O presente artigo explora alguns impactos políticos e sociais reconhecidos nos dez anos que sucederam as manifestações de junho de 2013, dando ênfase a um fator específico: o papel das mídias sociais no cenário político e na mobilização de grupos. Partindo desse foco, trata da possibilidade de que tais ferramentas digitais possam ser melhor exploradas por certos grupos políticos em detrimento de outros, e os motivos para tanto. Tal questão será discutida a partir de autores de estudos da tecnologia, da teoria social e da psicanálise. Não necessariamente inferindo uma diferenciação de conteúdo de ideologias políticas, propomos essa distinção considerando que os impactos subjetivos e de mobilização produzidos por tais mídias podem ser assimilados e empregados de acordo com objetivos específicos. Trata-se, assim, de um exame sobre os impactos que as mídias sociais produzem em processos de subjetivação e de agrupamento, e seus efeitos políticos.
Palavras-chave: Mobilização social; política; tecnologia; mídias sociais; psicanálise
Resumos
This paper explores political and social impacts present in the ten years since June 2013 demonstrations, emphasizing an specific factor: the role of social media in the political landscape and in mobilizing groups. We take as a central question the possibility that those digital tools are better explored by some political groups to the detriment of others, and the reasons that explain this difference. This question is developed with authors from the studies of technology, social theory, and psychoanalysis. Without necessarily assuming a content differentiation among political views, we propose their distinction considering that the subjective and the mobilizing impacts produced by these media can be assimilated and employed according to specific objectives. Therefore, this study is an examination of the impacts that social media produce on subjectivation and grouping processes, and their political effects.
Key words: Social mobilization; politics; technology; social media; psychoanalysis
Cet article explore certains des impacts politiques et sociaux constatés au cours des dix années qui ont suivi les manifestations de juin 2013, en mettant l’accent sur un facteur spécifique: le rôle des médias sociaux dans le paysage politique et dans la mobilisation des groupes. À partir de là, il aborde la possibilité que ces outils numériques puissent être mieux exploités par certains groupes politiques au détriment d’autres, et les raisons de cette différence supposée. Cette question sera discutée à l’aide d’auteurs issus des études technologique, de la théorie sociale et de la psychanalyse. Sans nécessairement en déduire une différenciation dans le contenu des opinions politiques, nous proposons cette distinction en considérant que les impacts subjectifs et mobilisateurs produits par ces médias peuvent être assimilés et utilisés en fonction d’objectifs spécifiques. Il s’agit donc d’examiner les impacts que les médias sociaux produisent sur les processus de subjectivation et de regroupement, et leurs effets politiques.
Mots clés: Mobilisation sociale; politique; technologie; médias sociaux; psychanalyse
Este artículo explora los impactos políticos y sociales desencadenados tras diez años de las manifestaciones de junio de 2013 enfatizando un factor específico: el papel de las redes sociales en los escenarios políticos y en la movilización de grupos. A partir de este foco, se aborda la posibilidad de que estas herramientas digitales sean mejor exploradas por unos grupos políticos que por otros, y las razones que explican esta diferencia. Para discutir esta cuestión se utiliza autores de la filosofía de la tecnología, de la teoría social y del psicoanálisis. Sin asumir necesariamente una diferenciación de contenido entre ideologías políticas, se propone esta distinción teniendo en cuenta que los impactos subjetivos y de movilización que producen estas herramientas digitales pueden ser asimilados y empleados de acuerdo con objetivos específicos. Se trata, por tanto, de un examen sobre los impactos que las redes sociales producen en los procesos de subjetivación y agrupación, y sus efectos políticos.
Palabras clave: Movilización social; política; tecnología; redes sociales; psicoanálisis
Introdução
É sabido que o contexto anterior a junho de 2013 foi marcado pela emergência de diversos movimentos sociais ao redor do mundo, como a Primavera Árabe, a onda de protestos conhecida como Occupy Wall Street (OWS) e os “indignados” da Espanha. No Brasil, entretanto, exceto algumas manifestações contra a corrupção motivadas pelo escândalo do mensalão nos anos de 2011 e 2012 (Rocha, 2018), foi somente após o julgamento do mensalão ter sido amplamente televisionado, nos meses que antecederam junho de 2013, que o discurso anticorrupção se consolidou como uma das principais pautas dos protestos que ocorreram posteriormente. A essa pauta somaram-se o antipetismo, fator de coesão social, e o ressentimento, sentimento possivelmente gerado pela reorganização social em andamento (Solano, 2018). Apesar de movimentos com pautas e grupos distintos, pode-se reconhecer que os efeitos da crise econômica deflagrada a partir de 2007 seriam um elemento causal comum entre os protestos ao redor do mundo, incluindo o Brasil (Pinheiro-Machado, 2019). Entretanto, para além de um elemento causal comum, amplo e heterogêneo em seus impactos locais, há outro ponto partilhado por tais ações reivindicatórias: o uso das mídias sociais, as quais tiveram um papel central em muitas frentes e na organização dos movimentos, sendo utilizadas para convocar o povo às ruas (Castells, 2013). O objetivo deste artigo é explorar como as mídias sociais se estabeleceram enquanto um fator incontornável na política contemporânea nos últimos dez anos, tendo como foco os efeitos de mobilização e engajamento produzidos. A partir de um exame amplo dos caminhos que a política brasileira tomou na última década, aprofundaremos a compreensão sobre o modo de funcionamento das mídias sociais, para então propormos uma análise dos processos psíquicos envolvidos.
