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Daseinsanalyse psiquiátrica, fenomenologia das psicoses e ética da alteridade1 1 Trabalho apresentado no 3o Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental da ABRASME, realizado de 28 a 30 de junho de 2017.

Psychiatric Daseinsanalyse, phenomenology of psychoses and ethics of alterity

Daseinsanalyse psychiatrique, phénoménologie des psychoses et éthique de l'altérité

Daseinsanalyse psiquiátrica, fenomenología de las psicosis y ética de la alteridad

Este artigo tem por objetivo analisar o aspecto ético da fenomenologia das psicoses estabelecida pela Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger, a partir do modo como Merleau-Ponty concebe a experiência de outrem enquanto intercorporeidade. Inicialmente se apresenta a relação entre psiquiatria e fenomenologia, considerando a perspectiva de Binswanger sobre o problema da objetividade científica no campo da clínica e sua busca por desenvolver uma abordagem fundada na intersubjetividade. Ao final, procurou-se realizar alguns apontamentos sobre o sentido possível da aproximação entre fenomenologia e psiquiatria, de modo a tornar possível uma fenomenologia das psicoses que se constitua pelo reconhecimento da alteridade.

Palavras-chave:
Alteridade; ética; psicose; psiquiatria


Resumos

This article aims to analyze the ethical aspect of the phenomenology of psychoses established by Ludwig Binswanger’s psychiatric Daseinsanalyse, based on the way Merleau-Ponty conceives the experience of others as intercorporeity. Initially, the relationship between psychiatry and phenomenology is presented, considering Binswanger’s perspective on the problem of scientific objectivity in the clinical field and his quest to develop an approach based on intersubjectivity. Finally, we tried to make some notes about the possible meaning of the approximation between phenomenology and psychiatry, in order to make possible a phenomenology of psychoses that is constituted by the recognition of alterity.

Key words:
Alterity; ethic; psychosis; psychiatry

Cet article analyse la dimension éthique de la phénoménologie des psychoses établie par la Daseinsanalyse psychiatrique de Ludwig Binswanger, basée sur la manière dont Merleau-Ponty conçoit l’expérience d’autrui comme intercorporéité. Dans un premier temps, nous présentons la relation entre la psychiatrie et la phénoménologie, en considérant la perspective de Binswanger sur le problème de l’objectivité scientifique dans le domaine clinique et sa quête pour développer une approche basée sur l’intersubjectivité. Enfin, nous essayons quelques remarques sur le sens possible du rapprochement entre phénoménologie et psychiatrie, afin de rendre possible une phénoménologie des psychoses qui soit constituée par la reconnaissance de l’altérité.

Mots clés:
Altérité; éthique; psychose; psychiatrie


Este artículo tiene como objetivo realizar un análisis del aspecto ético de la fenomenología de las psicosis establecida por el Daseinsanalyse psiquiátrico de Ludwig Binswanger, a partir de cómo Merleau-Ponty concibe la experiencia del otro como intercorporeidad. Inicialmente, se presenta la relación entre psiquiatría y fenomenología teniendo en cuenta la perspectiva de Binswanger sobre el problema de la objetividad científica en el campo clínico y su búsqueda por desarrollar un enfoque basado en la intersubjetividad. Por último, se intenta hacer algunos apuntes sobre el posible significado de la aproximación entre fenomenología y psiquiatría para posibilitar una fenomenología de las psicosis que se constituya en el reconocimiento de la alteridad.

Palabras clave:
Alteridad; ética; psicosis; psiquiatría


Introdução

A ontologia do sujeito e do objeto e a possibilidade de um conhecimento objetivo, enfim, seguro e verdadeiro, constituiu a ciência psiquiátrica de um poder epistemológico sobre o outro que historicamente levou a processos gravemente comprometidos do ponto de vista ético. A criação do conceito de doença mental nos moldes do discurso científico objetivo da psiquiatria possibilitou a exclusão da loucura do domínio da verdade e a sujeição de outrem ao discurso verdadeiro do médico. Em consonância aos discursos próprios da fisiologia e da biologia mecanicistas, ou do subjetivismo intelectualista, a psiquiatria se consolida na modernidade como um ramo da medicina a partir do qual o outro é reduzido à condição de objeto de investigação.

Maurice Merleau-Ponty e Ludwig Binswanger são dois autores que se debruçaram sobre os problemas relacionados aos limites da psiquiatria em relação ao reconhecimento da alteridade pela necessidade de objetificação da doença mental e, por consequência, de outrem. Para ambos os autores existe uma relação direta entre a elaboração epistemológica da ciência sobre a loucura e a forma como se constitui no espaço clínico a relação entre psicoterapeuta e consulente. Como teóricos da tradição fenomenológica, Merleau-Ponty e Binswanger se preocuparam em superar a dicotomia do sujeito e do objeto nas análises sobre as noções de saúde mental e doença mental, especialmente no que se refere à compreensão das psicoses, por compreenderem suas consequências e limites clínicos. Contudo Binswanger, como psiquiatra, precisava de uma resposta mais urgente que trouxesse avanços diretos para a sua ciência, daí a necessidade de desenvolver uma aplicação empírica do método fenomenológico, porém que pudesse ser radicalmente ética, posto que fundamentada na intersubjetividade. Merleau-Ponty, por outro lado, manteve-se no âmbito filosófico e procurou se aprofundar na criação de uma ontologia do mundo sensível que pudesse ir além da própria inter-subjetividade, apontando para uma relação de intercorporeidade na qual o reconhecimento do outro não é compreendido a partir da consciência constitutiva do sujeito.

Desse modo, considerando o método fenomenológico e sua possível aplicação no campo da psiquiatria, o objetivo do artigo é realizar uma análise sobre o aspecto ético da abordagem estabelecida pela Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger, a partir do modo como Merleau-Ponty concebe a experiência de outrem enquanto intercorporeidade. Trata-se de avaliar a validade da aplicação da fenomenologia no campo da psiquiatria, nos moldes elaborados por Ludwig Binswanger, trazendo o pensamento de Merleau-Ponty sobre a questão da alteridade como um modo de discutir tal aplicabilidade.

