Open-access Os “psicopatas autistas” na idade infantil1 (Parte 1)

Apresentação da questão

A ordem e o conhecimento da estrutura das coisas é um dos objetivos últimos da ciência. Diante da plenitude das manifestações da vida — que se encontram repletas de oposições, que desembocam umas nas outras a partir de limites pouco nítidos — o ser humano pensante busca encontrar um ponto de vista fixo à medida que nomeia as manifestações isoladas, as delimita em relação às outras, constata relações, similaridades e oposições, resumidamente, cria uma ordem, um sistema para as coisas. Este trabalho é a condição essencial do ato de conhecer.

A ciência sobre o homem precisou trilhar caminhos semelhantes. Em nenhum lugar, porém, as dificuldades são maiores do que aqui: Todo ser humano é um ser único, irreproduzível, indivisível (“individuum”) e, por isso, em última instância, não passível de comparação com outros. Em todo caráter encontram-se traços aparentemente contraditórios, pois é justamente a partir de oposições e tensões que a vida se mantém.

Por fim, o ser humano é o ser mais misterioso na terra; a essência mais profunda da personalidade não se revela nem àquele que busca conhecer a si próprio, nem ao olhar do outro que deseja nos penetrar.

Apesar disso, ou talvez justamente por essas dificuldades, os seres humanos pensantes se esforçam, desde sempre, intensamente para conhecer os homens e também classificá-los, criar uma série de quadros que representam os caracteres humanos, delimitar um em relação ao outro, quer dizer, obter uma tipologia que faz jus à variedade da vida.

As tentativas de classificar as manifestações humanas se dão principalmente de três formas:

1. Busca-se estabelecer um par de opostos como princípio de ordem: Principalmente Kretschmer, (pois mesmo se referindo a três, isto é, quatro tipos, para ele tudo se dá basicamente a partir da polaridade esquizotímico e ciclotímico) e, apesar de algumas diferenciações mais amplas, Jaensch (integrado-desintegrado) e Jung (introvertido-extrovertido).

Independentemente de quão férteis estes princípios de classificação provaram ser, enquanto princípio heurístico, uma perspectiva assim tão “unidimensional” (Schröder) não basta para fazer jus à variedade das manifestações humanas. Especialmente no caso das personalidades que se encontram no âmbito normal de variação e principalmente em relação a crianças e jovens, essas disposições muitas vezes parecem bastante forçadas e pouco convincentes. Parece-nos, entretanto, que a teoria de Kretschmer merece a mais alta consideração em relação a um ponto: na conjunção entre o físico e o psíquico, entre “estatura física e caráter”. Primeiramente Kretschmer nos mostrou de modo bem exato (a respeito do que antigamente muitos — pensemos nos esforços da antiga fisiognomonia e da frenologia — já tinham uma ideia; naturalmente um tanto nebulosa) que até nos menores detalhes a constituição física e psíquica correspondem uma a outra.

2. A seguir devemos apresentar as teorias dos tipos em si. Procura-se caracterizar e classificar personalidades, principalmente personalidades psicopatas, a partir de um único, “dominante”, traço de caráter. É impossível adentrarmos aqui em uma discussão a respeito das diversas teorias de tipos, nem mesmo a respeito das tipologias de caracteres psicopatas. Mencionamos, apenas como exemplo, a caracterização, provavelmente mais conhecida e mais útil para o trabalho prático, de Kurt Schneider.2 Schneider diferencia entre os psicopatas hipertímicos, depressivos, inseguros, fanáticos, carentes de admiração, de humor instável, explosivos, isentos de ânimo, isentos de vontade, astênicos, e descreve as personalidades de modo convincente baseado em sua rica experiência psiquiátrica.

Opuseram-se de modo importante a esse tipo de perspectiva principalmente Paul Schröder3 e a sua escola; seria um empobrecimento totalmente ilegítimo classificar personalidades de acordo com um único traço de caráter e desconsiderar todos os outros que igualmente as marcam. Pois o próprio Schneider admitiu que os tipos “são os primeiros e, em relação ao que é de ordem individual, os mais grosseiros pontos de orientação que se caracterizam por uma unilateralidade fundamental”. Haveria de imediato a necessidade de determinar, além do respectivo tipo, as diversas subformas, combinações, ligações com outras psicopatias, situação na qual por vezes surge a dúvida se alguns desses “aspectos secundários” não seriam mais relevantes do que a característica principal. Isso sugeriria renunciar de antemão, e de uma vez por todas, à tipificação unidimensional diante da infinita e colorida maranha das estruturas do caráter e basear toda e qualquer descrição sistemática em sua pluri ou multidimensionalidade.

3. Desse modo, Schröder chega a sua divisão dos caracteres, principalmente dos caracteres infantis.4 Quando é possível descrever todos os aspectos principais da vida psíquica de uma pessoa, aspectos esses que em qualquer indivíduo se encontram “amalgamados” em um todo a partir de distribuições diversas, surge uma imagem clara dessa pessoa, passível de determinar todas as suas formas de reação e da qual podemos igualmente deduzir o comportamento no que tange à educação e, por fim, também o prognóstico social. Desvios psíquicos (Schröder rejeita a palavra “psicopatia”, pois esta nos poderia levar a concluir que o psicopata seria um louco apenas pela metade ou por um quarto, o que não é verdade nem em relação ao seu quadro, nem procede em um sentido biológico-hereditário) não consistem no fato de um desses aspectos estar ausente ou de um novo se acrescentar. Todas diferenças psíquicas, igualmente aquelas inteiramente monstruosas, devem ser descritas e explicadas a partir dos diferentes graus de desenvolvimento de cada aspecto e direção, assim como a partir da resultante de todas as partes em relação ao todo. Desse modo, Schröder descreve, no que tange aos aspectos psíquicos, além do intelecto, também o impulso (a espontaneidade), a estabilidade, a ânsia de se destacar, a fantasia e, provavelmente como aspecto mais importante, o ânimo.5* Não somente um aspecto, e sim o conjunto de todos determina o destino humano. Por isso, no caso das pessoas instáveis, por exemplo, depende de quanto ânimo possuem e se, através deste, são capazes de estabelecer relações suficientes ou se são pobres de ânimo e sedentos por se destacarem; o que se espera é que uma pessoa com um excesso de fantasia, forte impulso, muita ânsia de se destacar, pouco ânimo se torne um impostor; quando, entretanto, alguém com a mesma fantasia e o mesmo impulso possui boas qualidades de ânimo, pode tornar-se um artista sem conflitos sociais.

Sem dúvida, a consideração caracterológica é principalmente prático-pedagógica — pois esta se baseia inteiramente no trabalho, marcado pela compreensão e pelo amor, com crianças e jovens — e é igualmente bastante útil para a avaliação da necessidade e do tipo de medidas de assistência, em todo caso, é mais adequada do que as tipologias correntes, principalmente as tipologias sistemáticas. Fica especialmente evidente que ela faz jus às personalidades que tendem a se encontrar no âmbito normal de variação, pois quando tentamos categorizar uma pessoa — que não apresenta nenhum desvio grosseiro ou anormalidade qualitativa que determina a sua personalidade como um todo — segundo uma tipologia ou forçá-la para dentro desta, a constrangemos na medida em que a avaliamos.

Mas, em princípio e sob o aspecto prático, há igualmente oposições a serem feitas ao ponto de vista de Schröder. Por que, em última instância, os quadros de personalidades infantis descritos pela escola de Schröder muitas vezes não nos parecem plásticos nem vivos? Apesar de essa perspectiva pretender, com razão, ser multidimensional em contraposição a outros sistemas unidimensionais de avaliação humana, temos frequentemente a sensação, principalmente quando buscamos aplicar esse sistema a pessoas, de que as “dimensões” ou os aspectos estabelecidos por Schröder não são suficientes, que existem ainda outros não previstos neste sistema. Pois é este o argumento que se aplica a qualquer caracterologia sistemática. Quando seguimos um sistema de antemão estabelecido, desaprendemos a enxergar e avaliar corretamente aqueles traços que, por ventura, são essenciais, que conferem ao quadro os seus traços peculiares e individuais, porém não estão presentes nesse sistema preestabelecido.

