Resumos
Elaborado através de pesquisa bibliográfica, este artigo parte da pergunta sobre a possibilidade de ler o fundamentalismo religioso por meio da teoria psicanalítica. Objetiva-se demarcar a noção de agressividade no âmbito das formalizações de Freud sobre a pulsão de morte e, a partir desse aporte teórico, abordar o modo de funcionamento e atuação de ideologias com viés fundamentalista-religioso. Essa abordagem se justifica porque, atualmente, tendências fundamentalistas estão difundidas em diversas esferas políticas e sociais, onde se buscam meios e estratégias para que tais correntes ideológicas ganhem força e espaço. O estudo possibilita a conscientização de que o ímpeto agressivo, destrutivo e dominador, inerente ao humano, está presente e atuante mesmo onde se preconizam valores e ideais religiosos; pois, onde há o humano, há pulsão de morte, com seus possíveis efeitos devastadores.
Palavras-chave:
Agressividade; pulsão de morte; fundamentalismo; ideologia
Based on a literature review, this article discusses the possibility of analyzing religious fundamentalism using psychoanalytic theory. It aims to define the notion of aggressiveness using Freud’s formalizations about the death drive, and based on that theoretical framework, to approach the way ideologies with a fundamentalist-religious bias function and perform. This approach is justified by the fact that today, fundamentalist trends are widespread in various political and social spheres, which are constantly looking for means and strategies to strengthen and expand those ideological currents. This study emphasizes that the aggressive, destructive and dominant urge, inherent to man, is present and active even where religious values and ideals are cultivated, since the death drive and its possible devastating effects are an inherent part of human nature.
Key words:
Aggressiveness; death drive; fundamentalism; ideology
S’appuyant sur des recherches bibliographiques, cet article discute la possibilité de lire le fondamentalisme religieux à travers la théorie psychanalytique. Son but est de délimiter la notion d’agressivité dans le cadre des formalisations de Freud sur la pulsion de mort et, à partir de cette approche théorique, d’aborder le mode de fonctionnement et de performance des idéologies à biais fondamentaliste-religieux. Cette approche se justifie puisqu’actuellement les tendances fondamentalistes sont répandues dans plusieurs sphères politiques et sociales, où des moyens et des stratégies sont recherchés pour que ces courants idéologiques gagnent en force et en espace. Cette étude montre que l’impulsion agressive, destructrice et dominante, inhérente à l’humain, est aussi présente et active là où les valeurs et les idéaux religieux sont soutenus, car l’humain et la pulsion de mort avec ses possibles effets dévastateurs vont de pair.
Mots clés:
Agressivité; pulsion de mort; fondamentalisme; idéologie
Elaborado a través de una investigación bibliográfica, este artículo parte de la pregunta sobre la posibilidad de interpretar el fundamentalismo religioso a través de la teoría psicoanalítica. El objetivo es demarcar la noción de agresividad en el ámbito de las formalizaciones de Freud sobre la pulsión de muerte y, desde este enfoque teórico, abordar el funcionamiento y actuación de las ideologías con un sesgo fundamentalista y religioso. Este enfoque se justifica porque, en la actualidad, las tendencias fundamentalistas están muy extendidas en diferentes ámbitos políticos y sociales, en los que se buscan medios y estrategias para que tales corrientes ideológicas ganen fuerza y espacio. El estudio hace posible entender que, el impulso agresivo, destructivo y dominante, inherente al ser humano, está presente y activo, incluso en donde se defienden los valores e ideales religiosos; porque, en donde está lo humano, hay una pulsión de muerte, junto a sus posibles efectos devastadores.
Palabras clave:
Agresividad; pulsión de muerte; fundamentalismo; ideología
Introdução
Numa abordagem sobre o surgimento do fundamentalismo religioso, Armstrong (2001)Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (H. Feist, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. afirma que, no final do século XX, vários conflitos entre setores religiosos e seculares conduziram a uma acentuada polarização nas sociedades atuais. De um lado, situam-se segmentos sociais intransigentes, militantes, avessos ao ethos moderno e que reivindicam legitimidade e autoridade para a religião, seus dogmas e sua moral. De outro, posiciona-se a herança do racionalismo científico que, frequentemente, não se coaduna com os ditames da religião e coloca em xeque muitas crenças.
Nesse contexto conflituoso, delineiam-se as expressões reli-giosas designadas como fundamentalistas. Elas se caracterizam por uma postura defensiva de doutrinas literalmente extraídas de escrituras consideradas sagradas, por uma obstinada militância para fazer valer suas crenças nas esferas sociais e políticas, por seu modo de organização em grupos, por seu antagonismo para com a modernidade, por sua vivência como contracultura e por sua intolerância para com a diversidade cultural, sexual, religiosa, de cosmovisões e de estilos de vida que constitui a comunidade humana (Armstrong, 2001Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (H. Feist, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Em determinados contextos, a intole-rância chega ao desencadeamento de uma agressividade que, de modo extremista, proporciona efeitos nefastos para o convívio social.
Bonome (2009)Bonome, J. R. (2009). Fundamentalismo religioso e terrorismo político. Goiânia, GO: Editora da Universidade Católica de Goiás. compreende que a postura fundamentalista não se restringe ao mundo da religião, mas pode estar “presente na economia, na política, nas leis do mercado, nas atividades artísticas, literárias, esporte e até mesmo no lazer” (p. 63). Onde quer que se encontrem questionamentos e críticas com relação ao que é considerado verdade sólida ou valor perene, aí podem surgir reações de negação, desqualificação, enrijecimento, hostilidade e desconfiança para com quem se apresente com uma forma diferente de pensar ou de interpretar a realidade.
Oro (1996)Oro, P. I. (1996). O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo, SP: Paulus. salienta que a palavra fundamentalismo passou a designar fenômenos e movimentos que, em qualquer religião, apresentam-se como radicais, sectários, intransigentes ou tradicionalistas. Esse autor chama a atenção para o fato de que o vocábulo diz respeito a uma “categoria sociológica de análise, é um conceito nominal que ajuda a agrupar certas experiências de expressão e vivência social de uma fé religiosa” (p. 165). Designa um fenômeno complexo que se apresenta no comportamento e nas atitudes de diversos grupos e pessoas. Afirma ainda que, embora os variados grupos considerados fundamentalistas possuam características parecidas - que possibilitam nomeá-los dessa forma - suas diferenças podem ser encontradas na cosmovisão e no modo de ação de cada um e, sobretudo, naquilo que cada qual considera fundamentos pétreos e indiscutíveis para sua crença.
