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Inveja e gratidão: flutuações da criatividade e esperança no mundo psíquico* * Este artigo faz parte da dissertação Criatividade e esperança na clínica psicanalítica: ideias a partir de Melanie Klein e Donald Winnicott, de Maysa Bezerra, orientada por Marina Ribeiro. A defesa ocorreu no mês de agosto de 2023. A pesquisa teve apoio financeiro da CAPES e foi fruto de um trabalho em equipe realizado no grupo de pesquisa LIPSIC – USP/PUC-SP.

Envy and gratitude: Fluctuations of creativity and hope in the psychic world

Envie et gratitude: fluctuations de la créativité et de l'espoir dans le monde psychique

Envidia y gratitud: fluctuaciones de creatividad y esperanza en el mundo psíquico

Este artigo pretende discutir o texto seminal de Melanie Klein, Inveja e gratidão (1957), no intuito de articulá-lo com os fenômenos da esperança, desesperança, criatividade e destrutividade. Na leitura realizada, observamos que a inveja é um solo fértil para o crescimento da desesperança e destrutividade. Enquanto a capacidade de ter gratidão pode levar o indivíduo a ser esperançoso e ter uma vida criativa, o contrário seria possível? Ser invejoso e ao mesmo tempo ter criatividade e esperança? Com base no dualismo pulsional freudiano, do qual Klein não abriu mão na construção da sua metapsicologia, respondemos que sim, primordialmente a partir da introjeção do objeto bom, que possibilita a elaboração da inveja, elemento que enfatizaremos a partir da figura do analista no processo clínico. Para elucidarmos cada um desses elementos, iremos utilizar o conto “A legião estrangeira” de Clarice Lispector (1999)Lispector, C. (1999). A legião estrangeira. In A legião estrangeira. Rocco. como fio condutor ao longo de todo o texto.

Palavras-chave:
Inveja; gratidão; esperança; desesperança; criatividade; destrutividade


Resumos

This article aims to discuss Melanie Klein’s seminal text, “Envy and gratitude” (1957), in order to articulate it with the phenomena of hope, hopelessness, creativity, and destructiveness. In ours readings, we observed that envy is a fertile soil for the growth of hopelessness and destructiveness. While the ability to have gratitude can lead an individual to be hopeful and have a creative life. Would the opposite be possible? To be envious and at the same time creative and hopeful? Based on Freudian Dualism drive, which Klein did not give up in the construction of her metapsychology, we answer yes, primarily from the introjection of the good object, which allows the elaboration of envy, an element that we will emphasize from the figure of the analyst in the clinical process. To elucidate each of these elements, we will use the short story “The foreign legion” by Clarice Lispector (1999)Lispector, C. (1999). A legião estrangeira. In A legião estrangeira. Rocco. as a guiding thread throughout the text.

Key words:
Envy; gratitude; hope; hopelessness; creativity; destructiveness

Cet article discute le texte fondateur de Melanie Klein, “Envie et gratitude” 27 (1957), afin de l’articuler avec les phénomènes de l’espoir, du désespoir, de la créativité et de la destructivité. Au cours de notre lecture, nous avons observé que l’envie est un terreau fertile pour la croissance du désespoir et de la destructivité. En revanche, la capacité à être reconnaisant peut conduire les individus à être plein d’espoir et à mener une vie créative. Le contraire serait-il possible? Être envieux et en même temps créatif et plein d’espoir? Sur la base du dualisme pulsionnel freudien, que Klein n’a pas abandonné dans la construction de sa métapsychologie, nous répondons par l’affirmative, notamment par l’introjection du bon objet qui permet d’élaborer l’envie, élément que nous soulignerons à travers la figure de l’analyste dans le processus clinique. Afin d’élucider chacun de ces éléments, nous utiliserons la nouvelle “La Légion étrangère” (1999) de Clarice Lispector comme fil conducteur tout au long du texte.

Mots clés:
Envie; gratitude; espoir; désespoir; la créativité; destructivité


Este artículo pretende discutir el texto fundamental de Melanie Klein, “Envidia y gratitud” (1957), para articularlo con los fenómenos de esperanza, desesperanza, creatividad y destructividad. En la lectura realizada se observa que la envidia es un campo fértil para el crecimiento de la desesperanza y la destructividad. Mientras que la capacidad de expresar gratitud puede llevar al individuo a tener esperanza y tener una vida creativa. ¿Sería posible lo contrario? ¿Ser envidioso y al mismo tiempo tener creatividad y esperanza? Partiendo del dualismo pulsional freudiano, al que Klein no abandonó en la construcción de su metapsicología, este texto responde que es posible esto, principalmente desde la introyección del objeto bueno, que posibilita la elaboración de la envidia, elemento que se enfatizará a partir de la figura del analista en el proceso clínico. Para dilucidar cada uno de estos elementos se utiliza el cuento “La legión extranjera”, de Clarice Lispector (1999)Lispector, C. (1999). A legião estrangeira. In A legião estrangeira. Rocco., como hilo conductor a lo largo del texto.

Palabras clave:
Envidia; gratitud; esperanza; desesperanza; creatividad; destructividad


Introdução

Muito teria a se falar sobre o tema da inveja e gratidão na contemporaneidade, visto que esse texto seminal de Klein, escrito há mais de seis décadas, continua vivo e produzindo reverberações no pensamento clínico. No entanto, a ênfase a ser dada nos tópicos seguintes será a articulação da inveja e gratidão com os fenômenos da criatividade, esperança, destrutividade e desesperança. Em alguns momentos essas ideias encontram-se em oposição entre si e, em outros, em conjunção. Lembrando que, ao longo da escrita, iremos retomar o conto de Clarice para articulá-lo com as ideias propostas.

Inicialmente, pretendemos tomar como referência a noção construída por Melanie Klein no texto Inveja e gratidão (1957/1991a), no qual considera que esses sentimentos são opostos e interagentes, e normalmente operantes desde o nascimento do bebê, para realizar a hipótese que a criatividade e a esperança1 1 Um detalhe importante é que as palavras esperança (hope) e criatividade (creativity) são muito citadas nesse texto, o que possibilitou uma articulação mais sólida e clara entre essas ma nifestações psíquicas. — mesmo não necessariamente opostos — são fenômenos enquadrados na mesma lógica, e que, também, estão presentes desde os primórdios do desenvolvimento psíquico como entrelaçados ao sentimento de gratidão.

A destrutividade e desesperança seriam representadas pela inveja, um elemento obstrutor da criatividade e esperança, pois dificulta a construção do objeto bom e da sua internalização no núcleo do ego, já que tem origem na pulsão de morte. Esses elementos se presentificam em uma oscilação constante entre movimentos de fragilidade e fortificação em cada situação da vida, mas, antes de esmiuçar esse material, vamos ao conto de Clarice Lispector e logo em seguida partiremos para a definição do que é a inveja primária.

Ofélia e o pinto: a inveja mata

O ovo ameaça disparar com a vida
A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

(João Cabral de Melo Neto)

No conto “A legião estrangeira”2 2 Mezan (1987) utiliza esse conto para discutir sobre a inveja a partir de vários autores, incluindo Melanie Klein. Os pontos principais abordados no texto, com base na leitura de Frayze-Pereira (2018), se tratam da “1º) associação da inveja com o olhar; 2º) a alegria do invejoso corresponde à dor do outro; 3º) a realização de seus propósitos não deixa o invejoso feliz e realizado (ao atacar os felizes, ataca a si próprio); 4º) a inveja contém desejo, mas nele não se esgota; 5º) o desejo de privar o outro da felicidade é essencial, muito mais importante do que obter a posse da coisa invejada” (p. 8). Nesse tópico, fazemos leituras similares, mas também distintas. É importante ressaltar que bebemos da fonte do autor, principalmente no que se refere ao uso do conto para pensar a fenomenologia da inveja. , de Clarice Lispector (1999)Lispector, C. (1999). A legião estrangeira. In A legião estrangeira. Rocco., o eu lírico narra sobre sua vizinha Ofélia, que se apresentava de forma pausada e firme como Ofélia Maria dos Santos Aguiar. Aos 8 anos “altivos e bem vividos”3 3 Os trechos retirados diretamente do conto foram aspeados. , a criança sempre impunha críticas severas a respeito de tudo — mesmo não tendo sido incumbida para tal encargo. Apontava o que considerava errado em cada gesto da narradora e vivia insatisfeita e ressentida sobre o que acontecia ao seu redor: “Na sua opinião, eu não criava bem os meninos”; “Banana não se mistura com leite. Mata”; “Não era mais hora de estar de robe”. Essas eram algumas censuras que vinham da criança que mais parecia um adulto rabugento e amargo com a vida.

Mesmo tentando encontrar argumentos para as suas aparentes falhas, a mulher não tinha vez, a última palavra sempre era de Ofélia — a qual na maioria das vezes estava realmente com a razão. Inquieta, se perguntava: “Por que eu nunca, nunca sabia? Por que sabia ela de tudo, por que era a terra tão familiar a ela, e eu sem cobertura?”.