Um segundo e mais essencial argumento é que aquele que aplica esse sistema de avaliação da personalidade pode sucumbir à opinião de que a personalidade humana é passível de ser explicada como soma das partes, como soma de condições em si mesmas constantes que, variando nos diferentes casos apenas em termos quantitativos, resultam em um todo a partir de uma adição simples. Mas o ser vivo, isto é, o ser vivo mais organizado, o ser humano, não é passível de ser considerado uma soma de partes se quisermos, de alguma forma, fazer jus à sua natureza. A personalidade humana é um organismo, o que significa que cada um de seus traços se relaciona com outros, recebe de todos a sua tonalidade específica e lança em todos uma determinada luz. Não são os pesos de uma balança — os quais através de suas diversas quantidades resultam em uma determinada soma final, uma “resultante” — que servem como símbolo de uma personalidade, e sim, o tecido composto por diversos fios vivos onde um segura e ata o outro. Por isso, os aspectos psíquicos isolados não são constantes que, sempre idênticas variando apenas em termos quantitativos, podem ser calculadas, e sim apresentam, por si só, numerosas diferenças qualitativas e, por isso, só devem ser comparados uns aos outros com restrições.

Dois exemplos devem tornar essa ideia mais clara. Se admitimos que determinados traços não podem ser considerados separadamente uns dos outros, ao menos para a inteligência essa possibilidade parece existir. Pois esta seria passível de ser medida por si só de forma inteiramente exata, determinada em termos quantitativos conforme os métodos de avaliação de inteligência mais vigentes, principalmente os de Binet e suas modificações, parecem comprovar. Agora, porém, devemos apontar que a inteligência por excelência, que nas diferentes pessoas varia apenas em termos quantitativos, não existe. Com efeito, no caso de uma avaliação correta da inteligência todo o resto da personalidade “entra em cena”. Por isso, um teste de inteligência adequadamente conduzido deve ser capaz de revelar o essencial da personalidade como um todo, quer dizer, não deve informar apenas a respeito do tamanho da aptidão, e sim, igualmente, sobre o seu funcionamento e os seus distúrbios, sobre os tipos de interesses, a espontaneidade, o humor, o contato, a fantasia, a originalidade ... não é fácil enumerar tudo, chegaríamos a mais ou menos tantas possibilidades quanto existem personalidades. Quão diferente é, por exemplo, a inteligência típica dos meninos da inteligência típica das meninas, o quanto difere qualitativamente o êxito do inventor disfórico daquele do inventor pedante; do “integrado” primitivo do autista-original (é sobre isso que este trabalho dissertará); do falador vazio do “intelectual” que formula de modo preciso, que é complexo e cheio de dúvidas! (Temos a intenção de, em breve, falar sobre um método de avaliação que, em função de sua condução livre, elástica e adaptada às peculiaridades da pessoa a ser avaliada, permite afirmar igualmente pontos essenciais sobre a sua personalidade).

Um segundo exemplo: A avaliação do ânimo6 ocupa importância central na obra de Schröder — aquele aspecto psíquico “cujo conteúdo é a relação com outras pessoas, que é capaz de interessar-se pelo outro, de empatia, de estar com os outros”. É justamente em função de a avaliação do ânimo ocupar um significado tão central em Schröder, que acreditamos reconhecer a grandeza de sua obra, da obra de um homem que foi um grande educador, um grande apaixonado (durante a discussão sobre o ânimo surge repetidamente a palavra e a noção de “Ágape”!). Mas também em relação à consideração do ânimo, devemos ter em mente as mesmas restrições que acabamos de explanar referente à inteligência; o ânimo não é uma constante que no caso de pessoas diferentes simplesmente está presente a partir de quantidades diversas, e sim, trata-se de uma função extremamente complexa que no caso de personalidades diferentes exibe grandes variações qualitativas. O ânimo de uma pessoa revela a sua personalidade por inteiro e este só pode ser compreendido corretamente Sa partir da personalidade como um todo. Quão diferente é aquilo que chamamos de ânimo no caso de uma pessoa sem estabilidade, que estabelece de modo extremamente fácil relações afetivas com pessoas, animais e coisas, que doa as suas posses para agradar os outros, cujas lágrimas de arrependimento são, sem dúvida, verdadeiras, da mesma forma como todos os seus sentimentos são humanamente autênticos — e, mesmo assim, não é possível confiar em nada disso — mesmo assim, tudo isso se desfaz através de impulsos pulsionais* e sedução — quão diferente é o ânimo no caso da criança profunda, ricamente diferenciada em termos psíquicos, que pessoalmente é de difícil acesso, que expressa o seu afeto de forma escassa, mas que persiste em função desse vínculo, baseado no ânimo, com os pais, o líder, o amigo; que melhora, que aprende. E o quão diferente é o ânimo do psicopata autista com as suas contradições aparentemente incompreensíveis, que consistem em um comovente apego a, por exemplo, animais ou coisas e em um marcante desamor e crueldade em relação às pessoas, principalmente às pessoas próximas! Quantas contradições não existem no caso de certas pessoas quando queremos avaliar o seu ânimo. Contradições impossíveis de serem medidas em termos quantitativos ou consideradas segundo os conceitos de “pobreza de ânimo” ou “riqueza de ânimo”.

Da mesma forma, poder-se-ia demonstrar em relação aos outros aspectos psíquicos do sistema caracterológico de Schröder — assim como no caso de outros sistemas caracterológicos, o de Klages, por exemplo, que em muitos sentidos parece ser ainda mais reduzido — que estes apresentam grandes variações qualitativas quando se trata de pessoas diferentes e que são influenciados por toda personalidade restante. Constatamos que quando nos esforçamos para obter uma imagem do ser humano à medida que somamos as partes, em si constantes e existentes em diferentes proporções, para formar um todo, surge uma imagem que em muitos casos, conforme Schneider admite em relação à sua tipologia, oferece igualmente apenas valores aproximados, “pontos de orientação grosseiros” — caso não tivermos êxito em tornarmos essa imagem uma totalidade das várias partes constituintes relacionadas entre si, isto é, um organismo através de um ato criativo de síntese. Entretanto, acreditamos ter mais êxito em muitos casos se, ao invés de tentarmos obter o todo a partir das partes ordenadas segundo um sistema, fizermos o movimento inverso, isto é, partirmos da personalidade compreendida como um todo em direção aos traços de caráter isolados.

À objeção, agora mesmo apresentada, contra um método de trabalho caracterológico-sistemático soma-se outra: Quando nos forçamos a perguntar, seguindo o nosso esquema, sempre de novo pelos mesmos traços de caráter, “aspectos da personalidade” (e somente por estes), então muitas vezes obtemos uma grande quantidade de dados nada característicos, isto é, quando determinados aspectos e inclinações existem dentro de uma dimensão mediana e, nesse sentido, não conferem traços marcantes à pessoa. No caso de uma ou outra pessoa não é relevante perguntarmos, por exemplo, pela sua fantasia, ânsia de se destacar ou por seu impulso. Se descobrimos que ela apresenta estes aspectos somente de forma mediana, então a imagem, ao invés de elucidada, acaba sendo prejudicada através desses dados. Quando, porém, buscamos reconhecer em uma pessoa justamente o que existe de típico, o que determina o seu ser (ignorando tudo que há de não característico nela), obtemos uma imagem marcante de sua personalidade — assim como o artista destaca somente os traços essenciais em sua obra e reprime o que há de mediano, conferindo assim justamente um caráter convincente, autêntico a esta.

A experiência nos mostrou que a busca por compreender personalidades segundo aspectos previamente estabelecidos restringe o nosso olhar, abriga o perigo de ignorarmos justamente o que há de único e, desse modo, essencial nessa pessoa.

O nosso caminho parte da intuição, da tentativa de compreender o princípio de construção da personalidade; buscamos demonstrar os traços que organizam a personalidade a ser avaliada.

