Open-access Vivências traumáticas no ciclo gravídico-puerperal*1

Traumatic experiences in the pregnancy-puerperal cycle

Expériences traumatiques dans le cycle dela grossesse puerpérale

Vivencias traumáticas en el ciclo embarazo-puerperio

Traumatische Erlebnisse im Schwangerschaft-Wochembett-Zyklus

Resumos

No imaginário social é comum a fantasia de que a mulher é tomada de sentimentos nobres ao receber um filho. Entretanto, a experiência clínica ensina que a maternidade pode ser um momento de intenso mal-estar, expresso sob a forma de conflitos, sintomas e angústia. O presente artigo procura mostrar, por meio de reflexões teóricas e apresentações de vinhetas clínicas, que o ciclo gravídico-puerperal é um processo em que a mulher está exposta a vivenciar algo da ordem do traumático capaz de desorganizá-la psiquicamente.

Palavras-chave: Ciclo gravídico-puerperal; trauma; Édipo feminino; tornar-se mãe


In the social imaginary, there is a widespread fantasy in which woman is taken of noble feelings when giving birth to a child. However, clinical experience teaches that motherhood can be a time of intense malaise, expressed in the form of conflicts, symptoms and distress. This paper tries to show, through theoretical reflections and presenting clinical vignettes, that the pregnancy-puerperal cycle is a process in which women are exposed to traumatic experiences that are capable of disorganizing them psychically.

Key words: Pregnancy-puerperal cycle; trauma; female Oedipus; becoming amother


Dans l’imaginaire social, il est courant de penser que la femme éprouve des sentiments nobles lorsqu’elle met au monde un enfant. Cependant, l’expérience clinique montre que la maternité peut être une période de malaise intense, exprimée sous forme de conflits, de symptômes et de détresse. Cet article essaie de montrer, par le biais des réflexions théoriques et des présentations de vignettes cliniques, que le cycle grossesse-puerpérale est un processus dans lequel la femme est exposée à quelque chose de traumatisant capable de provoquer en elle un désordre psychique

Mots clés: Cycle de Grossesse puerpérale; traumatisme; Œdipe féminin; devenir mère


En el imaginario social, es común la fantasía de que la mujer es colmada de sentimientos nobles al recibir a un hijo. Sin embargo, la experiencia clínica enseña que la maternidad puede ser un momento de intenso malestar, expresado en forma de conflictos, síntomas y angustia. El presente artículo busca mostrar, mediante reflexiones teóricas y presentaciones de viñetas clínicas, que el ciclo embarazo-puerperio es un proceso en que la mujer está expuesta a vivir experiencias de orden traumático capaces de desorganizarla psíquicamente.

Palabras clave: Ciclo embarazo-puerperio; trauma; Edipo femenino; convertirse em madre


Gemäß der sozialen Vorstellung soll es üblich sein, dass eine Frau edle Gefühle entwickelt, wenn sie ein Kind empfängt. Die klinische Erfahrung lehrt jedoch, dass die Mutterschaft eine Zeit intensiven Unwohlseins sein kann, ausgedrückt in Form von Konflikten, Symptomen und Leiden. Dieser Artikel versucht aufzuzeigen, mittels theoretischer Überlegungen und der Beschreibung klinischer Vignetten, dass der Zyklus zwischen Schwangerschaft und Wochenbett ein Prozess ist, während dem die Frau einer traumatischen Erfahrung ausgesetzt ist, die sie psychisch desorganisieren kann.

Schlüsselwörter: Schwangerschafts-Wochenbett-Zyklus; Trauma; weiblicher Ödipus; Mutter warden


Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O “amar os outros” é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca […].