Primeiramente, deve-se considerar que as mídias sociais, naquele momento, influíram menos no conteúdo das manifestações e mais na sua adesão e massificação. A luta do Movimento Passe Livre (MPL) representou o pontapé inicial das jornadas de junho, amplificando uma reivindicação que não vinha das redes, mas das ruas — a redução da tarifa do transporte público em São Paulo. O MPL, então, passou a convocar protestos através de grupos e eventos no Facebook, ao passo que manifestantes utilizaram seus celulares para compartilhar fotos e vídeos das manifestações nas mídias sociais, bem como para denunciar a violência da repressão policial. Além disso, coletivos de mídia livre, como o Mídia Ninja, chegaram a fazer transmissões ao vivo dos protestos. Os próprios manifestantes e coletivos fizeram uma cobertura dos fatos, mostrando uma outra face que a imprensa tradicional não mostrava. A cada manifestação que ocorria no decorrer de junho, o número de pessoas confirmadas nos eventos do Facebook aumentava (Silveira, 2015).
Durante esse processo, páginas do Facebook foram ganhando alcance e visibilidade. Nos meses seguintes aos eventos de 2013, páginas do Facebook que faziam críticas à corrupção e elogios a Jair Bolsonaro cresceram intensamente, como a página Movimento de Combate à Corrupção (MCC), que ganhou mais de um milhão de likes — sendo que, antes de junho de 2013, seu número não chegava a cem mil (Silveira, 2015). Outro ponto de destaque foi o uso dos memes, utilizados sobretudo pela direita para facilitar a adesão aos seus ideais. Ainda segundo Silveira (2015), “os memes da direita capturavam pessoas que não se identificavam com sua agenda, mas queriam um mundo melhor e acreditam em uma sociedade mais justa” (p. 225). Cada vez mais, as mídias sociais se consolidavam como um instrumento de mobilização política. Se, inicialmente, o MPL e outros partidos e coletivos de esquerda encabeçaram o engajamento nas mídias sociais, dando início à primeira fase das jornadas de junho, posteriormente, a direita se apropriou do cenário de insatisfação generalizada para impulsionar suas pautas através das mesmas mídias. Nesse momento, o teor dos protestos de rua também muda: as manifestações começam a assumir um caráter apartidário e contrário à política institucional, o perfil dos manifestantes deixa de ser jovem, não branco, estudante e de baixa renda, passando a abarcar pessoas mais velhas, brancas e de melhor condição econômica, e as reivindicações tornam-se múltiplas.
Talvez as duas consequências políticas mais imediatas das jornadas de junho tenham sido a da tarifa do transporte público e a queda vertiginosa da popularidade da então presidenta eleita pelo PT, Dilma Rousseff (de 57% para 27%). A insatisfação com o governo e o desejo de mudança abriram espaço para que grupos de extrema-direita ocupassem o debate público e a internet, impulsionando o ultraconservadorismo no Brasil. Pode-se afirmar, assim, que as jornadas de junho criaram as condições de possibilidade para os protestos de 2015 e 2016 pelo impeachment de Dilma Rousseff, que ocorreu em abril de 2016 com parlamentares exaltando torturadores e votando em nome de Deus, da pátria, da família e da liberdade (Machado & Miskolci, 2019). Nesse momento, uma parcela significativa da população já estava convencida de que o PT e seu legado deveriam ser extirpados da vida política do país — perspectiva amplamente endossada tanto pela mídia tradicional quanto por inúmeros veículos de comunicação das mídias sociais (Melo & Vaz, 2018).
O impeachment ocorrido em 2016 foi decisivo para os desdobramentos posteriores, permitindo a mobilização de vários setores da direita brasileira. A reacomodação de uma nova direita encontrou refúgio na luta pró-impeachment; parte dela via em Bolsonaro uma resposta às suas reivindicações, enquanto outra parte o considerava a alternativa mais viável para derrotar a esquerda, sendo elevado à posição de liderança de um movimento mais amplo, que passou a ser denominado por jornalistas e estudiosos de “bolsonarismo” (Barbosa, 2022). Tal fenômeno político seria mediado pela figura de um “homem do povo” que “fala o que pensa”, ainda que o sufixo “ismo” dê notícias de que o conjunto de expectativas, percepções e visões desse movimento não se reduz ao seu personagem principal (Baldaia, Araújo & Araújo, 2021). Segundo Baldaia, Araújo e Araújo (2021), o uso eficiente da comunicação em ambientes digitais é precisamente uma das características que caracteriza o bolsonarismo enquanto movimento político contemporâneo.
É importante destacar que a internet não é mobilizada politicamente apenas por grupos de direita, e que seu uso intensivo durante campanhas eleitorais e governos não é exatamente uma novidade. Entretanto, esse ambiente digital mudou drasticamente nos anos 2010 e 2020. Com o advento das mídias para smartphone, como o WhatsApp, conteúdos mais curtos e de fácil assimilação e circulação passaram a ser privilegiados. Além disso, mais pessoas passaram a ter acesso à internet, aumentando o volume de conteúdo político disponibilizado nas redes. O engajamento adquiriu dimensões sem precedentes.
