Esta avaliação participativa junto a trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil de um município de grande porte do sudeste brasileiro enfoca o processo de trabalho e sua relação com o sofrimento institucional, na perspectiva de René Käes. O curso ofertado para tal envolveu a construção e validação de narrativas junto a trabalhadores, pactuação de indicadores de avaliação e um guia de boas práticas. Os trabalhadores expressaram modalidades de sofrimento institucional relacionadas com: condições de trabalho, relações na instituição, falta de espaço de diálogo e formação permanente, como a supervisão clínico-institucional. Manifestaram ainda uma importante identificação com os valores das reformas sanitária e psiquiátrica e com a história peculiar das políticas de saúde no município, que contribuiu para a manutenção do que Onocko-Campos denomina “ilusão institucional”.
Palavras-chave: Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis; processo de trabalho; sofrimento institucional; narrativas
Resumos
This participatory evaluation involving workers from Psychosocial Care Centers for Children and Adolescents in a large city in southeastern Brazil addresses the work process and its relationship with institutional suffering from the perspective of René Käes. A course was offered to workers that involved the construction and validation of narratives, an agreement on evaluation indicators and a guide to good practices. Workers expressed different types of institutional suffering that was related to working conditions, relationships at the institution and lack of spaces for dialogue and permanent training, such as institutional clinical supervision. They also showed that they are highly identify with the values of the health and psychiatric reforms, as well as with the city’s peculiar history of health policies, which contributed to keep up what Onocko-Campos calls “institutional illusion”.
Key words: Children and Youth Psychosocial Care Centers; work process; institutional suffering; narratives
Le travail fait partie d’une évaluation participative avec des travailleurs des Centres de Soins Psychosociaux pour Enfants et Adolescents dans une grande ville du sud-est du Brésil, où nous abordons le processus de travail et son rapport avec ce que René Käes conceptualise comme souffrance institutionnelle. Un cours a été proposé qui impliquait la construction et la validation de récits avec les travailleurs, un accord sur des indicateurs d’évaluation et un guide de bonnes pratiques. Les travailleurs expriment de différents types de souffrances institutionnelles qui sont liées aux conditions de travail, aux rapports dans l’institution et au manque d’espaces de dialogue et de formation permanente, comme la supervision clinique institutionnel. Ils manifestent également une identification importante avec les valeurs des réformes sanitaires et psychiatriques, ainsi qu’avec l’histoire particulière des politiques de santé de la municipalité, ce qui a contribué à la préservation de ce que Onocko-Campos appelle « l’illusion institutionnelle ».
Mots clés: Centre de Soins Psychsociaux pour Enfants et Adolescents; processus de travail; souffrance institutionnelle; récits
Esta evaluación participativa con los trabajadores de los Centros de Atención Psicosocial para Niños y Adolescentes de un gran municipio de la región sureste de Brasil se enfoca en el proceso de trabajo y en su relación con el sufrimiento institucional, desde la perspectiva de René Käes. Para este fin, se ofreció un curso que incluía la construcción y validación de narrativas con los trabajadores, el consenso sobre los indicadores de evaluación y una guía de buenas prácticas. Los trabajadores expresaron diferentes tipos de sufrimiento institucional relacionados con: las condiciones de trabajo, las relaciones en la institución, la falta de espacios de diálogo y de formación permanente, así como con la supervisión clínica institucional. También manifestaron una importante identificación con los valores de las reformas sanitaria y psiquiátrica, y con la peculiar historia de las políticas de salud en el municipio, que contribuyeron al mantenimiento de lo que Onocko-Campos denomina “ilusión institucional”.
Palabras clave: Centros de Atención Psicosocial para Niños y Adolescentes; proceso de trabajo; sufrimiento institucional; narrativas
Introdução
Este estudo aborda o processo de trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (Capsi) e sua relação com o sofrimento institucional, na perspectiva de trabalhadores que participaram de uma pesquisa-intervenção.
Segundo Amarante (2007) o campo da saúde mental e da atenção psicossocial deve ser pensado como um processo social complexo que envolve movimento e transformação constantes, onde se entrelaçam como dimensões simultâneas: a teórico-conceitual, a jurídico-política, a sociocultural e a técnico-assistencial.
No Brasil, um marco importante da Política pública de SM foi a promulgação da Lei 10.216, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Brasil, 2001) um avanço relevante respeito dos direitos dos “portadores de transtornos mentais”, além de trazer novas diretrizes para o modelo assistencial. Nesse processo, foi preciso conceber e implementar estruturas substitutivas, marcadas pelo vínculo com a comunidade e pela transformação dos modos de relação entre profissionais e usuários (Amarante, 2007).
As especificidades da saúde mental de crianças e adolescentes entraram tardiamente na pauta da Reforma Psiquiátrica Brasileira, sendo formalmente discutidas apenas em 2001, no III Congresso Brasileiro de Saúde Mental (Couto & Delgado, 2015). Pouco depois, em 2002, foi publicada a Portaria 336 contendo um capítulo específico sobre a criação dos Capsi. Esses equipamentos públicos têm como objetivo ser um serviço territorial, funcionar como reguladores da porta de entrada da rede assistencial e, ao mesmo tempo, responsabilizarem-se pela organização da demanda e da rede de cuidados no território (Brasil, 2002).