(Clarice Lispector, 1968)

O poder da criação, o dar a vida a um ser humano e o nascimento de uma família são reflexões ainda muito difíceis de elaborar. Na maioria das culturas prevalece a ideia de que a mulher, tomada de sentimentos nobres ao receber um filho retirado de suas entranhas, dará a ele todo o amor possível que uma mãe pode dar. Da mesma forma, é senso comum a ideia de que o desejo e a decisão de ter um filho, por si só, já deveria ser indício de que a mulher ao longo dos seus nove meses de gestação, se prepararia para a maternidade. O crescimento gradativo do ventre, a percepção dos movimentos do bebê e a perspectiva de que em breve o terá em seus braços, nos leva a imaginar que a gestação seria um tempo suficiente para a mulher adaptar-se ao papel de mãe. Para a chegada tão esperada desse ser, a futura mãe procura por informações, recebe conselhos de sua própria mãe e de outras mulheres, participa dos inúmeros cursos preparatórios para o ciclo gravídico-puerperal. Essas fontes de informações são relevantes, não obstante, na maioria das vezes, não são levadas em consideração a vivência subjetiva da mãe que se inaugura.

Quando Clarice Lispector nos presenteia com suas poesias, não podemos deixar que elas nos levem para o maravilhoso mundo das mães felizes e dedicadas. Não é essa a poetisa que se apresenta. Clarice consegue transpor em palavras toda a necessidade que temos de amar um outro sem, no entanto, desconsiderar, conforme lemos na epígrafe acima, o quão árduo pode ser o caminho da maternidade. A vida é curta demais para se elaborar tanto amor!

Foi com essa realidade que me deparei ao longo da minha trajetória enquanto médica ginecologista e obstetra. Comecei a observar que no período gestacional, assim como no parto e no pós-parto, um número significativo de mulheres manifesta comportamentos inesperados, ou por leve ou grave depressão, ou pela recusa de cuidar do bebê, ou mesmo por outros aspectos que não correspondiam ao habitual. Essas manifestações são comumente condenadas pela equipe de saúde através de atitudes hostis para com essas novas mães. A maior parte desses profissionais tem para com as parturientes atitudes superegoicas severas, o que só faz piorar o quadro apresentado pela paciente. A atualização de vivências traumáticas passadas pode, após o parto, trazer para a mulher uma sensação de desamparo muitas vezes considerada depressão pós-parto que a conduz para abordagens terapêuticas voltadas para a melhoria desse humor sem, entretanto, interagir com o que concorre para a formação de fenômenos clínicos e o questionamento sobre a irrupção do sofrimento. Nossa hipótese é a de que a gestação, o parto e pós-parto são momentos que a ocorrência de um traumatismo reatualiza, de acordo com a teoria psicanalítica, traumas vividos no passado.

Quando eu me tornei mãe, na madura idade de 24 anos, fiquei contente em me despedir de uma gravidez difícil e abraçar as alegrias da nova maternidade. Mas, enquanto as alegrias eram muitas, muitos também eram os desafios. Eu achava que tinha sido adequadamente preparada para atingir todo um novo nível de privação de sono, para alimentar alguém com meu próprio corpo mais do que me alimento, de responder a cada comando sem esforço. (Relato de uma mãe)

“Quando eu me tornei mãe”. Afirmativa que por si só expressa a ideia de que a maternidade é um processo subjetivo complexo que carreia a ambivalência do chamado “amor materno”, a partir do qual a mulher alcançará condições mínimas e necessárias para seguir se implicando na função materna, conforme será mostrado ao longo do presente artigo.

A literatura sobre certo comportamento no ciclo gravídico-puerperal é vasta. Convém, então, antes de entrarmos na discussão de nossa hipótese, apresentar algumas referências teóricas e clínicas sob a ótica de diferentes saberes. A saúde mental feminina ainda é um tema que necessita de estudos adequados para a melhor apreensão das alterações de humor que invariavelmente ocorrem nas diversas fases da vida de uma mulher. Segundo Ruschi (2007), no Brasil a depressão é considerada problema sério de saúde pública, atingindo de 2 a 5% da população em geral, com predomínio no sexo feminino. A análise desses dados revela a presença de eventos vitais marcantes, entre eles o ciclo gravídico-puerperal. A prevalência de depressão pós-parto varia entre 12 e 19%, dados compatíveis com a literatura internacional. Outros estudos estimam uma prevalência de depressão na gravidez da ordem de 7,4% no primeiro, 12,8% no segundo e 12% no terceiro trimestre (Benett et al., 2004, apud Camacho et al., 2006). No entanto, a importância desses períodos da vida da mulher em relação à depressão ainda não está totalmente esclarecida, e a sintomatologia apresentada não difere qualitativamente da que ocorre em outras fases da vida.