Diversas áreas do saber buscam explicitar as causas ou motivações que conduzem às variadas formas de extremismos nocivos que, não raro, são imbuídos de ideais religiosos. Dentre as possíveis abordagens teóricas sobre essa realidade, a psicanálise pode, de igual modo, prestar-se a uma reflexão que, dentro da especificidade de seu campo epistemológico, venha trazer alguma contribuição para a tentativa de compreender tais fenômenos. Em sua obra, Freud apresenta um elemento teórico que, no conjunto de seu pensamento, vincula-se exatamente à questão da agressividade, da hostilidade e da destrutividade. Trata-se da pulsão de morte. A partir dessa noção relevante da teoria freudiana, propõe-se, neste texto, refletir sobre o fundamentalismo religioso, considerado de modo geral.
Agressividade: principal representante e derivado da pulsão de morte
Homo homini lupus est é um antigo aforismo enunciado por Plauto1 1 Titus Maccius Plautus foi um escritor romano que viveu em Sarsina, na Itália, por volta dos anos 230 a 180 a.C. Seu aforismo Homo homini lupus est (O homem é o lobo do homem) foi popularizado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, expressando a tendência agressiva e destrutiva do homem em relação a seus semelhantes. em sua comédia Asinaria e expressa a desconcertante constatação de que o ser humano traz, em si, uma agressividade que, de inúmeras formas, ele direciona contra seus semelhantes. Essa agressividade do homem, no entanto, pode ser direcionada não apenas para seus pares, mas também se direcionar para si mesmo. Um impulso destrutivo, agressivo e egoísta que pode descarregar-se sobre o outro, bem como voltar-se contra o próprio sujeito, de forma masoquista. Em suas elucubrações psicanalíticas, uma das grandes questões de que Freud se ocupou foi, justamente, a que se refere a essa sanha feroz, que é capaz de se esconder até mesmo por detrás da mais samaritana atitude do homem. Em “Análise de uma fobia de um menino de cinco anos” (1909/2006b), ele já acentuava o fato de que não poderia aceitar a existência de uma pulsão agressiva ao lado das pulsões de autopreservação e das sexuais, com qualidade igual a estas. Essa constatação lhe proporcionou uma ampla reflexão sobre essa obscura potência presente no ser humano, a qual, mais tarde, ele denominou pulsão de morte, cujo “derivado e principal representante é a agressividade” (Freud, 1930/2006jFreud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930)., p. 126).2 2 A primeira data entre parênteses se refere ao ano de publicação original da obra e a segunda se refere ao ano da edição consultada pelo autor.
Quando em 1932 Albert Einstein dirige a Freud a pergunta sobre a possibilidade de livrar a humanidade das ameaças das psicoses do ódio e da destrutividade, a resposta recebida apresenta uma forte convicção do pensamento freudiano: “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” (Freud, 1933/2006mFreud, S. (2006m). Por que a guerra? In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 189-208). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 204). Pode-se afirmar, portanto, que, para Freud, a agressividade é inerente à vida humana. É um efeito da pulsão de morte, a qual pode ser entendida como vontade de destruição direta, presente no homem (Garcia-Roza, 1990Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Nesse sentido, Ferrari (2006)Ferrari, I. F. (2006). Agressividade e violência. Psicologia clínica, 18(2), 49-62. Recuperado de: http://www.redalyc.org/html/2910/291022009005/.
http://www.redalyc.org/html/2910/2910220...
ressalta que “a pulsão de morte foi a forma encontrada por Freud para dizer que o sujeito se edifica sobre um fundo que supõe destruição”. Por esse motivo, ainda que a cultura busque, de alguma forma, inibir o caráter agressivo da pulsão de morte, essa tarefa se revela parcialmente impossível, pois a agressividade não é passível de total domesticação.
Ao tratar sobre a pulsão de morte, lidamos com um tema controverso que aponta para a agressividade humana presente nos esquemas sociais. Esses esquemas tentam, por sua vez, apaziguar ou conter a inquietação de um resto pulsional irredutível, impossível de ser totalmente dominado pelas normas que lhe são impostas e que traz às claras os limites da educabilidade humana.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud (1930/2006j)Freud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930). dá um passo além na sua abordagem sobre a pulsão de morte - iniciada em 1920, em “Além do princípio do prazer” -, ao considerar que a agressividade é uma disposição original do ser humano:
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e autosubsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à civilização. (Freud, 1930/2006jFreud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930)., p. 125)
Na mesma obra, ele também se refere à agressividade, apresentando-a como “[...] natural instinto3 3 Apesar de na Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud a palavra instinto aparecer como tradução de Trieb, após revisões da transposição da obra freudiana para o português, convencionou-se verter o termo alemão para pulsão, o qual continuará sendo utilizado daqui por diante, à parte das citações. Dá-se preferência ao vocábulo pulsão porque, conforme Garcia-Roza (1990) explica, o termo instinto favorece uma interpretação biológica do texto de Freud e, sobretudo, da teoria das pulsões. Estas, no entanto, constituem uma realidade irredutível ao natural, ao instintivo. O referido autor argumenta ainda que, na teoria freudiana, a pulsão é apresentada como um desvio do instinto, uma perversão da ordem natural instintiva. É pura potência indeterminada, diferentemente do instinto que se caracteriza por determinações biológicas. agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um [...]” (p. 126).
Sustentar a agressividade como disposição humana original e auto-subsistente valeu muitas rejeições a Freud, devido ao fato de que, no campo da literatura, da poesia, da religião, da antropologia e da própria filosofia, não falta quem defenda uma bondade natural e constitutiva do ser humano. A seus opositores, ele responde:
Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, pois “as criancinhas não gostam” quando se fala na inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. (p. 124)
Freud (1930/2006j)Freud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930). assume que ele mesmo teve dificuldades para reconhecer a “[...] ubiquidade da agressividade e da destrutividade não eróticas [...]” (pp. 123-124). Garcia-Roza (1990)Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. propõe que o que, realmente, custava a Freud reconhecer não era tanto a onipresença da pulsão agressiva e destrutiva, mas sua autonomia. Esse autor explica que
Reconhecer uma pulsão destrutiva como algo totalmente independente da sexualidade, era reconhecer a maldade fundamental e irredutível do ser humano. Não se trata mais de uma sexualidade que, regida pelo princípio do prazer, lança mão da agressividade para atingir seu objetivo, mas sim de uma disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano. (p. 134)
O mesmo autor ressalta ainda que a afirmação da agressividade como autônoma em relação à sexualidade e como característica originária do ser humano só pôde ser feita em “O mal-estar na civilização”, após várias tentativas mais ou menos tímidas por parte de Freud.