A menina ocupava um lugar de verdade inquebrável, sem faltas, completamente preenchida pela soberba e arrogância. Era incapaz de perceber o tamanho das baboseiras que saíam da sua boca. Do pedestal criado pela sua altivez, nada enxergava. Sua onipotência orgulhosa a cegava. Ofélia ia embora, mas sempre voltava. Os defeitos da narradora eram como um campo magnético que atraía sua crueldade que, ora saía pela boca, por meio de suas ácidas palavras, ora pelo seu olhar silencioso e intransigente. A inveja era o veneno que escorria pelos seus “lábios finos” e corroía as suas “gengivas roxas”.

Certo dia, ao passar pela feira, o eu lírico decide levar um pinto para casa, dia esse que coincidia com a visita rotineira de Ofélia. Ao ouvir o piar vindo da cozinha, a criança, depois de uma pausa atenciosamente silenciosa, questiona: “O que é isso?”. A dona da casa responde: “É o pinto”. “Pinto?”, indaga Ofélia em tom de suspeita e espanto. Após alguns instantes tentando compreender o que se passava, a narradora percebeu no olhar da criança algo que nunca tinha visto antes. Ela presenciou o encontro da menina com uma alteridade radical: a animalidade do entoar de um pinto, com todo o encanto e estranhamento que um corpo e vida distintos lhe provocavam. A narradora, ainda em estado de frenesi e perturbação com a cena, descreve:

O que era? Mas, o que fosse, não estava mais ali. Um pinto faiscara um segundo em seus olhos e neles submergira para nunca ter existido. E a sombra se fizera. Uma sombra profunda cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara “eu também quero”, desse instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem, mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível, o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. (Lispector, 1999, p. 359Lispector, C. (1999). A legião estrangeira. In A legião estrangeira. Rocco.)

A expressão ocular de Ofélia refletia a presença da maliciosa inveja que sentia da mulher, como se a narradora tivesse tudo e não precisasse de mais nada, pois possuía um pinto para si. Diante dessa constatação impiedosa, a menina se sentiu jogada às traças:

Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto — se eu não estivesse ali, por astúcia, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos que pestanejaram à dissimulada sagacidade, nos olhos a grande tendência à rapina. Olhou-me rápida, e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça — ela me queria para ela. Devagar fui me reclinando no espaldar da cadeira, sua inveja que desnudava minha pobreza, e deixava minha pobreza pensativa; não estivesse eu ali, e ela roubava minha pobreza também; ela queria tudo. (p. 359)

A mulher percebeu, em choque, cada detalhe que continha a “dor da alegria difícil” de uma pseudo adulta que estava a se metamorfosear em criança. Ela, ainda que com grande resistência e suplício, estava a “largar no chão o corpo antigo”. Na mutação, havia sinais da chegada de um corpo de criança com um olhar cintilante provocado pela exultação que cada descoberta da vida provia, diferente da antiga menina-adulta que nada mais a enebriava. O clamor da ambiguidade ao se defrontar com o pinto estava presente como arrepio até o seu último fio de cabelo.

A angústia se passava lentamente, junto com um júbilo ainda encoberto, afinal de contas, não era tão fácil assim dar o braço a torcer e desnudar seu real desejo e curiosidade. Era malsucedida a sua tentativa de disfarçar e fingir a falta de interesse naquele outro ser. Ofélia sofria no ato de desejar e depender daquela que lhe oferecia o objeto de desejo, sentia-se envergonhada e humilhada diante desse traço que revelava a sua pequenez humana. Era possível ver o ressentimento que chegava como um soco na boca do seu estômago e deixava à sua carne em fiapos. O ódio ao amor se transfundia em cada gesto da menina.

No entanto, como o nascimento e a assunção do desejo somente se dão na incubadora de outrem, a narradora precisou conceder uma permissão: “Você pode ir à cozinha brincar com o pintinho”. Ofélia respondeu, dissimulada: “Eu?”. O seu tom hipócrita encobria a culpa e vergonha por se sentir inferior pelo seu querer. A mulher insistiu, em um tom de liberdade de escolha e não de uma obediência oprimida: “Mas só se você quiser”. Com isso, sentiu que estava salvando a criança do seu próprio ódio, oferecendo um suspiro de vida naquela boca pálida, em que todos os órgãos da menina, ainda em formação, puderam ser oxigenados.

Ao voltar da cozinha e trazer o pinto na mão, Ofélia estava em êxtase. A sua coragem e resto de dignidade a recobraram. “Ri. Ofélia olhou-me ultrajada. E de repente — de repente riu. Ambas então rimos, um pouco agudas”. Nesse momento, a menina pôde relaxar no seu contentamento e regozijo. Havia, naquele encontro, a existência de uma névoa da gratidão, sob a luz de uma insistente teimosia. A partir de então, ela pôs o pinto no chão e todos os passos dele eram acompanhados pelo olhar atento e encantado da menina:

Se ele corria, ela ia atrás, parecia só deixá-lo autônomo, para sentir saudade; mas se ele se encolhia, pressurosa ela o protegia, com pena de ele estar sob o seu domínio, “coitado dele, ele é meu”; e quando o segurava, era com mão torta pela delicadeza — era o amor, sim, o tortuoso amor. (p. 363)

Amor esse que poderia sufocar na tentativa de proteger. A ternura, se não fosse bem dosada, machucaria o corpo frágil do pinto. Portanto, Ofélia esbravejava: “só eu sei que carinho ele gosta”. Alimentá-lo — de vida — poderia ser perigoso, a garganta corria o risco de entalar se a comida fosse indevida ou em demasia. A menina afirmava que somente ela poderia fazê-lo: o amor era a sua posse. Ofélia vivia sob uma agonia em que a vida beirava constantemente a morte. Mesmo na corda bamba, ela se deleitava com a sua efêmera capacidade de amar e receber amor.

Depois de colocar o pinto novamente na cozinha, o ambiente foi invadido por um silêncio inquietante. A menina tentou falar, mas parecia que agora já não era tão boa com as palavras, e então pediu permissão para ir embora e retornar à sua casa. Depois da partida da criança, a mulher, tomada por um estranhamento, resolveu ir, relutante, até a cozinha, em busca do bicho, e se deparou com o esperado, mas ainda assim, improvável: “No chão estava o pinto morto. Ofélia! Chamei num impulso a menina fugida”. Sozinha, ela tentou acalmar o coração da pobre criança, que já não estava mais lá: “Oh, não se assuste muito! Às vezes a gente mata por amor... A gente não ama bem!”. Na garotinha, o amor e a gratidão foram fugazes e se dissiparam, se perderam diante da imensidão devoradora da inveja, que a engoliu como uma grande avalanche. Dessa vez, Ofélia não voltou. E mostrou que desejar, desejar muito, muito mesmo, pode levar à morte: “a inveja mata”.

A inveja primária

A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas (...). A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor (...). Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício.

(Ovídio)

Pode ser estranho, para muitos leitores, pensar sobre o sentimento de inveja vivido por um bebê, por mais que esse afeto seja direcionado ao seio materno com todas as suas qualidades físicas e psíquicas necessárias para a vida. A inveja conhecida por nós adultos, conscientemente, se diferencia, em certa medida, daquela que Melanie Klein postula na relação arcaica com a mãe, de modo inconsciente, como afirmam Cintra e Ribeiro (2018)Cintra, E., & Ribeiro, M. (2018). Por que Klein? Zagodoni..

A inveja, expressa pelo amor primário, possui um traço constitucional4 4 Sobre esse aspecto, Sodré (2020) argumenta que: “a necessidade de frisar a inveja como uma parte essencial da natureza humana levou a um uso exagerado das palavras ‘inato’ e ‘constitucional’ ligadas à inveja, de um modo que penso ter acabado por se tornar inútil — como se uma condenação extra estivesse ligada a ela: afinal, nós não falamos de ciúme inato ou complexo de Édipo inato — nós apenas assumimos que estes são todos parte da natureza humana” (p. 14). e se presentifica em todos nós, obviamente, com variações em suas manifestações. Em relação a esse aspecto, as autoras afirmam que há crianças pouco propensas a usar o objeto bom5 5 É na continuidade das experiências de gratificação, vividas como fonte de vida e de amor, que se forma a base do objeto bom no núcleo egoico, o qual se torna estruturante para o self. , satisfazendo-se com menos facilidade e com uma baixa tolerância frente às frustrações, o que reforçaria o sentimento de inveja.

O bom aparelhamento interno para usufruir do que o ambiente oferece, diz respeito a uma baixa voracidade, pois quanto mais voraz for o bebê, menos gratificação ele irá sentir e mais invejoso ele será. Por exemplo, caso a sucção do seio seja intensa, a passagem do leite é obstruída e isso amplifica o sentimento de insatisfação do bebê, gerando ódio e o ímpeto de atacar e destruir o objeto6 6 Cintra e Figueiredo (2010) destacam que “os aspectos constitucionais são, para Melanie Klein, por exemplo, uma propensão maior para a oralidade, que pode estar fundamentada em aspectos do metabolismo e do equilíbrio hormonal do recém-nascido. Se essa oralidade se manifestar por uma excessiva voracidade, temos então o terreno favorável ao surgimento da inveja” (p. 128). Nesse âmbito, Klein (1957/1991a) afirma que a “capacidade tanto para o amor como para os impulsos destrutivos é, até certo ponto, constitucional, embora varie individualmente em intensidade e interaja desde o início com as condições externas” (p. 211). , já que não consegue introduzir e manter o leite dentro de si.