Desde a menarca até após a menopausa, algumas mulheres sofrem de transtornos mentais específicos, incluindo transtorno disfórico pré-menstrual, depressão perinatal e perimenopáusica, disforia do pós-parto (blues) e psicose puerperal, assim como transtornos do humor e de ansiedade associados à infertilidade e gestações abortadas, além de maior incidência de transtornos ansiosos e alimentares. A mulher, durante sua vida fértil está imersa num ambiente hormonal que tem relação com mudanças de comportamento, que podem invariavelmente interferir em sua vida emocional e no trabalho. Na gestação, os níveis de estrógeno e progesterona, em geral aumentados, podem ser responsáveis por alterações de humor. A redução brusca dos hormônios, que sucede o parto, pode estar, também, envolvida na etiologia dos quadros depressivos que ocorrem no puerpério (Mattar, 2007). Dentro disso tudo, é digno de nota que são poucos os estudos que ainda se dedicam a decifrar, com maior clareza, as alterações psíquicas que podem ocorrer durante a gravidez, o parto e o pós-parto, momentos especificamente carregados de afetos, muitas vezes não elaborados.

Por que toda mulher deve sempre se mostrar feliz com o nascimento de um filho? Socialmente considerada uma experiência de pura alegria, a maternidade, muitas vezes, não é reconhecida como uma fase em que a futura mãe pode vir a experimentar uma diversidade de sentimentos confusos e ambíguos. Mesmo que haja um desejo de ser mãe, a vivência real da maternidade traz à tona sensações de mudança e transformação intensas, a ponto de a mulher estar sujeita a viver um processo de desubjetivação. Muitas mulheres, outrora dinâmicas e ativas nos seus afazeres laborais, tornam-se apáticas e sem ânimo para realizar quaisquer tarefas, mesmo as mais simples possíveis. Além disso, a dedicação amorosa para com o bebê pode se tornar escassa, restrita aos cuidados de alimentação e higiene, tarefas apenas necessárias para a sobrevivência do infante. Dentro dessa perspectiva, a relação mãe-bebê pode se mostrar bastante vulnerável, prejudicando a saúde mental de ambos: da mulher que não se compreende como mãe e, do bebê que não recebe da mãe o amparo necessário para a sua constituição psíquica.

Tenho uma sensação de peso, como um fardo que terei que carregar pelo resto da minha vida. Não consigo fazer o que antes era o meu cotidiano. Não sou mais a mesma. Muito mal dou conta dos cuidados com meu filho. (Relato de uma mãe)

A psiquiatria atual não pode se furtar à atenção e ao conhecimento necessário sobre os transtornos psíquicos relacionados ao ciclo reprodutivo, em especial ao puerpério. Levando-se em consideração a Classificação Internacional de Doenças - décima edição (OPAS & OMS, 2014) e o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (American Psychiatric Association, 2002), há que se satisfazerem os critérios de um episódio depressivo maior e os critérios do especificador de início no período perinatal ou em até quatro semanas. Isso demonstra que os profissionais da saúde mental ainda não reconhecem as alterações de humor da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal como um diagnóstico específico, considerando os diversos fatores que envolvem essa temática. Dessa forma, parece um tanto empobrecida a análise desses transtornos, considerando unicamente o saber médico. Todas as avaliações da puérpera recente com transtorno depressivo não levantam outras possíveis variáveis envolvidas nesse momento tão específico da vida de uma mulher.

No campo da filosofia, Elisabeth Badinter (1985) realizou uma reflexão importante para os pressupostos biológicos da maternidade, demonstrando que o chamado “amor materno” sofre transformações culturais; o que significa que esse sentimento não está inscrito na natureza, mas alienado à cultura. Para Badinter (1985) a mãe é uma personagem relativa, pois a concebe em relação ao pai e ao filho; e tridimensional, visto que, além dessa dupla relação, a mãe é também uma mulher com aspirações próprias que muitas vezes nada tem a ver com as do marido ou com os desejos do filho. Os estudos de Badinter evidenciam a complexa definição do papel da mulher, sempre em consonância com as necessidades sociais, culturais e econômicas de determinada sociedade.

