Neste artigo propomo-nos a construir uma reflexão teórico-prática sobre os modos de vulnerabilidade produzidos ou desencadeados nas dimensões territorial, econômica, histórica, social, cultural e psicopolítica da experiência humana, cujos efeitos se entrelaçam nas histórias dos sujeitos no interior da escola. Para tal discussão, apresentaremos alguns autores que abordam o conceito de vulnerabilidade. Em seguida, proporemos um conceito de vulnerabilidade que a diferencia do fenômeno do desamparo, mas que com ele se relaciona. A partir disso, apresentaremos algumas vinhetas oriundas de uma pesquisa científica1 que nos permitiu indagar como tais fenômenos se apresentam dinamicamente no contexto escolar. Concluímos que a vulnerabilidade se apresenta na escola como atualizações do desamparo, matizadas pelas condições ambientais e pelo desejo do sujeito, o qual busca modos de enfrentamento do paradoxo entre alienação e desalienação.
Palavras-chave: Vulnerabilidade; desamparo; sofrimento; sobrevivência psíquica; psicanálise
Resumos
In this article we propose to make a theoretical-practical reflection on the modes of vulnerability that can be produced or triggered in the territorial, economical, historical, social, cultural, and psychopolitical dimensions of human experience, whose effects are intertwined with the stories of the subjects inside the school. For such a discussion, we will present some authors who approach the concept of vulnerability. Then, we will propose a concept of vulnerability that differentiates it from the helplessness phenomenon, but is related to it. From this, we will present some vignettes from a scientific investigation that allow us to investigate how such phenomena dynamically present themselves in the school environment. We have concluded that the vulnerability presents itself at school as new forms of helplessness, nuanced by environmental conditions by the subject’s desire, whom seeks to find ways to face the paradox between alienation and disalienation.
Key words: Vulnerability; helplessness; suffering; psychic survival; psychoanalysis
Dans cet article, nous nous proposons de construire une réflexion théorico-pratique sur les modes de vulnérabilité produits ou déclenchés dans les dimensions territoriale, économique, historique, sociale, culturelle et psychopolitique de l’expérience humaine, dont les effets sont imbriqués dans les histoires des sujets à l’école. Pour cette discussion, nous présenterons quelques auteurs qui ont abordé le concept de vulnérabilité. Nous proposerons ensuite un concept de vulnérabilité qui se différencie du phénomène d’impuissance, mais qui lui est apparenté. Sur cette base, nous présenterons quelques vignettes issues de la recherche scientifique qui nous ont permis d’étudier la façon dont ces phénomènes se présentent de manière dynamique dans le contexte scolaire. Nous concluons que la vulnérabilité se présente à l’école comme des actualisations de l’impuissance, nuancées par les conditions environnementales et le désir du sujet, qui cherche des moyens de faire face au paradoxe entre l’aliénation et la désaliénation.
Mots-clés: Vulnérabilité; impuissance; souffrance; survie psychique; psychanalyse
En este artículo nos proponemos construir una reflexion teórico-práctica sobre los modos de vulnerabilidad que pueden ser producidos o desencadenados en las dimensiones territorial, económica, histórica, social, cultural y psicopolítica de la experiencia humana, cuyos efectos se entrelazan en las historias de los sujetos dentro de la escuela. Para esta discusión, presentaremos algunos autores que abordan el concepto de vulnerabilidad. Luego, propondremos un concepto de vulnerabilidad que la diferencia del fenómeno de la indefensión, pero que se relaciona con él. A partir de ello, presentaremos algunas vinetas oriundas de una investigación científica que nos permitan indagar cómo tales fenómenos se presentan dinamicamente en el contexto escolar. Concluímos que la vulnerabilidad se presenta en la escuela como actualizaciones de la indefensión, matizadas por las condiciones ambientales y por el deseo del sujeto, el cual busca modos de enfrentamiento a la paradoja entre alienación y desalienación.
Palabras clave: Vulnerabilidad; indefensión; sufrimiento; supervivencia psíquica; psicoanálisis
Sobre as vulnerabilidades: uma condição multidimensional da pobreza na experiência humana
Nos últimos anos, para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a literatura acadêmica e oficial tem empreendido um esforço no sentido de estender a compreensão do fenômeno da vulnerabilidade para além da dimensão da pobreza e da insuficiência de renda monetária (2018, p. 9).
Prowse (2003) refere-se à vulnerabilidade como suscetibilidade à pobreza, enquanto outros autores a caracterizam como uma das dimensões ou sintoma de pobreza. Outras expressões têm também sido utilizadas para marcar a distinção entre pobreza e vulnerabilidade: vulnerabilidade social (Ilo, 1977; Ipea, 2018; Rocha, 2003); pobreza multidimensional (Ravallion, 2010 e 2011), ou mesmo desenvolvimento humano (Sen, 1999 e 2001). A expressão “vulnerabilidade social”, assim como os conceitos de necessidades básicas insatisfeitas (Feres & Mancero, 2001; Ilo, 1977; Rocha, 2003) ou pobreza multidimensional vêm se popularizando à medida que cresce o reconhecimento de que a categoria pobreza, sem estar devidamente qualificada, é limitada para expressar as complexas situações de mal-estar social a que estão sujeitas diversas populações, mundo afora. Os outros determinantes, além da renda monetária, seriam as condições de acesso aos serviços públicos; a qualidade do meio ambiente; ou, ainda, os graus de liberdade individual e política que uma sociedade oferece (Barros, Carvalho & Franco, 2006; Codes, 2008; Rocha, 2000; Sen, 2001).