Entre os fundamentos para que a inveja seja entendida como constitutiva na organização do psiquismo e o tipo de funcionamento descrito acima ocorra, estão os elementos bons do seio, entendido por Klein como “o protótipo da bondade materna, paciência inesgotável, generosidade e criatividade” (1957/1991a, p. 180). Nesse caso, quando frustrada, a criança sente que o seio guardou para si toda a gratificação desses componentes amorosos representados pelo leite, o que faz gerar ressentimento e ódio, desdobrando-se na inveja. Já o inverso também acontece, pois mesmo quando o bebê não é privado, ele sente o seio inexaurível7 7 Melanie Klein considera que a concepção desse seio inesgotável é inata e que, em certa medida, isso serve de apoio para a vida e para a criatividade (Roth, 2020). e a sua correlata gratificação como um dom impossível de ser atingido.

Um distinto elemento importante para a inveja ser pensada como estruturante do aparelho psíquico é a experiência de plenitude vivida pelo bebê na barriga da mãe, pois, nesse estado, nada falta, incomoda, dói ou frustra. O nascimento, com a sua ruptura e separação corporal, provoca uma quebra da homeostase intrauterina, resultando em uma perda do prazer junto ao surgimento do desejo voraz e insaciável de recuperar o que foi perdido, mas que se tornou inalcançável, como sinalizam Cintra e Ribeiro (2018)Cintra, E., & Ribeiro, M. (2018). Por que Klein? Zagodoni.. Na inveja, ocorre a projeção dessa plenitude perdida em um objeto que se torna idealizado e desejado (Mezan, 1987Mezan, R. (1987). A inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(2), 121-136.).

Nessa lógica, a inveja “surge da descontinuidade entre duas experiências de prazer diferentes, em cuja elaboração imaginária surge a voracidade” (Cintra e Ribeiro, 2018, pp. 108-109Cintra, E., & Ribeiro, M. (2018). Por que Klein? Zagodoni.). Como nenhum objeto do mundo propiciará a satisfação absoluta vivida na unidade pré-natal, concebida pelo bebê no mundo da fantasia como um objeto idealizado, o ódio e ressentimento surgem, junto à sensação de estar sendo injustiçado. Os desconfortos vividos com o nascimento provocam o aparecimento dos ataques destrutivos ao seio materno na tentativa de se ver livre da dor e persecutoriedade e, assim, o palco para a inveja está montado. Nesses termos, parece que, para Klein, o corpo é um constante manancial da inveja devido aos seus processos de ruptura e ligação.

Por ter um caráter constitucional, a inveja resulta em duas dinâmicas paradoxais ligadas à pulsionalidade (Cintra e Ribeiro, 2018Cintra, E., & Ribeiro, M. (2018). Por que Klein? Zagodoni.). A primeira é que ela, constituída da pulsão de morte, aspira mais do que simplesmente esvaziar e devorar o objeto, pois tem o furor de depositar maldade e destruir o que é sentido como bom. Há o ataque e espoliação daquilo que, para si mesmo, é vital e do qual se depende, sendo a inveja “inconscientemente sentida como o maior de todos os pecados, por estragar e danificar o objeto bom que é a fonte de vida” (Klein, 1957/1991a, p. 211Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).).

A segunda é que, apesar disso, a inveja resguarda em si um aspecto da pulsão de vida, um investimento de libido ligada à voracidade, pelo desejo de possuir o outro8 8 Sobre esse aspecto, Britton (2020) destaca que: “Em inglês, a palavra ‘inveja’ (envy) tem duas raízes, uma no francês arcaico (envie), significando ‘desejo’, no sentido de admiração, e outra na expressão invidia, do latim, significando ‘maldade’, ‘má intenção’” (Oxford English Dictionary)” (p. 60). . A inveja primária participa da “estrutura do desejo”, como propõe Cintra (2019)Cintra, E. (2019). Arco-Íris tatuado nas mãos – a geografia do corpo materno. In E. Cintra & M. Ribeiro (Orgs.), Melanie Klein na psicanálise contemporânea: teoria, clínica e cultura (pp. 19-32). Zagodoni., na qual o desejo de se apropriar do objeto bom é operado pela pulsão oral, diferente do desinvestimento libidinal que ocorre na pulsão de morte. A autora destaca que Eros apenas se torna Thanatos quando há a violência insaciável no excesso do querer; com isso, mesmo nas mais diversas manifestações da destrutividade, pode existir uma busca e desejo pela vida.

O que faz o aspecto vital da inveja se transformar em morte é a influência do objeto externo e o infindável presente na natureza do desejo. O desejo é insaciável e sempre quer um seio inexaurível (e todo o resto), o tempo todo presente. Se o indivíduo quer sempre mais, está destinado a não receber, por isso, todo desejo pode se tornar destrutividade, pois anseia o impossível:

Outra forma de pensar é evocar algo que está na própria natureza do desejo. A voracidade do desejo destina-o a não se resolver na assim chamada experiência de satisfação. Há, portanto, algo inalcançável no desejo: este sendo a expressão mesma da impossibilidade de satisfação. A voracidade seria uma tendência que faz todo desejo tender a se transformar em avidez e inveja, um desejo constante de mais, acompanhado do sentimento de ter recebido menos, o que aumentaria a destrutividade, sobretudo quando o ambiente é desfavorável. A falta participa da própria estrutura do desejo, de sua insaciabilidade: falta que se abre a partir do querer sempre mais, e cria o terreno favorável à pulsão destrutiva. (Cintra, 2019, p. 25Cintra, E. (2019). Arco-Íris tatuado nas mãos – a geografia do corpo materno. In E. Cintra & M. Ribeiro (Orgs.), Melanie Klein na psicanálise contemporânea: teoria, clínica e cultura (pp. 19-32). Zagodoni.)

No desenho da dupla face da inveja, Ofélia, de tanto querer, transformou a libido do seu desejo em destruição, sufocando o pinto, objeto que se tornou alvo tanto da vida quanto da morte. Quando a menina asfixia o animal do conto, percebemos que a inveja mata dois coelhos com uma cajadada só: o ataque é tanto contra a dependência da narradora, a qual lhe concede algo bom, quanto ao próprio desejo, por querer o objeto invejado que está na posse do outro. Nesses casos, a dependência é sinônimo de estar entregue e sujeito às oscilações dos estímulos que provêm da presença ou ausência materna, “oscilações essas entre ter e perder o contato com essa fonte vital, que parece possuir tudo de que se precisa” (Cintra e Figueiredo, 2010, p. 130Cintra, E., & Figueiredo, L. C. (2010). Melanie Klein. Estilo e pensamento. Escuta.). A lógica é destruir o que o outro produz e dispões para não correr o risco de cair em suplício pelo próprio desejo.

Há, com isso, um anseio de ter em si toda e qualquer fonte de vida e prazer; assim, o ato de desejar estaria aplacado pela satisfação, e não minado pela dor da frustração: “É próprio da inveja o visar estragar e destruir a criatividade da mãe, da qual, ao mesmo tempo, o bebê depende, e essa dependência reforça o ódio e a inveja” (Klein, 1957/1991a, p. 317Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).). Podemos entender que Ofélia não suportou a força do seu próprio desejo, despertado pelo encontro com o pinto, e pôs fim, de forma cabal e aniquiladora, aos seus quereres. Invejar é desejar o impossível. Invejar é matar o desejo. Invejar é não ser e não ter.

Dessa forma, o desejo sentido por Ofélia, tão desenfreado, controlador e voraz, a fez se perder de si mesma e do seu objeto de amor. A “força tortuosa” do seu querer movia seus atos e gestos para o apagamento dos contornos da diferença, visto que a alteridade gera dependência e, consequentemente, inveja. Receber algo bom que não vinha de si mesma, mas sim, da narradora que possuía o pinto, fez a menina viver uma experiência intolerável, o que a impediu de usufruir o que lhe era oferecido através do bicho, tamanho o seu desejo e insaciedade. E foi na tentativa de matar a inveja sentida da mulher, palpitante em seu peito, que se fez necessário matar o pinto.

Enquanto a frustração do invejoso se dá por desejar aquilo que vem do outro, a sua satisfação se realiza na dor deste (Mezan, 1987Mezan, R. (1987). A inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(2), 121-136.). Movido pelo ódio, a sua felicidade está em privar o outro da coisa desejada, muito mais doque obtê-la. É porque o outro se alegra que o invejoso se entristece, visto que isso desperta o próprio apetite. O objeto da inveja é aquilo que torna alguém feliz, a partir da imaginação de quem inveja: “O invejoso do Purgatório diz a Dante que seu sangue fora de tal modo consumido pela inveja que lhe bastaria ver um homem se alegrar para que seu rosto se cobrisse de palidez” (Mezan, 1987, p. 7Mezan, R. (1987). A inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(2), 121-136.). Assim como o eu lírico lembra que Ofélia tinha uma tendência à rapina, ela roubaria qualquer coisa, inclusive a pobreza da narradora. A inveja quer tudo, quer despossar o gozo alheio e recobri-lo de lama. Ela é insaciável.

