Acessibilidade / Reportar erro

Psicanálise nas instituições: construindo lugares para o sujeito habitar

Psychoanalysis in institutions: building places for the subject to inhabit

Ensaios sobre psicanálise e instituições. . Leite, Sonia. Contracapa: 2023. 232

O que é um “bom encontro” senão a condição de afetar e sermos afetados pelas relações com os outros? Quando a relação com o outro é de alegria, acontece um aumento de potência com efeitos em nossa capacidade de existir. E é sob o efeito de um bom encontro com este livro escrito por Sonia Leite, o qual tenho o prazer de apresentar aos leitores, que escrevo a resenha como uma oportunidade de transmitir — agora sim, no sentido psicanalítico do termo! — a experiência de ter percorrido suas páginas e o modo como fui afetada por elas.

Redigido em formato de ensaios, a autora nos transmite suas considerações ao modo de uma composição experimentada — já que produzida ao longo de trinta anos de ensino e prática clínica — como quem vira e revira seu objeto, o questiona e o apalpa, o prova e o submete à reflexão, quem coloca em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever e, com isso, faz jus ao título deste livro.

O livro Ensaios sobre psicanálise e instituições brota da convocação em reunir e concluir — aqui uma referência a um dos três tempos lógicos pensados por Lacan (1945/1998)Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In Escritos (pp. 197-213. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1945). ao lado dos tempos de ver e compreender — os “fragmentos de uma experiência vivida e construída” por um percurso visivelmente dirigido pelo desejo de “descobrir como e o que fazer” frente às possibilidades e aos impasses diante da atuação de um psicanalista em contextos institucionais, em especial os de saúde mental, sem ceder quanto à ética e quanto ao que é da formação analítica.

O fio condutor que entretece os 18 ensaios, divididos em três partes, encontra sustentação teórica nos textos freudianos fundamentais sobre a cultura, sobre a formação dos grupos e, especialmente, na tese da indissociabilidade entre o individual e o coletivo. Assim como sustenta-se no ensino de Lacan (1969-70/1992)Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-70). que com sua teoria dos quatro discursos formalizou as posições do sujeito no laço social. A partir daí, algumas perguntas pretendem ser problematizadas: Como acolher o que se apresenta como singular sem perder de vista o universal das normas públicas fazendo operar a ética do desejo diante da ética do bem comum? Qual o lugar do psicanalista e do saber psicanalítico nas instituições públicas? De que modo assegurar a manutenção do desejo do analista e a presença do discurso psicanalítico nas instituições de saúde mental? O processo de construção de algumas respostas, eu diria alguns pontos de chegada, é o que o livro nos disponibiliza como um caminho a ser atravessado e um convite a encontrar interessantes desdobramentos.

O primeiro conjunto de ensaios nomeado “Da Teoria”, teve seu ponto de partida acionado no início do percurso da autora frente ao “espanto” ao se defrontar com o modo de funcionamento institucional, em que a presença hegemônica do discurso e da prática médicos não deixava lugar para outro modo de tratamento da psicose que não fosse medicamentosa — aliás, sentimento não incomum aos psicanalistas nos dias atuais que cada vez mais migram para esses espaços buscando levar posições e intervenções psicanalíticas.

O leitor vai encontrar nessa primeira parte um panorama histórico cuja trilha percorre os temas da institucionalização e desistitucionalização como forma de contextualizar os saberes nascidos na era moderna e suas repercussões nas instituições sociais, como, por exemplo, o desenvolvimento da clínica psiquiátrica concomitante à expansão do poder discursivo da medicina e do saber médico em seus modos de interpretar e tratar o campo das doenças e do sofrimento mental. O efeito dessas práticas, ela conclui, resulta no silenciamento do sujeito institucionalizado acentuando o inevitável mal-estar na cultura ao invés de contorná-lo.

Frente a tal cenário de “tensão” institucional, o livro avança como que uma advertência e uma convocação sobre a tarefa do psicanalista em não abdicar da especificidade de sua prática, independentemente do lugar em que ele a exerça e de insistir em seu direcionamento ético frente aos “riscos de instituí-la como mais uma forma disciplinar”. Em sequência, Sonia Leite retoma alguns conceitos específicos do saber psicanalítico com indicações preciosas sobre a constituição do sujeito e da coletividade aos quais, ressalto, são passíveis de serem acompanhadas mesmo por um leitor leigo abrindo-lhe, inclusive, novas perspectivas acerca da instituição de saúde mental.