Na tentativa de reconceituação da vulnerabilidade, temos o modelo desenvolvido por Castel (1994 e 1998), em que ele associa a vulnerabilidade à desfiliação. Segundo o autor, a inscrição dos indivíduos na estrutura social se faz por meio de sua inserção em dois campos, simultaneamente: o mundo do trabalho, com seus riscos e proteções; e o das relações de proximidade, representadas pelas relações familiares, de vizinhança e demais relações sociais e comunitárias, que proporcionariam ao indivíduo proteção e segurança.
Castel (1998) tipifica três zonas sociais de inserção: a zona de integração, que combina as inserções em trabalho estável com proximidades fortes; a de desfiliação, situada no polo oposto e marcada pelo não trabalho e pelo isolamento relacional — caso dos indivíduos levados à mendicância, dos sem-teto, entre outros —; eade vulnerabilidade, localizada entre os dois polos e delimitada pela inserção precária no trabalho e pela fragilidade das relações de proximidade. Segundo Castel (1998), portanto, a expressão “vulnerabilidade social” descreve a condição social daqueles indivíduos situados entre a integração e a desfiliação social. O autor adverte que os indivíduos podem transitar entre essas zonas ao longo da vida, embora chame a atenção para o “lugar estratégico” da zona de vulnerabilidade: “É um espaço social de instabilidade, de turbulências, povoado de indivíduos em situação precária em sua relação com o trabalho e frágeis em sua inserção relacional” (p. 26).
De acordo com o autor, essa zona teria sofrido grande ampliação desde as reformas neoliberais do final do século XX, que deslancharam processos de flexibilização e precarização do trabalho e reduziram fortemente os direitos e as proteções garantidos aos indivíduos pelo seguro social desde o início da industrialização. Nessas circunstâncias, os indivíduos estão sujeitos a riscos, sem a devida proteção frente a alguns eventos, tais como enfermidades, desemprego e morte.
Castel aponta para a noção de risco social, evidenciada nos primórdios das sociedades industriais, ao final do século XIX, que deriva precisamente do reconhecimento de que esses eventos de risco eram muito regulares e comuns ao mundo do trabalho assalariado e não constituíam, portanto, um problema individual. Assim, consequentemente, por serem riscos inerentes à dependência do trabalho assalariado, caberia à sociedade e ao “mundo do trabalho” solidarizar-se com os trabalhadores quando estes fossem impedidos de exercê-lo por doença, velhice, invalidez ou morte. Daí a invenção do seguro social, instituído com base num fundo comum, financiado de forma compartilhada por trabalhadores, empresários e Estado (Ewald, 1996).
Em decorrência, a vulnerabilidade social de Castel (1998) dialoga em grande medida com o conceito de risco social, que designa a situação do trabalhador desprovido das proteções clássicas do mundo do trabalho. No entanto, podemos pensar a vulnerabilidade como algo que não apenas extrapola a suscetibilidade relativa à distribuição de renda, ou à rede de proteção do mundo do trabalho, ou ainda à instabilidade das teias relacionais. Podemos problematizá-la em função de como ela se enlaça com o desamparo que nos afeta a todos, como sujeitos.
O desamparo original tratado por Freud refere-se à estrutura do inevitável mal-estar da condição humana, ou seja, a ruptura que causa a dor de existir, a incompletude, a falta. O sujeito humano — um conceito construído por Rosa (2004, p. 339) — luta a cada instante para se conservar na existência, suportando as frustrações, as privações e, até mesmo, o gozo das satisfações. Em outras palavras, trava uma luta constante para lidar com o que se define como uma marca originária e indelével, a cesura que, como afirma Bion (1981), é ruptura e continuidade, algo que se instaura entre o pré-natal e o pós-natal, que comporta “ideias que não podem ser expressas mais vigorosamente porque elas estão enterradas no futuro que ainda não aconteceu, ou enterradas no passado que está esquecido, e que mal podemos dizer pertencerem àquilo que chamamos pensamento” (p. 126). Winnicott (1999), por sua vez, apresenta o desamparo em termos de ausência (ou insuficiência) de holding, ou sustentação física e/ou psíquica de um Outro, para a experiência de dependência, condição também estrutural, que vai da dependência absoluta, quando do nascimento, para a dependência relativa, e ruma à independência (que, ainda segundo o autor, é sempre uma condição de interdependência). O desamparo, então, diz também da impossibilidade de se contar com recurso do outro em momento de incapacidade de expressar, por meios comunicativos, suas carências e necessidades (Archangelo & Villela, 2019).
Desamparo Primordial: da diferença singular à condição plural do mal-estar na civilização
Haveria, portanto, uma diferença entre desamparo e toda sorte de vulnerabilidade (Betts, 2014, p. 10). O primeiro estaria no singular, pois se trata de um conceito metapsicológico e de uma condição estrutural primordial do ser humano: a de ruptura, dependência e falta. Já as vulnerabilidades seriam plurais, inúmeras, eventualmente transitórias e mutantes, oriundas de ameaças que vêm de diferentes direções e que mobilizam e atualizam mais ou menos intensamente a necessidade de sustentação derivada da condição de dependência e, portanto, de desamparo, ou as ideias “enterradas no futuro e no passado” e que mal chegam a constituir pensamento.