Na inveja, o ódio intensifica-se e cria-se um ciclo maligno em que o maior desfavorecido, com esses atos, é o próprio indivíduo, pois esse movimento o impede de conquistar e assimilar, no núcleo do ego, o objeto bom, na sua forma preservada e total, e a consequente integração psíquica e desenvolvimento emocional. A única forma de combater o poder aniquilador da inveja é pela introjeção firme e segura do bom objeto, nascente geradora da pulsão de vida em nosso psiquismo (Caper, 2020Caper, R. (2020). Inveja, narcisismo e a pulsão destrutiva. In P. Roth & A. Lemma (Orgs.), Revisitando “Inveja e gratidão” (pp. 21-27). Blucher.).

Uma ilustração desse aspecto pode ser observada na história infantil A Branca de Neve e os sete anões a partir de uma leitura realizada por Almeida (2020)Almeida, A. (2020). Intervenção psicanalítica na escola. Zagodoni.. A rainha descobre, por meio do seu espelho, que a mais bela do reino não é mais ela, mas sim, a jovem Branca de Neve. Isso faz com que a bruxa se morda — lembremos do aspecto voraz da inveja — de raiva pela beleza e juventude que a enteada possui e, por isso, anseia matá-la. Ser a segunda mais bonita não era o suficiente, a sua inveja desvelava a sua mesquinhez. Após tentar efetivar o seu plano assassino de diversas formas, mas sempre fracassar, decide se disfarçar de uma pobre e velha camponesa e entregar-lhe uma maçã envenenada. Apesar de conseguir efetivar a sua estratégia maligna e encontrar o alívio pela morte do objeto invejado, o beijo do amor verdadeiro, dado pelo príncipe apaixonado, faz a Branca de Neve retornar à vida.

Nesse conto, o amor (objeto bom/pulsão de vida) foi capaz de mitigar o ódio e os efeitos mortíferos da inveja (objeto mau/pulsão de morte). O autor realça um detalhe na história e relata que na versão de 1938, da Walt Disney, 11 após o envenenamento, a bruxa tenta fugir, mas é encurralada pelos sete anões na beira de um precipício. No meio da disputa, um raio atinge-a, o que faz com que ela se desequilibre e caia no escuro vazio do abismo:

A bruxa morre permanecendo na forma que estava transformada: velha e feia — temos uma analogia à verdadeira face da inveja, um dos sentimentos mais terríveis que acometem o ser humano. Talvez o invejoso se encontre sempre aprisionado nas angústias infindáveis de seu próprio psiquismo — aqui, qualquer semelhança com o conto, certamente, não seria mera coincidência. O invejoso carrega consigo as dores de uma vida medíocre, permeada de amarguras e ressentimentos. (Almeida, 2020, p. 115Almeida, A. (2020). Intervenção psicanalítica na escola. Zagodoni.)

Até agora podemos ver que a inveja, na perspectiva kleiniana, abarca aspectos vitais e mortíferos. Para a autora, o bom e o mau estão sempre em conflito, no qual um nunca solapa completamente o outro, mas que, na predominância da inveja, o objeto mau e a morte ascendem, enquanto na predominância da gratidão, o objeto bom e a vida prosperam. Para entender melhor como se dá esse campo de batalha, vamos adentrar na ligação existente entre a inveja e a criatividade, e como o ímpeto da primeira visa destruir a segunda, esta sendo um representante da vida.

A relação da inveja com a criatividade: o ódio à vida

No texto seminal de Klein (1957/1991aKlein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).) destaca-se a afirmação de que o primeiro objeto da inveja e da gratidão é o seio9 9 Em toda a obra de Klein podemos perceber o uso de terminologias que fazem referência ao corpo e de suas partes — incluindo órgãos genitais — para simbolizar a criatividade. Para a autora, a dimensão corporal está atrelada à procriação e às tendências reparadoras, tendo o seio como objeto central. Como nos lembra Didier Anzieu, o falo é o seio (Petot, 1982/2016). nutridor materno. Por essa razão, também é o primeiro alvo da destrutividade, que é direcionada à criatividade. Esse objeto é tomado pelo bebê como fonte de criatividade.visto que dele surgem aspectos vitais e tudo que lhe é desejável. Apesar de o ataque invejoso ocorrer contra o seio e o alimento produzido, o estrago da destrutividade é dirigido para a criatividade materna, incluindo todos os seus atributos e capacidades. Esse ciclo causa interferências danosas para o objeto bom e a saúde do ego, pois todos esses elementos encontram-se inter-relacionados:

O seio “bom” que nutre e inicia a relação de amor com a mãe é o representante da pulsão de vida e é também sentido como a primeira manifestação da criatividade (…). A capacidade de dar e preservar vida é sentida como o dom máximo e, portanto, a criatividade torna-se a causa mais profunda da inveja. (Klein, 1957/1991a, pp. 233-234Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

Quando se satisfaz com o seio, é como se o bebê presumisse o seguinte: se eu possuísse esse seio que jorra leite, me oferece vida e me mantém vivo o tempo todo, nada me faltaria. Ao se dar conta do seu infortúnio pela falta desse dom de criar, surge a inveja e o ódio.

Essa construção pode ser remontada à história de Ofélia, pois, no fundo, ela sabia que nunca iria produzir aquilo que a narradora lhe oferecia através do pinto. Nunca poderia gerar um corpo como aquele, um piar, uma penugem ou ter patas. A capacidade de dar esse tipo de vida nunca seria dela. E ao reconhecer a criatividade concedida pelo outro, consequentemente, percebia a sua limitação, por isso cobiça a narradora do conto, porque, por ter um pinto, considera que a mulher “tem tudo”, que nada lhe falta, e frisa “eu também quero”, de tal modo que, nesses dizeres, percebemos como se expressa a projeção da plenitude narcísica da criança.

A menina dirigia seu ataque invejoso à criatividade, por isso Klein intuiu que a inveja se dá tanto em experiências de frustração (seio mau) quanto de gratificação (seio bom), diferente da opinião comum entre os psicanalistas da época, que a consideravam oriunda apenas em situações de privação. Essas relações de objeto, arcaicas, em que a inveja e gratidão, ou a criatividade e destrutividade, se presentificam, servem de modelo para as relações futuras e para a saúde mental do indivíduo.

Um exemplo do cotidiano que representa o embate existente entre a inveja e a criatividade na vida adulta se refere às pessoas que enfrentam inibições na capacidade de trabalhar, pensar e dar frutos em suas produções. E, por isso, Klein propõe que: “a inveja da criatividade é um elemento fundamental na perturbação do processo criativo” (1957/1991a, p. 234).

Essa estagnação se dá pelo ímpeto de estragar e destruir tudo que é sentido como bom, seja a fonte externa do bebê (a criatividade materna) ou os seus correlatos internos (a capacidade de criar). Se só se inveja o que é bom, é preciso destruir o que é bom para não invejar. Os objetos, assim, passam a ter um caráter hostil, tal como podemos observar nas críticas destrutivas voltadas para si ou para o outro, as quais têm como base a inveja e o ataque ao seio.

Cintra e Figueiredo (2010)Cintra, E., & Figueiredo, L. C. (2010). Melanie Klein. Estilo e pensamento. Escuta. consideram que pessoas presas nesse ciclo podem estar sendo afetadas pelos estragos ocasionados por um superego invejoso. Essa instância é o resultado de projeções com base na inveja, a qual tem o intuito de impedir que as reparações reais se deem e “acabam condenando ao fracasso os movimentos de interesse e realização no mundo” (p. 144).

Devido ao ódio sentido, o indivíduo se vê assolado por uma persecutoriedade e culpa colossais, no qual a única saída é se punir severamente, vedando as construções criativas que poderiam se erguer.

Outros casos de pessoas que não possuem uma criatividade genuína, em razão da não instalação do bom objeto interno e da força da inveja, trata-se daquelas que apresentam uma avidez para alcançar a criatividade a qualquer custo, mesmo que isso implique em “puxar o tapete” de quem for preciso para obter sucesso. A respeito dessa temática, Klein declara o seguinte:

Se a identificação com um objeto internalizado bom e propiciador de vida puder ser mantida, ela se torna uma força propulsora para a criatividade. Embora superficialmente isso possa manifestar-se como cobiça por prestígio, riqueza e poder que outros tenham alcançado, seu objetivo real é a criatividade. (Klein, 1957/1991a, pp. 233-234Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

Caso o indivíduo confiasse na sua própria criatividade, essa dinâmica não ocorreria, porque a inveja estaria amenizada. Esse movimento benigno pode ser visto naqueles que se preocupam com a criatividade do outro ou os que oferecem críticas construtivas aos trabalhos alheios. É a elaboração da inveja que permite esse caminho: “Tenho observado que a criatividade cresce em proporção à capacidade de estabelecer mais seguramente o objeto bom, sendo isso, nos casos bem-sucedidos, o resultado da análise da inveja e destrutividade” (Klein, 1957/1991a, p. 257Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).).

A partir desses exemplos, vemos que a inveja levanta todas as armas contra a vida nas suas múltiplas formas criativas, ainda mais se o objeto bom não estiver consolidamente internalizado no núcleo egoico.

