O racismo é o problema que está em pauta neste livro, sendo assim o seu foco e o seu alvo. Para pensá-lo na sua especificidade, ao mesmo tempo histórico, social, político e psíquico, é necessário realizar diversas problematizações para que se possa construir diferentes problemáticas (Foucault, 1997/1975-76), na medida em que o racismo é uma formação marcada pela complexidade (Morin, 1994) nas suas linhas de força e de fuga. Por isso mesmo, o que se impõe é uma leitura transdisciplinar do racismo, pela qual diversos discursos teóricos se conjugam para enunciar de maneira crítica as diferentes faces do poliedro racista. Portanto, da psicanálise à filosofia, passando pelas ciências sociais, as diversas ciências humanas se reuniram neste esforço teórico para delinear o racismo na sua multiplicidade e pluralidade (Bourdieu, 2004). Enfim, se o racismo implica múltiplos interesses para a sua produção e promoção social, é preciso reconhecer que a leitura do racismo implica a conjunção entre os registros do saber e do poder para a sua elucidação (Foucault, 1975; 1982/2012).
Assim, é preciso reconhecer como condição preliminar que o racismo é delineado pela sobredeterminação na sua tessitura como nos disse Freud no que concerne ao sonho e as demais formações do inconsciente (lapso, ato falho, chiste, sintoma e transferência). Contudo, tal formulação deve ser estendida também para as formações sociais e ideológicas, pois essas seriam também tributárias do registro do discurso e das implicações políticas e pulsionais nelas presentes. Portanto, se o racismo implica diferentes processos de subjetivação dos agentes sociais que neles se implicam, sejam como promotores de práticas racistas sejam como alvo de tais práticas indignas, implicam também forças sociais e políticas poderosas que promovem os agenciamentos (Deleuze, 1969) das práticas racistas. Daí por que o capitalismo é o campo social e econômico onde emerge as diferentes práticas racistas na contemporaneidade, no qual se engendram a rejeição, a exclusão e os desprezos das individualidades visadas, que pode atingir o extermínio como nos disse Taguieff (1987/2001).
Com efeito, o que produz as práticas racistas é o não reconhecimento do outro na sua singularidade, de forma a anular a dignidade do sujeito visado, condição concreta de possibilidade que é para a sua morte social e para a sua morte física. Portanto, o racismo é uma modalidade do narcisismo das pequenas diferenças, para evocar Freud em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921/2010), na medida em que é a diferença do outro na sua particularidade que não pode ser efetivamente reconhecida, nos registros individual e coletivo (raça, etnia, religião e classe social). Contudo, se a leitura de Freud se realizou nos anos 20, do século XX, que precedeu a emergência histórica e social do nazismo e do fascismo na sociedade europeia, a radicalização da xenofobia e do racismo na contemporaneidade incrementou tais formas de narcisismo pela suspensão dos direitos sociais e das formas de reconhecimento promovidos pelo neoliberalismo, em escala internacional.
É claro que, nesse contexto histórico e social, o Brasil tem suas especificidades, na medida em que aqui se evidencia a presença de signos ostensivos de genocídio da população afro-descendente em consequência da não superação da longa tradição escravocrata, que prevalece, até hoje, com as péssimas condições de saúde e de educação, mas que se fazem também presentes nas populações indígenas. O que implica dizer que existe uma urgência brasileira em face dos impasses colocados para os destinos de tais populações tratadas de forma indigna e que se materializa por laços sociais perversos. Portanto, no Brasil contemporâneo, tais tradições vivem efetivamente como refugiadas, como se fossem estrangeiras, devendo então serem plenamente reconhecidas para se inscreverem no registro da cidadania, para que o racismo possa ser assim objeto de desconstrução (Derrida, 1967). Enfim, esta é a aposta dos autores desta obra magnífica nos seus treze (13) textos, que realizam uma cartografia instigante para que se possa pensar no racismo como questão crucial da atualidade.
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Autores que participam da coletânea: Marília Etienne Arreguy; Marcelo Báfica Coelho; Sandra Cabral; Jô Gondar; Leandro de Lajonquière; Carla Penna; Marcelo Ricardo Pereira; Cristiana Carneiro; Renato Noguera; Sharon Varjão Will; Maria de Fátima Costa de Paula; Mylene Santiago; Zuleide Silveira; Sandra Neves Teixeira; Dagmar de Mello e Silva; Fábio Belo.
Referências
- Arreguy, M. E., Coelho, M. B., & Cabral, S. (2018).Racismo, capitalismo e subjetividade: leituras psicanalíticas e filosóficas Niterói, RJ: EdUFF, 2018 (copyright 2017).
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Bourdieu, P. (2004, avril). La précarité pour tous. Racisme de l’intelligence. Le Monde Diplomatique, p. 24. Sur l’internet: <https://www.monde-diplomatique.fr/2004/04/BOURDIEU/11113 (30/11/2018)>.
» https://www.monde-diplomatique.fr/2004/04/BOURDIEU/11113 - Deleuze, G. (1969). Logique du sens Paris. France: Minuit.
- Derrida, J. (1967). De la Grammatologie Paris, France: Minuit.
- Foucault, M. (1975). Surveiller et punir. Naissance de la prison Paris, France: Gallimard.
- Foucault, M. (1997). Il faut défendre la société Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1975-76).
- Foucault, M. (2012). Microfísica do poder Rio de Janeiro, RJ: Graal. (Trabalho original publicado em 1982).
- Freud, S. (1921). Psychologie des masses et analyse du moi Paris, France: PUF.(Trabalho original publicado em 1921).
- Morin, E. (1994). La complexité humaine Textes choisis. Paris, France: Flammarion.
- Taguieff, P-A. (2001). The force of prejudice: On racism and its doubles (Melehy, H., trad.). Minneapolis, MN: University of Minnesota Press. (Trabalho original publicado em 1987).
Editado por
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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2019
Histórico
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Recebido
12 Set 2018 -
Aceito
14 Jan 2019