O embasamento científico desse caminho devemos a Ludwig Klages:7 são os fenômenos de expressão de uma pessoa que nos revelam o seu ser. A impressão que estes fenômenos geram em nós nos permite estabelecer uma imagem da personalidade que está diante de nós.

Esse caminho, que vai dos fenômenos de expressão ao ser, abre mão conscientemente de um sistema previamente estabelecido. Parte conscientemente do indivíduo, busca compreender a personalidade a partir de sua singularidade, busca a correspondência regular entre externo e interno, entre constituição física e natureza psíquica, entre motricidade, mímica, gesto, fenômenos vegetativos (nos quais o psíquico se “encena”), entre modulação de linguagem e modo de falar e dados referentes ao caráter. Da mesma forma que procuramos simplesmente interpretar — e a partir disso criar uma imagem — aquilo que se “expressa” através da pessoa que está diante de nós, renunciamos conscientemente a colocá-la em uma situação de teste artificialmente gerada, inseri-la em uma maquinaria estereotipada de teste que não tem nada a ver com aquilo com que se depara em sua vida cotidiana. Da mesma forma como utilizamos a avaliação de Binet somente com muita cautela, consideramos todos os “testes de caráter” praticamente um enleio, pois os seus resultados jamais fazem jus ao real caráter de uma criança. Acreditamos que àquele que é capaz de enxergar, o ser de uma pessoa se revela apenas de forma autêntica e fiel, quando se vive com esta pessoa, quando pode observar as inúmeras reações que se encenam nessa pessoa na vida cotidiana, no trabalho, na hora do estudo e do brincar, quando é exigida e quando exerce uma atividade espontânea, em situações livres e descontraídas. Toda situação artificialmente gerada, assim como toda situação de teste, abriga o perigo de a criança se mostrar de forma diferente como de fato é, talvez inibida, travada pelo medo ou então compensando a sua insegurança e vulnerabilidade ao contato através do exagero ou se esforçando para obter um êxito especial que em situações comuns na escola e vida comunitária não é capaz de alcançar. Além disso, traços de caráter essenciais, principalmente no que diz respeito ao ânimo, só se revelam àquele que conduz a criança, que a confronta com exigências de disciplina e êxito, apenas àquele que participa pessoalmente dessa união viva que existe entre o condutor e a criança, essa união na qual um reage ao outro, e vice-versa, em função das inúmeras relações conscientes e principalmente inconscientes. Por isso, a natureza mais profunda da criança a ser observada se revelará somente àquele que está pessoalmente presente na situação pedagógica com a criança — naturalmente este precisa dispor do instinto adequado de conduzir e olhar. Mas quando as condições descritas acima são preenchidas, então uma observação desse tipo se encontra acima de qualquer outra situação de teste. Assim seremos capazes de compreender a personalidade infantil em sua natureza, sua estrutura orgânica de forma inequívoca e, através desse conhecimento, será possível chegar a todas as conclusões pedagógicas, e àquelas que dizem respeito aos cuidados com a criança, e igualmente responder com a maior segurança possível perguntas sobre o futuro da criança, por exemplo, sobre a orientação profissional ou sobre os prognósticos de desenvolvimento.

Nesse ponto há de se considerar uma objeção importante: se focalizamos o ser humano isolado do modo descrito, renunciando a qualquer forma de consideração sistemática predefinida, e procuramos interpretar a sua natureza de acordo com os seus fenômenos de expressão, o seu comportamento na situação real, então será que quando fazemos esse tipo de avaliação, não nos encontramos diante de várias personalidades individuais que não têm nada a ver uma com a outra, não passíveis de serem ordenadas e classificadas? Por isso, será que em última instância esse modo de considerar o ser não significa uma renúncia à cientificidade, que justamente exige a ordenação de acordo com semelhanças e diferenças?

Mas não é este o caso. Se nos esforçamos a enxergar a personalidade infantil como unidade organizada na qual a dimensão física e a do caráter, todos os fenômenos de expressão em relação ao âmbito motor e vegetativo e os processos psíquicos e traços de caráter correspondem entre si, na qual um pode ser interpretado a partir do outro, então não enxergamos as crianças como seres isolados, impossíveis de serem comparados entre si. Apesar de cada ser humano ser único e irreproduzível no que tange ao núcleo de sua personalidade, unem-se, na nossa visão, mesmo assim, sempre de novos caracteres isolados em grupos e tipos que não revelam as relações entre si apenas a partir de uma ideia estruturante em comum, e sim que correspondem entre si de modo surpreendentemente fiel igualmente em relação a inúmeros detalhes de sua aparência externa e modos de comportamento; em relação a todos os traços que nos falam da natureza de um ser humano.

O objetivo dessa forma de consideração é igualmente uma tipologia, que, no entanto, renuncia de forma mais clara do que Schneider e outros a um sistema constituído segundo critérios lógicos, pois um sistema assim não nos parece corresponder à realidade da vida.

O presente trabalho tem como finalidade comprovar através de um exemplo a veracidade e utilidade das ideias acima desenvolvidas. Será descrito a seguir um tipo de criança que nos parece digno de interesse em diversos aspectos: um transtorno básico que se manifesta de forma bastante clara no corpo, nos fenômenos de expressão, no comportamento como um todo, gera dificuldades de classificação grandes e muito características; mesmo que em muitos casos o fracasso em relação à convivência social esteja em primeiro plano, em outros casos este é compensado através de especial originalidade do pensamento e da vivência, o que muitas vezes leva a um êxito acentuado na vida futura. A exigência de que pessoas especiais, que se afastam da média, necessitam igualmente de um tratamento pedagógico especial, que esteja adaptado às suas dificuldades especiais, pode ser demonstrada no caso desses psicopatas. E, por fim, podemos comprovar aqui que pessoas anômalas igualmente são capazes de preencher um lugar na ampla comunidade social, especialmente quando podem contar com uma condução compreensível e amorosa. Por isso, há razões suficientes que justificam uma descrição mais exata justamente desse grupo de crianças anormais, pois estas questões aqui insinuadas nos conduzem a problemas centrais da psicologia e da pedagogia.

Nome e conceito

No intuito de encontrar e compreender em termos conceituais o transtorno básico que parece organizar a personalidade desse grupo de crianças anormais, escolhemos a designação “psicopatas autistas”. O nome é derivado do conceito do autismo, aquele transtorno básico presente de forma extremamente marcante no caso de esquizofrênicos. É notório que o termo — em nossa opinião uma das criações linguísticas e conceituais mais magníficas no âmbito da terminologia médica — advém de Bleuler.

Enquanto o ser humano normalmente vive em uma relação ininterrupta com o meio ambiente, sempre reagindo em relação a este, no caso do “autista” essas relações se encontram gravemente conturbadas, limitadas. O autista é apenas “ele próprio” (por isso a palavra αủτος) e não uma parte viva de um organismo maior, sempre sob a influência deste e vice-versa. (A seguir utilizamos as formulações de Bleuler8 sobre o autismo esquizofrênico). “Os esquizofrênicos perdem o contato com a realidade” em graus diversos, “não se ocupam mais da realidade externa”. Há uma “falta de iniciativa, a ausência de um objetivo determinado, uma não consideração de diversos fatores da realidade, um nervosismo, ideias súbitas e outras peculiaridades”. “Muitas ações isoladas, assim como toda a atitude perante a vida, são insuficientemente motivadas pelo meio externo”. “A intensidade assim como a extensidade da atenção se encontram alteradas”. “A vontade muitas vezes carece de persistência, eventualmente, porém, determinados objetivos podem ser fixados com grande energia”, frequentemente encontramos uma “teimosia de humor oscilante”, “os doentes desejam algo e simultaneamente o oposto”, há “ações compulsivas, ações automáticas, automatismo de comando e comportamentos semelhantes”. “Vivem em um mundo imaginário com todo tipo de realização de desejo e ideias de perseguição”. Esse tipo de pensamento, que não é determinado pela realidade, e sim por desejos, afetos, e que Bleuler chama de pensamento “autista” ou “derreísta”9, encontra-se não apenas em pessoas esquizofrênicas, nas quais se manifesta da forma mais bizarra, e sim, amplamente, em pessoas não psicóticas, de modo geral no pensamento cotidiano, na superstição, na pseudociência. (Esse aspecto da natureza autista não é relevante no caso de nossas crianças, somente vez ou outra encontramos indícios desses distúrbios do pensamento).