Em outra passagem do texto, Klein utiliza uma referência da literatura para realçar a inveja como força destrutiva da criatividade a partir do livro Paraíso perdido (2018) de John Milton. A autora menciona que Satã possuía uma inveja profunda de Deus, o criador. Devido a isso, deseja usurpar o céu (fruto da criação divina) e o seu ímpeto desassossegado é estragar e destruir a vida celestial, então, compra briga com Deus e instaura uma guerra. No entanto, é expulso e cai do céu. Assim, o diabo assume o risco de perder algo bom (o céu) no intuito de aplacar a sua inveja devoradora. Depois de caído, o diabo e outros anjos criam o inferno, como um espaço que se opõe ao espaço celestial, tornando-se o seu rival. O motor dos atos de satanás se baseia na força destrutiva de tudo, de querer atacar e estragar a criatividade de Deus.

A autora realiza uma observação: “essa ideia teológica parece provir de Santo Agostinho, que descreve a Vida como uma força criativa, em oposição à Inveja, uma força destrutiva” (Klein, 1957/1991a, p. 234Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).). Complementa o trecho com a primeira carta aos Coríntios: “O amor não inveja”. Assim, a inveja odeia que o amor se manifeste como potência de vida através da criatividade, que se encontrava barrada e não integrada em Satã (objeto muito mau e perseguidor) na relação com Deus (objeto muito bom e idealizado), figuras cindidas na obra descrita.

Satã nos mostrou que a inveja é um eterno ataque contra a própria vida, contra si mesmo, contra o desejo, contra a capacidade de amar e de criar. Assim como ele, Ofélia seguia o mesmo rumo, pois todo movimento do pinto fazia lhe contorcer os ossos. Destino esse que dificultava a menina de confiar na sua aptidão de gerar e manter a vida, ainda mais depois de ter constatado que matou um frágil e indefeso pinto com a inveja que escorria pelos seus dedos. Com a morte da inveja, houve, pelo menos no conto, o fim do pequeno sopro de criação e vitalidade que a narradora lhe ofereceu — o pinto. O que a menina não imaginava era que, ao aniquilar o outro, na verdade, estava matando muito mais a si mesma.

Ao pensar sobre as mortes ocasionadas pela inveja, vamos discutir a seguir de que forma a esperança e a desesperança, como manifestações ou não da vida, ocorre no processo analítico, na relação entre analista e analisando.

Enredamentos entre a inveja, a esperança e a desesperança no trabalho analítico

Tão difícil quanto falar sobre a inveja que um bebê sente da mãe, é tratar sobre a inveja que um analisando tem de um analista e da análise. Na situação analítica, por exemplo, a reação terapêutica negativa — ou a resistência ao processo clínico — tende a ser uma via expressiva da inveja que o analisando vive quando se depara com a capacidade do analista de oferecer vida, o que causa entraves na possibilidade de introjetá-lo como objeto bom (Feldman, 2020Feldman, M. (2020). A inveja e a reação terapêutica negativa. In: P. Roth & A. Lemma. (Orgs.). Revisitando “a e gratidão” (pp. 78-85). Blucher.). Esse aspecto pode ser manifesto pelas críticas destrutivas10 10 Klein (1957/1991a) realiza uma ressalva e diz que, obviamente, como profissionais, esta mos sujeitos a receber críticas caso cometamos falas e atos indevidos, mas o aspecto essencial da inveja é sentir que recebeu algo bom do analista, mas que, ainda assim, esse objeto deve ser depreciado e destruído. realizadas pelo analisando, no intuito de aniquilar qualquer elemento bom e de valor que o espaço analítico possa oferecer. Pode existir alguma fantasia de que o outro, ao oferecer algo bom, do qual você precisa, pode te ameaçar com base em uma humilhação (Frayze-Pereira, 2018Frayze-Pereira, J. A. (2018, jun.). Inveja. Ide, 40(65), 7-10.). E assim, quanto mais o 13 13 Lembremos que a palavra inveja vem do latim invidia, nome formado pelo radical -ved, encontrado em vedére que significa olhar (Mezan, 1987). analista é atacado, mais ele é sentido como um objeto estragado, o qual deve ser rejeitado. Tal como podemos observar na seguinte passagem:

Encontramos essa inveja primitiva revivida na situação transferencial. Por exemplo: o analista acabou de dar uma interpretação que trouxe alívio ao paciente e que produziu uma mudança de estado de ânimo, de desespero para esperança e confiança. Com certos pacientes, ou com o mesmo paciente em outros momentos, essa interpretação proveitosa pode logo tornar-se alvo de uma crítica destrutiva. Ela, então, não é mais sentida como algo bom que ele tenha recebido e vivenciado como enriquecimento. (Klein, 1957/1991a, p. 215Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

No trecho citado, a interpretação do analista (objeto bom) ocasionou uma mudança no paciente do desespero à esperança. Isso nos faz pensar que aceitar a oferta de amor do outro reduz, bruscamente, os sentimentos de agonia, angústia e desesperança, revestindo o ego com uma camada protetora para lidar com as situações difíceis da vida. Por isso, caso o analisando seja menos invejoso, os seus aspectos bons e os dos outros serão valorizados, e o que é oferecido pelo analista, a partir das palavras e gestos acolhedores, pode ser sentido como uma dádiva a ser fruída e preservada.

Diante desse impasse entre o bom e o mau, o analisando pode se confrontar com a dor de ter danificado a criatividade do analista, algo como: Eu sinto raiva por você possuir e desfrutar da sua criatividade e capacidade de oferecer vida, ao mesmo tempo, sinto culpa por desejar estragar os seus dons, porque você é bom para mim. Isso ocorre mesmo nos casos em que a inveja não desponta excessivamente, pois o pesar pelo ódio e destrutividade se mantém aceso. Essa é uma dinâmica que dificulta a análise da inveja, por estar ancorada em um remorso que não oferece saídas elaborativas.

Caso o processo analítico consiga atingir relativamente a integração e aumentar a capacidade de fruição, o que for oferecido de bom no setting vai se tornar um alimento dentro do ego. Esse aspecto se torna a raiz e, ao mesmo tempo, o tronco do sentimento de esperança, ou seja, combustíveis oriundos da pulsão de vida, o que fica expresso pelo aparecimento de insights na análise:

O insight também acarreta sensações de alívio e esperança, as quais por sua vez tornam menos difícil reunir os dois aspectos do objeto e do self (...). Essa esperança baseia-se no crescente conhecimento inconsciente de que o objeto, interno e externo, não é tão mau quanto parecia ser em seus aspectos excindidos. (Klein, 1957/1991a, p. 228Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

Nos meandros da inveja até a sua elaboração, Klein (1957/1991a)Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957). discute o caso de uma mulher que carregava em si a fantasia de uma vida insatisfatória na infância. Esse sentimento causou danos às suas posteriores relações de objeto e abalou a sua esperança em relação à vida: “seu ressentimento do passado ligava-se à desesperança quanto ao presente e ao futuro” (p. 236). A inveja e o rancor do seio materno semearam dúvidas se o objeto podia ser encarado como algo bom ou não, impedindo a fruição de todas as benesses que o seio poderia lhe ofertar.

Elaborar esses afetos e viver a situação analítica como uma “alimentação feliz e satisfatória” provida por uma analista sentida internamente como um seio, o qual é fonte de vida, possibilitaram que a paciente se sentisse mais “esperançosa quanto ao futuro e quanto ao resultado de sua análise” (Klein, 1957/1991a, p. 238Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).). A autora destaca, ainda, o quanto as falas interpretativas do analista estão correlacionadas ao sentimento do analisado de ser compreendido, pois, a partir dessas intervenções clínicas, o indivíduo entra em contato com a própria realidade psíquica e os seus aspectos bons, o que pode “ter o efeito de reavivar a esperança e fazer com que o paciente se sinta mais vivo” (Klein, 1961/1994, p. 100Klein, M. (1994). Narrativa da análise de uma criança: o procedimento da análise de crianças tal como observado no tratamento de um menino de dez anos. In Obras completas de Melanie Klein. (v. 4; C. Bacchi, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1961).).

Quando esse percurso clínico é possível, a esperança do analista eclode: “É na análise dos efeitos das perturbações arcaicas no desenvolvimento em seu todo que reside nossa maior esperança de ajudar nossos pacientes” (Klein, 1957/1991a, p. 267Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).).

Nesse momento, a esperança favorece a elaboração da inveja ao mesmo tempo que a análise da inveja promove a esperança. Com isso, o ego passa a ficar assentado em um alicerce amoroso, no qual o objeto bom funciona como um “Airbag psíquico”, que amortece os impactos ocasionados pela destrutividade advinda da pulsão de morte. Elaborar a inveja permite que o indivíduo consiga encarar o seu eu total, desnudando-se em frente a um espelho, podendo juntar os pedaços de si que estavam desordenados e em cacos na situação anterior. Seu mundo interno, em torno do bem e do mal, torna-se mais realista, sendo possível enxergar com mais clareza os efeitos dos seus impulsos amorosos e agressivos. A intensidade da inveja provoca uma visão turva, embaçada e confusa, enquanto a capacidade de fruição serve para ajustar o foco da “retina mental” pelas “lentes” da esperança.