Diferentemente dos meios de comunicação de massa tradicionais, que são unidirecionais, a internet, com a rapidez na difusão da informação e o anonimato, permite uma comunicação mais horizontal, de cidadão para cidadão, e sua constante transformação “amplia o alcance dos meios de comunicação para todos os domínios da vida social” (Castells, 2013, p. 9), transformando o indivíduo em produtor de conteúdo. Além disso, Castells também aponta que essa mudança comunicacional promovida pela internet “afeta diretamente as normas de construção de significado e, portanto, a produção de relações de poder” (p. 9). O uso contínuo da internet e das mídias sociais como forma de mobilização social se deu de forma bastante significativa e estratégica quando observa-se o cenário das eleições de 2018. Bolsonaro venceu as eleições tendo apenas oito segundos no horário eleitoral gratuito e utilizando amplamente suas redes sociais (Prazeres, 2018). Nesse contexto, a vitória representou um turning point na forma como se dão as campanhas eleitorais (Bichara, 2019).
A análise dos dados de uma pesquisa realizada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2018) revela que a campanha de Jair Bolsonaro utilizou uma estratégia de comunicação parecida com a do antigo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump: a segmentação de campanha em diferentes perfis de eleitores, utilizando as técnicas de microtargeting e profiling. Para Moraes e Pinto (2020), microtargeting político é um tipo de estratégia em que se emprega uma combinação entre análise de dados e campanha política personalizada.
(...) os rastros do comportamento on-line de cada indivíduo — posts que curte, páginas que segue e pesquisas que faz nos sites de busca, bem como os testes de personalidade aos quais responde — são coletados pelos mais diversos sites e vendidos a empresas de marketing político (Borgesius et al., 2018). Cada uma dessas informações consiste em um data point, e a quantidade sem precedentes de data points acumulada pelas empresas de tecnologia é denominada big data. (Moraes & Pinto, 2020, p. 74)
Já a técnica denominada psychometric profiling constitui-se pelo desenvolvimento de perfis do eleitorado tendo como base seus traços de personalidade (Moraes & Pinto, 2020). Segundo Campos et al., (2019), outro fator decisivo nessas eleições foi o alinhamento entre o Facebook e o Twitter de Bolsonaro no segundo turno das eleições. O então candidato se mostrou mais presente no Twitter, contabilizando um total de 367 tweets, uma média de 17 tweets por dia; no Facebook, a média diária ficou por volta de 9 publicações, contabilizando ao todo 184 publicações. Os dados revelam que, tanto no Twitter quanto no Facebook, a temática mais frequente foi o ataque a adversários (Fernando Haddad, Manuela D’Ávila, Luiz Inácio Lula da Silva, opositores do governo, ativistas, petistas e imprensa). Outras temáticas presentes em suas postagens foram: o apoio/agradecimento a líderes, políticos e populares; a corrupção de seus adversários e a desconstrução da imagem do país (Campos et al., 2019).
Bolsonaro conseguiu atrair o apoio de um público cada vez mais diversificado ao longo de sua campanha. “Antes de oficializar sua candidatura, os dados apontavam que de cada 4 potenciais eleitores, 3 eram homens, ou ainda que 60% daqueles que declararam intenção de voto eram jovens (entre 16 e 34 anos)” (FESPSP, 2018, p. 8). Esse perfil foi se diversificando com o passar do tempo, ao segmentar o direcionamento das suas mensagens para grupos específicos, conseguindo “(...) assumir diferentes formas, a partir das aspirações de seus apoiadores” (p. 8). De acordo com a pesquisa da FESPSP (2018), não existiu em 2018 um “eleitorado de Bolsonaro”, caracterizado por um grupo social específico, sendo possível, na verdade, agrupar os apoiadores e eleitores em 16 grupos: pessoas de bem; masculinidade viril; nerds, gamers, hackers e haters; militares e ex-militares; femininas e “bolsogatas”; mães de direita; homossexuais conservadores; etnias de direita; estudantes pela liberdade; periféricos de direita; meritocratas; influenciadores digitais; líderes religiosos; fieis religiosos; monarquistas; isentos.Link: 1
Em 2018, as estratégias anteriormente citadas conseguiram captar, entre os perfis dos possíveis eleitores, os valores comuns, e sintetizá-los em uma figura: o “cidadão de bem”. Essa figura é central, ela “(...) passou a designar aquele que, além de ter uma conduta individual ‘correta’ e saber se comportar nas manifestações, se distingue dos ‘bandidos’ (corruptos) ou de quem apoia bandidos” (FESPSP, 2018, p. 9). Nessa circunstância, não só foi possível manter o discurso da competitividade entre os indivíduos, como também foi possível criar a figura de um outro, o bandido ou aquele que apoia bandido, que é a representação da “corrupção”, aquele que tenta subverter a norma. No eleitorado de Bolsonaro, a expressão corrupção tem vários sentidos, engloba não apenas o sentido financeiro, mas também condutas privadas e morais. “A força da categoria ‘cidadão de bem’ vem de que ela se presta a tipificar uma espécie de barreira moral e política encarnada nas pessoas que resistem ao ‘avanço do comunismo’, à ‘ideologia de gênero’, às ameaças ao Estado de direito e ameaças à liberdade religiosa” (FESPSP, 2018, p. 10). Constitui, sobretudo, uma negação daquilo que estaria estabelecido, ponto central que retomaremos mais à frente.
Os discursos antidemocráticos amplificados pelas mídias sociais e o sentimento de indignação diante dos governos do PT, supostamente “responsável” por todos os males, favoreceu no espectro político um autonomismo liberal que tendenciou para a ascensão de uma direita ultraconservadora, que no Brasil foi instrumentalizada pelo ex-presidente Bolsonaro (Melo & Vaz, 2018). Na seção seguinte, serão abordadas as estratégias utilizadas em ambiente digital para fazer circular os conteúdos ultraconservadores em larga escala. A pergunta que orienta esse segundo passo é: qual é a especificidade do funcionamento das mídias sociais que permite que sejam melhor aproveitadas por determinados grupos?