A Política de Saúde Mental Infanto-juvenil tem como princípios:
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Compreender toda criança ou adolescente como um sujeito singular, responsável pela sua demanda e como também sujeito de direitos;
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A oferta de acolhimento para quem chega ao serviço;
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A realização de encaminhamentos implicados, quando necessário;
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A construção permanente da rede;
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A centralidade do trabalho no território, entendido como o lugar psicossocial do sujeito;
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A intersetorialidade das ações de cuidado (Brasil, 2005), incluindo tanto a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) quanto a articulação com setores como educação e o sistema de proteção social integral (Brasil, 2014).
Ofertar cuidado dentro da perspectiva da atenção psicossocial demanda também a transformação do processo de trabalho clínico convencional. Nesse sentido, nos Capsi o trabalho deve ser realizado em equipes multidisciplinares, que possuem relações mais horizontais. A oferta assistencial inclui: atendimentos individuais, grupos e oficinas com crianças, adolescentes e com familiares, visitas domiciliares e outras ações no território, que devem ser organizadas em diálogo com o Projeto Terapêutico Singular (PTS) pactuado com cada usuário (Brasil, 2002).
Encontramos alguns estudos brasileiros sobre o processo de trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), incluindo os sentimentos e a saúde mental dos trabalhadores (Pinho et al., 2018; Athayde & Hennigton, 2012; Glanznet et al., 2011; Mielke et al., 2011; Bellenzani et al., 2016; Ferrer, 2007). Trata-se predominantemente de pesquisas qualitativas que realizaram entrevistas e, às vezes, também observação participante junto aos profissionais de Caps. Os referidos estudos trazem como resultados comuns: referências às difíceis condições de trabalho vivenciadas pelos trabalhadores: intensa demanda assistencial que dificulta atender a todos os usuários, precariedade material da população assistida, violência no território, falta de recursos humanos e materiais, problemas de infraestrutura nos serviços, fragilidade nos vínculos empregatícios, dificuldade na comunicação intersetorial, entre outros.
Ao mesmo tempo, os trabalhadores expressam orgulho e satisfação por trabalhar na implementação da Reforma Psiquiátrica (Ferrer, 2007; Glanzner et al., 2011; Oliveira & Miranda, 2015; Athayde & Hennington, 2012). Valorizam espaços como a supervisão clínico-institucional que contribuem para lidar com as dificuldades e qualificar o trabalho (Athayde & Hennington, 2012; Oliveira & Miranda, 2015). Por outro lado, alguns estudos destacam a coexistência de dois modelos no cotidiano dos serviços (Mielke et al., 2011) e inclusive a existência de ambiente institucional e condições de trabalho em direção oposta à proposta da Reforma Psiquiátrica (Muylaert et al., 2015a).
Dentro do recorte do Capsi, Muylaert et al. (2015a) desenvolveram um estudo em dois Capsi da cidade de São Paulo — um gerenciado pela prefeitura e outro por uma organização social de Saúde (OS). Os autores mostram que a formação dos profissionais é frágil, muito marcada pela passagem por hospitais e consultórios em suas trajetórias, o foco do olhar profissional parece estar mais dirigido à doença do que ao sujeito em sofrimento, com tendência à aproximação do tratamento das crianças dos cânones dos tratamentos de adultos. Já a relação dos participantes com o trabalho apresenta diferenças marcadas: a vida política pouco é citada pelos trabalhadores da OS que possuem vínculos de trabalho precários, enquanto para os profissionais concursados da prefeitura a dimensão política representa um importante sentido para o trabalho. A supervisão clínico-institucional e os espaços de discussão em equipe não são mencionados pelos participantes de ambas instituições.
A importância da supervisão clínico-institucional e dos espaços instituídos de discussão para propiciar o fortalecimento da equipe são destaque no estudo desenvolvido por Oliveira e Miranda (2015) em um Capsi de um município de pequeno porte do Rio de Janeiro. Os trabalhadores descrevem as dificuldades vivenciadas e narram também as estratégias que adotaram. Um dos principais desafios apontado foi lidar com a sensação de que o serviço tem que dar resposta a todas as demandas que envolvem sofrimento psíquico de seu público. Assim, a escassez de serviços na rede e as pressões políticas coexistem com a dificuldade cotidiana de lidar com o sofrimento psíquico das crianças e seus familiares. Nesse contexto, os profissionais e o supervisor apostam na construção constante de um trabalho criativo e sensível às questões psicossociais dos pacientes. Para esses trabalhadores, a supervisão e os momentos de reuniões diárias contribuem para a sustentação das práticas e para mediar as relações entre os profissionais.
O processo de trabalho também tem sido abordado em experiências de avaliação participativa de serviços de saúde mental. Campos (2008) aponta que, no Brasil, a jovem política de saúde mental, além da universalização da atenção, possibilitou a construção de um novo paradigma de conhecimento, o que se expressa no atual modelo de atenção em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS), que resultou na criação de novos arranjos organizacionais, como os CAPS, e desconstruindo a dominância dos hospitais psiquiátricos. O autor destaca que “esta política se baseou mais em valores do que em evidências científicas da eficácia dos novos arranjos e procedimentos sugeridos” (p. 98) e que é necessário avançar na avaliação dos novos dispositivos, porém sem desconsiderar a complexidade do objeto.
Nessa direção, Furtado e Onocko-Campos (2008) destacam que, no Brasil, tem se delimitado a complexidade técnico-ético-política do debate sobre avaliação e, nesse contexto: “A avaliação participativa de programas e serviços na área social seria, assim, tributária das relações entre participação popular e políticas públicas por um lado e pesquisa ação, por outro” (p. 233). A avaliação participativa se caracteriza por construir o processo junto aos grupos de interesse que, no caso dos serviços de saúde mental, incluem trabalhadores e gestores, familiares e usuários.