Caso a esperança não se estabeleça firmemente através da fruição do objeto bom, a inveja pode prevalecer no mundo interno, e, com isso, o desespero se torna protagonista da cena. Nessa via, Segal (1975)Segal, H. (1975). Introdução à obra de Melanie Klein. Imago. estabelece que na inveja, o bebê não consegue definir claramente o que é bom ou mau, essas qualidades encontram-se misturadas e confusas. Com isso, um drama se instala, no qual a bondade é danificada e, consequentemente, não introjetada, mobilizando a desesperança: “fortes sentimentos de inveja conduzem ao desespero. Um objeto ideal não pode ser encontrado e, portanto, não há esperança de amor ou de qualquer ajuda” (p. 53).

Esse desespero pode ser visto na música Invejoso de Arnaldo Antunes (2009)Antunes, A. (2009). Invejoso. In Iê Iê Iê. Faixa 6. Brasil: Universal Music.: Invejoso, querer o que é dos outros é o seu gozo, e fica remoendo até o osso, mas sua fruta só lhe dá caroço. Invejoso, o bem alheio é o seu desgosto. Queria um palácio suntuoso, mas acabou no fundo desse poço. Sem encontrar uma maneira de transformar as agonias da vida, o invejoso acaba no “fundo do poço”, somente há um vazio escuro sem esperança.

Para sair do fundo do poço, é necessária uma corda que puxe aquele que se encontra sem saída. Klein chamou isso de seio bom, mas podemos traduzir essa corda como os bons encontros e boas contingências que acontecem na vida, mas somente isso não é suficiente, pois é fundamental ter uma abertura dentro de si para aproveitar e guardar esses acontecimentos como lembranças, o que Klein chamou de pulsão de vida.

Imaginemos que, enquanto permanecia no buraco, a pessoa tivesse um fio de esperança que alguém pudesse resgatá-la. Ao ser salva, pôde sentir gratidão, voltar a ser e criar no mundo. Enquanto outra poderia se negar a ser resgatada, ou, ao subir, acreditar que o feito tenha se dado por sua causa e não pela ajuda do outro. Para entender a capacidade que alguns têm de realizar o primeiro movimento, diferente da inveja que predomina no segundo, vamos discutir o tópico seguinte.

Gratidão, criatividade e esperança: entrelaços no nosso mundo interno

Agradeço à vida, que tem me dado tanto
Me deu o riso e me deu o pranto
Assim eu distingo fortuna de falência
Os dois materiais que formam meu canto
E o canto de vocês que é o mesmo canto
E o canto de todos que é meu próprio canto.

(Violeta Parra)

Discutimos que, na inveja, a fruição do seio se torna obstruída e, por isso, impede o desfrute do bom objeto quando ele está disponível. Na gratidão acontece o caminho inverso, pois nela há a capacidade de gratificação oral do bebê (Klein, 1963/1991cKlein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).). A gratidão do bebê se traduz em amar o seio: aquilo que não se tem, nem se pode produzir por si só, e do qual se depende. Ser grato é admitir que o objeto de amor possui atributos que são necessários e vitais. Podemos ler a gratidão da seguinte forma:

A gratidão é a base da consciência emocional da pessoa em relação à vitalidade, à criatividade, ao amor, ao consolo e à compreensão inerentes a seus objetos bons, consciência que os eleva acima do nível do psicologicamente inanimado. A gratidão também implica o amor e a admiração dessas qualidades de sustentação da vida que força à identificação com elas, identificação que, por sua vez, tende a animar o mundo interno da pessoa. (Caper, 1990, p. 232Caper, R. (1990). Fatos imateriais: a descoberta de Freud da realidade psíquica e o desenvolvimento kleiniano do trabalho de Freud. Imago.)

Alcançar esse estado possibilita que o indivíduo reconheça que algo bom pode advir do outro, ao mesmo tempo que se encontra meios de contenta mento nessa partilha. Não só recebo o que é bom, mas desejo manter dentro de mim, e retribuir o que recebi para os outros. Há certo anseio de ser, ao mesmo tempo, objeto de amor e fonte de vida, ao se conceder o desfrute do objeto bom para o outro. Em alguma medida, reconhecer e aceitar algo bom é ser “penetrado” — pelas palavras, pelas sensações e afetos. Se sou permeável para adquirir esses objetos do mundo, consigo apreciar a bondade interna e externa, bases da gratidão e do reconhecimento da generosidade no bom.

Da mesma forma, Ofélia pôde se deleitar com a gratidão sentida pela narradora, por ela ter lhe proporcionado um encontro com o pinto, mesmo que tenha sido por um breve momento: “Ela sorriu”. A menina estava deslumbrada. Amou a capacidade de amar o que não tinha, e o amor recebido. Assim, a partilha da gratidão se tornou uma centelha no meio das sombras refletidas pela inveja.

Lembremos que, quando há confiança na própria capacidade de oferecer vida, a inveja é atenuada e, com isso, o seio bom vai ser sentido cada vez mais como bom quanto mais houver satisfação, e por conseguinte, gratidão e generosidade, criando uma cadeia circular que se retroalimenta (Petot, 1982/ 2016Petot, J-M. (2016). Melanie Klein II: o ego e o bom objeto. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1982).). Em outras palavras, cria-se um ciclo benigno em torno da pulsão de vida, no qual se pode dar ao outro aquilo de bom que foi recebido (Spillius et al., 2011Spillius, E. B., Milton, J., Garvey, P., Couve, C., & Steiner, D. (2011). The new dictionary of kleinian thought. Routledge.).

Esse sentimento de generosidade “está na base da criatividade, o que diz respeito tanto às atividades construtivas mais primitivas do bebê quanto à criatividade do adulto” (Klein, 1963/1991c, p. 351Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).). Ser generoso está atrelado à recuperação de estados de raiva e ressentimento, pois há mais força e riqueza no interior do indivíduo. Tais elos benignos só se dão no contato e assimilação do objeto bom internalizado e doador de vida, no qual, a identificação com este oferece um impulso à criatividade11 11 Petot (1982/2016) considera que não existe um processo direto que leva da gratidão à criatividade. Na verdade, é a criatividade que ocupa um lugar central, funcionando como uma matriz da qual se ramificam outros fenômenos. (Spillius et al., 2011Spillius, E. B., Milton, J., Garvey, P., Couve, C., & Steiner, D. (2011). The new dictionary of kleinian thought. Routledge.). Um objeto com essa qualidade serve como a base da gratidão, generosidade, criatividade e esperança:

Vemos na análise de nossos pacientes que o seio em seu aspecto bom é o protótipo da “bondade” materna, de paciência e generosidade inexauríveis, bem como da criatividade. São essas fantasias e necessidades pulsionais que de tal modo enriquecem o objeto originário que ele permanece como a base da esperança, da confiança e da crença no bom. (Klein, 1957/1991a, p. 211Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

Com o seio bom firmemente introjetado, uma menininha comunicou para Klein (1959/1991b)Klein, M. (1991b). Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 290-297). Imago. (Trabalho original publicado em 1959)., que o seu amor pela mãe era maior do que todas as outras pessoas, pois ela nada seria se sua mãe não tivesse lhe dado a vida e cuidado dela quando bebê. Esse é um belo recorte de como a gratidão sentida por ela expandiu sua capacidade de amor, reconhecimento e apreciação ao que lhe foi dado:

Se o objeto bom está bem estabelecido, a identificação com ele fortalece a capacidade de amor, as pulsões construtivas e a gratidão (...). E estão assentados os alicerces da saúde mental, da formação do caráter e de um desenvolvimento bem-sucedido do ego são estabelecidos. (Klein, 1957/1991a, p. 263Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).)

Para que isso aconteça, é necessário ter repetidas experiências de amor, cuidado e segurança. A partir disso, a confiança no mundo interno e externo se instala (Figueiredo, 2012Figueiredo, L. C. (2012). Confiança. A experiência de confiar na clínica e na cultura. In: L. C. Figueiredo. As diversas faces do cuidar. Novos ensaios de psicanálise contemporânea. (2ª ed.; pp. 71-100). Escuta.). Com ancoragem nas memórias felizes da vida, a esperança se liga à confiança de que é possível encontrar objetos que cuidam, no qual o resultado é que “a esperança e confiança na existência da bondade, como pode ser observado na vida cotidiana, auxiliam as pessoas em meio a grandes adversidades” (Klein, 1957/1991a, p. 194Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).).

O representante dessa repetição no setting é o analista, visto que os momentos prazerosos, sejam no início da vida ou a posteriori, servem como o estofamento para o bom objeto se firmar no ego. É a partir desse desfrute do encontro analítico, e da interpretação como um dos seus meios, que se forma o esteio da fruição e gratidão, juntamente com o sentimento de que o paciente extrai e absorve o que o espaço oferece de bom, sem precisar destruí-lo. É interessante pensar que mesmo o indivíduo não possuindo um objeto bom internalizado, a análise e a figura do analista fomentam o processo da sua constituição e a expansão:

Assim como as repetidas experiências felizes de ser nutrido e amado são instrumentais, na infância, para o estabelecimento seguro do objeto bom, também durante uma análise, experiências repetidas da eficácia e verdade das interpretações dadas levam a que o analista — e retrospectivamente o objeto originário — sejam erigidos como figuras boas. (Klein, 1957Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957)./1991, p. 265)

Na análise, o objeto bom ganha contornos mais firmes a partir da elaboração gradual de situações emocionais, seja do tempo presente e/ou das relações de objeto mais arcaicas do indivíduo, que se referem às camadas mais profundas da mente. Esse processo deve ocorrer repetidamente, tanto na transferência positiva quanto na negativa.

