua mãe, dona Elizabeth. Diz que se ressente apenas por não ter lhe contado quando "fugiu de casa", indo morar na casa dos pais do namorado, em outra cidade. Ela relata que se sentia um pouco rebelde quando jovem e que sua mãe tinha ciúme quando ela passava algum tempo afastada do lar, na casa de amigas. Atualmente, ela sente que a mãe se identifica mais com ela, pois conversam, choram juntas e seguem a mesma religião. Maria mostra-se compreensiva, ao mesmo tempo em que se identifica com a dor e o luto recente da mãe, que perdeu o filho predileto e agora sente que sua filha, devido à doença, lhe "está vazando pelos dedos".

Sobre o quadro de AN de Caroline, Maria diz que, anteriormente, achava que o corpo magro da filha era "normal", já que ela sempre foi magra e não comia carne. Soube que a filha tinha AN no dia em que ela desmaiou e foi levada ao serviço de emergência de um hospital. Demorou a perceber que a filha pouco se alimentava e que o estado de debilidade física levara ao desmaio. Conta que Caroline dorme pouco durante a noite, entretanto passa boa parte do dia deitada. As mudanças introduzidas na rotina familiar parecem pouco afetar Maria. Quem acompanha Caroline em seus atendimentos é o pai ou uma das irmãs. Maria relata não participar do tratamento da filha, pois tem de se dedicar ao seu trabalho. O modo de auxiliar a filha consiste em levá-la ao supermercado e motivá-la a escolher algo para comer. Quando a filha escolhe, porém posteriormente não come, Maria se sente frustrada e fica nervosa, pois sente que gastou dinheiro em vão na aquisição do produto.

Caroline é a filha mais velha de Maria. É uma moça bonita, cuja timidez é por vezes interceptada por um cândido sorriso. Antes de entrarmos na sala para a entrevista, percebemos que Caroline tem uma extensa tatuagem nas costas, porém não é possível identificar o desenho. Soubemos depois que se trata de um dragão, ladeado por borboletas que voam em torno de flores. Seu corpo mostra as marcas precoces do sofrimento, estampando na fragilidade da superfície exterior a dor de dentro. Ao olhá-la de perto, temos a impressão de que braços delgados e ossos proeminentes traduziam uma estrutura psíquica precária. Um corpo cativo em uma mente regredida. Sobre sua infância, ela conta que "não foi muito agradável". Diz que seu pai era alcoolista, o que lhe evoca lembranças tristes de quando ele chegava em casa alcoolizado e sua mãe brigava com ele. Amedrontada, descreve um cenário infantil povoado por agressões verbais e, algumas vezes, físicas entre os pais.

Caroline conta que praticamente não se relacionava com os pais, que estavam mais preocupados em cuidar de si próprios, enquanto ela e a irmã do meio se sentiam "deixadas de lado". Tal situação de negligência ilustra a precariedade do sentimento de pertença, tal como concebido por Eiguer (1995), bem como a base frágil sobre a qual se alicerçou o desenvolvimento emocional. Caroline sentia-se como pessoa não pertencente ao grupo familiar. Portanto, suas fantasias em relação ao contexto familiar eram de exclusão, na medida em que ela não se sentia reconhecida pelos demais membros e, assim, não tivera suas necessidades afetivas legitimadas e confirmadas (Lisboa & Féres-Carneiro, 2005). Desse modo, não pôde fazer das recordações do período da infância um lugar seguro.

Sobre o relacionamento pais-filha, Caroline conta das dificuldades que ainda sente em se perceber como membro de seu grupo familiar: ora perde seu espaço, ora perde a atenção que desejava. O que foi equacionado por ela com a perda de peso e de massa corporal. Pensando em um dos componentes do segundo organizador familiar proposto por Eiguer (1995), o habitat interior, entendido como relacionado a um lugar construído por cada um dos membros da família na relação com o outro e concretizado no espaço geográfico do lar, Caroline mostra, mais uma vez, suas fantasias de não pertencimento à família. O espaço geográfico (lar) atua como inibidor de um iminente colapso e desmembramento do grupo, temor sentido de modo permanente por Caroline.

Afloram em seus relatos fantasias e sentimentos recorrentes de estar na posição de cuidar da mãe, em uma clara inversão dos papéis parentais e filiais, enquanto que, inconscientemente, ela se ressente por não ter quem cuide de si. A filha se posiciona como a suposta cuidadora da mãe, mas na realidade "perdeu" precocemente sua mãe-cuidadora quando esta teve depressão após a morte do avô, ou ainda quando esta teve câncer, ou então quando foi abandonada pelo marido. As reiteradas experiências de desligamento precoce do vínculo, ainda que momentâneas, sem ter alcançado a dimensão de rompimentos, justifica a expressão melancólica: "Eu estou sempre perdendo a minha mãe", proferida para conotar seu profundo desalento frente à descontinuidade do investimento materno. Ao falar do pai, na situação em que ele saiu de casa, Caroline diz que ele "matou a mãe" ao abandonar a família. Quando os pais reataram o relacionamento e o pai voltou a viver na casa da família, Caroline diz que não suportou. Primeiramente, sugeriu que a mãe escolhesse entre ela e o marido, depois optou por sair de casa e morar em outra cidade, na casa de parentes. Pensando no conflito edípico, que parece permear intensamente as relações da família Monteiro, Caroline também não aceitou ser abandonada por uma rival de sua idade, revivendo o sentimento de abandono que sentira quando nasceu a irmã do meio, que desbancou seu lugar de única criança (filha) da família.