No texto “Mal-estar na civilização” (1929/1987b, p. 96), Freud afirma que seguem em três direções as ameaças e o desamparo: da fragilidade e do sofrimento do próprio corpo; do mundo externo e das forças da natureza; e das insatisfações ou da violência desencadeada pelas relações com os outros. Portanto, podemos pensar que, mesmo em Freud, o desamparo primordial, por si só, não produziria modos de vulnerabilidade; esses dependeriam de como as ameaças provenientes das três direções se apresentam — sua intensidade, frequência, duração —, como são acolhidas pelo mundo interno e externo, com que recursos e em que medida fazem o sujeito atualizar e reviver a experiência original de desamparo. Freud, portanto, não diferencia desamparo de vulnerabilidade, embora possamos propor, a partir dele, tal diferenciação. A nosso entender, ela permite o exame mais detalhado da dialética que o sujeito do inconsciente deve enfrentar, a cada nova experiência, entre aspectos próprios, originários e inalienáveis, e aspectos contingenciais.
Concordamos com os autores citados, que o catastrófico da experiência humana pode se articular com a ruptura inscrita no desamparo estrutural e, desse modo, confrontar o sujeito com o trauma desse real irrepresentável que a cesura comporta. É nesse confronto que as distintas formas de reagir à catástrofe são mobilizadas e podem (ou não) produzir modos de vulnerabilidade diversos. A partir de dentro de tal confronto o sujeito recorre aos recursos internos e externos que estão a seu alcance — de um lado, fornecidos ou sonegados pela estrutura social; de outro, processados internamente ou não, pelo sujeito — para produzir uma representação acerca de sua experiência. Quanto mais capaz de fazer uso de tais recursos e de produzir representações sobre o confronto com a catástrofe, menor será sua condição de vulnerabilidade. Inversamente, quanto menos capaz, maior a vulnerabilidade.
Definimos, portanto, vulnerabilidade como a relação entre os modos mediante os quais o desamparo original se reapresenta na atualidade da experiência do sujeito e os recursos disponíveis, interna e externamente, para se lidar com ele nos diferentes momentos da vida. Sua natureza, duração, intensidade, bem como as formas e as cores que assumem, são determinadas pelas relações que a pessoa estabelece, pelos lugares sociais pelos quais pode ou não circular e aos quais sente pertencer, por seus laços de interdependência que se definem pela função que desempenha na cadeia de relações da qual é um dos elos, do qual alguém depende e de que ela também depende.
Embora Castel (1998) afirme que seja possível o trânsito entre a integração e a desfiliação, passando pelas zonas de vulnerabilidade, Costa e Endo (2014) chamam a atenção para o alerta que Norbert Elias, já no fim dos anos 30 do século passado, fazia: em função de tal interdependência, a mudança na vida de uma pessoa não depende de uma escolha individual, pois é limitada pela função que ela desempenha nessa rede dinâmica chamada sociedade. Segundo os autores mencionados, o sociólogo alemão afirmaria tratar-se mais de uma mobilidade de um ponto a outro dentro daquilo que sua função permite do que de independência para escolher qual posição ocupar (Elias, citado por Costa e Endo, 2014, p. 1).
Nosek (2022) permite-nos adicionar um componente cultural e estético à possibilidade relativa e limitada de mobilidade na rede dinâmica entre a sociedade e as pessoas que a constituem. Diz ele:
Lembrei como, na sequência de um bom concerto, trabalho melhor durante dias. Lembrei dos imensos prazeres que todo âmbito da cultura pode trazer, na poesia, nas artes plásticas, nas canções, em ensaios que me desafiam e tantos outros [...[] É frequente em nosso meio a ideia da produção de pensamento e dos sonhos numa relação entre pares, numa relação continente-contido, e sempre me pergunto qual e como seria o continente do continente. [... ] Penso que toda a cultura se torna continente do continente, e nessa circunstância se desenvolve nosso trajeto pela vida — e assim é com o conjunto da sociedade e da cultura. (p. 1)
Em que pese a relevância dos determinantes estruturais, sociais e culturais nos processos de delimitação do grau de mobilidade do sujeito em seu ambiente, devemos sempre ter em mente o caráter paradoxal de tais processos. Embora em certa medida perversamente voltados à alienação do sujeito, carregam em si o germe de sua desalienação, visto que o colocam frente a frente com a falta, a incompletude e a carência que o constituem e que acabam por exigir dele alguma tomada de posição.
Voltando à definição inicial de reapresentação do desamparo original que nos afeta a todos, podemos afirmar, portanto, que todos apresentamos algum grau de vulnerabilidade. Contudo, ao se considerar a posição no mundo do trabalho, na rede de produção e, em termos amplos, no que Nosek chama de continente do continente, podemos compreender por que não se trata de uma, mas de infinitas vulnerabilidades, e elas são tão mais severas e duradouras quanto mais assujeitadas, inferiorizadas e desprovidas de continente do continente as pessoas estiverem.