Furtado et al. (2017) realizaram uma avaliação participativa com trabalhadores de Caps III do estado de São Paulo que teve como produto final a construção de indicadores para avaliação e monitoramento dos referidos serviços organizados em nove temas, incluindo dois relacionados com o processo de trabalho: a gestão e a formação continuada. Assim, foram incluídos indicadores envolvendo: a valorização de uma gestão presente nos espaços de gestão e nas discussões clínicas e institucionais do dia a dia; a oferta de supervisão clínico-institucional e o acesso à formação continuada externa.
Em relação à saúde mental infantojuvenil, Lima et al. (2014) realizaram uma pesquisa avaliativa com desenho participativo sobre o cuidado às crianças e aos adolescentes com autismo na rede de Capsi da região metropolitana do Rio de Janeiro. Identificaram cinco temas ordenadores, dentre os quais “Formação dos profissionais e processos de trabalho”; neste foram produzidos indicadores qualitativos organizados em torno de quatro subtemas. Trata-se de uma contribuição significativa que, embora centrada no cuidado com usuários autistas, serviu de inspiração para o presente trabalho.
O presente estudo pretende contribuir para preencher as lacunas identificadas, apresentando uma perspectiva mais ampla dos Capsi, aprofundando a reflexão teórica sobre processo de trabalho e o sofrimento institucional experimentado pelos trabalhadores nesses serviços, a partir de dados obtidos por meio de uma experiência de pesquisa-intervenção envolvendo a construção de narrativas.
O potencial do trabalho com narrativas, como recurso metodológico na pesquisa qualitativa em saúde, já foi apontado Onocko-Campos e Furtado (2008). Os autores recuperam as contribuições de estudos clássicos de estrutura narrativa oriundas de campos como a literatura, a história, a teoria da comunicação e a psicanálise. Destacam a “potencialidade de se utilizar narrativas para o estudo de situações nas quais interessem as mediações entre experiência e linguagem, estrutura e eventos, sujeitos e coletivos, memória e ação política” (p. 1090). Questões importantes na área de políticas, planejamento e gestão, no interior da saúde coletiva brasileira visando produzir conhecimentos junto dos grupos de interesse para fortalecer as práticas de saúde. O presente trabalho alinha-se a essa perspectiva ético-política.
Método
Esta pesquisa fez parte de um estudo mais amplo, uma avaliação de quarta geração, fundamentada em um “enfoque responsivo” — no qual o processo de pesquisa é construído junto aos grupos de interesse — e em uma “metodologia construtivista” que, diferentemente do positivismo científico, se apoia em uma “ontologia relativista e não realista, e uma epistemologia monista e subjetiva (não dualista e objetiva)” (Guba & Lincoln, 1989, p. 19). Seu exercício une o avaliador e os interessados em uma interação que cria o produto da avaliação.
Participaram trabalhadores dos quatro Capsi de um município de grande porte do sudeste brasileiro. O processo de construção foi pactuado junto aos serviços em todos os momentos. Inicialmente foi feito contato, buscando conhecer o cotidiano de cada serviço e, a partir disso, construiu-se uma proposta de curso, que foi formalizada como curso de extensão da Universidade disponibilizado para os trabalhadores. A escolha dos participantes foi decidida pelos serviços. Os horários e periodicidade foram pactuados em diálogo com eles. Estiveram presentes, até o final do curso, 17 profissionais, 15 mulheres e dois homens, com diversas formações: psicologia, fonoaudiologia, medicina, enfermagem, terapia ocupacional, técnico de enfermagem, monitoria e gerência. O estudo não incluiu usuários e familiares, a não ser indiretamente, através das atividades de dispersão que envolviam discutir temas com eles nos serviços.
O curso foi realizado durante cinco meses, e envolveu 11 encontros. Nos oito encontros iniciais houve um primeiro momento de aula dialogada e, em seguida, a turma se dividiu em três Grupos de Apreciação Partilhada (GAP) para discutir os assuntos das aulas, vinculando-os ao cotidiano do serviço, a partir da realização prévia de atividades de dispersão. No nono encontro, os GAPs empreenderam a tarefa de construção de indicadores. Nos dois últimos foram realizadas oficinas de produção de consenso, nas quais foram pactuados 24 indicadores e um Guia de Boas Práticas organizados em 5 grandes temas. Cabe salientar aqui que a proposta de incluir o processo de trabalho e o sofrimento institucional como temas de avaliação emergiu dos GAPs, trazido pelos participantes no primeiro momento da construção de indicadores.
Para a construção de narrativas, com base nas transcrições de cada GAP, seguimos a proposta de Onocko-Campos (2011) buscando “tornar denso o material, mantendo-se fiel à história que nele se conta, mas não necessariamente em sua sequência temporal e tampouco reproduzindo as formas lexicais do grupo” (p. 1273). Isto envolveu um primeiro momento de seleção de núcleos argumentais que foram sendo encadeados conforme uma história “que se deixa seguir” (Ricoeur, 1997). As narrativas foram apresentadas no encontro seguinte com os participantes, propiciando assim um momento hermenêutico, onde se buscou que as narrativas fossem validadas e também produzir efeitos de intervenção, na medida em que estes podiam fazer retificações e acréscimos.