O analista, por sua vez, deve ter uma “perseverança” em analisar esses aspectos, especialmente os sentimentos mais hostis na transferência, para que o paciente encare a própria realidade psíquica, seus conflitos, sofrimentos e possa alcançar a integração que dá força ao ego, ao mitigar o ódio a partir do amor.

Esse caminho progressivo inclui insights sobre as cisões do self, em que o paciente aos poucos recupera, (re)conhece e tolera a sua própria “verdade”, como diz a autora, ou, de outro modo, as próprias facetas destrutivas: o ódio, a agressividade, a destrutividade, a inveja dirigida à criatividade do analista, o desprezo — muitas vezes sentidos como onipotentes e irremediáveis.

Nessas condições, o analisando consegue ser grato, pois passa a tolerar cada vez mais frustrações, visto que é na criação de um ambiente amistoso, confiável e compreensivo, frente às pulsões mortíferas, que o contato com a realidade psíquica pode se dar. Com isso, as insatisfações podem ser suportadas e a gratidão consegue despontar: “trata-se de criar condições para o restabelecimento do contato afetivo e da experiência de uma intimidade que não intimida e nem ameaça, mas transmite segurança, por meio da presença atenta, viva e implicada do analista” (Cintra e Ribeiro, 2018, p. 115Cintra, E., & Ribeiro, M. (2018). Por que Klein? Zagodoni.).

Assim, a análise é um percurso em que o analista se torna um objeto interno como fonte de vida e quando o indivíduo se identifica com esse objeto, o self passa a ter a sensação de uma bondade e criatividade própria.

Da mesma forma que o analista pode ser uma figura a ser internalizada como objeto bom e que favorece o processo criativo do paciente, seja no setting ou fora dele, Meltzer (1973)Meltzer, D. (1973). Estados sexuais da mente. Imago. propõe que a subjetividade está edificada pela introjeção dos pais internos, e, a depender da qualidade e da forma com que o indivíduo se relaciona com esses objetos, a criatividade e as tendências construtivas podem se manifestar, devido à libido que une o casal parental.

Em uma concepção convergente, Spillius et al. (2011)Spillius, E. B., Milton, J., Garvey, P., Couve, C., & Steiner, D. (2011). The new dictionary of kleinian thought. Routledge. declaram que o objeto parental inteiro e total, quando internalizado seguramente, vai se tornar a base da criatividade, seja no âmbito da sexualidade, da intelectualidade ou da estética. Quanto mais distante da inveja e imerso na sua elaboração, mais esse transcurso criativo se efetiva para o indivíduo.

Diante desses elementos, ao pensar sobre a condição de ter vivências amorosas e alegres com o casal parental para introjetar o bom objeto e ser criativo, destaco que Ofélia tinha pais orgulhosos e agressivos. A mãe era desconfiada, ríspida e arredia. Ao longo da narrativa, presumimos que a menina vivia em um ambiente com muita rigidez, frieza e restrições, em que os momentos de fruição eram raros. Havia pouca tolerância para o erro, a falha e o desvio. Nem a própria Ofélia acreditava e confiava na capacidade de manter vivo o amor dentro de si. Pontes construídas para o domínio da inveja, e não da gratidão.

A vida de uma “Ofélia” é muito mais sofrida, pois o movimento da gratidão, que vitaliza o indivíduo, não se cumpre. As quedas no viver são sentidas com mais dureza, e o que pode ser fácil e leve, acaba se tornando mais árduo e pesado. Se a menina tivesse perdurado o seu instante de gratidão e tolerado a inveja da narradora, a morte do pinto teria sido evitada e ela poderia encher seu mundo interno de amor a partir desse encontro que a transformou. No entanto, para a menina, o amor era fonte de dor e sofrimento.12 12 Nos dias atuais, Ofélia poderia ser vista como uma defensora do movimento Good vi bes only, chamado ironicamente por alguns de Gratiluz ou Positividade Tóxica, o qual vai na contramão da noção de gratidão postulada por Klein. O imperativo de mostrar que está bem o tempo todo ou de resolver as dificuldades da vida sozinho, sem recorrer à ajuda dos outros, pode ser pensado como fruto da inveja, e não da gratidão. Para se sentir grato de forma genuína, é necessário elaborar, minimamente, a inveja e os impulsos destrutivos que provêm dela, como a frustração, o fracasso e o ódio. O uso compulsivo de frases motivacionais e citações de autoajuda apenas negam e abafam os nossos instintos mortíferos, esquecendo-se de que não há como nos curarmos das pulsões mais avassaladoras do id, mas há como conciliá-las com o ego ao reconhecer e aceitar que somos constituídos por aspectos bons e maus. É crucial que o analista esteja atento a isso, bem como aos riscos de intervenções que possam se aliar a esse discurso que vemos na contemporaneidade, especificamente no ocidente. Devemos levar em conta que a gratidão referida por Klein não se equivale à narrativa de Poliana no jogo do contente, muito pelo contrário, afasta-se dessa falta de amadurecimento velada de otimismo e constrói trilhos para o contato mais íntimo com a realidade psíquica. Ao contrário dela, o amor de um aluno por um professor foi a motivação para a sua criatividade e gratidão, expressas na carta a seguir:

Uma carta à gratidão

Para finalizar as ideias sobre o sentimento de gratidão, remetemos a uma coincidência na história que costura os pontos trazidos ao longo deste tópico. No ano de 1957, foram escritos os textos Inveja e gratidão e uma carta de Albert Camus para o seu professor primário, Louis Germain, após ter recebido o Nobel de literatura. A significação do mestre em sua vida parte do incentivo educacional ofertado para Camus, visto que sua família era muito pobre e não apoiava o seu caminho para a escola secundária, mas sim, para o trabalho formal. Podemos pensar que a gratidão que o autor sentia, dentro de si, favoreceu sua criatividade amplamente (e vice-versa), a ponto de fazê-lo ser reconhecido com um prêmio dessa magnitude. A sua abertura psíquica de receber e dar amor pode ter impulsionado seus dons, habilidades artísticas e intelectuais, o que fica evidenciado pelo livro Discursos da Suécia, dedicado ao seu mentor. A homenagem de Camus ao seu professor está descrita a seguir:

Caro Monsieur Germain,

Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir falar-lhe de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as minhas forças.

Reflexões finais: a inveja e a gratidão com base nas ondulações pulsionais

Considerando, mais uma vez, a pulsão de vida e de morte ligadas e constitutivas no psiquismo, junto ao entrelaçamento da inveja com a desesperança e destrutividade, e a gratidão com a esperança e criatividade, realçamos o dinamismo próprio das posições subjetivas existentes nas nossas vidas, o qual faz com que esses fenômenos não sejam categorias separadas completamente, mas mantidas em uma inter-relação sustentada pelo paradoxo. Por isso, é possível que na inveja exista desesperança, mas também, criação e esperança.

Para ilustrar essa ideia, referimo-nos a Boris (1976)Boris, H. (1976). On Hope: It’s Nature and Psychotherapy. Int. Rev. Psycho-Anal., 3, 139-150. o qual argumenta que o lactente, quando satisfaz sua libido oral, ao mesmo tempo que é nutrido, sustenta uma esperança de que o seio seja dele, que ele próprio possa alimentar-se de forma autônoma. Ao se dar conta que o seio, ainda que seja predominantemente gratificador, vem de um outro, separado e independente, ocorre nele a inveja e uma crise da esperança, visto que a realização do seu desejo pode se dar em alguns momentos e em outros não, o que legitima as suas próprias faltas e dependências. Em outras palavras, enquanto a gratificação traz esperança, a frustração traz desesperança, especialmente quando se percebe uma diferença entre o eu e o outro.

No pensamento do autor, é como se, metaforicamente, o bebê fosse como Eva no mito de criação, que ao ter mordido a maçã do conhecimento, teve seu mundo ampliado, o que a levou a pensar: “Ah! Essa riqueza e vida são coisas que eu acreditava ter e produzir, mas como isso não acontece, preciso buscar fora de mim!”. Portanto, na crise da esperança, o desejo se instala e algumas transformações podem se dar, visto que essa experiência pode ser a abertura para a vida e as infinitas possibilidades de ser, fazer e criar no mundo, tal como Eva se deu conta depois de ter sido expulsa do paraíso.

Outra analogia sobre essa questão pode ser vista na fábula “A raposa e as uvas”. Como não conseguiu alcançar a videira com as uvas verdes que tanto ansiava, a raposa começou a depreciar os frutos, a negar a frustração do seu próprio desejo. Inicialmente ela tinha esperança de ser uma raposa que alcançasse as uvas doces, mas essa esperança foi perdida.