Quando Castel (1998) descreve a seguridade social como a solidarização do Estado e dos empresários com os riscos de desfiliação que se abatem sobre os trabalhadores, decorrentes das desigualdades no mundo do trabalho pós-industrial, de certo modo ele nos permite conceber a seguridade social como um dos braços do continente do continente, nos termos utilizados por Nosek (2022). Além disso, podemos considerá-la uma preocupação social que faria eco às experiências de preocupação materna, conforme Winnicott (1971), que permite à mãe se antecipar às necessidades do bebê. Os riscos da desigualdade são conhecidos a priori, e as ações para evitá-los são igualmente passíveis de antecipação, mas nem sempre isso acontece. Conforme Archangelo (2010),
In the process of constitution and discovery [of ourselves], two paths necessarily cross: one that meets the needs of the subject; and one that orchestrates what society has to offer the subject.
At least three types of societal provision can be discerned: (1) that which extends to and meets an individual’s need; (2) that which does not meet the need and is, therefore, a nonoffer; and, finally, (3) that which imposes on the need a predetermined response, as it is more aligned with social policies or with the intrinsic demands of the social dynamic than with the need of the subject. It could be said that it is an offer that aims at an abstract rather than a real need. (p. 316)
A depender da qualidade e da abrangência de tal seguridade, ela ainda pode ser alarmantemente insuficiente, como poderemos notar na vinheta apresentada mais adiante. Ou seja, podemos ter o continente do continente obstruído ou praticamente inexistente.
Se, conforme Costa e Endo (2014), Norbert Elias defende que a estrutura social e a estrutura psíquica se dão no “entre” — alteridade que antecede a estruturação psíquica e transformação que a pessoa opera nos elos que o une aos demais em sociedade —, podemos também afirmar que as vulnerabilidades se dão no entre: entre o lugar ocupado pela pessoa, a responsabilidade social do Estado, das instituições e das demais pessoas que a cercam, e a responsabilidade do sujeito diante de tais determinantes que o atravessam. Em suma, a vulnerabilidade se dá entre o continente e o contido, bem como entre o continente e o continente do continente.
Para dialogar com os autores, propomos pensar a pessoa na posição do sujeito e na dialética do desejo e da demanda. Para tal, faz-se necessário indicarmos que o processo de alienação do sujeito é “não todo” e, desse modo, efeitos alienantes do lugar que o sujeito ocupa numa estrutura social influenciam, mas não determinam suas escolhas.
É de importância crucial que possamos esclarecer que as diferentes vulnerabilidades sejam identificadas, pois elas dizem desses “entres”, do lugar do sujeito, daquilo que a ele é reservado, do tamanho de nossa responsabilidade social diante da nossa vulnerabilidade e da alheia. Uma delas é o que observamos sob a forma de vulnerabilidade social, territorial, econômica, histórica e psicopolítica — a exclusão escolar.
A exclusão escolar: de quem é a responsabilidade? Um dos efeitos produzidos pelas vulnerabilidades
Interessa-nos, deste ponto de vista, pensar as insatisfações, as ameaças e as violências que se apresentam no contexto escolar, sejam aquelas produzidas e desencadeadas nesse mesmo ambiente, sejam aquelas vividas em seu exterior, mas que ali ganham expressão e reivindicam significação. Em outras palavras, almejamos problematizar como o ambiente escolar se porta frente às violências sociais, históricas, físicas etc.: se a combate, ignora ou reforça e reproduz, bem como indagar se, e como, promove repertório suficientemente rico para os processos de representação e de produção de sentido e, assim, de construção de mecanismos de ação necessários à compreensão e ao enfrentamento das vulnerabilidades.
As vulnerabilidades são caracterizadas no entrelaçamento de dimensões física, econômica, histórica, social, cultural, psicológica e política, que, por impor barreiras e dificuldades ao desenvolvimento de recursos para lidar com o desamparo originário, conspiram, adicionalmente, contra as defesas que protegem o sujeito do sofrimento cotidiano e/ou esporádico. Trata-se, portanto, de um fenômeno psicopolítico que extrapola o âmbito individual, pois depende de condições que devem, por suposto, ser garantidas de forma equânime e, por serem ofertadas de forma desigual, impõem aos diferentes sujeitos desafios objetivos distintos e produzem efeitos subjetivos e no modo de viver igualmente muito diversos.
Podemos elencar alguns aspectos que, a depender do modo como a escola os aborda, podem impactar construtiva ou destrutivamente a experiência do aluno na escola.
A localização geográfica da escola pode ser determinante tanto para se constituir uma rede estratégica de cooperação com o entorno e a comunidade, como para marginalizar o espaço e aqueles que o ocupam. Nesse segundo caso, pode ser colocada em curso uma política de higienização, em que critérios tácitos ou explícitos são utilizados para a segregação territorial de determinadas unidades escolares e de determinados grupos ou alunos delas provenientes.
Tal segregação territorial apresenta, em geral, estreita correlação com o nível socioeconômico dos usuários dos serviços, mas não apenas com ele. Podemos identificar outros determinantes de segregação, tais como processos migratórios familiares, que envolvem preconceitos regionais; composição e empregabilidade dos responsáveis pelos alunos; condições de moradia e de circulação na cidade; e qualidade da estrutura da escola. Em outros termos, podemos afirmar que a segregação emoldura o contexto social dos usuários, no interior do qual eles constroem sua visão de mundo, o que, por sua vez, delineia significados e produz sentidos que afetam os recursos disponíveis para compor sua ideia de “eu”, as ações, os modos de relacionar-se e o modo de viver dos sujeitos.