Na Conferência 32, intitulada Ansiedade e vida instintual, Freud (1933/2006k)Freud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). fez também algumas considerações importantes sobre a agressividade, partindo da distinção feita por Karl Abraham, em 1924, sobre os dois estádios da fase sádico-anal. O primeiro estádio seria caracterizado pela tendência a destruir e a perder; o segundo seria a tendência afetuosa a manter e a possuir. A agressividade estaria, portando, já esboçada no primeiro estádio. Mas o que Freud quis acentuar é o fato de que uma fase anterior do desenvolvimento da sexualidade persiste, em certa medida, nas configurações subsequentes. Nessa permanência, fica uma representação de cada fase na economia libidinal atual e na configuração do caráter da pessoa. Além disso, frequentemente podem ocorrer regressões a fases anteriores, constituindo-se, dessa forma, determinadas atitudes patológicas. Nesse sentido, pode-se inferir que o sadismo daquela fase inicial do desenvolvimento do infante permanece junto aos estádios posteriores da vida.
Essa constatação dá fundamentos a Freud para considerar que é impossível pensar no ser humano sem levar em conta as marcas da crueldade e da agressividade, que são inerentes ao seu modo de ser e de agir. Com isso, ele também coloca graves questionamentos para a crença na bondade natural do ser humano:
[...] o que a História nos conta e o que nós mesmos temos experimentado [...] justifica a conclusão de que a crença na “bondade” da natureza humana é uma dessas perniciosas ilusões com as quais a humanidade espera seja sua vida embelezada e facilitada, enquanto, na realidade, só causam prejuízo. (Freud, 1933/2006kFreud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 106)
Freud (1933/2006k)Freud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). ressalta que seus argumentos a favor de uma pulsão agressiva e destrutiva nos homens não se baseiam simplesmente nos ensinamentos da história ou na sua própria experiência de vida, mas em suas pesquisas sobre os fenômenos do sadismo e do masoquismo. Ele chama de sadismo aquela situação em que o sujeito, para se satisfazer sexualmente, necessita infligir dor, sofrimento e humilhação a seu objeto. Por masoquismo se entende o oposto: o sujeito se satisfaz sexualmente quando submetido a maus-tratos e agressões. Nas relações sexuais normais, ambas as tendências se fazem presentes de modo secundário. Porém, como já ficou demonstrado em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2006a), há também a forma perversa da sexualidade, em que essas tendências deixam de ser secundárias para se tornarem a principal finalidade sexual. No mesmo livro, o sadismo é colocado ao lado da masculinidade, enquanto o masoquismo é relacionado com a feminilidade.
A agressividade é pensada, por Freud, como a exteriorização da pulsão de morte, “cuja finalidade é a destruição” (Freud, 1933/2006kFreud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 105). Depois de reduzir a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação ao domínio de Eros - ou pulsão de vida -, Freud ainda
[...] se vê perante a contradição de coexistirem no mesmo campo pulsional a tendência à ligação e a tendência à separação, que é o sentido da destruição, alvo final da agressividade. Esta passa a ser, assim, da alçada da pulsão de morte, mediante o conceito já antigo da transformação do objeto pulsional. (Mezan, 1982Mezan. R. (1982). Freud: a trama dos conceitos. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 263)
Nos escritos freudianos, encontramos várias expressões ligadas ao conceito de pulsão de morte: pulsão de destruição, de dominação e de agressão. Laplanche, Pontalis e Lagache (2001)Laplanche, J., Pontalis, J. B., & Lagache, D. (2001). Vocabulário da Psicanálise (4a ed.; P. Tamen, Trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. observam que, embora essas várias expressões não tenham um emprego unívoco, nem se prestem a uma exata repartição entre elas, a expressão pulsão de agressão designa, na maioria das vezes, a pulsão de morte voltada para o exterior. Já o termo pulsão de destruição expressa, de modo mais claro, a meta da pulsão de morte, que age no silêncio enquanto opera internamente, mas que “chama a atenção quando é desviada para fora, como instinto de destruição” (Freud, 1938/2006nFreud, S. (2006n). Esboço de psicanálise. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 151-221). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1938)., p. 162). O termo destruição aponta, portanto, para os efeitos mais acessíveis e visíveis da pulsão de morte sobre os objetos do mundo externo, nos quais ela pode realizar seu objetivo destrutivo por meio da musculatura, por exemplo. Isso é explicitado, por Freud (1923/2006h)Freud, S. (2006h). O ego e id. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1923). no seguinte excerto:
Parece que, em resultado da combinação de organismos unicelulares em formas multicelulares de vida, o instinto de morte da célula isolada pode ser neutralizado com sucesso e os impulsos destrutivos desviados para o mundo externo, mediante o auxílio de um órgão especial. Esse órgão especial pareceria ser o aparelho muscular; e o instinto de morte pareceria, então, expressar-se - ainda que, provavelmente, apenas em parte - como um instinto de destruição dirigido contra o mundo externo e outros organismos (p. 54)
A partir desse trecho da obra freudiana, pode-se perceber que a fina-lidade destrutiva da pulsão de morte tem como alvo primeiro o próprio organismo habitado por ela. É apenas de modo secundário que se dirige para o exterior. A autodestruição, portanto, é seu objetivo primordial. Por esse motivo,
[...] parece necessário que destruamos alguma outra coisa ou pessoa, a fim de não nos destruirmos a nós mesmos, a fim de nos protegermos contra a impulsão de autodestruição. Realmente, uma triste descoberta para o moralista! [...] Realmente, estranho instinto é este, que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial! (Freud, 1933/2006kFreud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 107)
Essa constatação levanta um questionamento: como é possível pensar que uma pulsão possa buscar a autodestruição do organismo, dado que uma das características de toda pulsão é o fato de ser conservadora? Freud (1933/2006k)Freud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). mesmo afirmou que as pulsões “revelam uma propensão a restaurar uma situação anterior” (p. 108). Diz ainda que “é tentador perseguir até sua conclusão lógica a hipótese de que todos os instintos tendem à restauração de um estado anterior de coisas” (1920/2006f, p. 48). Em sua busca pela autodestruição, qual seria, portanto, a situação anterior que a pulsão de morte pretende restaurar? A resposta de Freud (1933/2006k)Freud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). baseia-se no fato de que a vida se originou da matéria inorgânica. A partir disso, supõe-se que, no momento do surgimento da vida, houve uma pulsão que procurou eliminá-la e restabelecer novamente o estado inorgânico. O retorno a este estado seria então o objetivo da autodestruição. Freud (1933/2006k)Freud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). explica que
se reconhecemos nesse instinto a autodestrutividade de nossa hipótese, podemos considerar a autodestrutividade expressão de um ‘instinto de morte’ que não pode deixar de estar presente em todo processo vital. (p. 109)
Outra inferência que se pode fazer a partir disso é que, se a pulsão de morte tem como objetivo primeiro a autodestruição, “somos levados a pensar que o masoquismo é mais antigo do que o sadismo e que este, o sadismo, é o instinto destrutivo dirigido para fora, adquirindo assim a característica de agressividade” (Freud, 1933/2006kFreud, S. (2006k). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 32: Ansiedade e vida instintual. In J. Salomão (Ed. & Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 85-112). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 107).