Conforme se pretende demonstrar, o interesse de Binswanger (1971)Binswanger, L. (1971). Introduction a l’analyse existentielle. Minuit. na aplicação empírica do método fenomenológico comprometeu a profundidade de sua forma de conceber as relações entre consciência e natureza, bem como entre ego e alterego, acarretando uma tipificação ainda solipsista das psicoses. Isso em função da influência da teoria do ego transcendental de Husserl, a partir da qual o psiquiatra pretendeu fazer uma leitura das psicoses, justamente o que se evidencia com base na questão da alteridade em Merleau-Ponty.

A Daseinsanalyse psiquiátrica, na medida em que se estrutura a partir do ego transcendental husserliano, ao compreender a percepção de outrem por analogia, permanecerá concebendo o alterego psicótico a partir do ego psiquiátrico, comprometendo sua alteridade. A concepção de outrem em Merleau-Ponty, aprofundando a noção de cogito tácito de suas primeiras obras e admitindo o estranho enquanto transcendência temporal, irá revelar as características do equívoco de Binswanger, que consiste em fazer derivar uma fenomenologia das psicoses da gênese constitutiva do tempo, da subjetividade e da intersubjetividade, pressupondo o solipsismo da consciência e o ego constituinte.

Embora a análise se concentre em demonstrar os aspectos falíveis da daseinsanalyse psiquiátrica, de Ludwig Binswanger, a partir do confronto com a fenomenologia de Merleau-Ponty e a questão da alteridade, também aponta para a possibilidade de uma concepção fenomenológica das psicoses inspirada pela noção de intercorporeidade do filósofo, conforme discutida por autores como Hesnard (1957Hesnard, A. (1957). Psychanalyse du lien interhumain. PUF., 1959Hesnard, A. (1959). Apport de la phénoménologie a la psychiatrie contemporaine. Rapport de psychiatrie presenté au Congrés de psychiatrie e de neurologie de langue française. Masson et Cie Editeurs.) e Cabestan e Dastur (2011)Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin..

Psiquiatria e Fenomenologia

A grande questão da psiquiatria no início do século XX estava relacionada ao esforço para compreender a psicopatologia e a psicose de um modo que pudesse ir além da abordagem científica das ciências da natureza, a qual pressupõe a abstração dicotômica do sujeito e do objeto. Para Binswanger, tal problema era como um mal canceroso1 1 Expressão atribuída por Heidegger (2009) ao próprio Binswanger nos “Seminários de Zollikon”. para a psiquiatria, pois conduzia a elaboração do diagnóstico e da própria psicoterapia por meio de um processo clínico questionável do ponto de vista ético, na medida em que reduzia a psicose e o psicótico às convenções classificatórias da ciência objetiva. Binswanger se deu conta de que o abismo entre o normal e o patológico, bem como entre o médico e o consulente estavam enraizados na ontologia da modernidade, não sendo suficiente apenas tentar humanizar e transformar as práticas e as condutas da psiquiatria sem uma grande modificação de suas bases teóricas. Por isso a importância de Husserl e Heidegger como fontes para elaboração da inicialmente chamada Análise existencial e, posteriormente, denominada Daseinsanalyse psiquiátrica, pois ambos os autores procuraram pensar o ser humano a partir da experiência de entrelaçamento com outrem e com o mundo, antes da redução à lógica do ego constituinte.

O interesse de Bisnwanger (1971) pela fenomenologia estava relacionado ao esforço de ultrapassar os resultados obtidos por Karl Jaspers (1987)Jaspers, K. (1987). Psicopatologia geral. Atheneu., em seu manual de Psicopatologia Geral, publicado em 1913, mesmo ano em que Husserl (1950)Husserl, E. (1950). Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologique pures (Tome Premier). Gallimard. publicava suas Ideias diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica pura. O mérito de Jaspers estava em sua originalidade ao aproximar, pela primeira vez, a fenomenologia da psiquiatria, de modo a fundar o que seria a chamada psiquiatria fenomenológica. Seu objetivo era reestruturar o método causal, no qual se apoiava a psiquiatria e a psicopatologia do início do século XX, considerando o campo subjetivo e intuitivo da experiência vivida. Para tal objetivo era necessário conferir um estatuto de cientificidade para o campo das ciências compreensivas, o que explica o interesse de Jaspers pela fenomenologia de Husserl, uma vez que sua intenção era conhecer as vivências humanas, bem como “as condições e causas de que dependem, os nexos em que se estruturam, as relações em que se encontram e os modos em que, de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente” (Jaspers, 1987, p. 13).

Tratava-se, portanto, de se debruçar sobre o fenômeno psíquico, a partir do método descritivo da fenomenologia, para obter dados e informações de caráter científico, porém, não apenas objetivos, mas também intuitivos e subjetivos. Para que uma abordagem subjetiva faça algum sentido do ponto de vista científico é preciso delimitá-la muito bem, de modo a deixar “de ser um mero compartilhamento de experiência para se tornar conhecimento sistematizável, comunicável e testável” (Rodrigues, 2005, p. 757Rodrigues, A. C. T. (2005). Karl Jaspers e a abordagem fenomenológica em psicopatologia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 8(4), 754-768.). De acordo com Binswanger (1971)Binswanger, L. (1971). Introduction a l’analyse existentielle. Minuit., malgrado o mérito de Jaspers em aproximar psiquiatria e fenomenologia, procurando orientar a ciência médica para aquilo que se realiza pela experiência direta no contato com o consulente, o que se evidencia em sua psicopatologia geral é uma metodologia que, pelo esforço de tornar o fenômeno psíquico inteligível, acabou por limitar a descrição das essências àquilo que é estatisticamente compreensível. Binswanger pretendia ir além de Jaspers, no sentido de encontrar a linha mestra de desenvolvimento da psiquiatria, por meio de metodologia própria de investigação e não simplesmente pelo conjunto de várias abordagens científicas acessórias.