Por outro lado, encontramos os traços de autismo acima mencionados igualmente no caso daquele tipo de personalidades psicopatas que pretendemos descrever. Assim como conseguimos conceber a personalidade dos esquizofrênicos permeada por uma perda gradativa de contato, assim como o autismo esquizofrênico tinge o pensamento e a afetividade como um todo, o sentimento, a vontade e a ação com a sua tonalidade específica — de modo que os sintomas essenciais da esquizofrenia podem facilmente ser reduzidos ao denominador comum da barreira das relações entre o eu e o mundo externo — o estreitamento das relações em todos os sentidos é igualmente determinante para as nossas crianças. Mas não se trata, nesse caso, de crianças que apresentam distúrbios no cerne de sua personalidade, quer dizer, crianças psicóticas, e sim, apenas crianças mais ou menos anormais, psicopatas. Mas também aqui o transtorno básico lança uma luz significante em todas as manifestações da personalidade, explica as dificuldades, o fracasso, assim como os êxitos especiais.

Quando aprendemos a prestar atenção nas manifestações características da personalidade autista, encontramos esse transtorno psicopata, especialmente num grau leve, não raro também em crianças.

Iniciamos com um menino altamente anormal que apresenta graves transtornos de adaptação social.

Fritz V.

O menino, nascido em junho de 1933, chegou à seção de educação especial da clínica infantil da Universidade de Viena no outono de 1939. Foi encaminhado pela escola; já no primeiro dia de aula revelou-se que ele era “completamente inapto para a escola”.

Anamnese

Fritz é o primeiro filho de seus pais (ele tem um irmão dois anos mais novo, igualmente um pouco malicioso e difícil, mas de longe não tão anormal como Fritz).

O parto foi totalmente normal. Desenvolvimento: enquanto as funções motoras estavam mais atrasadas (aprendeu a andar somente com 14 meses, durante muito tempo foi especialmente desajeitado e dependente, adquiriu as habilidades práticas da vida muito tarde e com bastante dificuldades — sobre isso falar-se-á de forma detalhada mais adiante), aprendeu a falar muito cedo; com dez meses (quer dizer, bem antes de saber andar) falou as primeiras palavras, aprendeu rapidamente a se expressar através de frases elaboradas, logo falou como uma “pessoa mais velha”. Não se sabe nada a respeito de doenças específicas, sobretudo não há informações que poderiam indicar um processo cerebral.

Desde cedo dificultou muito a educação, não se submetia a nenhuma ordem, simplesmente fazia o que queria ou justamente o contrário daquilo que era requisitado. Desde sempre é muito inquieto e instável, toca em tudo, precisa colocar as mãos em tudo, se interessa por tudo, se coloca acima de qualquer proibição limitante. Possui um acentuado impulso de destruição, em pouco tempo rasga, quebra aquilo que para em suas mãos.

Desde sempre não consegue se inserir num grupo de crianças. Brinca sempre sozinho, jamais se entendeu ou ocupou com outras crianças; “estas apenas o irritam”, torna-se rapidamente agressivo, bate com tudo que está ao seu alcance sem considerar se pode colocar os outros seriamente em perigo (uma vez usou um martelo); por isso, quando houve a tentativa de adaptá-lo ao jardim de infância, foi excluído após poucos dias. Da mesma forma, a tentativa de escolarização fracassou já no primeiro dia em função de seu comportamento inteiramente desenfreado; atacou crianças, passeou sem a menor preocupação pela sala de aula, tentou danificar ganchos para roupas.

Não estabelece relações emocionais mais autênticas com ninguém; às vezes tem acessos de carinho, abraça pessoas diversas sem nenhum motivo — mas não é algo que parece ser agradável, uma expressão de um sentimento autêntico, uma real ligação, e sim parece ser abrupto “tal como um ataque”. Tem-se a impressão de que ele não é capaz de gostar de ninguém de verdade, fazer nada por ninguém. Ele não se importa nem um pouco quando alguém se chateia ou entristece com ele; parece que se diverte quando o educador se aborrece, como se isso gerasse uma sensação agradável que ele busca provocar através de negativismo e maldades (mais adiante ainda falaremos de suas peculiares maldades).

Desconhece o real respeito. Não se importa nem um pouco com a autoridade do adulto ou então não possui nenhuma distância, aborda estranhos sem nenhum pudor; apesar de ter aprendido a falar especialmente cedo, foi impossível ensinar-lhe formas de cortesia como “o senhor, a senhora”, chama qualquer pessoa de “você”.

Parece bastante estranho em função de determinados movimentos estereotipados e outros hábitos (mais adiante o relato sobre o comportamento abordará tal assunto).

Anamnese familiar

A mãe é da família de um dos maiores poetas austríacos. No clã, por parte da mãe, há quase somente intelectuais, todos eram, segundo as informações da mãe, “um pouco geniais e loucos”; vários dentre eles “faziam belas poesias”. Uma irmã do avô materno, uma “pedagoga genial”, era especialmente excêntrica, sempre solitária. O avô materno, assim como vários parentes seus, também não foi aceito na escola pública, ao invés disso precisou frequentar uma escola particular; dizem que a criança é bastante parecida com esse avô que também apresentou problemas semelhantes em sua juventude; parece a caricatura de um homem douto, estranho e esquisito, não muito presente na vida real.

A própria mãe também é muito parecida com o menino (o que chama especial atenção no caso de uma mulher, pois se exige justamente do sexo feminino uma maior segurança baseada no instinto, uma melhor adaptação à situação, mais sentimento do que intelecto). Toda a sua motricidade, e, mais ainda, o seu modo de falar, a faz parecer estranha, inadaptada, solitária (é bastante significativa, por exemplo, a situação como mãe e filho andam juntos até as aulas na clínica — a mãe sai andando, aparentemente nada consciente do mundo, os braços cruzados nas costas, ao lado dela o menino apronta, vez ou outra corre — parece que os dois não têm nada a ver um com o outro). Tem-se a forte impressão de que a mãe não é apenas incapaz de dar conta de seu filho, e sim da vida prática como um todo e também dos afazeres domésticos: ela, que pertence à classe alta, sempre aparenta estar um pouco desleixada, quase suja, sempre muito mal vestida. Também não parece dar conta da higiene pessoal de seu filho (naturalmente a higiene pessoal do menino é bastante difícil de ser realizada; sobre isso mais em diante). A mãe conhece o seu filho no que diz respeito a todos os traços de caráter e dificuldades deste, busca traços parecidos em si, antepassados e parentes e sabe informar muito bem sobre tudo; enfatiza repetidas vezes que não sabe lidar nem um pouco com ele — e disso podemos nos certificar sempre de novo quando vemos os dois juntos. Nesse sentido, torna-se claro que isso se deve igualmente às dificuldades endógenas do menino, assim como ao fato de a mãe ser muito limitada no que tange às suas relações com o mundo, principalmente às suas funções instintivas. Em relação ao seu modo de ser, parece-nos significativo o seguinte traço: quando perde a paciência em casa, larga tudo e viaja, sem se importar com os homens da família, durante uma semana ou mais, para as montanhas que ela ama muito.

O pai do rapaz vem de uma família de camponeses na qual aparentemente não há caracteres fora do comum. Com o seu próprio esforço fez carreira e alcançou o cargo de alto funcionário do Estado. Por isso, se casou tarde; tinha 55 anos na época de seu primeiro filho.

O pai é uma pessoa quieta e fechada que não gosta de se expor, não gosta de falar de si e de suas questões, é muito correto, pedante e pessoalmente muito distante.

