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Reminiscências compartilhadas: revisitando a clínica de Freud

Shared Reminiscences: Revisiting Freud’s Clinic

Minha análise com Freud: Reminiscências. . Kardiner, Abram. Schipper, Nina. Quina Editora, 2024. 125

Quando nos propomos a rememorar o que foi dito e silenciado no processo psicanalítico de modo sistemático, por meio da escrita, abre-se uma renovada perspectiva pois os leitores também se sentem convidados a um exame de intimidades que pode sair do nível da particularidade em direção a uma compreensão compartilhada das vicissitudes humanas. É o que realiza Abram Kardiner (1891-1981)Kardiner, A., Linton, R., Du Bois, C., & West, J. (1945). The psychological frontiers of society. Columbia University Press., médico formado pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e um dos fundadores do Instituto Psicanalítico de Nova York, que traz a público as reminiscências da sua análise com Freud.

A despeito do voyeurismo envolvido no convite ao leitor a espiar o que se passou na intimidade das sessões com a figura central da psicanálise, o relato extrai diversas consequências da análise em diferentes camadas da vida do autor e, justamente por isso, nos convida a explorar nossa capacidade de elaboração ao perceber que, mesmo depois de decorridos tantos anos, novas formulações são possíveis.

Dividido em oito seções, o livro retorna uma e outra vez aos sonhos e às interpretações do outono de 1921. Minuciosamente descrito, o consagrado gabinete e a coleção de estatuetas são incorporados à arquitetura da casa, seus fluxos e ocupantes, o que aprofunda a compreensão de que estar em análise com Freud era também partilhar da intimidade e da arquitetura de seu lar. A leitura traz também curiosidades como: honorários e horários; está tudo ali emoldurando o relato dos sonhos e das lembranças da infância de Kardiner. A carta em que é aceito para análise nos permite constatar o domínio do inglês de Freud. Mesmo assim, entre objetivo e afetuoso, ele termina a mensagem informando que a compreensão da língua alemã será de grande ajuda “para nossa análise”. Vê-se aí que, ao menos da parte de Freud, o processo já estava em andamento.

A segunda parte, “Minha análise”, traz um paciente profundamente envolvido em extrair o máximo de suas impressões e lembranças de infância, buscando com diligência seguir à risca aquilo que dele se esperava. Medos, sintomas, sonhos, como um bom psicanalista em formação (ou filho obediente?), Kardiner fez uma dupla oferta: não apenas Freud, mas agora também os leitores podem escavar suas intimidades. A terceira seção, “Freud como analista”, surpreende ao trazer o tema do fim da análise tendo como pano de fundo o grupo dos outros pacientes estrangeiros — também psicanalistas — com suas comparações e curiosidades a respeito da conduta de Freud nas consultas. Essa parte dialoga mais diretamente com a sexta, “Minha análise revisitada em 1976”, na qual o autor reafirma sua admiração pelo trabalho analítico empreendido, com destaque para a perspicácia de Freud no manejo da interpretação dos sonhos. Entretanto, o tempo decorrido entre a experiência de análise e a escrita do livro também permitiu ao autor identificar alguns pontos cegos. A figura central de Freud estava inescapavelmente presente no setting, o que deveria ser levado em conta na relação transferencial. A leitura da revisitada proposta nessa parte nos indica que a sua rememoração foi capaz de iluminar não apenas os avanços obtidos na sua compreensão sobre si e pelo alívio de certos sofrimentos, como também aquilo que à época já era evidente — a esmagadora presença de um analista emblemático — mas que permaneceu silenciado.

As seções “Freud e o movimento psicanalítico” e “Viena longe do divã” retratam aspectos da história da cidade, da relação desta com a psicanálise e com os pacientes estrangeiros atraídos por seu fundador, trazendo ao livro a riqueza de um olhar fresco e disponível do jovem Kardiner. O livro se encerra com “Regresso a Nova York” e “Cinquenta e cinco anos com a psicanálise” nos quais ele revisita sua carreira. Ele se detém nas suas publicações culturalistas e expõe mais explicitamente algumas das suas posições em que manifesta uma compreensão funcionalista da clínica.