Eles podem ser reconhecidos ou excluídos por uma política higienista, formando um complexo que opera pela identificação com as condições produtoras de vulnerabilidades. As operações realizadas dessa forma comportam atos infra-cionados, isto é, fracionados em operações lógicas consideradas inferiores, ou seja, as infra-ações. Delas, por sua vez, é subtraído o valor ético-moral, o que estabelece para todas as ações do sujeito humano a qualidade de inferioridade. Na zona de vulnerabilidade descrita por Castel (1998), a insegurança social e a fragilidade dos laços de relação se ligam ao sentido de inferioridade que inibe ou distorce o desenvolvimento de defesas ou recursos internos para se lidar com o desamparo.
Daí em diante, será necessário construir estratégias possíveis de sobrevivência, pois, na dimensão política, o ato definido como infracionado é interpretado como desqualificado e incluído num campo jurídico que o ascende a um âmbito do discurso moral da subclasse (moral underclass discourse) (Levitas, 2000), sem considerar a configuração ético-política no interior da qual foi construído.
Os atos infracionados, em sua condição predeterminada de produto de uma lógica inferior, funcionam, recorrentemente, como obstáculo para a experimentação de relações com objetos totais (Klein, 1991), pois produzem um efeito de afastamento e repulsa do objeto pelo sujeito. O objeto parcial é circunscrito em um registro que, cristalizado, induz à repetição e, assim, ao ataque ao passar do tempo e à inanição dos processos de desenvolvimento. A destruição do tempo promove a invenção de sujeitos que, assujeitados, são a-históricos.
Esses sujeitos são rapidamente sequestrados pelo discurso científico, aqui representado pelo discurso pedagógico que procuram equacionar o impasse, deslocando o problema da “a-historicidade” criada pela lógica infracional para o campo da lógica da psicopatologia e/ou do distúrbio de aprendizagem. Isso, por sua vez, só reforça a produção das vulnerabilidades, dado que o efeito do ato infracionado será categorizado como patológico pelos discursos aqui compreendidos como instrumentos de poder que operam a lógica da normalização.
Esse modo de resolução reducionista coloca o sujeito humano numa condição de vulnerabilidade psicopolítica e pedagógica, ou seja, em risco, como o de humilhação, exclusão e/ou segregação operacionalizada pelas diferenças sociais (Souza, 2013).
O dilema de Paulo: a ausência do continente estrutural ou ser continente do continente
Apresentaremos algumas vinhetas sobre Paulo2 e sua professora, construídas a partir de uma experiência de sala de aula numa Instituição Municipal de Ensino da cidade de Campinas, no Estado de São Paulo. Buscamos dialogar com sua história a partir da voz da professora, voz que, em muito, ecoa a de todos nós, que ensinamos e aprendemos e somos representados no e pelo discurso pedagógico.
Paulo é assim apresentado por sua professora:
Desde o primeiro dia de aula, Paulo sempre esteve muito ausente da sala, faltava com muita frequência, abandonou as aulas por um tempo e retomou a ida para a escola devido às intervenções do Conselho Tutelar. Sempre que reaparecia na escola, questionava-o do motivo de tantas faltas, o que estava acontecendo. Ele raramente respondia. Às vezes dizia que tinha perdido a hora, outras que a mãe não o acordou e outras porque não estava com vontade. Quando se ausentava, eu perguntava dele para os colegas, pedia que enviassem recado para ele dizendo que sentíamos sua falta e que a escola era importante e que ele precisava voltar.
[...]
Um dia me disse que não tinha vindo porque os pais tinham saído para trabalhar na lavoura e precisou ficar com a irmã em casa, senão alguém poderia fazer mal a ela.
Podemos perguntar o que significa, para Paulo, essa ausência ou presença da e na sala. Estar ausente é diferente de faltar à aula, de abandonar a escola por um tempo. São enunciações distintas, pois o aluno pode ocupar fisicamente uma carteira na sala de aula e, ainda assim, estar ausente. Por outro lado, a falta pode deixar um vazio na carteira, que o presentifica na mente da professora. Ao tomar a palavra e essencialmente afirmar a necessidade e a obrigatoriedade de frequência à escola, o Conselho Tutelar estabelece um único viés para observar a relação complexa entre faltar e estar ausente. Ao fazê-lo, ignora a dialética entre ausência e presença, e, também, a reflexão sobre o sentido da escola na vida de Paulo. Insistimos na ideia de que a escola é importante para todos, porém tendemos a considerar tal importância a partir de critérios preestabelecidos: desenvolvimento cognitivo, formação de cidadão, sociabilização, potencial para o mundo do trabalho. Certa patologização da ausência à escola, em parte herança dessa visão higienista já mencionada, talvez obstrua a pergunta necessária: como tal importância é construída (ou não) na experiência de um aluno como Paulo? Por quais meios ele convoca a escola a tornar-se capaz de reconhecer sua presença? Pode a falta à aula ser considerada um desses meios?
A estrutura social sonega a Paulo e aos demais elos da cadeia relacional a que pertence qualquer respaldo e atribui a ele certa função nessa cadeia de interdependência. Portanto, se olharmos a decisão de Paulo de não ir à escola para ficar com a irmã à luz da estrutura social, podemos afirmar que, na ausência de um continente estrutural, o menino se vê diante de um dilema: usufruir ele mesmo de um continente, frequentando as aulas, desenvolvendo alguma competência cognitiva, ampliando e aprofundando seu contato com o mundo do conhecimento e da cultura, ou operar o deslocamento de se tornar, ele mesmo, um continente para a irmã. Como dito anteriormente, nessa cena fica evidente que não se trata de uma livre escolha, mas de uma mobilidade limitada que apenas dá contorno distinto à vulnerabilidade daquele grupo familiar — ficar sem escola ou deixar outra pessoa sem proteção. Em outras palavras, perder ou perder.