Para Binswanger, a fenomenologia de Husserl e Heidegger poderia levar à superação daquilo que o psiquiatra considerava o grande problema de sua ciência, justamente a aplicação do método das ciências naturais, com base na ontologia do sujeito e objeto. Apoiado no método fenomenológico e aplicando-o à psiquiatria, Binswanger propunha a renúncia de uma abordagem sobre a psicose que em seu afã de objetividade comprometesse o reconhecimento da alteridade. Seu objetivo inicial era dar lugar à perspectiva intuitiva, de inspiração husserliana, que permitisse ultrapassar a lógica exclusivamente objetiva das ciências naturais.

Segundo Tatossian (2006, p. 23)Tatossian, A. (2006). A fenomenologia das psicoses. (Célio Freire, Trad.). Escuta., as psicoses “são por excelência o objeto da fenomenologia”. Isso significa que a fenomenologia, ao orientar-se do real para o possível por meio da suspensão da atitude natural, abre um novo campo de investigação, no qual o fenômeno da psicose parece fazer sentido. A redução ou époqué fenomenológica de Husserl consiste na suspensão das teses oriundas da atitude natural, aquela atitude a partir da qual o mundo aparece para a consciência de forma transparente e sem mistérios, a fim de ter acesso a uma consciência pura e à sua especificidade eidética. A questão é que a psicose, do ponto de vista fenomenológico, também estaria relacionada à suspensão da atitude natural, ou melhor, à perda da atitude natural.

Mesmo na forma mais complexa do autismo esquizofrênico, o delírio, a subjetividade em todos os aspectos funciona como uma consciência pura, como um sujeito transcendental tendo posto fora do jogo a ligação do sujeito real aos fatos reais, e os objetos preferenciais do delírio são não as coisas ou os fatos individuais, mas os “modos de ser”, as “possibilidades de ser da Presença humana”, em que a importância universal os torna indiferentes à experiência atual: os objetos do delírio são as essências do eidos husserliano (Tatossian, 2006, p. 83Tatossian, A. (2006). A fenomenologia das psicoses. (Célio Freire, Trad.). Escuta.).

Eis o que Binswanger empenhou-se em demonstrar pela criação da sua Daseinsanalyse, como é possível perceber no texto A fenomenologia, de 1922. Tratava-se da apresentação do método fenomenológico para a psiquiatria como uma estratégia para sair das dificuldades e limites impostos pelo pensamento objetivo à clínica das psicoses, por meio da elucidação do caráter intencional da consciência.

Segundo Binswanger (1971)Binswanger, L. (1971). Introduction a l’analyse existentielle. Minuit., a fenomenologia permitiria ao psiquiatra atentar para a maneira como as palavras se apresentam em um discurso delirante, de modo a possibilitar não apenas a detecção de equívocos semânticos e suas dessemelhanças com o discurso normal, mas viabilizar a compreensão de um sentido mais profundo no relato do consulente. Sob o viés fenomenológico a manifestação psicótica passa a ser compreendida a partir da essência do mundo que ela habita, cabendo à ciência o processo descritivo desse fenômeno, a partir das diferentes formas possíveis de se vivenciar a experiência do espaço e do tempo. Contudo, descrever a essência dos mundos psicóticos não permitia a Binswanger compreender os aspectos existenciais desses mundos, por isso o psiquiatra buscou na analítica do dasein de Heidegger, uma explicação para os diferentes estados delirantes e alucinatórios na perspectiva ontológica do ser-no-mundo.

O interesse do psiquiatra pela analítica existencial do dasein surge dos limites encontrados na fenomenologia descritiva do primeiro Husserl, quanto às possibilidades de compreensão das modificações psiquiátricas em sua amplitude, sendo necessário o alargamento da noção de intencionalidade, a fim de melhor compreender a diversidade dos mundos constituídos na psicopatologia. Por meio da noção de intencionalidade, recuperada de Frantz Brentano, segundo a qual toda consciência é consciência de alguma coisa, Husserl afirma em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, qual seria a origem desse problema. Diz respeito àquela ingenuidade da ciência de tomar “o mundo objetivo pelo universo de todo o ser, sem com isso atentar que a subjetividade operante na ciência não pode, por direito, comparecer em nenhuma ciência objetiva” (Husserl, 2012, p. 272Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. (Diogo. F. Ferrer, Trad.). Forense Universitária.). Em Heidegger (1993)Heidegger, M. (1993). Sein und Zeit. M. Niemeyer., a intencionalidade passa a fazer parte da experiência irreflexiva do mundo, considerando a consciência antes pelos seus aspectos existenciais que reflexivos, o que irá possibilitar a análise das vivências intencionais como medo, angústia, e o cuidado. Portanto, o termo Daseinsanalyse, que é cunhado nesse momento está diretamente relacionado à leitura de Ser e Tempo e à investigação sobre as estruturas ontológicas da existência.

Essa busca de Binswanger pela analítica existencial de Heidegger se evidencia a partir de 1930 com a publicação de “O sonho e a existência”. Ao analisar a situação pela qual a vida é surpreendida pela experiência traumática e o sujeito a narra metaforicamente pela ideia de uma queda livre, é a perspectiva heideggeriana que se faz presente. Tratando da experiência de queda, no sentido de uma narrativa sobre a decepção e o adoecimento psíquico, Binswanger demonstra como a vivência da espacialidade caracteriza a forma de expressão linguística em face da experiência do sofrimento. Cair, nesse sentido, significa “perder o chão” e, por consequência, desvincular-se da esfera de um mundo comum. A investigação sobre as psicoses, na perspectiva da Daseinsanalyse, busca compreender o modo como se vivencia o espaço e o tempo de forma alterada, a ponto de se perder o contato com a esfera de um mundo comum compartilhado intersubjetivamente.