O caráter silencioso da pulsão de morte e seu clamor no âmbito social
Em “O ego e o id”, Freud (1923/2006h)Freud, S. (2006h). O ego e id. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1923). acentua o fato de que uma característica peculiar da pulsão de morte é seu modo silencioso de operar. Diz que todo o fragor da vida procede principalmente de Eros e que os impulsos pulsionais passíveis de investigação são seus derivados. Por esse motivo, seria quase impossível sustentar a noção da pulsão de morte e a concepção dualista fundamental que marca a concepção freudiana do conflito psíquico. O que lhe fornece razões para manter essa postura são as considerações de “Além do princípio do prazer” e a descoberta dos elementos sádicos de Eros.
O mutismo da pulsão de morte se explica no nível biológico e no campo psíquico. No primeiro, a pulsão de vida opera gerando união. Os elementos se combinam, integram-se e formam as unidades perceptíveis. A vida se mostra exuberante em suas variadas formas de expressão. Já a desagregação, enquanto obra da pulsão de morte, é inferida a partir de perturbações nos processos vitais. Os arranjos biológicos se desintegram silenciosamente e, normalmente, essa desintegração se torna perceptível quando o processo já está adiantadamente desencadeado. Por outro lado, se nos processos analíticos os “impulsos instintuais” são “derivados de Eros” - com todo o rumor de suas inquietações -, o que pode ser observado como operação da pulsão de morte é a repetição (Freud, 1923/2006hFreud, S. (2006h). O ego e id. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1923)., p. 59).
Se no âmbito do biológico e do psíquico a pulsão de morte se mantém inaudível, no domínio do social ela se presta mais facilmente à observação e à análise (Mezan, 1990Mezan, R. (1990). Freud, o pensador da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense/CNPq.). Provavelmente, é por esse motivo que, em suas tematizações, Freud se volta, cada vez mais, para o registro da agressividade, na tentativa de perseguir os rastros da pulsão de morte. Como a agressividade é o principal representante dessa pulsão, ela se torna então um dos principais focos de investigação (Freud, 1930/2006jFreud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930).).
A agressividade requer a existência de um objeto sobre o qual possa se direcionar. Esse raciocínio condiz com a consideração do fenômeno do sadismo, que é compreendido como a conversão das tendências agressivas para um objeto externo. Esse objeto pode ser, de modo eminente, outro ser humano. Ao se referir às relações interpessoais, Freud (1930/2006j)Freud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930). não se inibe diante da escandalosa realidade de que o homem traz a marca da ruindade em sua relação com os outros. Denuncia o fato de que os seres humanos não são criaturas gentis que, simplesmente, desejam ser amadas e que somente podem agredir os outros para se defenderem quando se sentem atacados. Ao contrário,
[…] são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (Freud, 1930/2006jFreud, S. (2006j). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1930)., p. 116)
Nesse trecho, percebe-se que, nas relações entre os sujeitos humanos, o outro pode ser tratado como um auxiliar ou como um objeto, mas também como instrumento, adversário e alvo da ferocidade humana. Conforme Garcia-Roza (1990)Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. salienta, essas observações conduzem Freud à irrecusável tese de uma “[...] destrutividade fundamental, de uma vontade maligna inerente ao ser humano e não tributária da sexualidade”. E, mais ainda, conduzem-no a se posicionar “[...] ao lado daqueles que afirmaram uma maldade original do ser humano” (p. 148).
Lançando mão dos conceitos de Eros - como princípio de coesão - e de pulsão de morte - como elemento-chave para analisar a destrutividade inerente aos comportamentos humanos -, Freud irá constatar que a agressividade humana está presente não só no âmbito erótico como também, e principalmente, no domínio social, nas relações dos homens entre si, que moldam o que se denomina civilização. Por essa razão, ele passa a direcionar, mais intensamente, sua atenção para a dinâmica da sociedade, onde a pulsão de morte é mais perceptível em sua atuação e em seus efeitos. Ao descobrir, no psiquismo, os modos sutis de operação dessa pulsão, Freud passa a ter condições de olhar para a dinâmica da vida social e de perceber que a cultura é o espaço onde essa pulsão faz ouvir seu clamor.
A inferência sobre o fenômeno social da agressividade, a partir da análise dos mecanismos de funcionamento do psiquismo individual, pode parecer estranha. Contudo, um dos princípios de grande importância para compreender a reflexão de Freud sobre a cultura diz respeito ao fato de que, para ele, não há uma diferença de natureza entre o individual e o social, a não ser uma diferença de escala. Em certas passagens de “O mal-estar na civilização” (1930/2006j) e na Conferência 35, de “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933/2006l), Freud fala da cultura como um processo orgânico e, ainda, faz analogias entre o indivíduo e a sociedade. Na abertura de “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921/2006g), há uma relativização do contraste entre a psicologia individual e a psicologia social. Nesse escrito, Freud primeiramente reconhece que a psicologia individual se ocupa do homem individualmente e busca explorar os caminhos através dos quais ele procura encontrar satisfação para suas pulsões. Observa, no entanto, que
[...] apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (Freud, 1921/2006gFreud, S. (2006g). Psicologia de grupo e análise do ego. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 77-154). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1921)., p. 81)
Essa concepção freudiana da paridade entre o individual e o social pos- sibilita compreender como se podem aplicar os conceitos de pulsão de vida e de morte no sentido que vai do psíquico para o biológico, numa dimensão infra-anímica, e no sentido do psíquico para a civilização, numa dimensão supra-anímica (Mezan, 1990Mezan, R. (1990). Freud, o pensador da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense/CNPq.).