Buscando diminuir ao máximo a violência que está presente em toda interpretação, buscamos interpretar junto aos participantes essas narrativas, como parte de um trabalho que Onocko-Campos (2011) nomeou “efeitos da narratividade”. Buscamos não revelar significações por trás do texto, mas colocar um mundo na frente dele (Ricoeur, 1997) e então “interrogamos o tempo todo o material construído procurando identificar no que ele responde a nossos questionamentos” (Onocko-Campos, 2011, p.1276). Assim, o exercício interpretativo, que integrou análise e construção, envolveu um intenso processo de organização do material obtido nos grupos, no qual a produção de narrativas escritas contribuiu para que existisse um distanciamento pelo texto, o que é importante para a compreensão (Ricoeur, 1997; Onocko-Campos, 2011)
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma unidade da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob o parecer 2.482.854.
Resultados
A mitologia das origens
O município onde foi desenvolvido o estudo está organizado em cinco distritos sanitários. Trata-se de um município pioneiro na implementação das reformas sanitária e psiquiátrica, e que possui uma cobertura assistencial adequada nos diversos níveis de complexidade. Nesse sentido, os participantes mencionaram que: “a rede de nossa cidade é referência”; “somos um dos melhores Capsi do país” (Extrato de narrativa, EN).
Na saúde mental de crianças e adolescentes até 2009 o município tinha uma rede de três serviços especializados por diagnóstico e cada um deles era referência para todo o município. Nesse ano, optou-se por reorganizar a rede de atenção baseando-se nas necessidades territoriais. Escolheu-se um modelo de atenção no qual o Capsi é um articulador da rede, que envolve unidades básicas de saúde, centros de convivência, escolas e outros (Teixeira et al., 2015).
Como primeiros desdobramentos, dois serviços foram transformados em Capsi, dividindo a responsabilidade pelo município, e continuaram sendo gerenciados por uma organização social (OS). Em 2014 a Prefeitura optou por criar mais dois Capsi. Ao mesmo tempo, foi lançada uma nota técnica diminuindo o tamanho das equipes, adequando-as ao modelo mais restrito do Ministério da Saúde. A conformação dessas novas equipes foi feita através de concurso e os novos Capsi foram instalados no mesmo espaço físico dos Capsi já existentes.
Em relação a este momento surgem alguns fios de narrativa: “A gente é irmão”; “Nós somos o irmão pobre”, comentam membros de uma equipe de Capsi mais jovem e acrescentam: “nós nunca tivemos supervisão..., nós temos a menor equipe..., nunca recebemos os materiais necessários para montar o serviço”. Essa narrativa parece sinalizar o vínculo existente nas origens dos serviços, desigualdades e o sentimento de não ter tido acesso ao que era necessário para se constituir como equipe.
Condições de trabalho
Os participantes relataram limitações nas condições de trabalho, que marcam o processo de trabalho e geram sofrimento. Algumas dificuldades materiais relatadas foram: espaço físico não adequado às necessidades dos serviços, falta de materiais (como mobília, brinquedos etc.), quantidade insuficiente de refeições para usuários, acesso insuficiente a transporte para realizar atividades no território.
Todos os serviços relatam que vem acontecendo uma diminuição do tamanho das equipes, inclusive com demissões não justificadas, apesar do crescente número de usuários. Por conseguinte, em alguns serviços é muito elevado o número de usuários por técnico de referência.
Existe demanda pela realização e registro de um número pré-estabele-cido de procedimentos, dentro das opções previstas na ficha de Registro das Ações Ambulatoriais de Saúde – RAAS) do Ministério da Saúde. Os trabalhadores sentem que se confunde o número de procedimentos com a realização de um cuidado que atenda às necessidades dos usuários: “A gente faz muitos procedimentos, mas isso não significa necessariamente fazer um bom trabalho” (EN). Inclusive, às vezes, os usuários se afastam do serviço e, após certo tempo sem poder preencher a RAAS, é preciso desligá-los do serviço, o que pode não ser o melhor considerando a singularidade do caso.
Ao mesmo tempo, os trabalhadores manifestam um aumento das exigências nos documentos necessários para ter acesso à medicação de alto custo e a direitos como o passe livre. “Isso vem de instâncias externas e a gente, no Capsi, fica refém, tendo que preencher muitos documentos repetidas vezes para tentar conseguir” (EN).
Os participantes relatam que, como trabalhadores, estão expostos a alguns riscos: exposição a situações violentas, assim como a material bio-lógico contaminante. Inclusive é frequente que aconteçam incidentes de violência vindos de usuários nos serviços — isso não é compreendido por todos como acidente de trabalho, nem reconhecido pelas instâncias centrais — e os trabalhadores ficam com receio de realizar a devida notificação. Além disso, muitos trabalhadores não têm direito à adição por insalubridade, o que eles consideram necessário. Em alguns serviços os trabalhadores relataram estar com o salário congelado.
Processo de trabalho em equipe
Existem práticas comuns nos quatro Capsi, embora com nuances relacionadas às demandas do território e às características das equipes. São feitos: atendimentos individuais, em grupo, ações no território, incluindo o apoio matricial realizado junto aos centros de saúde, em todo o território do município.
A ambiência ou convivência é um dispositivo muito importante no cotidiano dos Capsi estudados. Em alguns serviços, a construção da ambiência teve um caráter emblemático e foi considerada como “o coração do Capsi” (Santos & Onocko-Campos, 2015, p.46). Em cada turno existe uma equipe de ambiência — composta por dois e três trabalhadores, incluindo um de nível universitário — que fica responsável por acompanhar o que acontece, permanecendo disponível para quem chegar, seja de maneira programada ou imprevista. Isso pode implicar: brincar com crianças e adolescentes, dialogar com os familiares, conter um episódio de crise, receber alguém que chegou de forma não planejada, atender o telefone etc. Segundo Santos e Onocko-Campos (2015), em diálogo com a psicanálise winnicotiana, busca-se propiciar experiências de integração do ego. Para isso é preciso ter ampla disponibilidade, o que muitas vezes não acontece: “podemos estar brincando pouco e a ambiência pode estar sendo mais parecida com uma sala de espera” (EN).