Se pensarmos na relação entre desamparo e vulnerabilidade, e o modo como essa dá forma atual àquele, a vulnerabilidade de Paulo à evasão escolar pode representar algo bastante significativo para ele. A preocupação constante da professora com ele, evocada pelas faltas recorrentes e comunicada por meio dos recados da professora levados pelos colegas até o menino, pode reapresentar a Paulo a possibilidade de experimentar uma preocupação da professora para com ele que, com sua presença, talvez ele não tivesse tido a oportunidade de experimentar. Ou seja, pode reforçar a presença de um continente para Paulo, mesmo quando ele está fora da escola, em virtude da necessidade de ser ele mesmo o continente para a vulnerabilidade da irmã. Podemos remontar essa dialética entre presença e ausência ao que o bebê pequeno descobre no jogo de esconde vivido com uma pessoa que fora capaz de exibir sua preocupação materna primária (Winnicott, 2018), tão essencial à afirmação de sua existência na cena do desamparo original.
Estamos, portanto, diante de uma questão séria sobre como a escola precisa se constituir para que a preocupação com o aluno redunde na afirmação de tal existência, sem que a carteira vazia seja a melhor forma de ele se fazer presente.
Em outras palavras, de que recursos a escola dispõe para demonstrar preocupação e interesse pelo aluno, para promover holding e continência, experiências de esconder e ser encontrado, de desaparecer e aparecer, no interior de suas dependências e no curso de suas atividades pedagógicas? Como a escola pode evitar (re)produzir ou (re)forçar a vulnerabilidade do aluno e, sobretudo, como pode ofertar experiências significativas que acolham as diversas formas mediante as quais o desamparo original se apresenta e pede elaboração na escola, enquanto, simultaneamente, promove o desenvolvimento de recursos psíquicos que permitam ao sujeito em formação valer-se deles ao longo da vida?
É, sem dúvida, necessário que tenhamos a mesma atitude de O’Loughlin, Owens & Rothschild (2023):
As an analyst, as an Irish woman, as a mother, I am deeply mindful of how the times of our lives are correlated with the places in our lives, and who we are, and who we may become. I am passionate about working with adolescents for this very reason; where and when, and how we come of age becomes key in our narratives of becoming. (p. 7)
A escola e seus professores têm papel fundamental na conformação do where, when e how da vida da criança e do jovem. Não por acaso precisamos, então, atentar para o lugar atribuído ao aluno pela professora. A fala da professora pode nos dar alguma direção sobre isso:
Quando aparecia às aulas, Paulo era o retrato do desamparo: estava sempre com as roupinhas sujas, surradas e, às vezes, rasgadas; sempre com blusas grossas, mesmo quando não estava frio.
Era sonolento, aparentando falta de energia para qualquer atividade da escola. Vestia a touca e se debruçava na carteira, dormia, eu o acordava. Algumas vezes, mudava de lugar, eu ia em sua carteira, acompanhava-o de perto e retomava as conversas. [...] Sempre que aparecia na escola eu o chamava, questionava as ausências, incomodava-o, pensando que assim ele mesmo se incomodaria por faltar tanto.
Diante do retrato da desigualdade que as vestimentas revelam, professores comunicam sua idealização sobre como deveria vestir-se um aluno, bem como sua fantasia de que, a depender de como se traja, o aluno e sua família demonstram dar ou não valor à escola. Ao ir à escola com roupas de que dispunha, Paulo ocupou, no imaginário da professora, a condição de desamparado.
Porém, outros aspectos da relação entre eles puderam ser observados. A professora escutou o que Paulo tinha para falar sobre a sua vida e pôde perceber que estavam em confronto, de um lado, sua preocupação com a segurança da irmã; de outro, sua preocupação com a falta à escola. O efeito dessa escuta, ao longo do tempo, foi significativo, primeiramente para a professora, que compreendeu que o dilema do menino estava longe de ser trivial ou de significar indiferença pela escola, pois, naquele momento, ficar com sua irmã era tão ou mais importante para ele do que ir à aula.
Atribuir maior relevância a estar com a irmã não equivale a ignorar a importância da escola em sua vida, e poder fazer essa distinção é um passo fundamental para que a escola estabeleça o jogo de esconder e ser encontrado, e que ele frutifique no ambiente escolar. A professora estava preocupada com o menino; o menino, à imagem e semelhança dela, preocupado com a irmã. Ambos tentando proporcionar para um Outro a experiência de continência, de “ser encontrado”, de ter sua existência reconhecida e propiciar segurança a ele.
A “bolsa família”: um modo de sustentar o interesse de viver?