Para Freud, pulsões de vida e pulsões de morte permeiam toda a realidade, de tal modo que as considerações sobre essa dupla dimensão pulsional são aplicadas, por ele, desde o reino do inorgânico - onde as forças de atração e repulsão se antagonizam - até as relações internacionais entre povos e culturas. Em cada nível da realidade, são engendrados conflitos entre essas pulsões, dando origem às mais diversas manifestações de seu antagonismo. Nesse sentido, a vida, em sua totalidade, pode ser concebida como um palco da luta entre Eros e pulsão de morte. O primeiro introduz constantemente novas tensões, associando unidades, enquanto as pulsões de morte buscam a dissolução dos agrupamentos e asseguram a vitória final da tendência da qual estão a serviço.
A pulsão de agressão e a busca da pureza doutrinal no embate ideológico
Mellor (2004)Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco. propõe que a busca da pureza é um autêntico produto da pulsão de morte. No âmbito das teorias e das crenças, essa purificação se dá pelo rechaço a tudo que possa se apresentar como diferente do modo ordinário de pensar e de acreditar. A diferença é percebida como uma ameaça e, por isso, deve ser, de alguma forma, negada, desqualificada e eliminada.
O ataque à diferença, em nome da pureza doutrinal, pode se fazer presente tanto na religião quanto nos meios seculares. A autora supracitada salienta que as ideologias laicas e o pensamento teórico-científico também são passíveis de assumirem formas extremistas, que levam ao confronto e à tentativa de supressão do que não se coaduna com o que é preconizado como verdade conquistada e estabelecida. Na história da humanidade, aliás, não faltam exemplos de momentos em que ideologias laicas propiciaram agressão e terror contra a religião, em nome da laicidade.
No desenvolvimento da psicanálise, houve também um anseio por uma pureza dogmática (Mellor, 2004Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco.). Isso pode ser constatado através da indiscrição da história que deixa transparecer, no movimento psicanalítico iniciado por Freud, uma série de conflitos entre ele e alguns dos seus discípulos, ou entre os próprios entusiastas da primeira hora da psicanálise. Mellor (2004)Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco. faz referência a várias correspondências de Freud e dos primeiros psicanalistas, nas quais podem ser percebidas inflamadas discussões que denunciam a incontida paixão por uma pureza doutrinal, imiscuída no temor de desvios teóricos. Com isso, a certeza de ser detentor da verdade, a angústia de vê-la saqueada, roubada e o desejo de fazer dela um instrumento de poder estiveram presentes, inclusive, na tessitura da teoria psicanalítica.
Mesmo sendo uma teoria edificada a partir da prática, o saber da psicanálise foi elaborado passando por reveses talvez semelhantes aos que podem ser apontados no processo de elaboração e de defesa das doutrinas religiosas: atitudes de intransigência, disputas e preocupações em manter certezas consideradas invioláveis. Como uma religião que, no intuito de manter seu patrimônio de fé intacto, acaba se vendo forçada a rechaçar e enxotar as dissidências heréticas; o movimento psicanalítico, de modo semelhante, teve que se enrijecer sobre alguns aspectos da teoria, o que acabou proporcionando rompimentos. Das rupturas religiosas, despontam novos grupos organizados. De modo análogo, pode-se considerar o surgi-mento de inúmeros grupos que se formaram através das fissuras que, de modo indômito, foram surgindo a partir dos conflitos teóricos entre psicanalistas. Green (1988)Green, A. (1988). Pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalizante. In C. Yorke, E. Rechardt, H. Segal, D. Widlöcher, P. Ikonen, J. Laplanche, & A. Green. A pulsão de morte. (C. Berliner, Trad.; pp. 57-68). São Paulo, SP: Escuta. menciona, por exemplo, o fato de que houve um esfacelamento no campo teórico da psicanálise depois de Freud, de tal modo que várias reformulações da sua teoria resultaram não em simples complementos da sua obra ou em desenvolvimentos de aspectos específicos do seu pensamento, mas se constituíram em “verdadeiras alternativas teóricas” (p. 60).
Mellor (2004)Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco. ressalta que a negação de outras visões pelo movimento psicanalítico - mesmo que de alguma forma tenha sido necessária para a consolidação da teoria - levou à intolerância até mesmo entre Freud e alguns de seus discípulos. Nas palavras da autora,
A teoria psicanalítica constitui um exemplo entre outros da maneira por que “crer” e “saber” se entrecruzam desde o momento em que a teoria se solidifica em dogma. Não deixa de ser interessante que, quando Freud quer defender sua linha teórica diante de seus desvios, e até mesmo de heresias, são diferenças religiosas que vêm a seu espírito. Veremos, com esta noção de uma psicanálise “sem mistura”, como, necessariamente, toda teoria recai ao menos parcialmente em dogma. (p. 237)
Ao descrever a postura de Freud com relação à defesa de suas ideias que estavam sendo gestadas, Wittels (como citado em Mellor, 2004Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco.), seu primeiro biógrafo, diz que ele “considera como incômoda toda luz que não a sua projetada sobre seu próprio caminho, ou sobre outra via, quando ele tenta ir adiante ou decide mudar de rota. Com frequência também, ele erige meios de defesa para cortar rapidamente os clarões inoportunos” (p. 257). Essa descrição certamente contrasta com a abertura que Freud (1923/2006h)Freud, S. (2006h). O ego e id. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1923). alega na pesquisa psicanalítica, quando diz que ela “não podia, tal como um sistema filosófico, produzir uma estrutura completa e já pronta” (p. 48). Pelo que descreve o referido biógrafo, a transigência teórica de Freud parecia dizer respeito mais aos seus próprios desenvolvimentos na pesquisa do que os dos outros.
Normalmente, a rejeição e o fechamento à diversidade de interpretações e de pensamento se ligam a “próteses de certezas” constituídas por um processo de idealização passional, pelo qual um grupo, um indivíduo, uma crença, uma teoria ou uma ideia são investidos de atributos de perfeição, que os fazem ser considerados irrefutáveis e sagrados, mesmo em âmbitos seculares (Mellor, 2004Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco., p. 62).
A atuação da pulsão de morte, no sentido da busca pela pureza, é, semelhantemente, passível de ser observada em várias atitudes presentes nos meios religiosos fundamentalistas, como, por exemplo, na afirmação de uma verdade absoluta contida num livro sagrado e interpretado literalmente, no desejo de impor as convicções de fé a todos, no ímpeto de difundir a crença e na repulsa a tudo o que é percebido como ameaça à doutrina religiosa. A intolerância e o fanatismo, típicos do fundamentalismo, podem então ser compreendidos sob a égide dessa busca de purificação.