As mídias sociais hoje: implicações políticas
A centralidade das mídias sociais se mostra de maneira incontornável já em junho de 2013, quando funcionaram como um importante canal de organização: segundo pesquisa feita pelo IBOPE,Link: 2 63% dos manifestantes tinham menos de 29 anos e 77% dos presentes se mobilizaram através do Facebook.
Nos últimos dez anos, a utilização política das redes mudou drasticamente. Primeiro, houve um aumento da penetração da internet e dos smart-phones, integrando cada vez mais a vida social com as relações digitais. Segundo a pesquisa TIC Domicílios,Link: 3 em 2013 51% da população era usuária de internet. Em 2022, esse número foi para 80%, com 99% desses usuários acessando a internet pelo telefone celular (contra 76% em 2013). Além disso, o número de horas gastas no celular aumentou, com cada vez mais atividades cotidianas sendo realizadas de forma digital.Link: 4 Essa penetração levou a uma presença cada vez mais forte de atores políticos no ambiente digital. Se no início da década passada as mídias sociais funcionavam como uma espécie de “caixa amplificadora” do processo político (Wolfsfeld, Segev, & Sheafer, 2013; Enikolopov, Makarin & Petrova, 2020), inclusive durante as jornadas de junho (Quinaud et al., 2016; Fidelis & Lopes, 2015), hoje é possível afirmar que o uso delas é parte integrante da vida política — as pautas são mobilizadas numa relação cada vez mais direta entre o produtor e o consumidor de conteúdo. Atualmente, os ambientes digitais são parte incontornável do arranjo político, com conteúdos e discursos pensados especificamente para eles (Baptista et al., 2019, Machado & Miskolci, 2019, Bessone et al., 2022).
Essa mudança trouxe novos questionamentos sobre o controle da propagação de informações através das mídias sociais: cabe lembrar que uma das consequências dos protestos de 2013 foi o começo da discussão sobre uma melhor regulamentação dos ambientes digitais. As mobilizações, dessa forma, influenciaram fortemente a construção do Marco Civil da Internet no Brasil em 2014. Naquela época, a preocupação estava muito mais voltada à proteção dos usuários e das próprias plataformas digitais, sendo que as normas estabelecidas buscavam assegurar a liberdade de expressão e a privacidade dos dados. Passados dez anos das manifestações, as preocupações em relação às redes mudaram, e as normas estabelecidas no Marco Civil da Internet não parecem mais ser suficientes (Almeida et al., 2022). O crescimento da comunicação via aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram e o volume de produção de conteúdo dificultam a fiscalização de potenciais ofensas aos limites da lei. Isso se observa nos diversos escândalos globais e nacionais que aconteceram nos últimos anos, como os disparos em massa de fake news nas corridas eleitorais mundo afora, que só é possível, justamente, pela existência de brechas na regulamentação.
O conteúdo divulgado também mudou desde 2013. As interações, que eram majoritariamente textuais, produzidas por indivíduos e grupos específicos, migraram para materiais imagéticos como fotos e vídeos, que se propagam de modo personalizado a partir da captação de dados e da gestão algorítmica do engajamento. Além disso, hoje os usuários conseguem produzir cada vez mais conteúdos, graças ao enfoque dado aos formatos de vídeo e áudio — basta começar a gravar. Com maior volume de informação, o medo de perder o próximo conteúdo (Przybylski et al., 2013) tornou o consumo cada vez mais rápido; os conteúdos ficaram mais curtos e simples, para serem propagados com maior facilidade (Tellis et al., 2019). Mais importante: a concorrência para que tal conteúdo chegue aos usuários aumentou significativamente. Essas mudanças não somente dizem de uma alteração do ponto de vista do consumo, mas também demonstram que, ao longo dos anos, a vida social se integrou ao meio digital de forma planejada e, nesta transformação, não é possível descartar o interesse das plataformas. Conforme as relações pessoais e de trabalho incorporaram a mediação digital em seus processos, as mídias sociais cresceram e passaram a ter mais poder, principalmente do ponto de vista informacional (Zuboff, 2018).
Os smartphones com acesso à internet, de forma mais ampla, e as mídias sociais, em especial, reduziram a barreira de entrada para a criação e o compartilhamento de conteúdo nos mais variados formatos. Como apontado anteriormente, se no começo da década de 2010 havia uma esperança de que essa tecnologia pudesse ser utilizada para aprimorar os regimes democráticos, os últimos dez anos mostraram que essa ainda é uma promessa distante (Zhuravskaya, Petrova & Enikolopov, 2020). Ao contrário, a forma de consumo através das mídias sociais favorece, cada vez mais, conteúdos curtos, simples e com forte apelo emocional (Tellis et al., 2019). Nesse novo contexto, as ferramentas de propaganda política tiveram sucesso nas redes através da propagação de notícias falsas — ou de manchete tendenciosa — com maior engajamento de posições até então tidas como extremistas (Vosoughi, Roy & Aral, 2018). Para analisar essa mudança, podemos pensar o efeito social das redes como uma “máquina de produzir engajamento” (Aral, 2020) construída em três camadas: i) a rede de conexões digitais entre as pessoas; ii) como se dá a interação entre humanos e algoritmos dentro dessa rede; iii) e o meio pelo qual essas interações acontecem, que hoje são os smartphones com conteúdo em texto, áudio e vídeo. Cada uma dessas camadas evoluiu muito nos últimos dez anos: boa parte das interações sociais passaram a ocorrer em ambiente digital e, consequentemente, o volume de dados para metrificar a qualidade dessas interações foi muito ampliado. Com isso, os algoritmos se tornaram mais complexos e sofisticados.