O turno na ambiência tem estreita relação com um momento nomeado como “passagem de plantão”, em dois momentos do dia — no início da manhã e início da tarde. Os principais acontecimentos do turno que se encerrou são relatados pelos trabalhadores responsáveis pela ambiência e discutidos entre todos no serviço.
Os quatro serviços realizam reuniões semanais com a participação dos membros da equipe. É um espaço para conversar sobre o cuidado aos usuários e sobre a organização do processo de trabalho. A discussão é registrada em ata.
Os trabalhadores consideram importante que o trabalho seja distribuído entre a equipe e que, ao mesmo tempo, cada trabalhador desenvolva uma diversidade de tarefas assistenciais, sempre buscando integrar o núcleo e o campo (Campos et al., 2014). Assim, consideram que “trabalhadores e trabalhadoras são técnicos de saúde mental para além de serem enfermeira ou médico. E, quando acontecem, as dificuldades têm que ser pensadas em conjunto pelos membros da equipe” (EN).
Existem dificuldades na distribuição de profissionais por atividade, o que gera sobrecarga para alguns, inclusive com a tendência de que sejam sempre os mesmos a fazer as mesmas coisas: “fazemos certos agrupamentos e permanecemos na zona de conforto” (EN). Existem algumas categorias, como os técnicos de enfermagem, que vivenciam maior sobrecarga. Por outro lado, existe demanda para realizar um grande número de atendimentos individuais dirigida aos profissionais de fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia, “entrando quase numa lógica ambulatorial” (Extrato de narrativa). Isso dificulta, e às vezes impede, que esses profissionais possam ter turnos na ambiência, apesar de reconhecerem a importância desse dispositivo.
Os trabalhadores relacionam as dificuldades na distribuição das tarefas com a quantidade de reuniões de planejamento — momentos nos quais é possível re-configurar a organização do trabalho — que consideram insuficiente.
Processo de trabalho e tarefa primária da instituição
Os trabalhadores valorizam os espaços de discussão e, ao mesmo tempo, analisam que existe pouca comunicação e muitas condutas individuais dos trabalhadores: “Buscamos tratar os casos em forma rápida nas reuniões e muitos não queremos nem falar de como estamos trabalhando” (EN). Ademais, é frequente culpabilizar o profissional de referência quando algo não está funcionando com o usuário.
Foi enfatizado que “é importante não colocar tudo na conta do indivíduo — dos estilos ou limitações pessoais — pois tem que estar claro qual é a missão, o dever institucional do CAPS, e qual a direção clínica da equipe” (EN). No entanto, na prática, não há tal clareza e coexistem diversas compreensões. Em alguns serviços, assuntos importantes relacionados com a direção clínica nunca foram discutidos em equipe. Por exemplo, sobre o acesso ao Passe Livre — enquanto alguns profissionais consideram que os usuários devem ter direito a mais dias do que aqueles em que vão para o CAPSI, para terem acesso a atividades de lazer e culturais da cidade, outros discordam. Assim, os serviços têm modos diferentes de lidar com esse tema em função da compreensão de seus profissionais, especialmente os médicos, pois cabe a eles assinar os documentos necessários. Igualmente, no modo de lidar com os usuários, já que alguns profissionais “têm uma visão mais pedagógica de como deve ser o contato com os usuários, outros têm uma posição que faz mais concessões” (EN). Isso leva a que diversas pessoas da equipe lidem diferentemente com os usuários, principalmente diante das solicitações de adolescentes, o que gera conflitos.Contudo,“desse assunto só poderemos tratar com supervisão” (TN).
São muitas as dificuldades que têm consequências na capacidade de diálogo e resolutividade das equipes: “as coisas empacam... às vezes um informe vira pauta e a gente fica horas discutindo na reunião de equipe e não consegue chegar em acordo; as coisas não andam e é muito desgastante” (EN). A supervisão é relacionada também com a necessidade de lidar com a agressividade dentro da equipe: “sem supervisão a gente se mata” (EN). Apesar disso, no período da pesquisa, nenhum dos serviços contava com supervisão clínico-institucional regular. Algumas equipes afirmaram tê-la até pouco tempo atrás, já outras nunca a tiveram. Ao mesmo tempo, as equipes carecem de espaços para discussões teóricas, o que fragiliza o trabalho, que tende a ser cada vez mais burocrático.
Alguns participantes mencionaram que têm percebido um aumento do absenteísmo por atestado médico ao longo dos últimos anos, e consideram que se trata de uma expressão — ou um analisador, tal e como conceitualizado por Laureau (2014) — do sofrimento institucional.
Ao refletir sobre a qualidade das relações dentro das equipes, os participantes perceberam a existência de sexismo e racismo na instituição, presentes também nas relações com os usuários e familiares. Avaliam que as equipes não conversam desses assuntos, e isso faz parte das dificuldades que precisam de um espaço seguro e constante de supervisão para serem discutidas. Por outro lado, também sentem falta de embasamento teórico e ético-político para discutirem esses assuntos com propriedade.
Em decorrência, houve a proposta de se instituir um momento de discussão mensal sobre sexismo, racismo e outras formas de discriminação, quando seria muito importante contar com a presença de convidados de fora dos serviços, inclusive membros de movimentos sociais. Trata-se de uma discussão que foi inédita no curso e que também está praticamente ausente nas pesquisas. Devido à sua importância e aos limites de espaço deste artigo, optamos por aprofundar o assunto em outra publicação.