A preocupação de Binswanger sobre as diferentes formas de vivenciar a experiência do espaço e do tempo na psicose se aproxima da filosofia de Merleau-Ponty, na medida em que tem o foco na dimensão “do ser em uma intersubjetividade, em uma relação justa com o semelhante ou a do ser com o mundo comunitário [Mitwelt]” (Binswanger, 1971, p. 120Binswanger, L. (1971). Introduction a l’analyse existentielle. Minuit.). Do mesmo modo, para o filósofo, é preciso considerar que a explicação sobre o sintoma e a possibilidade de um tratamento não devem ser elaborados no plano de uma consciência tética, pela aplicação de um saber unilateral do médico em direção ao consulente.2 2 Optou-se neste trabalho pela expressão consulente, por considerá-la mais adequada do que o termo paciente, o qual denota certa passividade da pessoa frente ao tratamento. Nisso, seguiu-se o uso feito por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012): “Trata-se daquele sujeito que vem ao nosso consultório fazer uma consulta sobre algo que se passa consigo, na esperança de que possamos intervir em seu favor. O clínico gestáltico, à sua vez, não é aquele que responde, mas alguém que se deixa desviar pela ‘forma’ implicada na consulta. Não se trata de uma prestação de serviço (sugestão) a um ‘cliente’ ou de uma intervenção (de cuidado) em benefício de alguém que abre mão de sua autonomia para se tornar nosso ‘paciente’. Ao se deixar desviar pela forma da consulta, o clínico gestáltico procura implicar o consulente em sua própria produção” (p. 419). Segundo Merleau-Ponty (2009)Merleau-Ponty, M. (2009). Phénoménologie de la perception. Gallimard., não se pode assumir o sentido de seus distúrbios, “sem a relação pessoal que travou com o médico, sem a confiança e a amizade que ele lhe traz e a mudança de existência que resulta dessa amizade” (p. 201).

Binswanger e Merleau-Ponty trabalham com uma compreensão da psicopatologia tendo como referência a perda de possibilidade da vivência de um mundo comum [Mitwelt], pelo isolamento na esfera privada da consciência, em um mundo próprio [Eigenwelt], o que nas psicoses pode se constituir como ruptura com outrem. Nesse sentido, para além de uma abordagem categorial que visa catalogar os diferentes tipos de neuroses ou psicoses, a psicopatologia passa a ser compreendida por meio do grau de rompimento com o mundo das relações humanas, pelo comprometimento da possibilidade de vivenciar a experiência dialética de uma esfera privada e, ao mesmo tempo, compartilhada da existência.

Em sua última fase, já nos anos 1960, com as obras Melancolia e mania e Delírio, Binswanger retorna para a fenomenologia genética de Husserl e investiga as psicoses na perspectiva transcendental da gênese constitutiva do ego e do alterego, bem como do alterego psicótico. A questão que se impõe e que se pretende analisar é a possibilidade da fenomenologia fornecer as bases epistemológicas para a psiquiatria fenomenológica, no sentido da descrição das essências dos mundos psicóticos e das estruturas existenciais alteradas, considerando a gênese constitutiva do ego psicótico para além da comparação com o fenômeno constitutivo do ego entendido como normal. Ou seja, estaria Binswanger realmente reconhecendo a alteridade em sua análise sobre o fenômeno das psicoses? Seria possível afirmar que a Daseinsanalyse é verdadeiramente ética no que se refere a sua fenomenologia das psicoses, considerando a não redução da alteridade a dimensão do mesmo? É a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty e seu aprofundamento na direção de uma ontologia indireta do mundo sensível que se pretende realizar essa análise.3 3 A respeito das fases da filosofia de Merleau-Ponty em torno da questão da filosofia da consciência, considerando se houve ruptura ou apenas um aprofundamento entre as primeiras e as últimas obras, no caso entre A estrutura do comportamento e a Fenomenologia da percepção, até A prosa do mundo e O visível e o invisível, este artigo se funda na concepção dos comentadores que defendem haver um desenvolvimento gradativo da fenomenologia do autor e dos resquícios intelectualistas em direção à radicalidade ontológica do mundo sensível. Nesse sentido, a concepção presente no artigo se afasta de Barbaras (1999) e Moura (2001) e se aproxima da concepção de Moutinho (2012, p. 131), para o qual “o juízo sobre a ‘filosofia da consciência’ deve operar alguns ajustes que consistem em levar ao limite o que resta de intelectualismo na Fenomenologia. De nossa parte, ao contrário, trata-se, nesse primeiro momento, de reconhecer, como quer Merleau-Ponty, a ‘parcialidade’ desse juízo e destacar aquilo que faz entrada na Fenomenologia e que já o afasta do intelectualismo” (p. 131).

Outrem em Merleau-Ponty e a psiquiatria fenomenológica de Binswanger

A contribuição de Merleau-Ponty para a psiquiatria fenomenológica não é novidade, basta observar a ênfase que Hesnard deu para a obra do fenomenólogo na França, já na metade do século XX. Ângelo Louis Marie Hesnard foi um psiquiatra e psicanalista francês que procurou apontar a importância do pensamento de Merleau-Ponty para a psiquiatria, principalmente no que diz respeito à relação intersubjetiva:

Merleau-Ponty escreveu sobre o problema do conhecimento de outrem as páginas que não podem deixar de atingir os psicólogos. É indispensável quando se quer empreender um estudo da ligação humana, mesmo utilizando os ensinamentos da psicanálise e da sociologia, de lembrar, ainda que de uma maneira muito sucinta, a aplicação que ele deu a esse problema do método fenomenológico. (Hesnard, 1957, p. 25Hesnard, A. (1957). Psychanalyse du lien interhumain. PUF.)