Mesmo dominada pelo impulso invejoso, imaginamos que a raposa seguiu o seu caminho no bosque atrás de outros frutos, criando estratégias mais ou menos elaboradas para alcançá-los e satisfazer o seu desejo. Apesar da força descomunal da inveja, com toda a crueza e amargura que ela produz, há algo em cada um que nos mobiliza para seguir adiante. Esse empuxo pode ser entendido como a pulsão de vida que nos convoca a todo momento para realizar uma jornada que leva da inveja à gratidão, e que abarca aquilo de bom que podemos dar e receber nas relações.

A obra Divina Comédia (1896/1998) de Dante também metaforiza como a pulsão de vida e de morte estão amalgamadas e como a esperança pode existir mesmo em meio à inveja. No purgatório, apesar de as almas invejosas permanecerem distantes do paraíso, e escoradas em uma parede à beira do precipício, existia nelas a esperança de alcançar a pureza dos pecados cometidos, a partir da expiação, pois só assim seria possível entrar no reino do céu. Na entrada de cada pecado capital, encontra-se um anjo que guarda a passagem e purifica a alma até que se consiga subir para outro nível de profanação mais branda. Mesmo prestes a cair em uma cova, fossa ou “buraco sem fim”, as almas, cobertas por túnicas ásperas e com os olhos costurados,13 13 Lembremos que a palavra inveja vem do latim invidia, nome formado pelo radical -ved, encontrado em vedére que significa olhar (Mezan, 1987). possuíam a crença de que o fim da dor e do sofrimento estavam prestes a acontecer.

No translado dessa perspectiva literária para a clínica, em muitos momentos, o analista se torna o “guardião” da esperança, na espera empática de que a “purificação” da inveja ocorra no analisando, para que a ascendência ao céu, como símbolo de um espaço criativo, aconteça.

Portanto, a vida carrega a potência de nascer, mesmo em um espaço aparentemente árido e sombrio, como Otto (2009)Otto (2009). 6 minutos. In Certa manhã acordei de sonhos intranquilos. Faixa 5. Brasil: Nublu records. afirma: “nasceram flores num canto de um quarto escuro”. Com isso, a criatividade, a esperança e a gratidão junto à desesperança, à destrutividade e à inveja unem-se em uma dança incessante de sintonias e desajustes, alguns giros harmônicos ou pisões no pé, onde cada uma esbarra com a outra no “salão psíquico”, formando pares mais ou menos ritmados a depender da eufonia entre as duplas de dançarinos (mundo interno) com a toada reproduzida pela banda (mundo externo).

  • *
    Este artigo faz parte da dissertação Criatividade e esperança na clínica psicanalítica: ideias a partir de Melanie Klein e Donald Winnicott, de Maysa Bezerra, orientada por Marina Ribeiro. A defesa ocorreu no mês de agosto de 2023. A pesquisa teve apoio financeiro da CAPES e foi fruto de um trabalho em equipe realizado no grupo de pesquisa LIPSIC – USP/PUC-SP.
  • 1
    Um detalhe importante é que as palavras esperança (hope) e criatividade (creativity) são muito citadas nesse texto, o que possibilitou uma articulação mais sólida e clara entre essas ma nifestações psíquicas.
  • 2
    Mezan (1987)Mezan, R. (1987). A inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(2), 121-136. utiliza esse conto para discutir sobre a inveja a partir de vários autores, incluindo Melanie Klein. Os pontos principais abordados no texto, com base na leitura de Frayze-Pereira (2018)Frayze-Pereira, J. A. (2018, jun.). Inveja. Ide, 40(65), 7-10., se tratam da “1º) associação da inveja com o olhar; 2º) a alegria do invejoso corresponde à dor do outro; 3º) a realização de seus propósitos não deixa o invejoso feliz e realizado (ao atacar os felizes, ataca a si próprio); 4º) a inveja contém desejo, mas nele não se esgota; 5º) o desejo de privar o outro da felicidade é essencial, muito mais importante do que obter a posse da coisa invejada” (p. 8). Nesse tópico, fazemos leituras similares, mas também distintas. É importante ressaltar que bebemos da fonte do autor, principalmente no que se refere ao uso do conto para pensar a fenomenologia da inveja.
  • 3
    Os trechos retirados diretamente do conto foram aspeados.
  • 4
    Sobre esse aspecto, Sodré (2020) argumenta que: “a necessidade de frisar a inveja como uma parte essencial da natureza humana levou a um uso exagerado das palavras ‘inato’ e ‘constitucional’ ligadas à inveja, de um modo que penso ter acabado por se tornar inútil — como se uma condenação extra estivesse ligada a ela: afinal, nós não falamos de ciúme inato ou complexo de Édipo inato — nós apenas assumimos que estes são todos parte da natureza humana” (p. 14).
  • 5
    É na continuidade das experiências de gratificação, vividas como fonte de vida e de amor, que se forma a base do objeto bom no núcleo egoico, o qual se torna estruturante para o self.
  • 6
    Cintra e Figueiredo (2010)Cintra, E., & Figueiredo, L. C. (2010). Melanie Klein. Estilo e pensamento. Escuta. destacam que “os aspectos constitucionais são, para Melanie Klein, por exemplo, uma propensão maior para a oralidade, que pode estar fundamentada em aspectos do metabolismo e do equilíbrio hormonal do recém-nascido. Se essa oralidade se manifestar por uma excessiva voracidade, temos então o terreno favorável ao surgimento da inveja” (p. 128). Nesse âmbito, Klein (1957/1991aKlein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).) afirma que a “capacidade tanto para o amor como para os impulsos destrutivos é, até certo ponto, constitucional, embora varie individualmente em intensidade e interaja desde o início com as condições externas” (p. 211).
  • 7
    Melanie Klein considera que a concepção desse seio inesgotável é inata e que, em certa medida, isso serve de apoio para a vida e para a criatividade (Roth, 2020Roth, P. (2020). Introdução. In P. Roth & A. Lemma (Orgs.), Revisitando “Inveja e gratidão” (pp. 6-13). Blucher.).
  • 8
    Sobre esse aspecto, Britton (2020)Britton, R. (2020). Ele se sente lesado: a personalidade patologicamente invejosa. In P. Roth & A. Lemma (Orgs.), Revisitando “Inveja e gratidão” (pp. 60-65). Blucher. destaca que: “Em inglês, a palavra ‘inveja’ (envy) tem duas raízes, uma no francês arcaico (envie), significando ‘desejo’, no sentido de admiração, e outra na expressão invidia, do latim, significando ‘maldade’, ‘má intenção’” (Oxford English Dictionary)” (p. 60).
  • 9
    Em toda a obra de Klein podemos perceber o uso de terminologias que fazem referência ao corpo e de suas partes — incluindo órgãos genitais — para simbolizar a criatividade. Para a autora, a dimensão corporal está atrelada à procriação e às tendências reparadoras, tendo o seio como objeto central. Como nos lembra Didier Anzieu, o falo é o seio (Petot, 1982/2016Petot, J-M. (2016). Melanie Klein II: o ego e o bom objeto. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1982).).
  • 10
    Klein (1957/1991aKlein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Obras completas de Melanie Klein. (v. 3, pp. 205-267). Imago. (Trabalho original publicado em 1957).) realiza uma ressalva e diz que, obviamente, como profissionais, esta mos sujeitos a receber críticas caso cometamos falas e atos indevidos, mas o aspecto essencial da inveja é sentir que recebeu algo bom do analista, mas que, ainda assim, esse objeto deve ser depreciado e destruído.
  • 11
    Petot (1982/2016)Petot, J-M. (2016). Melanie Klein II: o ego e o bom objeto. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1982). considera que não existe um processo direto que leva da gratidão à criatividade. Na verdade, é a criatividade que ocupa um lugar central, funcionando como uma matriz da qual se ramificam outros fenômenos.
  • 12
    Nos dias atuais, Ofélia poderia ser vista como uma defensora do movimento Good vi bes only, chamado ironicamente por alguns de Gratiluz ou Positividade Tóxica, o qual vai na contramão da noção de gratidão postulada por Klein. O imperativo de mostrar que está bem o tempo todo ou de resolver as dificuldades da vida sozinho, sem recorrer à ajuda dos outros, pode ser pensado como fruto da inveja, e não da gratidão. Para se sentir grato de forma genuína, é necessário elaborar, minimamente, a inveja e os impulsos destrutivos que provêm dela, como a frustração, o fracasso e o ódio. O uso compulsivo de frases motivacionais e citações de autoajuda apenas negam e abafam os nossos instintos mortíferos, esquecendo-se de que não há como nos curarmos das pulsões mais avassaladoras do id, mas há como conciliá-las com o ego ao reconhecer e aceitar que somos constituídos por aspectos bons e maus. É crucial que o analista esteja atento a isso, bem como aos riscos de intervenções que possam se aliar a esse discurso que vemos na contemporaneidade, especificamente no ocidente. Devemos levar em conta que a gratidão referida por Klein não se equivale à narrativa de Poliana no jogo do contente, muito pelo contrário, afasta-se dessa falta de amadurecimento velada de otimismo e constrói trilhos para o contato mais íntimo com a realidade psíquica.
  • 13
    Lembremos que a palavra inveja vem do latim invidia, nome formado pelo radical -ved, encontrado em vedére que significa olhar (Mezan, 1987Mezan, R. (1987). A inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(2), 121-136.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2023
  • Revisado
    13 Nov 2023
  • Aceito
    12 Jan 2024
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