Relações com as instâncias de gestão
Os participantes consideram que é preciso avançar em relação à tendência de receber decisões da gestão que — nas reuniões — são colocadas como informes. É preciso que exista um Colegiado Gestor — um grupo de trabalhadores eleito, e renovado anualmente, com a função de apoiar a gestão, dividindo algumas responsabilidades — que pode traduzir questões dos trabalhadores para a gestão e vice-versa. Ao mesmo tempo, é necessário que exista a participação da equipe nos processos decisórios, podendo introduzir pautas nas reuniões.
É preciso construir uma comunicação fluida entre as figuras de gestão local, distrital, municipal, o colegiado gestor e a equipe. Também é desejável que os Conselhos Locais participem da construção da gestão no serviço, por exemplo, referentes a questões como contratação, uso de recursos, decisões sobre a infraestrutura.
Os trabalhadores comentaram que não existe clareza sobre os procedimentos de avaliação dos trabalhadores, o que não tem relação somente com a figura da gestão de cada serviço. Trata-se de um processo mais amplo que envolve instâncias centrais.
Formação permanente
No município em questão existe uma tradição de colaboração entre universidades e serviços, envolvendo as dimensões de ensino, pesquisa e extensão. Nesse sentido, dentre os profissionais de nível universitário, muitos concluíram programas de residência ou o aprimoramento; vários realizaram mestrado e alguns doutorado. Dentre os trabalhadores de nível médio, vários possuem graduação ou estão cursando. Ao mesmo tempo, existe consenso sobre compreender que a formação deve ser permanente, pois é fundamental também para se construir a direção clínica do serviço.
A formação permanente é muito valorizada para possibilitar a integração de núcleo e campo. Sob esse enfoque, os participantes consideram que é possível realizar atividades que inicialmente não fazem parte do próprio núcleo profissional — como, por exemplo, uma técnica de enfermagem coordenar grupos terapêuticos — mas, para isso, é preciso que tenham acesso à formação necessária. A formação permanente deve ser pensada junto a todos os trabalhadores, e deve acontecer dentro e fora dos serviços.
Alguns participantes ponderaram que a formação permanente também pode ser importante para os trabalhadores aprovados em concurso público na área da saúde e que não possuem formação nem experiência em saúde mental. Entretanto, avaliam que a não disponibilidade para as demandas desse trabalho, e a falta de identificação com a Reforma Psiquiátrica podem constituir uma limitação instransponível. Os participantes percebem a falta de interesse de alguns colegas pelo trabalho e também por fazer cursos. São trabalhadores que apenas cumprem as suas horas de trabalho, caracterizando burocratização da força de trabalho. Foi cogitada ainda a hipótese de que alguns trabalhadores procuram fazer cursos fora do Capsi para não estarem no serviço.
Houve consenso sobre a necessidade de construir espaços permanentes que integrem representantes dos quatro serviços. Nessa perspectiva, foi proposta a criação de um fórum dos Capsi da cidade, como espaço de interlocução e discussão, que poderia fortalecer a participação dos serviços no Conselho Municipal de Saúde, assim como um espaço de discussão clínica comum.
Discussão
O material narrativo apresentado permite uma aproximação às contribuições psicanalíticas referente a instituições e sofrimento institucional. De acordo com Freud (1930/2010) substituir o poder de um indivíduo pelo poder de uma comunidade é um passo decisivo da civilização, que é construída sob a renúncia ao instinto. Desse modo, o convívio entre iguais e o compartilhamento de leis e projetos possibilitam a regulação do coletivo, mas isto não acontece sem mal-estar para os sujeitos. Onocko-Campos (2012) destaca que nos serviços de saúde frequentemente também existe sofrimento, que deve ser diferenciado do mal-estar. Trata-se de um desgaste peculiar, onde “... uma grande parte do cansaço dos trabalhadores deve-se à permanente exposição ao sofrimento e à morte” (p. 59).
Kaës (1991) aponta que as instituições são constitutivas para a vida psíquica, de modo que: “... nos estruturamos como humanos também (e fundamentalmente) por nossa inserção institucional” (Onocko-Campos, 2012, p.60). A instituição nos confronta a uma quarta ferida narcísica — a percepção de que uma parte de nosso psiquismo está nas instituições e “fora de nos mesmos” — e, ao mesmo tempo, pode proporcionar benefícios narcísicos importantes. Assim, é parte das funções da instituição:
(...) fornecer representações comuns e matrizes identificadoras (...) unir os estados não integrados, propor projetos de pensamento que tenham um sentido para os indivíduos aos quais é destinada a representação e que gerem pensamentos sobre o passado, o presente e o futuro; indicar os limites e as transgressões, assegurar a identidade, dramatizar os movimentos pulsionais... (Kaës, 1991, p. 21)
Costa (2015) destaca que, para Kaës, grupos e instituições se organizam na integração entre processos inconscientes e socioculturais:
(...) o grupo e o sujeito do grupo são determinados pelos arranjos inconscientes que os membros do grupo traçam, também o são pelos organizadores socioculturais. É nesse sentido que leis, enunciados ideológicos, entre outros, tornam-se (ou podem tornar-se) matéria de arranjos internos dos grupos. (p. 148)
Logo, enquanto o organizador inconsciente pode ser “(...) uma fantasia comum delineada entre os membros de um grupo, uma identificação, uma aliança, um medo ou um desejo comum existente entre os sujeitos do grupo” (p. 148), os organizadores socioculturais:
referem-se a elementos construídos socialmente por meio do trabalho da cultura. Eles fornecem modelos normativos para os organizadores psíquicos inconscientes, constituem suporte para a construção de uma origem para o grupo, bem como para a sua identificação como grupo diferente de outros (p. 148).