De acordo com Hesnard trata-se de uma teoria essencialmente humanista à qual a psiquiatria e as ciências do humanas não poderiam ficar indiferentes. O psiquiatra já reconhecia o valor da fenomenologia merleaupontyana para pensar a psicose a partir das relações intersubjetivas, considerando que a psicoterapia, além de uma prática individual, precisa ser concebida também em seu sentido coletivo. Assim, a relação do consulente com outrem passa a ser colocada em primeiro plano, uma vez que a fenomenologia “nos inclina, desse modo, a uma ação compreensiva em profundidade do paciente e do debate com o seu meio” (Hesnard, 1959, p. 78Hesnard, A. (1959). Apport de la phénoménologie a la psychiatrie contemporaine. Rapport de psychiatrie presenté au Congrés de psychiatrie e de neurologie de langue française. Masson et Cie Editeurs.). Isso porque, embora não se tenha acesso pleno ao mundo de outrem, ao modo como cada um percebe uma cor ou vivencia um sentimento, é possível ter uma experiência compartilhada em algum nível.

A visão da cor verde em uma pradaria por dois observadores distintos, cada um com sua configuração própria da experiência, torna-se compartilhável pela linguagem justamente porque há algo na paisagem que é intercambiável. Permanecem duas visões diferentes, mas ambas transpassadas por um sentiente em geral que impede que cada visão se admita enquanto fonte exclusiva da significação verde. Segundo Merleau-Ponty (2011)Merleau-Ponty, M. (2011). Le visible et l’invisible. Gallimard. “não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima” (p. 185). Ora, é preciso aceitar que o mundo psicótico que o consulente comunica não é totalmente transcendente ao mundo que o médico habita, assim como não é totalmente assimilável por ele. Embora ambos os mundos estejam entrelaçados enquanto fazem parte da mesma carne, existem certas fissuras, como que dobras em um mesmo tecido que fazem preservar uma diferença radical. Neste sentido, “a carne é um ‘elemento’ do ser” (p. 182).

Pela vivência carnal correspondem-se ego e alterego como habitantes do mesmo tecido do mundo, mas cada qual com sua própria perspectiva, de acordo com a espacialidade e a temporalidade que lhes constituem. Por isso se torna possível falar em um tipo de relação que é ao mesmo tempo de identidade e diferença, familiaridade e estranhamento, ou, ainda, visível e invisível. O problema é que quando se transpõe essa relação em linguagem e se procura determinar a zona de identificação ou de diferenciação entre ego e alterego, no sentido da consciência normal e a consciência mórbida, passa-se ao domínio do pensamento objetivo e da análise reflexiva, ignorando essa dimensão de entrelaçamento da carne. O psiquiatra se coloca na posição do observador externo ao sistema, como se fosse possível ter acesso de forma objetiva ao fundamento da identidade e da diferença, o que nega o fenômeno da transcendência. É a necessidade de equilibrar essa tendência que faz do pensamento de Merleau-Ponty algo tão importante para a psiquiatria. Ao embaralhar as fronteiras da normalidade e da loucura, o filósofo contribui para uma ética psiquiátrica que impede a redução de outrem à lógica do mesmo, quer seja por identificação ou diferenciação. Trata-se da suspensão do saber positivo em proveito da experiência vivida, a qual se estabelece pela relação intercorporal entre o médico e o consulente, e não pela atividade do ego constituinte.

O diálogo da psiquiatria fenomenológica com a fenomenologia de Merleau-Ponty pode ser considerado mais profícuo do que aquele que estabeleceu Binswanger com Husserl e Heidegger, isso porque a questão da redução fenomenológica em Merleau-Ponty não supõe apenas “o retorno do mundo em direção à nossa consciência do mundo, mas também ela recusa a reduzir essa consciência à armadura de um saber transcendental” (Cabestan & Dastur, 2011, p. 130Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin.).

De acordo com Cabestan e Dastur (2011)Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin., a contribuição de Merleau-Ponty para uma fenomenologia das psicoses possui três pontos importantes: o primeiro diz respeito à questão da definição da psicopatologia, a qual, desde A estrutura do comportamento, é inspirada pela gestaltpsychologie, deixando de pensar isoladamente e de modo hierárquico as três ordens da existência, a saber: matéria, vida e espírito. Nessa perspectiva, a psicose deve ser explicada enquanto possibilidade primitiva da existência, a qual não tem o sentido de desrazão, na medida em que está presente também no normal como horizonte pré-reflexivo. O segundo ponto, relacionado diretamente ao primeiro, remete à tese antropológica de Merleau-Ponty, “que faz do corpo humano o motor de uma divagação constitutiva, a possibilidade permanente de não coincidir com o que se pensa, diz ou faz” (Cabestan & Dastur, 2011, p. 131Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin.). O terceiro ponto, que abala ainda mais as fronteiras entre normalidade e loucura, está presente principalmente em O visível e o invisível, e refere-se ao “núcleo comum à alucinação e à percepção normal — uma textura verdadeiramente onírica do sensível” (Cabestan & Dastur, 2011, p. 131Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin.).

Partindo da compreensão da psicopatologia a partir da alteração na estrutura do comportamento, como se tivesse havido uma espécie de regressão a uma maneira primitiva de organizar a conduta, Merleau-Ponty a define como possibilidade sempre presente no coração da normalidade, afastando-se desta não pelo que lhe falta, mas pelo que se diferencia em termos de estruturas mais simples ou mais complexas do comportamento. Isso não significa que o estado normal implica uma conduta adaptada por meio de sínteses psicológicas complexas, enquanto a desadaptada é aquela em que o psiquismo declina em processos simplificados, pelos quais a consciência perde seu sentido objetivante e confunde-se com as coisas em um funcionamento mecânico, primitivo. Contudo, segundo Cabestan e Dastur (2011)Cabestan, P., & Dastur, F. (2011). Daseinsanalyse. J. Vrin., em A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty ainda mantém uma relação de oposição entre a consciência liberada de seus condicionantes naturais no normal, e aquela arrebatada pela existência natural na psicopatologia.