Ainda sobre sua adolescência/juventude, Caroline conta que, por essa época, começou a se isolar, defendendo-se das constantes brigas dos pais. Os conflitos e sentimentos não podiam ser conversados na vida em família. Caroline ouvia as discussões do portão da casa e chorava às escondidas. Em sua percepção, ela "foi acumulando" os fatos tristes de sua vida, o que culminou, atualmente, na sua doença. Sobre as relações amorosas, Caroline traz uma gama de relacionamentos a distância. Cultiva uma ampla rede de amigos internautas e namorados virtuais. Segundo ela, nunca conseguiu ter um relacionamento consistente porque sempre "via" seu pai em seus "namorados".

De acordo com Eiguer (1985), é possível perceber no grupo familiar a produção e identificação de fantasias, e a família tende a se voltar para si mesma a partir dessas fantasias identificadas. A relação mãe-filha parece permeada por sentimentos e fantasias ambivalentes. Maria se sente abandonada pela filha, enquanto esta se sente desamparada pela mãe. Maria traz percepções de cuidar de Caroline, ao passo que esta se mostra frustrada, por sentir-se incompreendida e negligenciada no atendimento de suas necessidades afetivas por parte da mãe, principalmente no que diz respeito à sua doença.

Caroline percebe-se como uma "filha-problema", pois sente que, depois que seus pais reataram o casamento, ela é a maior causadora de conflitos no lar. Sente que perdeu o controle de tudo. A filha outrora "boa aluna" e aspirante à perfeição transformou-se na jovem esquálida que só traz intranquilidade e preocupações aos pais. Relata, sem disfarçar uma certa surpresa, que atualmente seu pai tem cuidado dela. Também conta que, depois que ficou doente, ela e o pai têm se reaproximado, ao passo que um movimento oposto está ocorrendo em relação à mãe. Caroline afirma que Maria não a ajuda, que a mãe pensa que está cuidando, mas sente que ela está atrapalhando-a nessa fase da doença.

Em relação à AN, Caroline, assim como sua mãe e sua avó, atribui certa parcela de culpa do surgimento do problema ao pai, por seus comportamentos pregressos em relação ao abuso de álcool, promiscuidade nas relações afetivas com mulheres e agressões à mãe. Caroline relata também uma situação de sua infância em que ela tentou agredir o pai durante uma briga dele com a mãe.

Caroline mostra-se ambivalente em relação à AN, que é motivo de frustração e, ao mesmo tempo, contentamento. A batalha contra a fome satisfaz Caroline, pois considera que é uma contenda que ela pode vencer. Ela ainda aponta a AN como sua "forma de querer morrer, mas não saber como se matar". Nota-se, assim, que a AN torna-se companheira de vida e, ao mesmo tempo, inimiga da vida.

Caroline descreve seus problemas com a alimentação como uma válvula de escape. Mais do que isso, é a única coisa que ela sente ter na vida. Fica claro que ela sente ter malogrado na vida, pois nunca teve experiências exitosas suficientemente gratificantes e duradouras que lhe permitissem fortalecer sua autoestima ou que a fizessem estruturar um projeto de vida claramente estabelecido, a partir de seus desejos e aspirações de crescer e adquirir autonomia e identidade própria. Parece nunca ter tido algo de valoroso por que achasse que valia a pena lutar. Por isso ela investe em um movimento antivida e se põe a lutar obstinadamente um outro tipo de combate: "É uma batalha que eu consigo vencer... contra o organismo". As outras batalhas do processo de desenvolvimento e individuação, provavelmente, ela acredita que já perdeu ou que não conseguirá sagrar-se vencedora.

As relações afetivas são empobrecidas. A vida emocional é opaca e esvaziada de sentido, preenchida por fantasias e contatos precariamente estabelecidos com a realidade, em boa parte substituída pelas redes sociais e salas de bate-papo no mundo virtual. Desse modo, Caroline restringe sua vida amorosa ao plano dos relacionamentos fugazes, incorpóreos e idealizados. Na internet busca imagens puras, corpos desencarnados, meros invólucros sem estofo afetivo, a sustentar a fantasia de manter controle sobre seu mundo interno e seus impulsos sexuais, no doloroso atravessamento do percurso de transição para a etapa de jovem adulta.