Aparência e fenômenos de expressão

Menino de estrutura física frágil, alto (11 cm acima do tamanho médio para a sua idade), magro, estrutura óssea grácil, musculatura pouco desenvolvida, a cor da pele é cinza-amarelada, a pele não apresenta frescor e turgor, sob as têmporas e partes superiores do tórax transparecem fortemente as veias do tecido subcutâneo. A postura corporal não é nada ereta, os ombros são caídos, as omoplatas salientes.

Além disso, a averiguação física não revela nada fora do comum. A face exibe traços finos, igual a um príncipe, muito diferenciados para a idade — não há mais nada de pueril.

O que chama a atenção é o seu olhar: na maior parte das vezes, quando não exibe um brilho malicioso, este se volta para o vazio, não mergulha no olhar daquele que está diante dele, estabelecendo assim a união presente no diálogo; o seu olhar parece passar somente de forma rápida, “periférica”, por pessoas e objetos. É como se “ele não estivesse presente”. Temos a mesma impressão de sua voz, que é fina e aguda, parece vir de longe. Falta a melodia normal das palavras, o fluxo natural da fala. Na maior parte das vezes fala muito devagar, fala algumas palavras isoladas de forma especialmente arrastada; a modulação se encontra elevada, a sua fala é uma salmodia.

O conteúdo de sua fala também é bem diferente do que se espera de uma criança normal: raramente aquilo que fala é uma resposta à pergunta. Com frequência é preciso repetir as perguntas diversas vezes até que o alcancem. Quando, por ventura, responde, isso ocorre da forma mais resumida possível. Muitas vezes, porém, não temos a sorte de obter uma reação sua; ou não responde ou então o faz acompanhado de negação, batidas rítmicas ou outras estereotipias conforme descreveremos mais abaixo. Repete a pergunta ou, de modo estereotipado, uma palavra da pergunta que aparentemente o impressionou; ou canta: “Não quero dizer isso, não quero dizer isso...”.

Comportamento na seção

Assim como a postura, o olhar, a voz e o modo de falar do menino revelam, à primeira vista, que as suas relações com o meio ambiente parecem ser bastante limitadas, isso se torna igualmente claro em relação ao seu comportamento no grupo de crianças. Desde o primeiro momento, e durante toda sua permanência, ele não participa do grupo, sai andando sozinho, aparentemente não nota o meio circundante. É impossível fazê-lo participar das brincadeiras de um grupo. Mas ele igualmente não consegue brincar sozinho de uma forma que faça sentido, não sabe o que fazer com os objetos. Quando lhe damos, por exemplo, blocos de montar, ele os enfia na boca e os morde ou então joga-os todos para debaixo das camas (aparentemente o ruído produzido gera uma sensação desejada).

Desse modo, faltava amplamente uma reação correta em relação a pessoas, objetos e situações, ao mesmo tempo, porém, ele estava totalmente entregue aos seus impulsos espontâneos que não se encontravam em nenhuma relação com a situação do meio circundante. O que era mais visível, eram as suas estereotipias de movimento: de repente ele começava a bater de forma rítmica em suas coxas ou de forma ruidosa na mesa, contra a parede ou em uma pessoa. Ou então começava a pular pela sala sem considerar minimamente o estranhamento dos outros. Esses impulsos amiúde vinham de forma bastante espontânea, mas às vezes eram igualmente desencadeados por determinadas situações: quando era feito algum tipo de exigência, algo que, na maior parte das vezes, ele sentia como uma invasão indesejada em sua personalidade isolada. Mesmo quando era possível fazê-lo responder e reagir por um breve momento, percebia-se rapidamente como a má vontade nele se intensificava e, em seguida, irrompia na forma desse tipo de movimentos e gritos.Por outro lado, a movimentação ou agitação a sua volta o arrastava para esse tipo de estereotipias; quando, vez ou outra, havia uma atmosfera ruidosa, alegre, inquieta, na unidade da clínica, como na hora de um jogo competitivo, era certo que em breve deixaria de acompanhar os outros e começaria a pular ou bater.

Fora isso, tinha todo tipo de hábitos estranhos e incômodos: “devorava” as coisas mais impossíveis, lápis com madeira e minas, papel em quantidades maiores (por isso, não era de se estranhar que frequentemente estava com indigestão); estava acostumado a lamber a mesa, a espalhar amplamente a sua saliva. Os atos maliciosos tão marcantes para estas crianças igualmente não estão ausentes; o menino que agora mesmo estava aqui sentado, sem forças e com um olhar ausente, de repente dá um salto com o olhar aceso e rapidamente apronta alguma: joga as coisas da mesa, prontamente dá um tapa em alguma criança — sempre procura crianças menores, indefesas, que têm muito medo dele — acende a luz ou abre a água; ou então foge da mãe ou do acompanhante e mal pode ser alcançado ou se joga nas poças de modo que fica sujo dos pés à cabeça. Essas ações impulsivas ocorrem sem nenhum apercebimento prévio, não se anunciam — e, por isso, são muito difíceis de serem controladas em termos pedagógicos; e o que, além disso, as qualifica é o fato de normalmente acontecer justamente aquilo que, na dada situação, é o mais desagradável, embaraçoso, perigoso; de modo que o menino parece ter um faro especial para isso — quando, em outros momentos, parece ter tão pouca consciência do mundo que o circunda! Em função dessa capacidade de acertar o alvo, porém, as maldades dessas crianças parecem ter tanto “requinte”.

Conforme se espera, os seus distúrbios se manifestam de modo extremo quando o meio circundante lhe faz exigências, quando se tenta ocupá-lo, instruí-lo, tanto dentro do grupo das crianças quanto quando alguém se dedica somente a ele. Apenas com especial capacidade pedagógica (ainda será falado sobre o comportamento pedagógico) é possível inseri-lo por um breve momento no grupo de educação física ou de trabalho. Além de sua inacessibilidade em relação a ordens externas, a educação física e os trabalhos não são o seu forte, pois é bastante inapto em termos motores. Não consegue descontrair o corpo, não acompanha nenhum ritmo, não domina o seu corpo. Por isso, acaba sempre correndo do grupo de educação física ou de sua mesa de trabalho, pula, bate ou sobe nas camas ou então solta alguma salmodia estereotipada.

Deparamo-nos com o mesmo tipo de dificuldades quando buscamos trabalhar sozinhos com ele. Usaremos como exemplo o seu comportamento no teste de inteligência. Por, neste caso, o teste regular ter sido inviável, iremos apresentar uma descrição de nosso método de teste no próximo caso.

Revelou-se impossível obter uma ideia de suas reais capacidades intelectuais a partir do teste: os resultados eram demasiadamente contraditórios. Parecia que o fracasso diante de certas exigências acontecia por acaso, passível de ser explicado puramente a partir de seus distúrbios de contato. Foi extremamente difícil realizar o teste. Repetidamente ele se levantava de súbito, batia na mão do condutor do teste, se jogava da cadeira para o chão e se divertia quando o colocavam de forma determinada de volta na cadeira, ria e com escárnio respondia: “Nada e ninguém!” ou repetia a pergunta de modo estereotipado ou alguma palavra sem sentido ou um neologismo. Com frequência era necessário repetir diversas vezes a pergunta e a exigência, e tinha que se ter a sorte de pegá-lo num momento no qual estava disposto a reagir — nessas horas por vezes nos deparávamos com êxitos muito além de sua idade.

Alguns exemplos: “Tentativa de dispor” (a exigência é reproduzir uma figura composta por dois quadrados e quatro triângulos feita de varinhas, que é apresentada por alguns segundos e, em seguida, removida): apesar de ter apenas passado os olhos pela figura, ele a construiu em poucos segundos de forma correta — na verdade não a construiu: ele simplesmente jogou as varinhas de modo que era possível reconhecer que se tratava da figura correta. Mas não estava disposto a posicionar as varinhas de modo adequado.

“Tentativa de reproduzir batidas” (deve-se imitar alguns ritmos em forma de batida): apesar de todo esforço, ele não estava disposto.