Já na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty destaca que a relação entre a ordem natural e a ordem humana do comportamento, ou entre o psíquico e o fisiológico, procura não privilegiar um em detrimento do outro, o que trará uma nova maneira de conceber a psicopatologia. Em vez de preocupar-se com as características da distinção entre o normal e o patológico, o filósofo se interessa pela investigação da camada da existência que lhes é comum. Do mesmo modo que o sonho e a vigília fazem parte de uma mesma existência, a psicopatologia é uma possibilidade no seio da existência, tal qual o sono ou o sonho, no sentido de uma alteração na modalidade do existir, diante da qual o sujeito não tem pleno controle. Não se trata mais de uma passagem da consciência simbólica para seu estado arcaico ou primitivo, uma vez que a condição de ser no mundo impede essa diferenciação e a noção de passagem de uma dimensão a outra por causalidade.

Trata-se de resgatar a experiência primeira do ser no mundo, a fim de compreender a psicose a partir da ruptura com o estado ambíguo da existência, na qual se transita entre a vida anônima e impessoal e a vida pessoal dos atos de consciência. O que se perde na psicose é essa capacidade de transitar entre a existência caracterizada pela função simbólica e aquela outra existência que subjaz a ela enquanto fundamento. A existência esquizofrênica, conforme os casos citados na Fenomenologia da percepção remete a um tipo de descentramento da vida, como se os limites entre o psíquico e o fisiológico estivessem sido rompidos e a existência fosse tragada por um modo de existir e de perceber confusos, no qual a espacialidade e a temporalidade se encontram alteradas. Um esquizofrênico, diante da paisagem de uma montanha relata o exato momento em que a perspectiva espacial, a partir do qual a realidade exterior e interior encontram-se bem delimitadas, cede, como que arrebatada por uma força estranha, à outra estrutura espacial.

Esse segundo espaço através do espaço visível é aquele que nossa maneira própria de projetar o mundo compõe a cada momento, e o distúrbio do esquizofrênico consiste apenas no fato de que esse projeto perpétuo se dissocia do mundo objetivo tal como ele ainda é apresentado pela percepção e, por assim dizer, reflui para si mesmo. O esquizofrênico não vive mais no mundo comum, mas em um mundo privado, ele não vai mais até o espaço geográfico: ele permanece no “espaço de paisagem” e esta própria paisagem, uma vez cortada do mundo comum, está consideravelmente empobrecida (Merleau-Ponty, 2009, p. 340Merleau-Ponty, M. (2009). Phénoménologie de la perception. Gallimard.).

A alteração espacial, portanto, está relacionada à perda de contato com o mundo comum e intersubjetivo, em função do predomínio do modo próprio de vivenciar a espacialidade, tal como no sonho, no mito ou na loucura. O normal nunca está completamente separado dessas três dimensões da existência, mas transita com uma facilidade entre elas. Já a pessoa em estado psicótico encontra-se fixada ou presa numa modalidade específica da existência, o que a faz perder parte de sua comunicação com o mundo compartilhado. A partir de Merleau-Ponty, permite-se afirmar que o mundo louco e o mundo normal nunca estão completamente separados um do outro, assim como não se confundem plenamente entre si, mas ambos se abrem para outrem como o terceiro da relação.

O louco e o normal estão um para o outro numa relação carnal de identidade e diferença. Interpretando o fenômeno outrem conforme apresentado em nota de 16 de novembro de 1960 de O visível e o invisível, é possível afirmar que o normal existe como uma posição e o louco como sua negação, mas há também a negação da negação. “Posição, negação, negação da negação: este lado, o outro, o outro de outro. O que trago de novo ao problema do mesmo e do outro? Isto: que o mesmo seja o outro de outro, e a identidade diferença de diferença” (Merleau-Ponty, 2011, p. 312Merleau-Ponty, M. (2011). Le visible et l’invisible. Gallimard.). De um lado, a normalidade, e, do outro, a anormalidade como seu outro, porém ainda há o outro lado desse outro. Isso significa que a identidade entre o louco e o normal não se dá apenas pelo que lhes é comum, mas sim pelo que neles se constitui como diferença da diferença.

Sendo assim, Merleau-Ponty tem uma perspectiva sobre as psicoses que aponta para a carnalidade do mundo, de si mesmo e de outrem. É diante de tal transcendência que a lógica da linguagem encontra seu limite, e que a análise reflexiva faz desaparecer. Isso significa que “as categorias do espaço e do tempo não são previamente necessárias para a definição do mundo. Tempo e espaço são os sinais da pertença das coisas ao mundo” (Zielinsk, 2002, p. 301Zielinsk, A. (2002). Lecture de Merleau-Ponty e Lévinas: le corp, le monde, l’autre. PUF.). A transcendência, portanto, é uma alternativa à apreensão do mundo como objeto, ainda que de um objeto intencional. A síntese constitutiva da sucessão temporal encontra seu limite no fenômeno da transcendência, desse modo, é a própria descrição dos estados psicóticos como decorrentes da falência do ego transcendental que se desestrutura.

A temporalidade e, por consequência, a percepção de outrem decorrente da compreensão da dinâmica do tempo é o que afasta Merleau-Ponty de Binswanger. Isso porque o psiquiatra compreende o tempo e, portanto, a constituição do ego e do alterego fundado na teoria husserliana do ego transcendental, o que fará com que a tese sobre as psicoses dos últimos textos de Binswanger encontre sérios limites. O que se observa é que a raiz da questão está relacionada ao insuperável prejuízo solipsista presente em Husserl e herdado pelo psiquiatra, que comprometerá o reconhecimento de outrem em estado psicótico. Dessa forma, embora Binswanger tenha grande foco na relação intersubjetiva como base de toda a investigação diagnóstica da psicopatologia e do processo psicoterapêutico, a compreensão de Merleau-Ponty sobre a gênese constitutiva do tempo evidencia a fragilidade dessa investigação.

As consequências das categorizações utilizadas por Binswanger para descrever a mania e a melancolia, por exemplo, decorrem justamente de seu exagero ou falta de atenção quanto ao alcance da análise transcendental na descrição dos estados psicóticos. O processo de constituição do tempo e a percepção de outrem, na medida em que não supõe o privilégio da consciência de si, finda por invalidar a pretensão do saber psiquiátrico de enquadrar determinados distúrbios em definições transcendentais. O esforço de Binswanger, por mais preocupado com a questão da alteridade e a não redução de outrem a um objeto de investigação científica, foi traído pela persistência do solipsismo da consciência, o qual acarreta um uso excessivo da atitude categorial, por admitir papel predominante à subjetividade constituinte. Assim, uma fenomenologia das psicoses não pode ser pensada em sentido causal, como se a gênese transcendental pudesse explicar o que se manifesta empiricamente pelo sintoma.