O TA foi a solução encontrada para fazer frente a esse fracasso percebido nas suas competências para ser alguém dotado de identidade própria e autonomia. Estar doente é atrair novamente o olhar do pai perdido na infância, recuperar algo importante que perdera em algum momento do passado - o sentimento de ser única e querida, mas também é um modo engenhoso de velar o mundo interno esvaziado de objetos bons e reconfortantes, anestesiando o que não pode ser resolvido. Ou seja, a AN é uma espécie de blindagem emocional, tatuagem superficial que ela se aplicou para se evadir de uma dor ainda maior e mais profunda. Ao manter rígido controle sobre os impulsos mais básicos - sexualidade, fome, agressividade - sente que, pelo menos nesse plano, consegue controlar algo em seu universo psíquico caótico e desertificado. O dragão ameaçador permanece insatisfeito, convivendo com a delicadeza das frágeis e diáfanas borboletas que gravitam em torno das flores de sua carcaça corporal.

Considerações finais

No retrato esboçado da família Monteiro, percebemos nitidamente as dificuldades e sofrimentos afetivos de três gerações de mulheres que mantinham relações truncadas com o sexo oposto, quer seja em função de traição, do alcoolismo ou mesmo da dificuldade de vinculação. O ser mulher, nessa cadeia associativa, é colocado em um lugar de subserviência inesgotável, de pouco contato com o mundo externo e como depositário de frustrações reiteradas nos relacionamentos interpessoais.

A AN surge, na família analisada, como um sintoma dessa dificuldade e dos sofrimentos advindos de relacionamentos nos quais o feminino inscreveu-se como frágil, incapaz, aquele que tudo suporta ou que tudo perdoa, à custa de humilhação. Uma séria distorção da personalidade parece ter se configurado, nesse caso, como reação a um ambiente percebido como intrusivo, inconstante e pobre em termos de provimento de necessidades emocionais. Por outro lado, a precariedade e instabilidade do provimento afetivo, recebido do ambiente familiar, intensificam a fixação aos relacionamentos insatisfatórios com as figuras parentais. Relações de superenvolvimento predominam, acarretando perda das fronteiras que delineiam as identidades, em franco prejuízo do processo de individuação dos membros familiares.

Com base nessas considerações, espera-se que este estudo contribua para o planejamento de intervenções e programas de assistência multidisciplinar na área dos TA, que convidem a família para participar de modo ativo no tratamento e na compreensão dessas psicopatologias. O caráter inovador deste estudo é propor pensar que o profissional de saúde mental, ao programar estratégias de atendimento multidisciplinar, deve organizar espaços de fala e escuta nos quais a família e o paciente possam ser vistos e escutados conjuntamente. Nesses espaços terapêuticos, os familiares poderiam elaborar suas experiências de convívio com os sintomas do membro acometido, trocar conhecimentos, compartilhar suas aflições, fortalecer defesas psíquicas promotoras de integração e intercambiar recursos de enfrentamento.

A proposta não é apenas envolver a família no tratamento, mas permitir que ela ocupe um lugar importante no processo de desenvolvimento das pessoas acometidas pela AN, criando oportunidades para a produção de remanejamentos de arranjos defensivos e reelaborações de vivências arcaicas, segredos e mitos familiares. Paralelamente, seria possível produzir compreensões menos estereotipadas acerca do sintoma alimentar, abrindo possibilidades de leitura para além do visível, do audível e do já dito, em busca do não dito, de segredos que se inscrevem na cadeia de transmissão do legado transgeracional. Os processos de transmissão psíquica podem ser aliados no sentido de que, além de oferecer uma base explicativa, favoreçam a remalhagem dos laços, como discutido por Benghozi (2010), em uma perspectiva clínica que abarca a possibilidade de transformação e ressignificação das experiências familiares atualizadas pelo encontro inusitado com o sintoma.

Fabio Scorsolini-Comin

Depto. de Psicologia

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Av. Getúlio Guaritá. 159/3º and. - Abadia

38015-440 Uberaba, MG

E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br

Manoel Antônio Dos Santos

LEPPS - Depto. de Psicologia - FFCL

Av. Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre

14040-901 Ribeirão Preto, SP, Br

E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Recebido/Received: 4.6.2012 / 6.4.2012

Aceito/Accepted: 13.7.2012 / 7.13.2012

Financiamento/Funding: Esta pesquisa é financiada pel a Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (São Paulo, SP, Br)/ This research is funded by the Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (São Paulo, SP, Br).

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Conflito de interesses/Conflict of interest: Os autores declaram que não há conflito de interesses / The authors declare that has no conflict of interest.

Agradecimentos: Os autores agradecem à Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (São Paulo, SP, Br) pela concessão de bolsa de estudos à primeira autora para a realização da pesquisa que originou este artigo (Processo 2009/17110-8). Também agradecem o apoio do Prof. Dr. José Ernesto dos Santos e da Profa. Dra. Rosane Pilot Pessa Ribeiro, coordenadores do Grata - Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares, vinculado ao Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP-RP (Ribeirão Preto, SP, Br).

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  • Endereço para correspondência:
    Élide Dezoti Valdanha
    LEPPS - Depto. de Psicologia - FFCL
    Av. Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre
    14040-901 Ribeirão Preto, SP, Br
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      04 Jun 2012
    • Aceito
      13 Jul 2012
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