Isso teve duas implicações importantes na forma de fazer política. Primeiramente, o financiamento dos anúncios permite que o poder econômico esteja diretamente atrelado ao alcance de uma mensagem. Além do impulsionamento direto do conteúdo nas mídias sociais, a criação de conteúdo em massa e o monitoramento da propaganda digital são operações que custam caro. Como a internet extrapola fronteiras geográficas, a fiscalização do financiamento desse tipo de operação é uma tarefa difícil. Enquanto o financiamento institucional de campanhas políticas e propagandas eleitorais na mídia tradicional são reguladas e fiscalizadas por órgãos competentes, a propaganda política nas redes enfrenta desafios legais e operacionais ainda não resolvidos.
Em segundo lugar, tornou-se possível testar de forma rápida o tipo de discurso que gera mais engajamento e se dissemina de forma mais eficiente. Como é possível medir a propagação da mensagem, um mesmo conteúdo é lançado em diversas plataformas, para diversos públicos e em formatos de mensagem diferentes, e aquilo que funciona é usado como exemplo para a propagação do próximo conteúdo. Assim, um mesmo conteúdo pode ser adaptado indefinidamente, segundo o que engaja em cada nicho. Essa característica “pulverizada” faz com que as mídias sociais hoje sejam o espaço experimental perfeito para testar que discursos se tornarão “verdade” para quais nichos.
A governamentalidade algorítmica
Considerando essas características da utilização das redes e dos algoritmos, Rouvroy e Berns (2018) desenvolveram a noção de governamentalidade algorítmica. A ideia baseia-se no conceito foucaultiano de governamentalidade, caracterizado por uma racionalidade de governo observável na sociedade disciplinar que trata do conjunto de práticas e técnicas empregadas para moldar as condutas e comportamentos da população (Foucault, 1978/2008b, pp. 143-146). A governamentalidade envolve estratégias de poder que visam regular a vida dos indivíduos, disciplinando e normalizando seus corpos e mentes por meio de dispositivos de vigilância, normas e regras. Nesse sentido, os algoritmos se tornaram um elemento da governamentalidade na conjuntura técnica e política atual.
Rouvroy e Berns também teorizam a partir do que Foucault chamou de dispositivo de segurança (Foucault, 1978/2008a, p. 8) — uma regulação de um meio que, além de fixar limites, determina as formas de circulação de pessoas, de mercadoria etc. O argumento é que os algoritmos, por estabelecerem uma forma específica de circulação, por serem soluções lógicas construídas a partir de interesses institucionalizados, delimitam um espaço restrito no campo social. Toda informação coletada é reutilizada no momento em que a programação algorítmica é construída. Os dados são utilizados para tecer os caminhos possíveis de circulação e, na medida em que os algoritmos passam a fazer parte da vida social, do acesso à informação e à cultura, e das próprias relações sociais e de trabalho, as formas de circulação também são delimitadas de acordo com a interpretação codificada sobre cada indivíduo.
Percebe-se que o controle algorítmico se dá não pela imposição de normas e regras ou pela vigilância de dados, mas sim pela administração do espaço digital que, cada vez mais, se mescla com o espaço público. Os algoritmos na atualidade evidenciam a governamentalidade como uma “tecnologia do comportamento humano”, conforme colocado por Foucault (1979/2008c, p. 355). Com a vida social cada vez mais digitalizada, com os espaços públicos transformados em espaços virtuais e com as discussões da sociedade sendo mobilizadas pelas redes de maneira mais acelerada, há um aprimoramento da “tecnologia de comportamento humano” pela subjugação social à mediação algorítmica. Se plataformas digitais visam a retenção de audiência, a proliferação do engajamento, a obtenção do lucro ou algum outro resultado específico, pode-se afirmar que a programação não se dá sem um interesse particular.
Leticia Cesarino (2022) analisa a influência das redes sociais e das mobilizações digitais nas eleições brasileiras de 2018 e na construção do bolsonarismo. Para fins deste artigo, é importante ressaltar dois desenvolvimentos da antropóloga: 1) a construção de uma economia de atenção que provoca alienação e 2) a capacidade que a programação algorítmica tem para influenciar comportamentos e, até mesmo, modificar a cognição humana. Sobre a economia de atenção, Cesarino afirma que a disputa por engajamento na indústria tech, ou seja, a tentativa de manter os usuários utilizando as plataformas digitais, faz com que ocorra uma alienação dos usuários sobre a própria atenção. Isso não diz respeito somente ao tempo que esses usuários passam consumindo ou produzindo para uma determinada rede, mas também ao tipo de conteúdo que a economia de atenção tende a replicar. A disputa pela atenção, ainda segundo Cesarino, tende a priorizar aquilo que costuma ter viés populista, ou seja, as informações e conteúdos que mais facilmente prendem a atenção e geram interações. Isso ajuda a explicar a tendência populista vista no mundo e, no caso do Brasil, no bolsonarismo, no olavismo, no movimento antivacina, nas mobilizações anticiência etc. Sobre essa tendência, a autora desenvolve
Trata-se de públicos que ganham relevância e, não raro, dinheiro avançando narrativas que vicejam com facilidade no ambiente invertido da economia da atenção: alegam trazer o novo, quebrar tabus, libertar o que se encontrava sufocado, revelar verdades que alguma elite “não quer que você conheça”. (Cesarino, 2022, p. 148)
A partir de sua análise, Cesarino afirma que os algoritmos transcendem o uso computacional e conseguem influenciar a cognição humana. Isso acontece pois a prerrogativa do funcionamento algorítmico, ou seja, a solução lógica, o passo a passo para a resolução de um problema, é observável na replicação, por exemplo, de respostas prontas para questões de ordem social e para conflitos complexos. Tal reprodução, própria do algoritmo, estabelece algo como verdade, para então automatizar ações específicas, algo que é descrito pela autora como sendo o padrão bolsonarista de organização.