Trata-se de colocar em questão até mesmo a possibilidade de assumir a gênese transcendental do tempo como caminho para explicar as psicoses, pois não é possível ter acesso às características transcendentais da consciência, de modo a derivar delas uma compressão dos diferentes estados psicóticos. Faltou a Binswanger um passo decisivo, a exemplo daquele efetuado por Merleau-Ponty: de uma fenomenologia genética pura para uma ontologia indireta do Ser selvagem, Ser bruto, a partir da qual não se admite privilégio à consciência como unidade constituinte. Faltou-lhe, assim como para Husserl, compreender melhor o domínio da passividade, pela qual a percepção do tempo e de outrem não é explicada tendo por base a ação do ego constituinte. Não se constitui outrem e não se constitui a si mesmo, da mesma forma que a psicose não pode ser um erro na constituição de si e, por consequência, de outrem ou do mundo.

Outrem, na medida em que remete não apenas ao outro transcendental, mas à experiência de si mesmo como estranho, impede que se privilegie um dos polos no fenômeno da correlação. Dessa forma, não se pode fazer predominar a identidade sobre a diferença ou vice-versa, mas é preciso admitir o paradoxo nas relações entre a consciência e o mundo, bem como entre o ego e o alterego, no sentido de que se trata de realidades idênticas e ao mesmo tempo distintas.

Não temos que escolher entre uma filosofia que se instala no mundo mesmo ou em outrem e uma filosofia que se instala “em nós”, entre uma filosofia que toma a experiência “de dentro” e uma filosofia que, se possível for, a julgue do exterior, por exemplo em nome de critérios lógicos: estas alternativas não se impõem, pois que talvez o si e o não si sejam como o avesso e o direito, e a nossa experiência é então essa reviravolta que nos instala bem longe de nós, em outrem, nas coisas. Nós nos colocamos tal como o homem natural, em nós e nas coisas, em nós e em outrem, no ponto onde, por uma espécie de quiasma, tornamo-nos os outros e tornamo-nos mundo (Merleau-Ponty, 2011, pp. 209-210Merleau-Ponty, M. (2011). Le visible et l’invisible. Gallimard.).

É isso que torna tão relevante a questão da intercorporeidade em Merleau-Ponty para a psiquiatria fenomenológica, não apenas no que diz respeito aos limites que ela estabelece à Daseinsanalyse de Binswanger, mas também com relação às perspectivas éticas por ela abertas. A psicose já não poderá ser simplesmente concebida a partir do que distingue o ego médico do ego psicótico e nem a partir do que os identifica, pois em ambos os casos outrem está reduzido ao estatuto de coisa, objeto para um pensamento. Seria o caso de abandonar o conhecimento sobre a psicose, admitindo sua transcendência radical? Não se trata disso, mas sim de despertar a psiquiatria e a psicologia para um tipo de saber sobre outrem, que apenas se estabelece pela experiência da intercorporeidade, enquanto relação que está para além da antinomia da identidade e da diferença. De acordo com Bloc & Moreira (2013)Bloc, L., & Moreira, V. (2013). Sintoma e fenômeno na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(1), 28-41. https://doi.org/10.1590/S1415-47142013000100003
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, por meio de uma “prática regida pela ética e pelo cuidado com o outro, é possível se desenvolver um modelo de clínica fenomenológica que compreende que o paciente possui potencialidades e que o vivido não pode ser reduzido à experiência psicopatológica” (p. 38).

Trata-se de uma exploração mais radical dessa zona de intersecção em que as categorias impostas pela consciência encontram seu limite, pois apesar de ser a região da absoluta transcendência, ainda é possível ter acesso ao momento originário a partir do qual a atitude categorial encontra seu sentido, uma vez que se refere a uma transcendência na imanência concebida como silêncio.

O filósofo fala, isto, porém, é nele uma fraqueza e uma fraqueza inexplicável: devia calar-se, coincidir em silêncio e encontrar no Ser uma filosofia já feita. Tudo se passa, ao contrário, como se quisesse colocar em palavras certo silêncio que escuta nele. A sua obra inteira consiste neste esforço absurdo. Escrevia para dizer seu contato com o ser; não disse e nem saberia dizê-lo, pois que é silêncio. (Merleau-Ponty, 2011, p. 164Merleau-Ponty, M. (2011). Le visible et l’invisible. Gallimard.)

Isso que Merleau-Ponty analisa sobre o filósofo estende-se ao psiquiatra. É preciso voltar-se ao mundo intercorporal para compreender a psicose e pensar uma prática psicoterapêutica que se fundamente nessa vivência silenciosa de outrem como estranho. O mundo psicótico em nenhum momento encontra-se completamente separado do que se define como sendo o mundo do normal, do mesmo modo que esses dois mundos não se confundem entre si. A identidade ou a diferença entre eles acentua-se quanto mais se transforma em linguagem objetiva a experiência primeira do corpo e da intercorporeidade. Faz-se necessário que o psiquiatra atente para esse estranho domínio pelo qual o ego e o alterego estão um para o outro numa relação de quiasma, de reversibilidade, sem que seja possível afirmar o que exatamente se identifica ou se diferencia, posto que é transcendência.

Trata-se de não fazer de outrem uma imagem de si mesmo e nem de seu oposto, mas de admitir o limite da apreensão intelectual face ao estranho, pois somente assim há reconhecimento da alteridade. “Porquanto recobrimento e fissão, identidade e diferença, essa aderência faz brotar um raio de luz natural que ilumina toda a carne, não apenas a minha” (Merleau-Ponty, 2011, p. 185Merleau-Ponty, M. (2011). Le visible et l’invisible. Gallimard.). Binswanger parecia estar ciente dessa questão, mas como não pensou radicalmente o problema do solipsismo e da constituição do ego e do alterego, fez da Daseinsanalyse psiquiátrica uma espécie de normatização transcendental, ignorando o caráter preponderante das relações intersubjetivas nas manifestações psicóticas.