Em Um amor conquistado: o mito do amor materno (1985) a filósofa empreende uma crítica ao paradigma familiar, do final do século XVIII, de impor à mulher o destino de um “instinto materno” ou de “amor espontâneo”. Paradigma que se perpetuou até a década de 1960, com a chegada dos movimentos feministas. O advento do mito, segundo a autora, teria induzido o Estado a se preocupar com a mortalidade de recém-nascidos, exortar a amamentação e os cuidados maternos. A partir desse giro cultural as mães foram convencidas da importância de seu papel como mãe e nutriz. Por trás do discurso econômico, ressaltava-se a sedução para com as mães, com promessas de felicidade e igualdade. “Sede boas mães e sereis felizes e respeitadas. Tornai-vos indispensáveis na família e obtereis o direito de cidadania” (Badinter, 1985, p. 147). A maternidade passa, então, a ser extremamente idealizada. Evocam-se as noções de vocação e sacrifício materno associando-as ao misticismo. A mãe será comparada a Nossa Senhora, mãe de Deus; testemunho de devoção ao filho. De maneira geral, até os dias atuais esses atributos são almejados pela sociedade.

Todo mundo falou sobre a felicidade do bebê, o amor que eu sentiria, a alegria, os instintos naturais. E enquanto eu certamente sentia essas coisas, também me senti esgotada, sobrecarregada, exausta e completamente sozinha. Todo mundo presumia que eu estava muito feliz e por isso encenei esse papel. (Relato de uma mãe)

Nos primórdios da psicanálise, mesmo sob influência da medicina e da biologia, alguns psicanalistas não mediram esforços para desnaturalizar o chamado “amor materno”. A primeira mulher a ser admitida na Sociedade Psicanalítica de Viena, Margarete Hilferding, apresentou uma conferência sob o título, “Sobre as bases do amor materno” (Hilferding, Pinheiro & Vianna, 1991), na qual desconstrói a ideia, vigente na época, de que toda a mulher nasceu preparada para ser mãe. Baseada na observação de que algumas mulheres que mesmo se sentindo felizes pela futura vinda do filho concebido, se mostraram decepcionadas com o nascimento e assim foram impedidas de experimentar o que era conhecido como o verdadeiro amor materno - Hilderfing mostrou que fatores fisiológicos do organismo não alcançam a contribuir para tal estado de coisas. Já os fatores psicológicos incidem na formação desse quadro e podem levar algumas mães a cometer atos diretamente hostis em relação à criança, culminando com infanticídio ou sevícias exercidas sobre os infantes, como provas de falta de amor materno.

É surpreendente ver que o infanticídio só se produz em geral com o primeiro filho e, mais frequentemente, somente no caso de a mãe sentir aversão particular pela criança (por exemplo, porque o pai a abandonou). Enquanto psicanalistas, podemos dificilmente aceitar que essas mulheres sejam mentalmente degeneradas, como se postula para salvar essas infelizes. (Hilferding et al., 1991, p. 90).

A proposição inovadora apresentada por Hilferding é a ideia de que a interação física mãe-bebê constitui o fator primordial à incitação do chamado “amor materno”. Os movimentos do feto ainda no ventre, sentidos como prazerosos são fenômenos que contribuem, segundo suas reflexões, para o surgimento do sentimento amoroso que a mãe devota ao bebê. Essa extrema intimidade entre mãe e feto, o prazer e o poder desencadeados por essa relação por vezes são a base para que entendamos a frustração e descontentamento ao parir seu filho.

