Open-access Frantz Fanon e as patologias da liberdade

Frantz Fanon and the pathologies of freedom

Alienação e liberdade – Escritos psiquiátricos. Fanon, Frantz. São Paulo: UBU Editora, 2020. 400

O livro Alienação e Liberdade - Escritos Psiquiátricos é uma coletânea de artigos, redigidos por Frantz Fanon no calor de suas práxis clínica como médico psiquiatra nos hospitais de Saint-Alban (França) e de Blida-Joinville (Argélia). Lançado no Brasil em 2020, conta com a apresentação do filósofo Renato Nogueira e introdução de Jean Khalfa, que foi organizador dos Écrits sur l’aliénation et la liberté na edição francesa de 2015. Esses escritos reforçam a qualidade e potência da curta e profícua trajetória intelectual do psiquiatra martinicano. Se os leitores brasileiros da obra de Fanon já têm conhecimento de suas ideias políticas e culturais sobre as questões negra e colonial, terão agora a possibilidade de conhecer mais acerca de sua visão da subjetividade humana, da medicina e da prática psiquiátrica.

Nas obras anteriores de Fanon como Pele negra, máscaras brancas e Condenados da terra o que ficava mais em destaque era o filósofo e o intelectual orgânico da luta anticolonial africana. Soma-se a isso, seu trabalho ativo ao lado do psiquiatra catalão François Tosquelles na formulação das bases da psicoterapia institucional como alguém que estava na vanguarda das lutas-antimanicomiais que se seguiram em várias partes do mundo.

Em Alienação e liberdade um conjunto de novas questões se abrem. A principal novidade a ser destacada em termos de compreensão do pensamento do autor está na centralidade do exercício clínico em instituições públicas, incidindo na sua teoria e na sua luta revolucionária. Ao adentrar os muros das instituições psiquiátricas, Fanon passa a definir a loucura como uma patologia da liberdade, em que regimes de conflitos impedem a realização do exercício da liberdade e da emancipação e, portanto, resultem de uma despersonalização absoluta e de uma desumanização sistemática por parte do Estado colonial. São justamente estes aspectos filosóficos e epistemológicos que abrem possibilidades de uma ampla agenda de pesquisa sobre as reflexões do autor.

Para o olhar revolucionário de Fanon cada encontro clínico expressa as tensões do mundo. Nos corpos, que padecem da patologia da liberdade, encontram-se inscritos os efeitos da colonização, os delírios daqueles que estão sob seus cuidados extrapolam em muito uma psicopatologia individualizada inscrita num suposto complexo edipiano, do mesmo modo que seu olhar clínico permite acessar nas frentes de lutas as amarras e conflitos subjetivos como dimensões da transformação não só das condições materiais, mas também da emancipação do espírito.

Chama atenção ainda a acuidade com que Frantz Fanon dialoga com Freud, Lacan, Tosquelles e, principalmente, Henri Ey, entre tantos autores seminais em seus campos de conhecimento. Por vezes se aliando aos seus argumentos e, em outras tantas vezes, se contrapondo e promovendo rupturas.

A obra foi subdividida em quatro partes.

Inicia com um conjunto de observações clínicas colhidas por Fanon ao longo de tratamentos no contexto da psicoterapia institucional. Formando um conjunto de artigos que foram escritos a maior parte deles em coautoria com seus parceiros de trabalho, como François Tosquelles e Charles Gernonimi. A articulação entre clínica e política foi o eixo norteador pelo qual a abordagem de Fanon se deu. Foi sobre esse prisma que elegeu a loucura como efeito e metáfora do colonialismo, e o racismo como pano de fundo para a subalternização, desumanização e desagregação do africano colonizado, o que permitiu concluir que o mundo branco adoece o negro por meio da experiência sistemática da discriminação. Problematizava, também, aspectos fisiológicos e anatômicos de lesões neurológicas e sua relação com sintomas psíquicos, como as experimentações medicamentosas na utilização de sais de lítio, eletrochoque, insulinoterapia e até mesmo terapia do sono, sem nunca relegar a um lugar secundário a cultura, os processos subjetivos e as condições sociais. Procedimentos esses que visavam favorecer o trabalho psicoterápico em combinação com uma série de mudanças na rotina dos internos.

A segunda parte conjuga textos que a partir das ciências humanas e sociais mergulham em aspectos da cultura norte-africana e a relação desta com a loucura. Fica nítido que Fanon e seus pares objetivavam escapar das lógicas coloniais da psiquiatria organicista europeia a partir de saberes e dispositivos psíquicos de cuidado das culturas tradicionais árabe-africanas, ao mesmo tempo que criticavam o caráter essencialmente biologicista da psiquiatria da época. Para Fanon, o sofrimento psíquico próprio à loucura é a expressão de uma exclusão social mais profunda, que carrega as marcas da revolta contra a naturalização da experiência de alienação social, e seu tratamento só pode ser feito mobilizando os horizontes de luta contra o modelo colonial que tem nos discursos médicos processos de sujeição social que constituem a própria alienação mental.

A terceira parte traz a transcrição de um curso sobre psicopatologia social ministrado no Institut des Hautes Études de Túnis entre 1959 e 1960, além de editoriais do jornal interno do Hospital Psiquiátrico Saint-Alban, onde Fanon trabalhou entre 1952 e 1953. Esses textos trazem uma visão engajada nos processos de desinstitucionalização, contrária aos grandes confinamentos.

O último capítulo apresenta o estudo “Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão”. A discussão central é a questão da causalidade neurológica e da causalidade psiquiátrica. Esse texto foi apresentado como substituto do trabalho originalmente defendido Pele negra, máscaras brancas (2008), que fora recusado por não ter as características formais exigidas pela academia francesa.

As contribuições à psicoterapia institucional e à luta antimanicomial que constituem elementos fundamentais das elaborações de Fanon terão em Franco Basaglia e na Reforma Psiquiátrica Italiana as bases da reforma manicomial no Brasil, que, no entanto, não tematiza o racismo estrutural. Para além disso, seu trabalho clínico permite produzir aberturas na psicanálise a ponto de inferirmos inflexões importantes nas formas de exercer a clínica na sua intersecção com a política. A perspectiva singular de Fanon permitiu extrair dos diálogos entre psicanálise e psiquiatria consequências mais radicais do que a produzida pelo movimento institucionalista francês e italiano. Ao produzir uma sociogênese não só da loucura, mas do racismo, Fanon adentra à produção do inconsciente colonial do sistema-mundo moderno em que clínica e luta não se separam. Esquivando-se às polarizações e aos falsos problemas, como suposta separação entre estruturas sociais e processos subjetivos, Fanon encontra uma potência de pensamento que segue atual e revolucionária.

  • Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/ University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

Referências

  • Basaglia, F. (1985). A Instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico Rio de Janeiro, RJ: Graal.
  • Fanon, F. (1979). Os condenados da terra (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
  • Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas Salvador, BA: EDUFBA.
  • Fanon, F. (2020). Alienação e liberdade - Escritos psiquiátricos São Paulo, SP: UBU Editora.
  • Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    27 Jan 2021
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