Capacidade de memorizar números: ele consegue facilmente reproduzir seis números e temos a nítida impressão de que poderia continuar, mas que de repente perdeu a vontade (no método de teste de Binet a reprodução vocal de seis números só é exigida para a idade de dez anos, o menino tem somente seis anos!).

Capacidade de memorizar frases: este teste igualmente não é passível de avaliação — muitas frases ele diz de modo intencionalmente errado; porém, fica nitidamente claro que poderia no mínimo realizar uma tarefa correspondente à sua idade.

Perguntas a respeito de diferenças: em relação a algumas perguntas não obtemos respostas. Em relação a outras, respostas totalmente sem sentido: (Árvore e arbusto) “tem uma diferença”; (mosca e borboleta), “pois ela tem um nome diferente”, “pois ela, a borboleta, é nevada, nevada com neve”; (a respeito da pergunta sobre a cor) “pois ela é vermelha e azul e a mosca marrom e preta”; (madeira e vidro) “pois o vidro é muito mais vítreo e a madeira muito mais de madeira”; (vaca e bezerro) “um lammerlammerlammer, um morno”; (quem é maior?) “a vaca”, “agora quero a pena de escrever”.

Por agora basta de exemplos retirados do teste de inteligência. Não obtivemos um quadro claro das capacidades intelectuais do menino através deste. Mas isso também não era de se esperar de uma pessoa que quase nunca é capaz de reagir corretamente, e sim, apenas segue os seus impulsos espontâneos, que não tem uma troca viva com o meio ambiente. Para avaliar as suas capacidades precisamos igualmente analisar as suas produções espontâneas.

Os próprios pais já informaram que frequentemente, de modo inesperado, ele os surpreendia através de comentários que revelavam uma excelente avaliação das pessoas — algo admirável já que ele mal se dava conta do meio circundante. Acima de tudo, já teria demonstrado, desde muito cedo, um interesse por números e fazer contas. Sem que jamais houvesse o esforço de instruí-lo nesse sentido — apenas ocasionalmente ele fazia perguntas a respeito desse assunto — ele não apenas teria aprendido a contar até cem ou mais, e sim saberia igualmente fazer de forma quase “lúdica” contas nesse âmbito numérico. Essas informações dos pais se revelaram como inteiramente certas; principalmente a respeito das capacidades incomuns de fazer contas (como um todo, os pais compreendem este seu filho perfeitamente bem no que tange ao seu intelecto). Também não era possível extrair de modo arbitrário os conhecimentos do menino, estes se revelavam “por acaso” principalmente ao longo das aulas particulares iniciadas por nós após a sua chegada à seção de educação especial. Antes mesmo de tentar ensinar a ele algo de modo sistemático, já dominava com facilidade a dezena, isto é, as operações matemáticas com várias dezenas. Muitas crianças inteligentes de seis anos, entretanto, conseguem, antes de qualquer instrução escolar, ir além da dezena. O que, porém, era incomum, é o que mais veio à tona ao longo do primeiro ano escolar: ele aprendeu sozinho, por assim dizer, “por acaso”, a compreender perfeitamente as frações e fazer contas com estas. Assim sendo, ele mesmo, conforme a mãe relatou, apresentou para si próprio o problema matemático — o que é maior, 1/16 ou 1/18? — e o resolveu com segurança. Ou quando perguntou-se a ele, em tom de brincadeira — no intuito de sondar os limites de seu conhecimento —, quanto seriam 2/3 de 120, a resposta correta veio de imediato: 80. Da mesma forma, ele surpreendeu os outros com o fato de compreender os números negativos — como tudo indica adquiriu essa noção por conta própria; ele informou que 3-5 era “2 abaixo de zero”. No final do primeiro ano escolar também compreendia com segurança a noção do problema de grandezas inversamente proporcionais (dois trabalhadores necessitam de tanto e tanto tempo para realizar um trabalho, quanto tempo necessitam seis trabalhadores?).

Sendo assim, podemos ver aqui o que encontraremos no caso de quase todos os autistas: um interesse especial, desenvolvido, que capacita o menino dentro de sua “especialidade” a obter êxitos totalmente fora do comum. Dessa forma, a pergunta a respeito da inteligência desses seres humanos também se esclarece um pouco mais, mesmo que agora essa resposta ainda não seja muito fácil por os achados serem tão contraditórios, de modo que avaliadores diversos, cada um partindo de seu próprio ponto de vista, chegam a conclusões totalmente opostas. Temos boas razões para considerarmos seres humanos desse tipo tanto meninos prodígios como mentecaptos!

Mas um comentário a respeito das relações pessoais do menino: à primeira vista parece que estas nem existem, como se estivessem presentes somente no sentido negativo, a partir de maldades e agressões. Entretanto, isso não se mostrou totalmente verdadeiro. Igualmente por acaso, em situações raras, revelou-se que ele sentia sim, e de forma bem clara, quem queria o seu bem e que, vez ou outra, também retribuía esse bem-querer, afirmando, por exemplo, que gostava da professora que lhe dava aula ou então tinha, raramente e por um breve instante, um acesso de ternura e abraçava uma enfermeira da seção.

Consequências pedagógicas

A partir do que foi relatado até então, pode-se concluir que as dificuldades pedagógicas tenham sido especialmente complexas nesse caso. Tomemos consciência das condições básicas que no caso da criança “normal” fazem com que esta obedeça, se adapte, aprenda — não somente o conteúdo escolar, e sim, principalmente, o comportamento adequado. Não faz parte disso, de forma alguma, em primeira linha uma compreensão intelectual da exigência. Muito antes de a criança entender as palavras do educador, quando ainda é bebê, ela aprende a obedecer — não às palavras abstratas, e sim ao olhar da mãe, ao tom de sua voz, à sua mímica e aos seus gestos, resumindo, ao jogo indescritivelmente rico de seus fenômenos de expressão. Tudo isso a criança não entende de forma consciente, e sim, ela é im-pressionada.* Encontra-se constantemente em uma relação de troca com o educador, as suas próprias reações se desenvolvem continuamente, modificando-se sempre de novo de acordo com as suas experiências positivas e negativas pelas quais passa à medida que se confronta com o mundo. É fácil compreender que, por parte da criança, a relação tranquila com o meio ambiente é a condição essencial. Em nosso caso, entretanto, justamente esse maravilhoso mecanismo de regulação se encontra gravemente perturbado. Um indício para tal é que os próprios fenômenos de expressão da criança não se dão de modo normal; já descrevemos o quão diferente é o seu olhar — através do qual tantos aspectos do mundo penetram o ser humano e tantos aspectos de seu ser se dirigem para fora —, quão diferente é a sua voz, toda a sua forma de falar, quão diferente a natureza de toda a sua motricidade. Por isso, não é de se admirar que, no caso do menino, a compreensão dos fenômenos de expressão dos outros e a reação adequada a estes se encontrem igualmente alteradas.

Consideraremos o mesmo outra vez, a partir de um ponto de vista um pouco diferente: o que força uma criança a obedecer não é, de forma alguma, em primeira linha, o conteúdo das palavras que ela compreende e elabora racionalmente, e sim, principalmente, o afeto do educador, que se expressa através das palavras. Sendo assim, quando se dá uma ordem, o que importa não é tanto o que o educador fala, isto é, o quão bem fundamentada a ordem é, o modo que este apresenta a necessidade e as consequências da obediência (e desobediência) para a criança (apenas educadores sem instinto acreditam nisso e agem de acordo), ao invés disso, o que importa é como este dá a ordem, quão poderosos são os afetos que se encontram por trás das palavras. O afeto transmitido pelas palavras é compreendido igualmente pelo bebê, pelo estrangeiro, inclusive o animal. Todos eles não são capazes — ou ainda não — de compreender o sentido das palavras.

No nosso caso, assim como em todos esses casos, a dimensão afetiva, entretanto, se encontra amplamente alterada. As descrições até então já revelaram isso. Não se compreende muitos aspectos dos seus afetos, com frequência não se sabe o que o faz rir ou pular de alegria, o que o faz atacar os outros com raiva, não se sabe quais sentimentos formam a base de suas estereotipias, o que de repente o faz ser tão carinhoso. Muitas de sua reações parecem ser abruptas, a situação não as justifica. Desse modo, a própria afetividade do menino é tão estranha que é difícil entrar em contato com o seu sentimento. Por isso, não é de se admirar que a reação frente aos afetos do educador também não seja adequada.