As surpresas da professora não param por aí, nem tampouco os dilemas de seu aluno. Assim ela revela:
O recebimento do “bolsa família” já aponta para a vulnerabilidade econômica de sua família. No caso de Paulo, a situação era ainda mais grave. Não me lembro exatamente quantos irmãos, mas pelo menos três, moravam na estação do trem desativada do bairro e ali permaneceram por anos, pois não tinham para onde ir. Soube que tentaram fazer com que a família desocupasse o local, por várias vezes, mas como não tinham para onde ir, acabavam ali permanecendo. Um dia um incêndio, que alguns dizem ter sido criminoso, destruiu a estação; consequentemente toda a família teve que se mudar. Não consegui saber como eram as condições atuais, onde moravam; no entanto, o que sabíamos com certeza, era a respeito da precariedade do local.
O Programa do Governo Federal “bolsa família” decerto expressa a vulnerabilidade econômica da família de Paulo, mas tal condição não necessariamente impediria o processo de ensino e aprendizagem desse sujeito ou determinaria seu absenteísmo na escola. Porém, a segregação territorial emoldura o contexto social que se apresenta para o sujeito, e é a partir dessas fronteiras restritivas e carregadas de significação de infração que o sujeito é visto (ou se torna invisível). Por mais que a estação abandonada fosse a casa habitada ou o lar desse menino, aos olhos alheios ela era apenas o depositário do indesejado, inferior, precário, infrator inquietante (Freud, 1919). Esvaziado da pulsão de vida que mobiliza criatividade suficiente para buscar um lugar, um abrigo, uma habitação e um lar onde ninguém vê tal possibilidade, o depositário merece ser varrido de nossa vista, inclusive concretamente. Podemos dizer que a situação descrita pela professora demonstra que Paulo e sua família dispõem de inúmeros recursos internos que permitem a eles construírem estratégias para lidar com a vulnerabilidade social e a segregação a que estão submetidos e que dão forma ao desamparo original. O problema para nossa reflexão é, portanto, como tais recursos são ou não reconhecidos pela escola, como são ou não autorizados a participar da experiência de existência do menino na instituição, e a partir de que viés — se do viés da infração ou da ação criativa e transformadora.
A professora lança alguma luz sobre isso.
Um dia ouvi um profissional do corpo pedagógico dizer: “estou cansado dessa gente pobre que usa a escola para seus interesses” e isso incluía Paulo. Fiquei a pensar como manter o interesse pelas aulas e atividades quando nossos “interesses básicos” — comer, morar são enxergados de forma tão perversa.
A quem esse profissional do corpo pedagógico se referia quando fazia essa enunciação: “estou cansado dessa gente pobre que usa a escola para seus interesses”? Podemo-nos indagar diante de tal enunciado: de que pobreza se trata e para que interesses usamos a escola? Mas a fala do professor estabelece correlações sérias: i) que existem tipos de gente e que tal tipologia está correlacionada à renda; ii) que o que diferenciaria o tipo de gente pobre e não pobre, além da renda, seria fazer uso da escola para seus interesses; iii) os interesses dessa gente pobre são, para dizer o mínimo, cansativos aos olhos do professor, diferentemente dos interesses de outros tipos de gente, que, pela lógica, não devem ser próprios e/ou não são cansativos (ou indesejáveis). Evidentemente, como ambiente complexo que é, a escola não se reduz ao que um professor pensa a respeito dos alunos. Mas todos sabemos que a escola é uma instituição que hoje responde a uma lógica neoliberal que se pauta fundamentalmente pelo “‘aprenderismo’ (learnification) do discurso e da prática educacional” (Biesta, 2018), que está longe de almejar a expansão mental dos alunos e seu processo de subjetivação, no qual exista possibilidade de que crianças e jovens não adotem apenas uma identidade particular, não sejam apenas parte de comunidades e tradições específicas, apenas objetos das intenções e ações de outras pessoas, mas existam como (um) sujeito por direito próprio, capaz de suas próprias ações e disposto a assumir a responsabilidade pelas consequências dessas ações (p. 24).
Desse modo, imaginar que existam alunos que façam notar seus interesses não nos parece algo a ser condenado. E seria muito importante que os professores pudessem reconhecê-los e integrá-los nos propósitos da instituição. Todavia, onde impera um clima predominantemente convergente com a lógica social excludente, assiste-se à experiência de vulnerabilidade ou à condição de pobreza material como a um ato infra-cional, o que leva a escola a agir contra o agente de tal ato, e não a ir a seu encontro. Paulo poderia ter ficado apenas como “gente pobre”, cujos “interesses” fossem indesejáveis. Felizmente, teve melhor destino ao encontrar a professora de que tratamos aqui.
Paulo possuía notas baixas em todas as matérias, mas seu baixo rendimento era devido às ausências; avaliar sua aprendizagem tornava-se difícil devido a tantas faltas. De tanto incomodarmos o Conselho Tutelar, este passou a incomodar os pais de Paulo, alertando sobre as ausências na escola. E foi assim “sob ameaça” que Paulo se tornou assíduo, e também, iniciaram as transformações.
É sabido que a assiduidade baseada nessa imposição não é suficiente para despertar no aluno o desejo de estudar, nem é a intimidação um propósito da educação. Mas tal professora pôde ver as notas baixas em todas as matérias e a falta de rendimento de Paulo pelo avesso, um modo de olhar e escutar que produziu uma outra perspectiva que não a da avaliação de rendimento fundamentada na idealização da linguagem do aprenderismo exposta por Biesta (2018). Ela foi capaz de presentificar Paulo a partir de sua ausência, foi capaz de produzir um furo na rede homogeneizadora baseada exclusivamente em aprendizagem, rendimento e resultados. No furo, perguntas sobre o sentido da relação do aluno com a escola, sobre seus dilemas e interesses puderam ser formuladas, e uma ação para aquele menino, com aquela história, pôde ser pensada, como veremos no trecho a seguir.