Os afetos do engajamento
Uma questão ainda continua em aberto. Considerando a ideia de Cesarino (2022) sobre as modificações na cognição humana, serão destacados os mecanismos psíquicos subjacentes ao funcionamento das mídias sociais, com o intuito de compreender como e por que certas estratégias parecem ser mais eficazes que outras, não somente em termos de engajamento nas mídias, mas com sua subsequente mobilização política.
Como visto anteriormente, as mídias sociais cumprem funções distintas: permitem uma agência inédita sobre o compartilhamento e difusão de conteúdo; facilitam a realização de diagnósticos sobre os interesses, medos e identificações de seus usuários; e criam um ambiente de controle e participação intensos. Ambas funções se encontram na necessidade de engajamento dos usuários — fator central na própria comercialização e faturamento das plataformas envolvidas. O primeiro ponto que se deve levantar, portanto, é ligado à causa do engajamento.
Num estudo realizado a partir de uma análise de compartilhamento de notícias no Twitter, concluiu-se que conteúdos falsos geram mais engajamento dos usuários, circulando com maior amplitude e velocidade que informações verdadeiras (Vosoughi, Roy & Aral, 2018). Entretanto, isso não significa que haveria uma predileção pela propagação de notícias falsas simplesmente por seu caráter falacioso, mas sim pelos afetos por elas produzidos. Segundo os pesquisadores, foi possível estabelecer uma correlação entre tais conteúdos e afetos específicos: nojo, medo e, sobretudo, uma sensação de “novidade”. Tal “novidade” frequentemente é apresentada como uma negação de algum consenso estabelecido. Frases como “você está sendo enganado”, “não querem que você saiba disso”, que acompanham frequentemente fake news e conteúdos negacionistas (Cesarino, 2022; Silva Junior & Beer, 2023), são boas ilustrações desse tipo de manejo. O que se vê enquanto efeito é que junto à deslegitimação dos consensos estabelecidos, há uma espécie de revelação de uma verdade inquestionável — algo extremamente presente nos posicionamentos negacionistas ligados ao bolsonarismo (Duarte & César, 2020). Deve-se pensar, assim, numa dinâmica não restrita a funções informacionais ou intelectuais veiculadas nos saberes produzidos, mas que também envolva os processos afetivos indissociáveis destes.
Primeiramente, trata-se de tomar a relação entre verdade e saber como um processo que articula, de maneira indissociável, representações e afetos. Mais especificamente, podemos pensar em um processo dialético em que verdade e saber se tensionam numa dinâmica opositiva (Lacan, 1966/1998c). Tal ideia parte de uma concepção em que a principal característica da verdade é sua função disruptiva em relação ao conhecimento estabelecido, consistindo assim numa forma de questionamento ou negação que emerge do inconsciente (Lacan, 1955/1998b).
No entanto, esse processo não se limita a dimensões representacionais. Ao contrário, deve-se atentar para o que se mobiliza em termos afetivos e pulsionais com esse movimento dialético. Algo já apontado por Freud (1925/2014), ao indicar que as funções intelectuais respondem ao prazer e à angústia. Lacan frequentemente aproxima verdade e angústia, algo que pode ser compreendido pelo fato de que a emergência de formações do inconsciente frequentemente produz desorganização das formas de alívio dos temores, ou de modos estabelecidos de alienação. O que pode ser visto em sua célebre consideração de que a angústia seria o afeto que não engana (Lacan, 1962-63/2005), ponto em que o supracitado tensionamento entre verdade e saber ganha um contorno afetivo. O que permite também inferir uma relação entre os efeitos das operações intelectuais e os processos identificatórios.
Em poucas palavras, a verdade (enquanto negação do saber estabelecido) poderia desmontar identificações previamente estabelecidas, deixando o sujeito em uma situação de desamparo.Link: 5 Algo observado por Freud em relação ao funcionamento de grupos, ao indicar o pânico que o desmantelamento de uma massa pode produzir (Freud, 1921/2011a). Considerando a afirmação de que processos identificatórios são destinações possíveis para que objetos interditados não sejam completamente perdidos (Freud, 1923/2011b) — estando assim ligados ao alívio de medos e angústias —, a perda de ideais identificatórios produziria novas situações habitadas por esses afetos. Haveria, portanto, um conforto resultante de um processo identificatório, assim como desconstruções identificatórias produziriam angústia.
Ademais, a angústia resultante, assim como a busca de amparo identificatório, são mais intensas logo após a emergência de algo que toque a verdade: um momento lógico em que o eu é despido de certas identificações ou saberes sobre si mesmo, mas ainda não estabeleceu novos. Nessa toada, a própria causa do desmantelamento da identificação anterior pode ser assimilada como um modelo identificatório. Assim, pode-se produzir identificações com os próprios sintomas, ou mesmo com o analista que produz tais desconstruções num processo analítico.Link: 6 Ou, então, com aquele que denuncia mentiras, que diz “aquilo que não querem que seja sabido”, como apontamos anteriormente.