Realmente, é igualmente muito característico para Fritz V., assim como para todas essas crianças, o fato de não reagirem através da obediência e da tentativa de se adaptar diante de regras e proibições afetivas, raiva e aborrecimento, assim como diante de uma persuasão “amorosa” ou lisonja. Pelo contrário, reagem com negativismo, maldades e agressividade. Enquanto provas de amor, carícias e lisonjas do adulto representam algo muito agradável para a criança normal, de modo que esta se comporta bem justamente para merecer esses agrados, essas coisas são desagradáveis e irritantes para os autistas com distúrbios de contato, conforme se evidenciou no caso de Fritz e de todas as outras crianças desse tipo. E enquanto o afeto contido na ira e na ameaça por parte do educador faz, por fim, ceder o voluntarismo e a teimosia gerando a obediência adequada na criança normal, no caso de nossos autistas obtemos exatamente o resultado oposto: na maior parte das vezes, o afeto do educador representa para eles o auge do qual desfrutam com os olhos brilhando e cheios de maldade e o qual gostam de provocar. “Sou tão malcriado, pois é delicioso quando se aborrecem”, foi o que disse o menino com características semelhantes para a sua professora!

É difícil descrever o comportamento pedagógico adequado nesses casos — pois este, assim como todo real comportamento pedagógico, não é o resultado de deduções lógicas, e sim se dá principalmente por meio do instinto do educador. Ainda assim, podemos apresentar alguns pontos básicos a respeito do que se provou eficaz em relação a estas crianças.

O primeiro ponto é que todas as medidas pedagógicas precisam ser apresentadas através de um “afeto desligado”; jamais o educador pode se deixar tomar pela ira ou se aborrecer, também não pode querer ser “doce” ou se adaptar ao nível da criança. Mas realmente não basta manter a calma somente externamente, enquanto internamente estamos transbordando — algo que de fato faz sentido diante do negativismo e as maldades requintadas de crianças desse tipo! — ao invés disso, o educador precisa se manter verdadeiramente calmo, controlado e centrado internamente. Sem se impor pessoalmente à criança, precisa dar as suas instruções de modo distante e objetivo. Quando assistimos, por exemplo, a uma aula dada a uma criança desse tipo, percebemos a forma tranquila e “natural” através da qual tudo se dá. Poderíamos ter a impressão de que tudo se dá “por acaso”, que “a criança está solta”. Nada seria mais inadequado. Na verdade a condução desses psicopatas exige especial tensão e concentração, um estado especialmente centrado e uma segurança interna do educador que não é nada fácil de se manter!

Além disso, existe o perigo de o negativismo verbal dessas crianças nos levar a discussões, a querer provar a elas que estão erradas e desejar que tomem consciência. Principalmente os pais costumam tentar isso — se desgastam em discussões intermináveis que jamais levam a um objetivo. Por outro lado, o que normalmente dá certo é simplesmente cortar esse discurso negativista. Por exemplo, Fritz está cansado de fazer contas e “canta”: “Não quero mais fazer contas, não quero mais fazer contas” — a professora responde: “Você não precisa fazer conta, (e prosseguindo no mesmo tom de voz calmo) quanto é ...” Mesmo que esses meios pedagógicos nos pareçam um tanto primitivos, a experiência revela que na maior parte das vezes têm êxito.

Como um todo deve se sublinhar: mesmo que pareça tratar-se de opostos diametrais — essas crianças são tanto negativistas como especialmente sugestionáveis, muitas vezes há traços de automatismo de comando. Esse comportamento fica mais claro no caso de esquizofrênicos; também aqui encontramos unidos, em uma só pessoa, um enrijecimento negativista e um automatismo de comando; como um todo, parece que essas duas alterações da vontade se encontram intimamente associadas! Também em relação às nossas crianças percebemos sempre de novo: quando fazemos as exigências de um modo aparentemente “automático” e estereotipado, a partir de uma “salmodia” tão calma quanto elas próprias falam, então muitas vezes temos a sensação de que são forçadas a obedecer sem a possibilidade de se opor à ordem.

Outro artefato pedagógico, o de não anunciar as medidas pedagógicas como exigências pessoais, e sim enquanto lei objetiva e impessoal, será descrito em relação a outros casos, nos quais é mais fácil demonstrar esse fato.

Já foi relatado que por trás de toda essa forma distante e objetiva de se lidar com Fritz V. e outras crianças desse tipo, precisa existir um verdadeiro bem--querer se desejamos de fato ter algum êxito em termos pedagógicos. Mesmo que isso soe estranho, essas crianças possuem um faro especial para a personalidade do educador. Independentemente de quão difícil sejam, mesmo sob as condições pedagógicas mais favoráveis, elas só se deixam conduzir e instruir verdadeiramente por pessoas que não apenas as compreendam, e sim, têm real afeto por elas, bondade —.. e humor. Também para elas vale a lei do “automatismo timogênico” (Hamburger10): o comportamento do educador que se origina no ânimo [Gemüt], a sua atitude determinada pelo ânimo influencia automaticamente (por isso a expressão “automatismo timogênico”), na ausência da vontade e consciência, o humor e o comportamento da criança. Naturalmente é essencial, justamente para a condução de crianças desse tipo, o reconhecimento das peculiaridades destas e uma real experiência pedagógica — isso é óbvio. Mas também aqui a rotina fria simplesmente não basta.

O fato de Fritz V. não poder ser educado em uma turma escolar regular em função de suas consideráveis anormalidades estava de antemão claro: não apenas a agitação o irritaria muito, impossibilitando assim a sua concentração no trabalho. Além disso, qualquer turma escolar seria desorganizada por ele e qualquer trabalho, seu como o dos outros, destruído. Só de se pensar em seu negativismo e seus impulsos desenfreados de se movimentar...! Por isso, tomamos a medida de o menino receber aulas individuais de uma funcionária da seção (com a autorização do conselho escolar da cidade). Que isso também não era fácil fica evidente após o que foi dito até então. Nem mesmo na hora de fazer contas, conforme talvez se pudesse esperar em função de seu especial talento para a matemática... Naturalmente, quando se tratava de um problema que naquele momento o interessava (vide os exemplos mencionados acima), ele “engatava” e nos surpreendia através de uma compreensão rápida e eficaz; mas as contas “comuns”, o seu aspecto mecânico, exigiam um esforço árduo. Veremos igualmente em relação aos outros casos que mesmo tratando-se das crianças mais inteligentes desse tipo, a mecanização, isto é, o ajustamento a processos de pensamento habituais era extremamente dificultoso. Conforme era de se esperar de antemão, foi muito difícil ensinar-lhe a escrever; somava-se aqui às suas dificuldades gerais de se ajustar, o desajeitamento motor que o limitava muito. Em suas mãos travadas, o lápis não obedecia. Acontecia sempre de novo de ele de repente borrar com largos movimentos a página inteira, furar o caderno com o lápis de chumbo, rasgar a página ou o caderno. Por fim, a única forma de lhe ensinar a escrever foi a professora desenhar para ele letras e palavras com lápis de chumbo vermelho e ele escrevia por cima com o seu lápis seguindo assim o traçado correto. Até então, porém, a escrita permanecia borrada e feia. Foi igualmente muito difícil mecanizar a ortografia. Ele estava habituado a escrever a frase inteira de uma vez só, sem separar as palavras isoladas. Atualmente consegue escrever quase todas as palavras de forma correta quando é forçado a prestar atenção. Sozinho, porém, comete os erros mais estúpidos. A aprendizagem da leitura, principalmente a junção dos sons, se deu de modo mais ou menos dificultoso. As aulas de ciências biológicas pareciam totalmente impossíveis; quem observava uma aula dessas tinha a impressão de que ele nem prestava atenção, apenas fazia travessuras. Tanto mais nos surpreendíamos quando percebíamos, em ocasiões diversas, por exemplo, através dos relatos da mãe, que ele assimilou uma parte grande da matéria e a elaborou de forma eficaz. É significativo para Fritz V., assim como para outras crianças desse tipo, o fato de aparentemente perceberem muitas coisas somente a partir de um “campo de visão periférico”, uma “atenção sem foco” — e, mesmo assim, as transformarem em conteúdo mental. A atenção ativa e passiva se encontram fortemente alteradas, o seu saber só pode ser reproduzido com grandes dificuldades e, apesar disso, algo que com frequência só descobrimos por acaso, possuem ricas vivências internas, um bom pensamento lógico e uma capacidade de abstração especialmente boa. Muitas vezes temos a impressão de que, igualmente no caso de pessoas totalmente normais, uma distância aumentada em relação ao meio circundante constitui diretamente a precondição para uma boa abstração. Mais em diante retornaremos a essa questão.

