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“O tempo do traumático” em tempos de catástrofes

“The time of the traumatic” in times of catastrophes

A reedição do livro O tempo do traumático, de Felícia Knobloch, em 2022, não poderia ser mais oportuna. Após décadas da publicação de sua dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o livro de Felícia aparenta tratar dos casos-limite da clínica psicanalítica, mas é muito mais do que isso. De certa forma, o texto foi uma espécie de “premonição” - acompanhando Stephen Frosh (2013)Frosh, S. (2013). Assombrações: psicanálise e transmissões fantasmagóricas. Benjamin Editorial., quando fala das assombrações em psicanálise - do que viria a ser sua carreira: muito para além da clínica “entre quatro paredes”, realizando em ato as palavras de seu mestre.

Inspirado também em aportes do pensador Maurice Blanchot e do filósofo Gilles Deleuze, esse livro é parte da bibliografia que demonstra o crescente interesse despertado no Brasil pela obra de Sándor Ferenczi (Pinheiro,1995Pinheiro, T. (1995) Ferenczi: do grito à palavra. Jorge Zahar.). Esse interesse, inicialmente circunscrito à clínica tradicional, alargou-se, a ponto de podermos argumentar que o “tempo do traumático” é também o tempo dos desastres, das tragédias, das catástrofes sociais, da violência, da migração e do refúgio, enfim, do sofrimento coletivo, que não pode ser lido apenas como uma reação individual a um evento extremo. É o tempo da covid-19, da utilização do “trauma” como diagnóstico fluido e recheado de interesses, tempo da entrada deste termo com força no espaço público, do papel dos profissionais “psis” que podem proteger - ou reforçar - vulnerabilidades coletivas. Esta elasticidade da reflexão clínica fez e faz parte do pensamento de Felícia, cuja base está nítida nesse trabalho agora reeditado.

A autora, em sua inquietude, trouxe já nos anos 90 a ideia de que o trauma nos convoca a outro modo de pensar e agir: outra percepção de tempo, outra técnica, um outro laço social que deve ser (re)construído para lidar com a experiência do excesso e da impossibilidade de representação. Frente ao acontecimento de vida que rompe os limites do psiquismo, na batalha contra o seu estilhaçamento, a autora argumenta que surge uma nova maneira de viver, de ser e de reconhecer o sofrimento. É a escuta do trauma na sua positividade, na ideia deleuziana de que quem o sofre padece de uma outra forma de tempo de existência e subjetivação, vive em um presente absoluto, sem acesso ao passado ou ao futuro. Se hoje em dia falar em clivagem ou em trabalhar com o irrepresentável, não é mais necessariamente falar em psicose ou em casos “não analisáveis”, se é possível acompanhar com facilidade reflexões como as de Gondar e Reis (2017Reis, E. S., & Gondar, J. (2017) Com Ferenczi: Clínica, Subjetivação, Política. 7 Letras.) a respeito de repercussões psíquicas que ativam outra defesa que não o recalque, isso se deve, em grande parte, aos estudos feitos a partir da obra de Ferenczi, dos quais esse texto é um expoente.

Felícia Knobloch nos mostra que quando a experiência atravessa as possibilidades psíquicas do sujeito formam-se marcas que são tentativas de manter-se vivo frente a uma ameaça brutal de destruição. A clivagem, ou a “autotomia”, que na biologia pode ser ilustrada pela lagartixa que se livra de parte de si como estratégia de sobrevivência, instaura um outro tempo. O tempo do traumático é um presente absoluto que se vincula ao tempo do morrer por ser justamente quando a própria passagem desse tempo não se dá, fixa-se em determinado “espaço” no corpo e na forma de viver. Aparece, não como linguagem verbal, mas como sintomas, silêncios, ações, repetições e transmissões na contratransferência.

Essa é uma clínica que leva à sério a ideia de que “as subjetividades reais não se encaixam em nenhuma estrutura clínica com limites precisos” (Gondar, 2017, p. 36), ou seja, que cada paciente é um novo código, é uma nova “doença da alma” (Kristeva, 2002Kristeva, J. (2002). As novas doenças da alma. Rocco., p. 16), em que o “não analisável” é frequentemente uma resistência do próprio analista, e não um limite do sujeito em sofrimento.

Se não há apenas um modo de sofrer, é preciso escutar esses silêncios e adentrar a esfera da clivagem para poder caminhar junto com o sujeito na invenção de novas formas de vida. Se o mais doloroso do trauma é o seu estatuto de realidade, é fundamental lidar com a percepção da vulnerabilidade que se instaura na relação com o outro, na precariedade de todos nós.

Diferentemente do paradigma freudiano da primeira tópica, no qual o trauma é o excesso que deve ser expurgado, que gera a dissociação do ego e resulta no processo de recalque apenas para Ferenczi, o trauma gera uma destruição preventiva. Atua como um anestésico, que rompe com a atividade psíquica e instaura uma passividade, uma desconexão: “(...) o que ficará representado será, então, essa forma de desconexão com a realidade. O que se repete é algo que ainda não apareceu” (Knobloch, 2022Knobloch, F. (2022). O tempo do traumático. INM Editorial, p. 68).

Eis a relação com a morte. A ameaça exterior é o imprevisto, o incalculável, o insuportável - o silêncio, a não verbalização. Para Ferenczi “a realidade é um duro combate pela existência e toda adaptação seria uma morte parcial” (Knobloch, 2022Knobloch, F. (2022). O tempo do traumático. INM Editorial, p. 76). As marcas que ficam fora da representação, na ausência de ligação, estão no campo do trabalho silencioso da pulsão de morte, conceito que vai ganhando centralidade ao longo do livro.

Essas reflexões propostas pela autora também se conectam com outro debate proposto, já à época de Ferenczi, mas também na clínica contemporânea, sobre a transgeracionalidade do trauma e seus efeitos. Autores como Judith Dupont, Nicholas Abraham, Maria Torok e mesmo Pierre Fédida (de quem Felícia foi supervisionanda) avançaram bastante na compreensão dos efeitos desse tempo do traumático nas gerações posteriores, mostrando como essa repetição avança não apenas no tempo, mas também no espaço dos corpos que herdam esses silenciamentos e clivagens.

O livro é atual e valioso para todos aqueles profissionais que atuam no chamado campo da saúde mental e atenção psicossocial, seja no campo das emergências e desastres, seja na saúde pública ou na clínica particular, visto que o traumático não escolhe suas vítimas.

Por fim, é importante frisar também que o trabalho de Felícia já é bem conhecido por alunos e profissionais que cruzaram seu caminho, tanto pela força de seu pensamento quanto por seu estilo. Por outro lado, é hora - é tempo - de torná-lo ainda mais conhecido pelo público psicanalítico, dando a ela o lugar que lhe é merecido na história da construção do campo da psicanálise no Brasil e agora em Portugal.

Referências

  • Frosh, S. (2013). Assombrações: psicanálise e transmissões fantasmagóricas Benjamin Editorial.
  • Knobloch, F. (2022). O tempo do traumático INM Editorial
  • Kristeva, J. (2002). As novas doenças da alma Rocco.
  • Pinheiro, T. (1995) Ferenczi: do grito à palavra Jorge Zahar.
  • Reis, E. S., & Gondar, J. (2017) Com Ferenczi: Clínica, Subjetivação, Política 7 Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    23 Ago 2023
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