A partir da aproximação com a antropologia expressa em sua obra The Psychological Frontiers of Society (1945), Kardiner apresenta suas inovações teóricas decorrentes do questionamento à teoria da libido, assim como aponta para a necessidade de estudos sobre diversos grupos culturais.

O empirismo do autor busca se justificar na necessidade de mais investigações etnográficas afirmando que assim seria possível “estabelecer uma base controlada para correlações e previsões”, bem como permitiria à psicanálise “dar ao público diretivas confiáveis sobre como educar as crianças” (p. 108). Isto denota não apenas uma postura reducionista acerca do papel da teoria psicanalítica, em uma compreensão equivocada de que sua finalidade deveria ser a de uma psicologia aplicada às demandas da sociedade, mas também revela uma concepção de que os parâmetros para o contato com grupos culturais distintos estão dados a partir de categorias preestabelecidas. Por exemplo, o autor considera que as crianças do grupo étnico Alor1 1 Trata-se dos habitantes da pequena Ilha de Alor, localizada na Indonésia. são negligenciadas explicando que isso ocorre porque as mulheres ficam o dia todo trabalhando distantes de seus filhos, o que acarretaria uma apatia emocional das crianças e que permaneceria como um traço de personalidade nos membros daquele grupo. Ora, tal conclusão desconhece o estado do capitalismo tardio, que leva homens e mulheres a trabalharem o dia todo, ficando igualmente distantes de suas crianças, tal como as da cultura alorense. Ele pressupõe que o cuidado das crianças deve ser das mães e daí extrai que o modo de subjetivação de um grupo étnico minoritário é “apático”, usando uma categoria psicológica ocidental.

A psicanálise experimentada por Kardiner como paciente de Freud distancia-se daquela que ele passa a propor ao se consolidar como psicanalista. Obviamente o processo analítico empreendido por Freud no caso do jovem Kardiner não seria capaz de fornecer a formação necessária para que ele pudesse enfrentar os horrores do século XX, de modo a conseguir viver na e com a angústia. Mas as transformações pelas quais ele modifica a teoria, abandonando a teoria da libido, assim como a compreensão da clínica como uma prática instrumentalizada capaz de fornecer “respostas confiáveis sobre a profilaxia” (p. 108), mostra algumas facetas que a psicanálise vem assumindo ao longo de sua história. Ela tem se tornado tanto geradora de uma tensão criativa, refletindo sobre as produções da cultura, desvendando a economia libidinal existente nos vínculos e rupturas pelos quais a sociedade se constitui, quanto, em momentos não tão fecundos, pode desembocar numa psicanálise adaptativa, voltada a uma psicologia aplicada, como a que o autor expõe.

Em suma, Minha análise com Freud oferece não apenas uma janela para observarmos mais de perto a experiência psicanalítica de Kardiner, mas também um rico terreno para reflexões sobre o papel da psicanálise e as armadilhas de uma abordagem utilitarista. Coexistem em seu campo tanto as adaptações teóricas reducionistas que parecem colocá-la mais em sintonia com as demandas do mundo administrado, como a fonte para uma reflexão criativa e crítica sobre a incompletude humana.

Vale destacar a edição bem cuidada. Ao projeto editorial que prioriza obras ainda inéditas no Brasil, soma-se o gráfico que denota gosto apurado consolidando a qualidade de mais este título da coleção História da Psicanálise da Quina Editora. A tradução ajuda a manter o tom simultaneamente leve e íntimo do texto, a escolha da pintura que ilustra a capa e as contracapas dão o toque final a esta bela obra que contribui para que o público brasileiro possa ampliar a perspectiva — e problematizar — certo desenvolvimento que a psicanálise experimentou do lado de cá do oceano.

  • 1
    Trata-se dos habitantes da pequena Ilha de Alor, localizada na Indonésia.

Referências

  • Kardiner, A., Linton, R., Du Bois, C., & West, J. (1945). The psychological frontiers of society Columbia University Press.
  • Kardiner, A. & Preble, E. (1964). Eles estudaram o Homem Cultrix.
  • Kardiner, A. (2024). Minha análise com Freud: reminiscências Quina Editora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2024
  • Aceito
    10 Abr 2024
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