Presente nas religiões e nas ideologias, o ardor pela purificação se volta em direção ao exterior, como também para o interior. Externamente, busca-se afastar ou extirpar a diferença representada por aquilo ou aqueles que com ela se relacionam de alguma forma. Internamente, acontece o mesmo procedimento, enquanto se busca uma forma de pensar pela qual o imperativo das convicções tende a desconsiderar qualquer objeção ou dúvida a respeito do que é a verdade sustentada e acreditada. O objetivo da purificação seria, portanto, alcançar uma unidade de certeza fechada em si mesma, como uma mônada. Esse fechamento tem, justamente, a função de resguardar um conteúdo de verdade e protegê-lo das ameaças à sua integridade.
A busca pela pureza - seja no campo teórico, no religioso ou em qualquer outra área - tende a uma forma de entropia (Mellor, 2004Mellor, S. M. (2004). Sobre a necessidade de crer. (P. Fernandes, & L. Sarmatz, Trad.). São Paulo, SP: Unimarco.). No campo específico da religião, os cismas, as acusações de sacrilégios e as rotulações heréticas podem ser compreendidos como o resultado da luta pela pureza. O que não condiz com a genuinidade da fé deve ser neutralizado ou extirpado, para não manchar a limpidez doutrinal e moral. As religiões, ademais, normalmente têm seus rituais de purificação. Gestos externos que expõem o desejo interno de lançar, para longe da candura confessional, o que remete a desvios doutrinários.
No fundamentalismo religioso, os fundamentos da fé devem permanecer inalteráveis, intactos e incorruptos, por isso, devem ser mantidos isentos de qualquer inserção de elementos ideológicos diferentes. Essa supervalorização da pureza doutrinária pode levar a atitudes de depreciação, exclusão e ódio, através da negação agressiva e categórica de crenças e ideologias que compõem a diversidade cultural característica da sociedade.
Para entender o mecanismo da busca da pureza como negação do diferente, faz-se oportuno lançar mão de um texto freudiano intitulado “A negativa” (1925/2006i). Nesse escrito, Freud primeiramente propõe que um enunciado negativo pode ser o meio através do qual o conteúdo de uma imagem ou ideia recalcada consegue aceder à consciência. Mas sempre com a condição de que esse conteúdo seja negado. Desse modo, a negativa é uma forma de suspender o recalque, enquanto o recalcado continua não sendo aceito.
Pela negativa, pode-se ter um “modo de tomar conhecimento do que está reprimido” (Freud, 1925/2006iFreud, S. (2006i). A negativa. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 261-269). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado emm 1925)., p. 265). Freud ainda afirma que, com o auxílio da negação, apenas uma consequência do processo do recalque é desfeita: o fato de o conteúdo ideativo daquilo que está recalcado não poder atingir a consciência. Por outro lado, o que é essencial no recalque permanece, ou seja, continua a proibição de que o conteúdo recalcado surja na consciência em sua forma original, o que seria um desprazer para o consciente.
Em seguida, Freud (1925/2006i)Freud, S. (2006i). A negativa. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 261-269). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado emm 1925). passa a considerações sobre a função intelectual do julgamento, que tem a tarefa de afirmar ou negar o conteúdo de pensamentos. Num julgamento, negar algo equivale a dizer: isto é algo que eu prefiro recalcar. Por isso, “um juízo negativo é o substituto intelectual da repressão” (p. 266). O não do julgamento é um elemento próprio do recalque e, por esse motivo, ele denuncia a origem do conteúdo de um enunciado negativo. A partícula negativa possibilita que o pensar se liberte das restrições do recalque e possa utilizar um material indispensável ao seu funcionamento correto; material este que, antes, estava vetado.
O julgamento, segundo Freud (1925/2006i)Freud, S. (2006i). A negativa. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 261-269). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado emm 1925)., serve a dois propósitos: afirmar ou negar um atributo particular em alguma coisa e confirmar ou discutir a existência real de uma representação. Um atributo sobre o qual se deve afirmar ou negar pode ter sido, originalmente, algo bom ou mal, útil ou prejudicial. Freud (1925/2006i)Freud, S. (2006i). A negativa. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 261-269). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado emm 1925). retoma o modo de funcionamento das pulsões orais e diz que o julgamento expressa o desejo de devorar algo que é bom ou de cuspir algo que é ruim. De modo geral, significa o desejo de introjetar algo no ego ou ejetar algo dele. Seria como dizer: “estará dentro de mim” ou “estará fora de mim” (p. 267). Ele lembra que o ego-prazer original4 4 Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental’ (1911/2006c), Freud apresenta a noção do ego-prazer em oposição ao ego-realidade. Trata-se de duas formas de funcionamento das pulsões do ego. A primeira forma de funcionamento se dá em conformidade com o princípio do prazer. A segunda, conforme o princípio de realidade. Em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/2006d), Freud propõe que o ego-prazer diz respeito ao ego identificado com o agradável, em oposição ao mundo externo identificado com o desagradável. Em “A negativa” (1925/2006i), o ego-prazer busca introjetar em si o que é bom, seguindo o princípio do prazer, e rejeitar para fora de si o que é mau, identificado com o estranho e externo. deseja internalizar em si tudo o que é bom e expelir tudo o que é mau. Para o ego-prazer, o externo e estranho é considerado mau.
No estudo do julgamento, Freud (1925/2006i)Freud, S. (2006i). A negativa. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 261-269). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado emm 1925). tem uma compreensão da origem dessa função intelectual a partir da ação recíproca dos “impulsos instintuais primários”, ou seja, da pulsão (p. 268). Para ele, o julgamento é continuação do processo original pelo qual o ego integra coisas em si ou as expele de si, seguindo o princípio do prazer. Ele propõe ainda uma compreensão da polaridade do julgamento a partir da oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte. A afirmação, pela qual o ego integra algo a si, é uma forma de atuação da pulsão de vida; a negação, pela qual o ego repele algo de si, pertence à pulsão de destruição, ou pulsão de morte. Freud ainda cita o exemplo do negativismo observado em alguns psicóticos, ou desejo geral de negar, como resultado de uma desfusão pulsional entre Eros e a pulsão de morte. Nesse caso, há uma retirada de componentes libidinais e, então, o psicótico tende a permanecer numa atitude de negação.