Mesmo que, conforme se é levado a acreditar a partir dessas descrições, as aulas envolvessem grandes dificuldades, tivemos o êxito de apoiar este menino de tal forma que, no fim do ano letivo, ele foi capaz de realizar uma prova da escola pública com sucesso. A situação de exceção da prova, entretanto, foi suficientemente grande para que se comportasse razoavelmente bem e demonstrasse inclusive uma boa concentração no trabalho. Na hora de fazer contas naturalmente aturdiu os examinadores. Atualmente Fritz V. cursa — sem que tenha perdido nenhum ano escolar até então — como aluno externo a terceira série do ensino fundamental. Se e quando ele será capaz de frequentar a escola pública, não sabemos.

Considerações de diagnóstico diferencial

Diante das reações altamente anormais presentes no comportamento do menino Fritz V. devemos nos confrontar com a pergunta se aqui não se trata de um transtorno de personalidade mais grave ao invés de uma simples psicopatia. Principalmente duas doenças estão em questão: uma esquizofrenia infantil e um estado pós-encefálico.

Certamente alguns aspectos de Fritz V. — a considerável limitação de contato, o automatismo, as estereotipias — lembram quadros esquizofrênicos. Opõe-se, entretanto, a isso o fato de o estado do menino não revelar um decurso, nada no sentido de um processo; falta o início característico da esquizofrenia infantil com os seus sintomas alarmantes, agudos (intensa angústia, alucinações) — não se percebe nada no sentido de um desvario — falta a degradação progressiva da personalidade; não há nada disso no caso de Fritz V.: apesar de ele revelar uma personalidade bastante anormal, esta permanece sempre igual e as suas anormalidades parecem, inclusive, se originar amplamente nas anormalidades do pai, da mãe e das famílias destes. Essa personalidade revela um desenvolvimento constante que como um todo acaba levando a uma melhor adaptação às exigências do meio circundante. Por fim, a impressão geral complexa, impossível de ser explicada e precisada de modo mais amplo, é bem diferente quando estamos diante de um esquizofrênico ou diante de uma criança desse tipo: no primeiro caso, temos a sensação sinistra da destruição de uma personalidade, que de alguma forma ainda pode ser sustentada em termos pedagógicos, mas que é impossível de ser compreendida emocionalmente, imprevisível e na verdade inacessível. No segundo caso, entretanto, há numerosas relações autênticas, uma compreensão de ambos os lados, uma real possibilidade de influência pedagógica autêntica — apesar de esta ser dificultosa, ela pode ser obtida através de determinados métodos.

Precisa-se, entretanto, igualmente aqui, considerar a possibilidade de se tratar de um distúrbio pós-encefálico da personalidade. Mais em diante explicitaremos que há certas semelhanças entre os psicopatas autistas e algumas crianças que apresentam distúrbios em função de um traumatismo de parto ou uma encefalite. Deve-se dizer aqui que também para essa possibilidade não existe fundamento, pois a anamnese não apresenta informações desse tipo; faltam principalmente outros sintomas sempre presentes no caso de pessoas que sofrem de distúrbios pós-encefálicos (apesar de, por vezes, serem facilmente ignorados). No caso de Fritz V. faltam os mais leves sintomas neurológicos ou vegetativos como, por exemplo, estrabismo, rigidez facial, inclusive leves paresias espásticas, salivação aumentada ou algum tipo de sinais endócrinos.

Referências

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  • Hamburger, F. (1939). Die Neurosen des Kindesalter [As neuroses da idade infantil]. Viena: Urban & Schwarzenberg.
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  • Jaensch, E.R. Grundformen menschlichen Seins [Formas básicas do ser humano]. Berlim: Elsner.
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  • Jung, C.G. Psychologische Typen [Tipos psicológicos]. Zurique e Leipzig: Rascher.
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  • Schneider, K. (1934). Die psychopathischen Persönlichkeiten [As personalidades psicopatas]. Leipzig e Viena.
  • Schröder, P. (1931). Kindliche Charaktere und ihre Abartigkeiten, mit erläuternden Beispielen von Heinze [Caracteres infantis e os seus desvios com exemplos elucidativos de Heinze]. Breslau: F. Hirt.
  • Schröder, P. (1938). Mschr. Psychatr. 99 [Mensário psiquiátrico].
  • 2
    Schneider, Kurt: Die psychopathischen Persönlichkeiten [as personalidades psicopatas] Leipzig e Viena, 1934.
  • 3
    Schröder: Mschr. Psychatr. 99 (1938) [mensário psiquiátrico].
  • 4
    Schröder: Kindliche Charaktere und ihre Abartigkeiten, mit erläuternden Beispielen von Heinze [Caracteres infantis e os seus desvios com exemplos elucidativos de Heinze.] Breslau: F. Hirt 1931.
  • 5
    Heinze: Z. Kinderforsch. 40 (1932) [Jornal para pesquisa infantil].
  • *
    Asperger utiliza a expressão Gemüt, palavra de difícil tradução para o português. Segundo o dicionário etimológico Duden (Duden, Das Herkunftswörterbuch: s/d) Gemüt é composto pelo prefixo Ge e a palavra Müt que é derivada de Mut [coragem]. O dicionário alemão — alemão Duden (Duden online http://www.duden.de/woerterbuch acesso em 16.1.2015) define esse termo como: 1. A totalidade de todas as forças psíquicas e mentais de uma pessoa. 2. A sensibilidade mental- psíquica no sentido de uma receptividade para impressões que geram emoções. 3. O ser humano (em relação ao que move este, mental e psiquicamente). Julgamos que a palavra mais próxima em português seria ânimo que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Houaiss, Villar e Mello Franco: 2009) define como espírito pensante, alma, índole natural, gênio, temperamento, coragem, manifestação efetiva de desejo, disposição de espírito etc. (N. da T.)
  • 6
    Schröder op.cit. e Heinze: Z. Kinderforsch. 40 (1932).
  • *
    No original: Triebimpulse. Ao longo de todo o texto optamos por traduzir a palavra Instinkt e as suas derivações por instinto e a palavra Trieb e suas derivações por pulsão. (N. da T.).
  • 7
    Klages, Ludwig: Grundlegung der Wissenschaft vom Ausdruck [Fundamentação da ciência da expressão] Leipzig: Johann Ambrosius Barth 1936.
  • 8
    Bleuler: Lehrbuch der Psychatrie, 5. Aufl.,[Compêndio de Psiquiatria, 5.ed.] p. 287s.Berlim: Springer 1930.
  • 9
    Bleuler: Das autistische undisziplinierte Denken [O pensamento autista indisciplinado], 3 ed. Berlim: Springer 1922.
  • *
    No original beeindruckt [impressionada] (N. da T.)
  • 10
    Hamburger: Die Neurosen des Kindesalter (as neuroses da idade infantil) Viena: Urban & Schwarzenberg, 1939.
  • Citação/Citation: Asperger, H. (2015, junho). Os “psicopatas autistas” na idade infantil. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 314-338.

Editado por

  • Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. German E. Berrios

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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