Conclusão

A forma de pensar a alteridade é um dos legados possíveis de Merleau-Ponty para o campo da psiquiatria fenomenológica, o qual Binswanger não poderia ter encontrado em Husserl, dada a sua permanência na perspectiva do ego constituinte, como se o eu puro não pudesse ser relativizado em hipótese alguma. O problema é que a manutenção do eu puro como condição da possibilidade da própria vivência do tempo e do espaço, da constituição do ego e do alterego traz consequências para a assimilação dessa compreensão pelo discurso psiquiátrico. No caso da Daseinsanalyse psiquiátrica isso fica claro quando se pretende descrever estados psicóticos com base na interpretação das modificações na estrutura transcendental do tempo, que poderiam explicar as manifestações empíricas dos comportamentos alucinatórios e delirantes.

Binswanger é conduzido pela fenomenologia de Husserl, como que por uma espécie de encantamento transcendental, pois permanecerá depositando uma fé excessiva na capacidade do discurso racional e científico sobre o fenômeno psicótico. Em última instância, trata-se de uma fé no ego enquanto unidade absoluta e em seus poderes constituintes, pretendendo estipular a norma a partir da qual poderiam ser estabelecidos os limites entre a racionalidade e a loucura.

A concepção de alteridade em Merleau-Ponty leva a concluir que o fundamento da normatividade não se sustenta, uma vez que se assume o fenômeno da transcendência como a experiência de outrem como estranho pelo descentramento da consciência. Trata-se justamente de uma força estranha que pode levar ao arrebatamento completo do eu constituinte. Quer seja pela experiência de queda relacionada à dor de uma perda, ou pelo êxtase místico delirante, os poderes constituintes são temporariamente anulados, e já não haverá palavras para explicar o sentido da dor e do sofrimento, ou de prazer e realização da experiência do transe.

Essas são algumas das consequências da concepção de outrem em Merleau-Ponty que precisam ser assumidas ao se propor realizar uma fenomenologia das psicoses e orientar uma psicoterapia realmente ética. Não apenas pela compreensão do fenômeno da transcendência no que se refere aos limites dos discursos sobre a loucura, mas também no sentido da reflexão sobre como colocar em evidência a experiência da intercorporeidade e do estranho no processo clínico das psicoses. É importante investigar como operar com o silêncio e a experiência do descentramento na elaboração de diagnósticos e na intervenção psiquiátrica. Trata-se de uma questão que precisa ser melhor averiguada pela psiquiatria e a psicologia, considerando sempre o limite da análise reflexiva e do pensamento objetivo no que se refere às intenções significativas sobre outrem, a fim de que a psicoterapia não se constitua apenas como prática de conformação dos comportamentos desviantes à norma psiquiátrica vigente.

  • 1
    Trabalho apresentado no 3o Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental da ABRASME, realizado de 28 a 30 de junho de 2017.
  • 1
    Expressão atribuída por Heidegger (2009)Heidegger, M. (2009). Seminários de Zollikon. (Gabriella Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado, Trad.). Vozes. ao próprio Binswanger nos “Seminários de Zollikon”.
  • 2
    Optou-se neste trabalho pela expressão consulente, por considerá-la mais adequada do que o termo paciente, o qual denota certa passividade da pessoa frente ao tratamento. Nisso, seguiu-se o uso feito por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012)Müller-Granzotto, M. J., & Müller-Granzotto, R. L. (2012). Psicose e sofrimento. Summus.: “Trata-se daquele sujeito que vem ao nosso consultório fazer uma consulta sobre algo que se passa consigo, na esperança de que possamos intervir em seu favor. O clínico gestáltico, à sua vez, não é aquele que responde, mas alguém que se deixa desviar pela ‘forma’ implicada na consulta. Não se trata de uma prestação de serviço (sugestão) a um ‘cliente’ ou de uma intervenção (de cuidado) em benefício de alguém que abre mão de sua autonomia para se tornar nosso ‘paciente’. Ao se deixar desviar pela forma da consulta, o clínico gestáltico procura implicar o consulente em sua própria produção” (p. 419).
  • 3
    A respeito das fases da filosofia de Merleau-Ponty em torno da questão da filosofia da consciência, considerando se houve ruptura ou apenas um aprofundamento entre as primeiras e as últimas obras, no caso entre A estrutura do comportamento e a Fenomenologia da percepção, até A prosa do mundo e O visível e o invisível, este artigo se funda na concepção dos comentadores que defendem haver um desenvolvimento gradativo da fenomenologia do autor e dos resquícios intelectualistas em direção à radicalidade ontológica do mundo sensível. Nesse sentido, a concepção presente no artigo se afasta de Barbaras (1999)Barbaras, R. (1999). Le désir et la distance – Introduction à une phénoménologie de la perception. Vrin. e Moura (2001)Moura, C. A. R. (2001). Racionalidade e crise. Discurso Editorial e Editora UFPR. e se aproxima da concepção de Moutinho (2012, p. 131)Moutinho, L. D. (2012). Merleau-Ponty e a “Filosofia da consciência”. Dois Pontos, 9(1), 121-153, abril., para o qual “o juízo sobre a ‘filosofia da consciência’ deve operar alguns ajustes que consistem em levar ao limite o que resta de intelectualismo na Fenomenologia. De nossa parte, ao contrário, trata-se, nesse primeiro momento, de reconhecer, como quer Merleau-Ponty, a ‘parcialidade’ desse juízo e destacar aquilo que faz entrada na Fenomenologia e que já o afasta do intelectualismo” (p. 131).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Revisado
    26 Jul 2023
  • Aceito
    30 Jan 2024
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