O modo como Freud concebe os mecanismos do julgamento e do afas-tamento buscado pelo ego daquilo que lhe é mau, perturbador e inquietante pode ser relacionado com a sugestão de Rechardt (1988)Rechardt, E. (1988). Os destinos da pulsão de morte. In: C. Yorke, E. Rechardt, H. Segal, D. Widlöcher, P. Ikonen, J. Laplanche, & A. Green. A pulsão de morte. (C. Berliner, Trad.; pp. 45-56). São Paulo, SP: Escuta., segundo a qual o que causa perturbação e/ou mantém a inquietação se torna alvo de uma luta ativa, permanente e obstinada no sentido de livrar-se disso. Essa luta pode ser entendida, segundo esse autor, como a própria pulsão de morte que busca reaver um anterior estado de paz. Ele ainda esclarece que falar de um estado de paz, nesse contexto, significa utilizar uma palavra positiva para se referir, aproximativamente, a um estado que só pode ser definido, negativamente, como uma tendência ao afastamento de algo. Buscar essa paz, de qualquer forma que seja e através de qualquer meio, seria a finalidade principal da pulsão de morte e uma aspiração psíquica fundamental. A satisfação dessa pulsão estaria, consequentemente, não num objeto ou num ato particular, mas num “estado onde nenhuma perturbação intervém” (Rechardt, 1988Rechardt, E. (1988). Os destinos da pulsão de morte. In: C. Yorke, E. Rechardt, H. Segal, D. Widlöcher, P. Ikonen, J. Laplanche, & A. Green. A pulsão de morte. (C. Berliner, Trad.; pp. 45-56). São Paulo, SP: Escuta., p. 49). Ademais, para cada caso, há uma perturbação específica e um ato próprio que possibilita livrar-se dessa perturbação.
A consideração de Freud sobre a negação como processo vinculado à pulsão de morte - que leva à separação e à repulsa daquilo que se apresenta ao ego como mau - e, ainda, a consideração de que mau é o estranho e externo podem fornecer base para compreender a busca da pureza doutrinal, no fundamentalismo religioso, como produto da pulsão de morte. O anseio pela pureza doutrinal e a defesa agressiva de uma verdade de fé, que dispensa qualquer mistura com o que não se submeta aos princípios religiosos, podem ser pensados na perspectiva do julgamento, tal como Freud o apresenta. Para obter essa pureza, o fundamentalista repele e nega tudo o que se lhe apresenta como mau, desvirtuado e heterodoxo, o que está fora dos ditames de sua crença. O que é estranho e exterior à sua fé é facilmente identificado com o que é ruim e demoníaco e deve, portanto, de alguma forma, ser negado e subtraído de seu modo de pensar. O mesmo ocorre em âmbito de grupo. No arrivismo agressivo dos grupos fundamentalistas para com outras correntes religiosas ou ideológicas, busca-se defender o que o grupo acredita e manter esse conteúdo confessional isento das influências externas, pois a fé deve se manter genuína e íntegra. Essa pureza é então buscada pela ação da pulsão de morte que, pode-se dizer, está na origem da atitude de separar, repelir e negar o estranho, diferente e externo, bem como destruí-lo, a fim de que não venha causar nenhuma perturbação ou inquietação.
Nesse sentido, ao comentar o texto de Freud, Koltai (2002)Koltai, C. (2002). A tentação do bem: O caminho mais curto para o pior... Revista Ágora, 5(1), 9-17. Recuperado de: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/agora/v5n1/ v5n1a01.pdf>.
http://www.scielo.br/pdf/%0D/agora/v5n1/...
recorda a desilusão a que o autor se refere, quando constata que o desenvolvimento cultural da humanidade não possibilitou ao homem lidar com o diferente e o estrangeiro como um familiar ou quase familiar. Ao contrário, o diferente continua sendo percebido como alguém incômodo, que precisa ser desqualificado e tachado de bárbaro, para que sua eliminação seja justificada. Talvez seja este um dos muitos motivos pelos quais o crime, a barbárie e o genocídio continuam assombrando a humanidade, mesmo depois de milênios de desenvolvimento cultural e de propagação de ideais religiosos e humanitários.
Considerações finais
Na resposta às indagações de Einstein a respeito da guerra entre os homens, das ambições que a fomentam e sobre possíveis meios para se evitar comportamentos belicosos, Freud (1933/2006m)Freud, S. (2006m). Por que a guerra? In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 189-208). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933). assevera a seu inter-locutor que as ações humanas não são perpetradas a partir de uma única motivação, mas propiciadas por uma conjunção de diversos motivos. Por isso, quando os seres humanos são incitados à guerra, ou a qualquer forma de combate, há, igualmente, uma gama de motivos que os impele. Alguns desses motivos podem ser nobres, ao lado de outros que são torpes. Alguns são explícitos, enquanto outros permanecem ocultos. Dentre as motivações para qualquer confronto, assegura Freud (1933/2006m)Freud, S. (2006m). Por que a guerra? In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 189-208). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., “está certamente o desejo de agressão e destruição” (p. 203). As crueldades praticadas ao longo da história da humanidade e aquelas presentes no quotidiano da vida humana testemunham a força desse desejo e sua existência arraigada no humano. Um dos meios para facilitar a satisfação desse desejo agressivo e destrutivo é sua “mistura com motivos de natureza erótica e idealista” (p. 203). Para Freud, atrocidades cometidas no passado são exemplos de como, amiúde, aspirações idealistas serviram apenas de pretexto para a consecução da ânsia destrutiva que moveu grande parte da humanidade. Houve, inclusive, situações em que as causas idealistas estiveram em primeiro plano na consciência dos homens, enquanto impulsos destrutivos as reforçavam no âmbito do inconsciente. Esse pensamento de Freud ajuda a ponderar também sobre as razões ideológicas que permeiam os embates atualmente promovidos, na sociedade, por grupos com tendências fundamentalistas.