Seguindo a fidelidade ao eixo que amarra os ensaios, o da continuidade estrutural entre fenômenos individuais e sociais, sublinho a passagem sobre a relação entre angústia e formações coletivas, com destaque para a análise do lugar da fantasia nesse processo e como isso se manifesta no campo da psicose. O argumento de que a angústia e a fantasia portam a mesma estrutura, leva a considerar que os grupos e as instituições — e aqui temos uma das mais belas chaves de acesso ao livro! — podem fornecer um “lugar para o sujeito habitar” posto que sustentam a fantasia.

No segundo conjunto de ensaios intitulado “Da Práxis”, Sonia Leite nos conduz, generosamente, a compartilhar de sua experiência através de relatos de situações e de casos atendidos em instituições psiquiátricas. O leitor vai poder perceber como opera o conceito de “instituição à luz do coletivo” ao acompanhar o esforço da autora no saber fazer no trato com a psicose sem perder de vista, para isso, o imperativo de ultrapassar o já instituído. Seguem-se alguns exemplos: a Oficina de Artes, regida pela interdisciplinaridade, possibilitando relativizar o predomínio do tratamento medicamentoso ao introduzir outras formas de abordagens clínica e de tratamento das psicoses; o acolhimento do delírio como tentativa de cura pelo contorno do real traumático; e a inserção da escuta analítica na emergência psiquiátrica. Esses são alguns exemplos que demonstram a importância da função do Outro, isto é, do entorno familiar, do campo social e simbólico, do recurso aos diferentes modos de produção artística em sua dimensão de criação, situações que, ao favorecerem a circulação da palavra, propiciam o reconhecimento da diferença que marca cada sujeito.

As considerações da autora demonstram que ao virar o discurso do mestre pelo avesso, a prática psicanalítica não só permite elucidar os modos de captura do sujeito nas malhas institucionais, como também viabiliza uma transferência de trabalho que focalize os projetos, o pulsar dos sujeitos neles envolvidos e aponta para outra direção. Não por acaso, a questão das resistências no campo da saúde mental revela que a construção do lugar e do discurso psicanalítico é uma tarefa necessariamente renovável e homóloga à concepção da formação do analista como aquela que não se interrompe e não se conclui, o que faz série com a última parte do livro.

Intitulado “Da Formação”, o terceiro conjunto de ensaios gira em torno da formação permanente para fazer face às imprevisibilidades e “surpresas” inevitáveis das formações do inconsciente. Nesse contexto, retoma-se o conceito lacaniano de Escola (Lacan, 1967/2003Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In Outros Escritos (pp. 248-264). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1967).) não como um lugar espacialmente definido e objetivável, mas o lugar de se haver com a experiência com o inconsciente quando da confrontação do sujeito com os significantes que o dividem, chamando-o a responder a partir da falta cavada por essa incidência. Considera-se, assim, os dispositivos do cartel e do passe em sua vinculação lógica com o desejo de saber tornando possível o advento sempre renovável da posição de cada analista, da construção de um estilo próprio de transmissão, “de uma certa maneira de dizer”, de um jeito próprio de “bordear o furo”.

Acrescento que a resenha que aqui redijo não brota somente da análise de um livro escrito com clareza e elegância estilística, mas que é também testemunho da experiência de uma transferência de trabalho construída ao longo de um tempo lógico e cronológico capaz de verificar com agudeza os efeitos dos atos analíticos de Sonia Leite em seu caráter ético e político. Este livro é um dos resultados.

Aqueles que se interessam pelos enodamentos entre a clínica, os grupos e as instituições vão encontrar aqui um valioso conjunto de proposições referentes às torções entre o individual e o coletivo e vão seguir o resgate promovido pela autora quando anuncia, ao longo das páginas, seu respeito à repetição significante estrutural ao psiquismo como condição de possibilidade de transmitir um jeito próprio de fazer diferente, de alterar o todo do qual faz parte no trabalho institucional, seja ele nas escolas de psicanálise, nas instituições de saúde mental, na universidade, dando provas do desejo de insistir com a psicanálise. Finalizando, deixo ao leitor o convite a percorrê-lo com a aposta de um bom encontro!

Referências

  • Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-70).
  • Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In Escritos (pp. 197-213. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1945).
  • Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In Outros Escritos (pp. 248-264). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1967).
  • Leite, S. (2023). Ensaios sobre psicanálise e instituições Contracapa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com