No presente contexto, a Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica e a implementação pioneira de ambas, no município em questão, podem ser compreendidas como organizadoras socioculturais que dão suporte aos organizadores psíquicos inconscientes e ambos são utilizados para a construção de mitos sobre a origem do grupo — os Capsi da cidade fazem parte de uma rede pioneira no Brasil — e a sua identificação como um grupo singular: “somos um dos melhores Capsi do país”.
Kaës (1991) propõe compreender o Sofrimento institucional no sentido de sofrimentos que, podendo ter diversas fontes, se produzem durante a vida institucional, e para os quais não se trata de enunciar uma única causa. Sofremos pelo fato institucional em si mesmo:
(...) sofremos com o excesso de instituição, sofremos também com a sua falha, com seu fracasso para garantir os termos dos contratos e dos pactos, para tornar possível a realização da tarefa primária que motiva o lugar dos sujeitos no seu seio. (p. 51)
Sofremos também por não compreendermos a causa, o objeto, o sentido e a própria razão do sofrimento que aí experimentamos. Nesse sentido: “o sofrimento radical nasce do esforço para se liberar do indiferenciado e das angústias de dissolução” (p. 51).
No caso dos Capsi que estudamos existem fontes inerentes ao fato institucional e à especificidade das instituições em questão — a delicadeza e dificuldade de lidar com crianças e adolescentes em sofrimento mental e intensa vulnerabilidade socioeconômica. Outrossim, a especificidade do momento atual no estudo, tanto na rede dessa cidade quanto no âmbito nacional. Recuperar aqui as quatro modalidades de sofrimento institucional formuladas por Kaës, e já encontradas em serviços de saúde mental no Brasil (Onocko-Campos, 2012), será importante para ampliar a discussão dos resultados do presente estudo.
O Sofrimento do inextricável tem relação com a aparição da identidade, ou aderência narcísica à instituição, que “traz junto com o vínculo a indiferenciação, a angústia de dissolução. O desafio seria criar dispositivos capazes, ao mesmo tempo, de salvaguardar o vínculo e as formas diferenciadas desse vínculo” (Onocko-Campos, 2012, p. 159).
Onocko-Campos (2012) faz referência à presença dessa modalidade de sofrimento em equipes de saúde mental onde “as pessoas oscilam entre defender suas formas de trabalhar anteriores, o conhecido, ou se diluir numa prática mais generalista” (p. 159). Nesse contexto, para essa autora, seria importante retomar junto com as equipes a reflexão sobre os conceitos de campo e núcleo, sendo que o primeiro favorece a aderência narcísica à instituição e o vínculo entre os membros do grupo. Já o núcleo possibilitaria “o regaste de uma identidade profissional, sentida sob ameaça pela nova proposta de trabalho interdisciplinar (equipes de referência)” (p. 159). Nos Capsi estudados, a relação de diferentes trabalhadores com a ambiência pode ser relacionada com essa modalidade de sofrimento institucional. Por um lado, algumas profissionais de áreas como psicologia, terapia ocupacional e fonoaudióloga lamentam não poder realizar turnos na ambiência porque têm altíssima demanda — vindo da equipe, da gestão e dos familiares — para fazer atendimentos individuais. Ao mesmo tempo, alguns trabalhadores se recusam a realizar a proposta da ambiência, pois consideram que, como trabalhadores de saúde mental, não cabe a eles “fazer recreação”, que é como entendem o brincar com as crianças.
O sofrimento associado a uma perturbação da função instituinte envolve a perda da ilusão institucional. A ilusão permite que toda organização crie uma mitologia de sua origem, sendo a falha – por excesso ou por falta –fonte de sofrimento. Segundo Kaës, “uma instituição nova não pode dispensar a ilusão de ser inovadora e conquistadora”. Para Onocko-Campos (2012):
(...) a falha de ilusão institucional priva os sujeitos de uma satisfação importante e debilita o espaço psíquico comum dos investimentos imaginários que vão sustentar o projeto da instituição, dispor a identificação narcísica e o sentimento de filiação a um conjunto suficientemente idealizado para enfrentar as dificuldades internas e externas. (p. 53)
Ainda: “Os fracassos contratuais poderiam ser considerados como sofrimento da fundação e da função instituinte” (p. 54). São momentos em que a instituição é atacada ou ataca seus membros como incompetentes, ou a sua própria tarefa primária, ou então burocratiza ou desvia seus trabalhadores para outras tarefas.
Nos Capsi estudados existe uma história que sustenta a ilusão de se tratar de uma cidade que tem uma boa tradição na assistência à saúde mental, um lugar no qual os trabalhadores participaram da tomada de decisão pela transformação do modelo assistencial. Por outro lado, está acontecendo uma “perda da ilusão”. Nos quatro serviços narra-se uma crise sem precedentes que atinge a rede, os serviços e os trabalhadores. A chegada de trabalhadores que não compartilham a identificação com os valores da reforma psiquiátrica contribui para fragilizar a ilusão institucional.
