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Nem tanto e nem tão pouco: a relação entre homicídio e psicose

RESENHAS DE ARTIGOS

Nem tanto e nem tão pouco: a relação entre homicídio e psicose

Guilherme Gutman

Muita coisa já correspondeu às expectativas das diferentes épocas, em relação à loucura. Em História da loucura (1961), de Michel Foucault, estas expectativas são mapeadas de modo original - no método e nos resultados obtidos. Seguindo o desenvolvimento da tese foucaultiana, pode-se dizer, grosso modo, que a loucura foi objeto de três olhares bem distintos.

O primeiro - imediatamente posterior a um momento originário e mítico no qual a loucura teria sido pura explosão dionisíaca, sem qualquer formatação ou de nome algum que a dissesse - a toma como uma espécie de universo paralelo em relação à vida comum dos homens. Então, a loucura poderia ser algo mágico ou celeste; acesso de alguns - os "loucos" - a uma camada ímpar da experiência, tornados vasos comunicantes de um mundo fantástico, mítico (ou lunático) com o mundo daqui de baixo.

Em uma versão menos glamourosa, mas ainda referida a essa primeira visada sobre a loucura, o universo em questão é o do erro - campo em que a distância decorrente do estranhamento e o riso - efeito do distanciamento - se combinam para gestar uma reação à loucura que não é mais de encantamento, mas a de uma curiosidade sem gravidade.

O segundo olhar coloca a razão como o campo soberano que, na mesma operação em que, por assim dizer, coloca a coroa em sua própria cabeça, expulsa a loucura para além das fronteiras de seus domínios. Não mais adorável ou misteriosa; risível ou errada, a loucura passa, apenas, a indesejável ameaça ao pensamento são; contra face detestável do reino da razão e, ao mesmo tempo, condição lógica para a demarcação dos limites de seu território.

O terceiro olhar, por fim, torna a loucura "doença mental". Isto significa que ela passa a assunto de médicos e de psicólogos que, enamorados de suas ciências, a psiquiatria e a psicologia, estabelecem um local de tratamento, o hospício. E se reconhecemos a nossa própria época como pertencendo mais a este último momento de apreensão da loucura do que aos dois primeiros, também notamos a presença de elementos característicos desses momentos anteriores.

É certo que, na transição das épocas, cada um desses três olhares dirigidos à loucura, não se extinguiu completamente. Ao contrário, combinaram-se em múltiplas possibilidades, ressurgindo modificados, amalgamados, ou mesmo maquiados, aqui e ali.

A partir do estudo de alguns casos , tem-nos parecido que a psiquiatria e a psicologia, de modo geral, e de braços dados às disciplinas jurídicas, têm procurado zelar pela não "contaminação" desse terceiro olhar por perspectivas que careçam do que, provisoriamente, chamaríamos de "evidências " científicas. Em oposição, é possível notar em outros campos do saber - talvez o da literatura, mais do que qualquer outro - a presença de imagens ou idéias sugeridas que revisitam elementos característicos do mencionado primeiro olhar sobre a loucura.

Transtorno mental e homicídio

Percorrendo, em publicações predominantemente psiquiátricas, alguns artigos escritos na última década, a primeira coisa que chama a atenção é uma certa uniformidade de resultados encontrados pelos autores. Em síntese, os principais pontos são:

1) A pequena variabilidade temporal no índice de homicídios cometidos por pessoas com transtornos mentais.

No The British Journal, por exemplo, os autores investigam este tópico na Inglaterra e no País de Gales, revisando as estatísticas criminais de um largo período de tempo (1957-1995) e, além de encontrarem "pouca flutuação nos números", também relataram um "declínio anual de 3% em sua contribuição (de homicídios perpetrados por pacientes) para as estatísticas oficiais" (Taylor & Gunn, 1999).

Sobre a importância percentual desse tipo particular de homicídio para os números globais de homicídios em dado país, há uma observação interessante, porque sugestiva de diferenças geográficas para esta relação. Sobre este ponto, discorre Valença (2008): "Em países com altos índices de violência, como o Brasil, onde a violência e a criminalidade têm intensa associação com a precariedade de condições socioeconômicas, o percentual de homicídios associados a transtornos mentais talvez seja ainda menor".

2) A percepção de que, embora haja uma relação entre a presença de sintomas psicóticos agudos e atos violentos (ver, por exemplo, Joyal et al., 2004) por parte dos pacientes - especialmente quando a adesão ao tratamento é frágil (Valença & Moraes, 2006) - os fatores quase unanimemente apontados como de potencialização significativa para a ação violenta são o diagnóstico concomitante de transtorno de personalidade (especialmente o sub-tipo anti-social) e o abuso de substâncias psicoativas.