Paulo voltou em um momento que estávamos realizando várias atividades dinâmicas com a sala em que eles tinham que pintar o rosto, colocar lenços... Paulo amou se pintar, retirou a touca, pedi que me deixasse tirar uma foto dele, em seguida mostrei a ele, que pareceu ter gostado do que viu, sorriu, pintou mais o rosto e, várias vezes, me pedia para tirar mais fotos, pedia para ver, parecia-me que para além de ver a foto, Paulo estava se olhando e se percebendo, existindo. Disse a ele: “Você é tão lindo, Paulo”. Ele sorriu alegremente e disse: “A senhora acha?” E assenti com a cabeça: “huhum”. Não sei dizer exatamente se essa atividade tenha sido [sic] um marco de mudanças, ou se somado a outros, a chamar Paulo pertinho para perguntar se estava tudo bem, se importar se ele tinha entendido, pedir que ele fizesse atividades de respostas na lousa (e que os alunos amam pois acham que quando são chamados é porque sabem muito), dizer que ele fazia falta, acionar o conselho tutelar e até mesmo ameaçar os pais, acho que tudo isso permitiu que Paulo passasse a ter rendimento melhor. Ficou com média em minha matéria pelo primeiro bimestre e passou a se interessar muito mais pelas aulas e atividades.
A assiduidade de Paulo permitiu que o jogo de esconder e ser encontrado pudesse ser retomado. E Paulo teve a oportunidade de se ver reconhecido através do olhar da professora (Winnicott, 1971), um espaço de reconhecimento de si, como um menino lindo.
Poderíamos desdobrar esta cena depois do assentimento da professora, perguntando ao Paulo o que ele pensava sobre si mesmo.
Não tivemos a oportunidade de fazê-lo; mas nossa hipótese é que, na escola em que sua ausência consistia em mera indiferença por parte da instituição, o momento descrito acima tenha sido um ponto de inflexão a partir do qual sua ausência e sua presença se fizeram presentes, mediante a experiên- cia de ter sido visto com algum encantamento. Ter sido reconhecido em sua beleza, nesse sentido, equivale a ter sido reconhecido em sua capacidade de oferecer algo de si ao outro e de criar algo para si, assim como fora capaz de ofertar continência para a irmã e de fazer de uma estação a sua morada.
Podemos pensar que para os educadores, muitas vezes, é difícil compreender o que dos nossos atos pode operar como um modo de intervenção no contexto escolar. Não tivemos como ouvir de Paulo por que ele passou a ir para a escola. Quando analisamos os relatos da professora, no entanto, podemos imaginar que Paulo tenha encontrado uma professora que permitiu a ele vivenciar sentimentos de acolhimento, reconhecimento e pertencimento na escola (Villela & Archangelo, 2013). Ela foi capaz de criar algumas condições em que o desamparo original de Paulo encontrasse formas de se dizer e de ser ouvido em suas experiências de vulnerabilidade, além de criar condições para que seus recursos para lidar com ele, mesmo os que se encontravam apartados da escola, fossem reconhecidos e colocados em marcha, para seu desenvolvimento.
Considerações finais
Pelas lentes da professora, Paulo nos surpreende com sua capacidade de preocupação com o bem-estar de sua irmã, com sua capacidade de fazer escolhas difíceis entre atividades igualmente relevantes, com sua resiliência e capacidade de se fazer visível na ausência, de ser criativo, com a ajuda de sua família, para transformar uma estação de trem em morada, em lar. Não nos parece pouco. Há muitos recursos psíquicos envolvidos nessas operações, mas pudemos reconhecer, com a ajuda da professora, como vinham apartados da realidade da experiência escolar e das narrativas do aluno sobre si mesmo e da escola sobre ele. O’Loughlin et al. (2023) nos dá a medida da importância de tal processo. Diz ele:
What enhances a child’s prospects, and what are the personal, familial, and societal factors that serve as what Paulo Freire would call limit situations that inhibit or foreclose the possibility of freedom? ... As my story illustrates, while precarity can produce foreclosure, sometimes it can also engender new possibility. ... The precarity of my institutionalized hospital stays—where my parents were forbidden to visit often ... —were mitigated by one Nurse O’Halloran, who “adopted” me during my hospital stays and undoubtedly provided me with the kind of holding and containment that my fretting parents were forbidden to provide even if they had the capacity to do so. (p. 2)
Os modos de vulnerabilidade potencialmente traumáticos, produzidos ou desencadeados nas experiências sociais de Paulo, e cujos efeitos se entrelaçam nas histórias dos sujeitos no interior da escola, puderam ser reconhecidos em razão da capacidade de observação e de escuta da professora. Ela foi capaz de ativamente buscar um laço onde, aparentemente, havia a falta de desejo do outro. Dizemos “aparentemente” porque o que se evidenciou no processo de análise dos relatos foi que, inversamente, o desejo se apresentava justamente onde a ausência do menino provocava o desalojamento da professora, uma convocação para que o encontrasse nesse jogo de esconder e ser encontrado. Uma lição de vida.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
29 Mar 2023 -
Revisado
02 Dez 2023 -
Aceito
01 Fev 2024