Ideologia, segundo explanação de Armstrong (2001)Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (H. Feist, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., consiste num sistema de crenças que justifica uma luta social e política, dando-lhe um fundamento lógico e mobilizando pessoas para o combate. Enquanto sistema de crenças, a ideologia é fechada e, normalmente, não admite posições alternativas. Por sua própria natureza, é altamente seletiva, embora possa se apropriar de ideias, paixões e entusiasmos que vigem num determinado momento, como, por exemplo, nacionalismo, autonomia pessoal ou igualdade. Pode, portanto, adotar, oportunamente, ideais concernentes ao espírito de uma época. Para atrair maior número de adeptos, uma ideologia se expressa por meio de imagens simples que, frequentemente, reduzem-se a slogans. Através desses slogans, intenta-se apresentar verdades de modo extremamente simplificado, com as quais se pretende explicar, totalmente, os complexos problemas que permeiam a realidade e expor soluções absolutamente eficazes para eles. A apresentação da ideologia de modo bastante simples é uma estratégia que tem o objetivo de fazer com que as pessoas menos instruídas consigam compreendê-la e apoiá-la, pois a política não pode ser inteiramente elitista. Junto a essa simplicidade, vigora a convicção de que alguns grupos jamais conseguirão entender ou aceitar a ideologia, pois sofrem de uma falsa consciência. Normalmente, as ideologias propõem uma utopia irrealista ou, até mesmo, irrealizável. Os ideólogos geralmente acreditam que algum perigo ameaça o mundo ou determinada sociedade. Com intensa convicção, expõem os motivos do perigo e das crises momentâneas na sociedade, prometendo encontrar uma solução, quando eles mesmos já não a têm pronta em seus discursos. Eles ainda dirigem a atenção da população para um grupo, um indivíduo ou um setor social, responsabilizando-o pelos infortúnios do mundo ou da sociedade e, ao mesmo tempo, apresentam outro grupo ou indivíduo que resolverá a situação. Para Armstrong (2001)Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (H. Feist, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., um “grupo que pretende fazer uma mobilização eficaz precisa de uma ideologia, com um inimigo claramente definido” (p. 303).
Essa caracterização geral de ideologias possibilita perceber o quanto, no momento atual, a comunidade humana se apresenta como uma espécie de mosaico, no qual cada uma das inúmeras peças que o constituem representam as incontáveis, diferentes e, por vezes, antagônicas propostas ideológicas dispostas no arranjo social. O direito à existência de cada elemento ideológico eventualmente colide com a pretensão de outros elementos que, movidos por pretensões absolutistas, buscam sobrepor-se aos demais, desejando suprimi-los e se tornarem não só o elemento hegemônico como também o único.
Em variados momentos da história e em diversos contextos culturais, a pretensão hegemônica e totalitária foi assumida por segmentos religiosos que, para a consecução de seus fins, buscaram tomar as rédeas do poder secular. Atualmente, a militância do fundamentalismo religioso dá expressivos sinais de que o desejo de uma imposição religiosa, sustentada pelo poder político ou em conluio com ele, retorna ao seio das sociedades democráticas hodiernas.
Se, conforme alegação de Freud (1933/2006l)Freud, S. (2006l). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: Conferência 35: A questão de uma weltanschauung. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 155-177). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1933)., “[...] a religião é um poder imenso que tem a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos”, ela é passível de se tornar também um poderoso instrumento para a mobilização das massas, no sentido da efetivação de novos projetos ideológicos e totalitários de poder (p. 158). Por isso, é oportuno recordar, a partir de Freud (1915/2006e)Freud, S. (2006e). Reflexões para os tempos de guerra e de morte. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 281-312). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1915). que onde há o humano, há também aquela “ambiguidade de sentimentos”, pela qual o amor e o ódio são capazes de conviver em indissociável aliança (p. 291). Por conseguinte, embora a religião sempre tenha se apresentado e continue se apresentando como promotora do bem para a humanidade, convém recordar que, junto a seus mais nobres ideais, podem também estar presentes - embora de modo dissimulado - os desejos agressivos, destrutivos e dominadores, que permeiam qualquer realidade constituída por seres humanos, pois estes, sempre e em qualquer circunstância, são movidos pela pulsão com sua dupla face: vida e morte, associadas, por Freud (1920/2006f)Freud, S. (2006f). Além do princípio de prazer. In J. Salomão (Ed. e Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 11-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2006. (Trabalho original publicado em 1920)., ao amor e ódio. Essa dualidade pulsional propicia fundamento para a proposição de Armstrong (2001)Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (H. Feist, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., segundo a qual “[...] há ideologias secularistas que enfatizam a sagrada inviolabilidade de cada ser humano sem recorrer ao sobrenatural. E há religiões tão homicidas quanto qualquer ideal secular” (p. 2014).
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Este trabalho foi baseado em dissertação apresentada em março de 2018, pelo mesmo autor, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas, com o título Pulsão de morte e o fundamentalismo religioso e orientada pela profa. dra. Ilka Franco Ferrari.
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Titus Maccius Plautus foi um escritor romano que viveu em Sarsina, na Itália, por volta dos anos 230 a 180 a.C. Seu aforismo Homo homini lupus est (O homem é o lobo do homem) foi popularizado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, expressando a tendência agressiva e destrutiva do homem em relação a seus semelhantes.
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A primeira data entre parênteses se refere ao ano de publicação original da obra e a segunda se refere ao ano da edição consultada pelo autor.
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Apesar de na Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud a palavra instinto aparecer como tradução de Trieb, após revisões da transposição da obra freudiana para o português, convencionou-se verter o termo alemão para pulsão, o qual continuará sendo utilizado daqui por diante, à parte das citações. Dá-se preferência ao vocábulo pulsão porque, conforme Garcia-Roza (1990)Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. explica, o termo instinto favorece uma interpretação biológica do texto de Freud e, sobretudo, da teoria das pulsões. Estas, no entanto, constituem uma realidade irredutível ao natural, ao instintivo. O referido autor argumenta ainda que, na teoria freudiana, a pulsão é apresentada como um desvio do instinto, uma perversão da ordem natural instintiva. É pura potência indeterminada, diferentemente do instinto que se caracteriza por determinações biológicas.
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Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental’ (1911/2006c), Freud apresenta a noção do ego-prazer em oposição ao ego-realidade. Trata-se de duas formas de funcionamento das pulsões do ego. A primeira forma de funcionamento se dá em conformidade com o princípio do prazer. A segunda, conforme o princípio de realidade. Em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/2006d), Freud propõe que o ego-prazer diz respeito ao ego identificado com o agradável, em oposição ao mundo externo identificado com o desagradável. Em “A negativa” (1925/2006i), o ego-prazer busca introjetar em si o que é bom, seguindo o princípio do prazer, e rejeitar para fora de si o que é mau, identificado com o estranho e externo.
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Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.
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Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Abr 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2021
Histórico
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Recebido
08 Jun 2020 -
Revisado
17 Set 2020 -
Aceito
30 Set 2020