Pode-se pensar, assim, numa articulação entre verdade, conhecimento e identificação. De fato, o potencial identificatório de conhecimentos produzidos se faz presente em diversos campos, como evidenciam os conceitos de nominalismo dinâmico e ontologia histórica, propostos por Ian Hacking (2002/2009). O modo de lidar com o saber e os enunciados que são tomados como corretos exercem uma função de organização de nossa grade simbólica — algo que, consequentemente, pode ser perdido. Não à toa Freud posiciona os “ideais” como algo que pode ser perdido com a perda de objetos, desencadeando um luto ou um processo melancólico (Freud, 1917/2014a). Se uma ideia pode ser alçada à condição de objeto de investimento libidinal, isso implica que o modo como lidamos com os saberes disponíveis não se reduz a uma mera operação intelectual de avaliação ou escolha consciente.
Lembremos as elaborações de Freud sobre a identificação como um processo de deserotização (Freud, 1923/2011b). A identificação seria o resultado de um desinvestimento libidinal parcial, após um objeto ser perdido ou interditado. Como todo processo sublimatório, produz consequências: nesse processo, pulsão de morte e pulsão erótica se separam temporariamente, naquilo nomeado como desfusão pulsional. Quando o objeto é realocado em uma forma “aceitável” (como objeto identificatório e não objeto de desejo), as pulsões são refundidas, mas com uma diferença: uma quantidade de pulsão erótica torna-se pulsão de morte.
A identificação é, portanto, um processo que inclui a perda de um objeto de desejo e uma reorganização do investimento pulsional. Ademais, o objeto pode ser colocado no lugar de ideal (Freud, 1921/2011a) — que também produz identificações “laterais” no vínculo com pares — consistindo em um destino à angústia e ao sofrimento causados pela interdição de um objeto de desejo. Deve-se considerar, portanto, que os processos de enamoramento e de identificação com um líder e um grupo não se limitam a concordâncias conscientes e partilhas de ideais, mas englobam processos inconscientes que dizem respeito à organização pulsional e à destinação dada à libido e à agressividade. O próprio ideal — seja ele um ideal de líder, um ideal de pureza, um ideal de tradição etc. — é o elemento central desse processo, funcionando enquanto um elemento de mediação do laço com outros. E também de organização de cada um dos indivíduos, que encontram destinações para angústia, libido e agressividade a partir dos elementos simbólicos e imaginários ofertados nesses processos.
Esses processos permitem, portanto, que a negação usualmente presente em fake news e discursos negacionistas seja tomada não como um efeito, mas como um instrumento. Isso significa que a negação não é empregada de modo a produzir algum tipo de abertura no debate, mas para explorar pontos frágeis de narrativas já estabelecidas, e assim produzir uma mobilização cujo horizonte é deslegitimar radicalmente uma coletividade instaurada.
E qual seria o papel das mídias sociais nesse processo? Para além do uso de algoritmos que produziriam diagnósticos precisos, o engajamento dos usuários também deve ser atentado: indivíduos que se identificam com negações são também os principais responsáveis pela difusão desses conteúdos. Os “sentimentos negativos” e a “sensação de novidade” que acompanham esse processo (Vosoughi, Roy & Aral, 2018) podem ser melhor compreendidos a partir do processo de mobilização afetiva subjacente à relação com o conhecimento. Isso significa que a própria negação seria, em si, um fator causador de engajamento. Vê-se, desse modo, como a produção de desconfiança não somente é compatível, mas altamente rentável do ponto de vista das plataformas de mídias digitais, já que produzem engajamento. Não por acaso, projetos como o tradicionalismo, encabeçado por figuras como Steve Bannon e Olavo de Carvalho (Teitelbaum, 2020), são facilmente veiculáveis nesses espaços, pois eles também produzem o tipo de engajamento mais interessante às próprias plataformas.
Conclusão
Com este artigo, buscou-se compreender o papel das mídias sociais após as manifestações de junho de 2013, a partir de uma análise sobre as implicações políticas inerentes à expansão das interações em ambiente digital. Além disso, buscou-se investigar os mecanismos psíquicos ligados a esse papel das mídias cibernéticas. Embora se diga que a internet é uma ferramenta neutra, procuramos demonstrar a relação de afinidade entre mídias sociais e movimentos populistas e extremistas, não apenas devido aos interesses privados das grandes companhias de tecnologia, mas dos próprios aspectos formais que as mídias sociais foram adquirindo nos últimos anos. Conteúdos curtos, simplificados e de forte apelo emocional, impulsionados financeiramente por ferramentas de marketing digital, são os que mais engajam e circulam, e pelo menos desde 2013 a direita brasileira vem se apropriando massivamente disso para disseminar seus discursos e pautas.
Mostrou-se a ligação entre conhecimento e identificação, de modo que, por exemplo, aquilo revelado por uma notícia falsa cumpre uma função psíquica: produzir e rapidamente aplacar angústia, criando engajamento e identificação. Não se trata de pensar a adesão a discursos extremistas somente como um problema intelectual, mas como um problema afetivo, concernente à organização pulsional dos sujeitos. É isso que a extrema-direita vem sabendo mobilizar nos últimos dez anos no Brasil, através das mídias sociais. E é precisamente esse aspecto que se combina às mídias atuais, produzindo uma “liga” entre discurso e forma.