Naturalmente, essa informação desvincula a psicose de sua suposta carga de periculosidade que a mídia muitas vezes veicula, e que os consumidores de fatos e casos sorvem com tanto gosto.

3) Partindo dos resultados apontados acima, a elaboração de perfis epidemiológicos distintos para o psicótico homicida e para o psicótico (ou não psicótico) com transtorno de personalidade e/ou quadro de abuso de substâncias que tenha cometido homicídio.

Neste contexto, um resultado se repete em alguns estudos: o homicídio dito "anormal", porque com características de "bizarria e incompreensibilidade" (Valença & Moraes, 2006) é caracteristicamente o crime de psicóticos, sendo as vítimas, mais comumente, familiares ou pessoas com as quais o criminoso guarda relações de proximidade.

4) E, reunindo os três itens elencados acima, há em alguns dos artigos lidos a interrogação sobre a possibilidade de que o comportamento violento por parte de pacientes psiquiátricos esteja vinculada ao tipo de assistência em saúde mental oferecida pelo estado; neste caso, entram em questão, especialmente, as mudanças institucionais, clínicas e culturais reunidas sob o nome de "reforma psiquiátrica" e a sugestão tácita de que os regimes abertos ou semi-abertos possam sub-avaliar o risco de violência secundária a determinadas condições psicopatológicas.

"O assassinato é o acontecimento por excelência"

Mas alguma coisa parece escapar às análises, ao método e aos resultados obtidos nos artigos citados - embora todos eles rigorosos na maneira como seguem os cânones de um "artigo científico".

Veja-se esse amálgama de visões e atitudes perante a loucura, que chamamos "visão popular". Combinando os três olhares esquadrinhados por Foucault, a vox populi estampa na mídia e recebe de volta o que é a loucura - neste caso, o perigo potencialmente associado aos loucos - fazendo retornar um saber próprio, nem totalmente psiquiatrizado, nem totalmente romantizado; às vezes sensacionalista, às vezes moralizante. Na visão popular, nomes de classificações ultrapassadas se misturam a achados recentes das neurociências; o mito de que todo louco é meio gênio se dissolve no mito de que todo louco é ameaçador ou cômico.

Mas entre a "comunidade psi" e a "comunidade dos comuns" há fluxos e refluxos insuspeitos. Talvez a ponta de crítica ao novo modelo de assistência em saúde mental, que identificamos em alguns artigos lidos, atire no que viu e acerte no que não viu: o comportamento violento e o homicídio - sua faceta extrema - não são tão raros quanto gostariam alguns, mas também não se tornaram mais comuns (nem menos, diga-se de passagem) como prefeririam outros. É preciso notar, então, que há mesmo alguma coisa que parece escapar, como se medíssemos a loucura com instrumentos inadequados. Talvez a violência eventualmente associada à experiência psicótica, guardada ou atuada, pertença a essa zona de sombra que atravessa oblíqua a formatação dos olhares sobre a loucura.

E Foucault, retomando muitos anos depois um dos pontos fulcrais de sua História da loucura, demonstrando que não se deve recuar do efeito de força provocado por certas idéias de sua juventude intelectual, ousa dizer que o assassinato revela algo dos homens; da loucura dos homens, que nenhuma outra coisa faz de modo igualmente trágico e... belo! (Foucault, 1978). Correndo livremente o risco de ser mal interpretado, Foucault mostra a potência do ato e do escrito - face e contraface do mesmo - de um jovem parricida. Não se trata, é evidente, de estetizar assasinatos e assassinos. Aí, em Pierre Rivière, em Febrônio Índio do Brasil e tantos outros, loucura e crime se entrelaçam para ensinar algo a quem não se recuse a aprender.

Não esqueçamos as lições da Vox populi e não façamos do brado de Foucault Vox clamantis in deserto.

Até a próxima edição!

Outras referências

GUILHERME GUTMAN

Psiquiatra e psicanalista; doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil); professor adjunto do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Puc-Rio (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).

Rua Visconde de Pirajá, 595/905

22410-003 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

e-mail: Guilhermegutman@gmail.com

  • FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • _____. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão,... um caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • GUTMAN, G. Febrônio, Blaise & Heitor: pathos, violência e poder. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. (no prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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