Em se tratando do sofrimento relacionado a obstáculos para a realização da tarefa primária — a que alicerça a razão de ser e a finalidade da instituição — há que se sopesar “... a razão do vínculo que ela estabelece com os seus sujeitos: sem a sua realização ela não pode sobreviver” (Kaës, 1991, p. 54). Os trabalhadores relatam diversas situações: horas despendidas em atividades não destinadas à assistência (como preencher inúmeros formulários), a falta de recursos necessários para o trabalho (como materiais e brinquedos, acesso a transporte, refeições para os usuários etc.), diminuição do tamanho das equipes, com a ocorrência de algumas demissões inesperadas, entre outros que poderiam ser considerados dentro deste tipo de sofrimento
Outra modalidade de sofrimento institucional é o sofrimento associado à instauração e manutenção do espaço psíquico. Conforme Kaës (1991) “é desejável que a instituição ofereça um espaço psíquico de contenção, ligação e transformação” (p. 56). Esse espaço “diminui com a prevalência do instituído, com o desenvolvimento burocrático (...) com a estratégia de dominação de alguns de seus sujeitos, ou quando parte deles se vê ameaçada” (Onocko-Campos, 2012, p. 163).
Podemos relacionar isto com o pouco espaço que muitos trabalhadores encontram para fazer novas propostas de atividades assistenciais — “fizemos uma proposta de um novo grupo terapêutico, mas a gestão não achou interessante usar o tempo que poderíamos dedicar a atendimentos individuais” (Extrato de narrativa).De modo similar com a sensação de insegurança, que tomou a forma extrema pelas demissões injustificadas.
Diante dessa realidade, a oferta de supervisão clínico-institucional regular é um dispositivo que poderia ajudar a lidar com o sofrimento institucional. A expressão “Sem supervisão a gente se mata” pode ser relacionada ao sofrimento referente à sensação de não contar com o espaço psíquico necessário na instituição, o risco que isto traz para as relações entre os profissionais e, certamente, para a realização da tarefa primária, que é o cuidado aos usuários. Outros fenômenos como o aumento crescente dos atestados médicos podem ser pensados como expressão de perda da ilusão.
Os resultados deste estudo vão ao encontro de outras publicações realizadas com trabalhadores e também apresentam novidades em relação a estudos anteriores. Entre os trabalhadores há grande valorização da reforma psiquiátrica, corroborando outros estudos (Athayde & Henington, 2012; Muylaert et al., 2015b), o que favorece a aderência narcísica e a implicação dos trabalhadores no trabalho, como também encontrado por Ferrer (2007) e, inclusive, o prazer no trabalho, como no estudo de Glanzneret al. (2011), que coexiste com a sensação de ter que lidar com demasiadas demandas de trabalho em condições desfavoráveis (Ferrer, 2007).
Diferentemente de outros estudos (Bellenzani et al., 2016), a sensação de despreparo técnico não é predominante entre os participantes, a não ser diante de temas considerados novos (como relações raciais e de gênero). O achado pode refletir a realidade de uma cidade universitária e o perfil já relatado de profissionais com alto grau de educação formal. O que predomina é a sensação de falta de espaços de discussão e de formação permanente, que coexiste com algumas tensões e dificuldades de comunicação nas equipes, como também encontrado por Bellenzani et al. (2016). Nos serviços que participaram deste estudo, profissionais de todas as categorias participam de diversas atividades no serviço sem ter uma posição hegemônica frente aos outros trabalhadores, diferentemente do que foi descrito no estudo de Pinho et al. (2018), no qual os médicos não participavam das reuniões. No estudo de Muylaert et al. (2015a) foram encontradas grandes diferenças entre trabalhadores com diferentes vínculos: os da OS pareciam ter menos envolvimento político e formação para a saúde mental, e também menos idade e tempo de prática profissional do que os trabalhadores da prefeitura. No presente estudo não foi encontrada tal diferença de um modo marcante.
Considerações finais
Ao refletir sobre a formação de profissionais para a saúde mental, Emerich e Onocko-Campos (2019) formulam que é necessário incluir o sujeito, o coletivo e a instituição no processo formativo para trabalhadores e gestores. Em diálogo com os referidos autores, consideramos que esta pesquisa-intervenção foi uma experiência de formação permanente, que integrou as três dimensões mencionadas no processo formativo e na qual houve também aprendizagem pelo trabalho.
Este trabalho mostrou que a história da Reforma Psiquiátrica é uma fonte de aderência narcísica dos trabalhadores com a instituição, que fortalece a ilusão institucional, o que pode contribuir para manter o espaço psíquico e a abertura para práticas instituintes. Contudo, para isso é necessário que existam condições objetivas: possibilidade de realizar a tarefa primária — oferta de supervisão, mais espaços de discussão, de formação, recursos materiais, em suma, melhores condições de trabalho.
Diante dessas considerações, constatamos a importância do trabalho com as narrativas em uma pesquisa qualitativa em saúde, fruto de uma intervenção que trouxe alguns efeitos, tais como: a percepção de dificuldades nas equipes que requerem espaços de supervisão e de discussão ético-política e estudos, além da retomada de um fórum comum aos quatro serviços. Escutar as narrativas, desde as contribuições de René Kaës sobre instituições e sofrimento institucional, constituiu um exercício interpretativo fecundo que poderá ser aprofundando em novos estudos.
Onocko-Campos (2012) nos lembra, citando Freud, que o que não se fala se atua. Apostamos em que o produto ora apresentado constitui um convite para o diálogo, uma oferta de bordas e acolhimento.
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Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, processo número 108601/2017-0). / This work is supported by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, processo número 108601/2017-0).
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Este artigo é um dos produtos do estágio pós-doutoral da primeira autora que foi desenvolvido sob asupervisão da segunda, no Departamento de Saúde Coletiva, na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (Campinas, SP, Brasil).
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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2022
Histórico
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Recebido
30 Ago 2021 -
Aceito
25 Jan 2022