Neste ponto, os trabalhos sobre governamentalidade algorítmica indicam a complexidade do problema. Não se limita a um embate de ideias ou de tradições políticas, mas abarca um modo de construção de coletividades, embasada por uma falsa promessa de isenção aliada a um poder tecnológico inédito. Técnicas como o microtargeting permitem mobilizar conteúdos que produzirão efeitos disruptivos e oferecerão possibilidades de aplacamento de angústia, ao mesmo tempo que se vendem como isentos. Além de resultarem em mobilização política, esses processos também produzem engajamento nas próprias redes, trazendo retorno financeiro para as plataformas. Com isso, a governamentalidade algorítmica tem-se mostrado não apenas como uma forma de governo que impera na atualidade, mas também como o mecanismo de operação mais contemporâneo do neoliberalismo e do capitalismo tardio. Observamos, cada vez mais, uma política na qual os dados passam a fazer a vez do equivalente universal na economia na medida em que se transformam em mercadoria e ganham relevância política. Como consequência, a máscara da neutralidade dos dados passa a funcionar como uma ferramenta de controle social que atualiza a alienação e descaracteriza a imagem repressora dos dispositivos disciplinares da sociedade. Nesse sentido, no que concerne à regulamentação das práticas atuais da tecnopolítica vigente, nenhuma mudança real será possível sem uma inversão de papel daqueles que hoje são apenas produtores de dados para as máquinas algorítmicas.
Parece que movimentos conservadores, especialmente os mais radicais, conseguiram se apropriar das mídias sociais com maior sucesso. Isso pode ser entendido como uma contingência da última década, já que o uso das mídias sociais se estabeleceu de maneira hegemônica num momento em que foi possível articular crise econômica, escândalos de corrupção e uma agenda moral de retorno a valores tradicionais. Nesse sentido, seria fácil considerar que aqueles que estão na oposição têm maior capacidade de emplacar negações às narrativas estabelecidas e produzir engajamento a partir dessas negações.
Entretanto, os últimos dez anos foram marcados por um cenário mais radical do que isso, habitado por fake news e falas negacionistas. A articulação de projetos políticos extremistas com as mídias sociais permitiu o enfraquecimento de importantes consensos estabelecidos. Isso, além de outros fatores não explorados neste artigo (em especial, sobre os impactos na saúde mental), apontam a necessária regulamentação das mídias sociais — algo extremamente desafiador, e que deve ser feito atravessando a discussão sobre liberdades individuais, o que demanda o estabelecimento de um debate que não sofra vieses exagerados por parte das plataformas que controlam a circulação de conteúdos. Algo de realização complexa, considerando que, para além dos conteúdos veiculados, o modo mais afeito a explorar as plataformas digitais de maneira que parece ser mais rentável a elas mesmas é um modo de fazer política pouco compromissado com a construção e manutenção de uma coletividade forte que suporte e valorize a diferença. Até o momento, seja no Brasil ou em outros lugares do mundo, tais movimentos têm sido considerados populistas de direita, ultraconservadores, embora o funcionamento das mídias sociais não permita afirmar qualquer exclusividade.
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A heterogeneidade do eleitorado de Bolsonaro ainda necessita ser melhor explorada pela pesquisa sociológica, porque, à primeira vista, é difícil determinar o que poderia unir grupos tão distintos em torno desse político e, de modo mais geral, das pautas de extrema direita. A sensação é de estarmos diante de um conjunto extravagante, marcado pela não relação entre os elementos que o compõem, à maneira do que apresenta Foucault no prefácio de As palavras e as coisas (1966/2000), ao citar o Empório celestial de conhecimentos benévolos, uma enciclopédia chinesa tradicional que reúne todos os animais existentes em 14 categorias insólitas.
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Dados da pesquisa TIC Domicílios 2022 disponível em: <https://static.poder360.com.br/2023/05/tic-domicilios-2022.pdf>. Para acompanhar dados desde 2013 utilizamos o matéria a respeito da TIC Domicílios de 2018, disponível em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/08/28/uso-da-internet-no-brasil-cresce-e-70percent-da-populacao-esta-conectada.ghtml>.
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O brasileiro passou em média 5,4 horas por dia no smartphone em 2021. Fonte <https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/01/12/brasileiros-sao-os-que-passammais-tempo-por-dia-no-celular-diz-levantamento.ghtml>.
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A posição de desamparo é constitutiva do sujeito, porque a amarração simbólica, vinda do campo do Outro, possui um furo, de modo análogo ao que Freud chamava de “umbigo do sonho”. A experiência jamais poderá revestir-se completamente de sentido, ou seja, a finitude humana, as contingências do destino, o potencial traumático do Real e o mal-estar inerente à vida em sociedade não são inteiramente simbolizáveis e apreendidos pela linguagem. No entanto, neste trabalho nos interessa como a posição de desamparo engendrada pelos movimentos negacionistas e de extrema direita resulta na produção de líderes capazes de apaziguar e organizar as massas. Para um aprofundamento no problema do desamparo, conferir Pânico e desamparo (2008), de Mario Eduardo Costa Pereira.
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A respeito da identificação com o analista e sua facilitação em processos de desconstrução de laços identificatórios estabelecidos (seja com pessoas, com objetos ou mesmo com sintomas), Lacan não deixa de sublinhar a importância de que, embora tais processos de separação sejam parte constitutiva e essencial do fazer clínico, é necessário que o analista não se ofereça enquanto um objeto de identificação, muito menos que isso seja tomado como uma direção do tratamento. De fato, grande parte das críticas que o psicanalista francês desfere a colegas de outras tradições psicanalíticas tem como base a compreensão de que tomar a identificação com o analista como um horizonte para a condução do tratamento seria uma forma de reprodução ideológica, como é explicitado em “Direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Lacan, 1958/1998a).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
16 Out 2023 -
Revisado
25 Out 2023 -
Aceito
28 Out 2023