Supõe-se que os primeiros sinais de amor materno surjam na época dos primeiros movimentos do feto. Parece que esses movimentos provocam também certa sensação de prazer, o que poderia ser considerado como índice dessas relações sexuais. Com a saída da criança, esse sentimento é perdido e é talvez aí que comece a aversão da mãe. (Hilferding et al., 1991, p. 91)

Para Teresa Pinheiro (Hilferding et al., 1991), é impossível, mesmo com todos os avanços teóricos da psicanálise, descartar as análises de Hilferding, na medida em que suas reflexões e ideias inauguraram uma série de estudos sobre a natureza do corpo materno. Seu estudo teve como objetivo mostrar que através das transformações reais do corpo, juntamente com o surgimento de sensações corporais ou excitação sexual, a mãe é assaltada por um enorme prazer que não tem controle, pois não pode interrompê-lo, mesmo que queira. É com base em tal perspectiva que Hilferding ressalta o fato de que a grávida experimenta excitações permanentemente, sem que ninguém saiba ou veja. Pinheiro assemelha essa ideia ao conceito de plenitude ou de um estado permanente de gozo.

O feto que excita a mãe o faz à revelia, de forma silenciosa e quase oculta, pelo menos para os outros que fazem parte do seu meio ambiente. Há entre eles (feto e mãe) algo que se passa quase clandestinamente, sem mediação. (Hilferding et al., 1991, p. 121)

Margareth Hilferding não ficou presa à lógica da falta pênis/falo, quando se refere à completude da mulher grávida. Nessa mesma linha, se refere à origem do complexo de Édipo na criança em função da excitação sexual provocada pela mãe nos cuidados corporais dispensados ao filho. Pela vertente da mãe, após o parto, com a “descida” do leite e a amamentação, a mulher igualmente experimenta sensações prazerosas. Assim, o gozo da mãe suscitado pelo filho quando ainda no ventre materno e a intimidade velada que se instala entre os dois permitem uma vivência transgressora da proibição do incesto vivida na gravidez. Enfim, a reflexão pioneira dessa analista constitui um norte para aqueles que pensam que o amor materno, não sendo natural, é uma construção subjetiva da mulher.

Trauma, desamparo, angústia

Quando retiraram meu filho de dentro de mim e tentaram mostrá--lo, senti uma tristeza profunda. Não conseguia ver quase nada e subitamente virei o rosto para o lado oposto. Durante os dias que ainda estava no hospital não conseguia esconder esse sentimento. Eu não entendia o que estava acontecendo. Meu médico e minha família ficaram muito preocupados. Em uma semana já estava medicada pelo psiquiatra. (Relato de uma mãe)

A experiência de ter atendido por algum tempo essa paciente levou-me a buscar na teoria freudiana do trauma um arcabouço teórico para sustentar a hipótese de uma relação entre a experiência traumática e a maternidade. A partir da narrativa de sua história familiar percebi uma forte relação entre a queixa de como agia na relação com o seu bebê recém-parido e vivências traumáticas do passado.

Será a maternidade um momento traumático para toda mulher? Seria possível sustentar a ideia de que algumas mulheres, durante o ciclo gravídico--puerperal, reatualizam situações e vivências do passado? Seria lícito sustentar igualmente que durante esse ciclo a mulher encontra-se mais exposta à ocorrência de uma experiência dolorosa súbita e de grande intensidade, capaz de traumatizar e produzir distúrbios psíquicos como ocorre, por exemplo, em grandes acidentes e nos traumas de guerra?

Algumas precisões teóricas se fazem necessárias. Presente desde os primórdios da teoria freudiana, trauma se tornou um dos temas do século XX em função das duas grandes guerras mundiais. Na atualidade, apesar das incessantes mudanças nas sociedades, transformações que acarretam novas modalidades de conflitos, o conceito de trauma nos parece absolutamente pertinente, merecendo toda atenção na clínica psicanalítica contemporânea. Para a psicanálise não é o acontecimento traumático em si que está em jogo, mas a forma como este incide no psiquismo e a consequente elaboração pelo sujeito. Assim, a concepção de trauma na teoria deve estar para além da simples experiência de um acidente. Enquanto ciência do particular a psicanálise não pode reduzir o valor do traumatismo ao aspecto meramente bruto do trauma; ela exige do sujeito que construa sua narrativa sobre o próprio evento.

A relação entre trauma e memória já se encontra presente nas primeiras elaborações psicanalíticas acerca da histeria (Freud, 1893/2006a). Ainda no final do século XIX, no texto “Projeto para uma psicologia científica” (1895/2006b), Freud esquematizou um modelo de aparelho psíquico e definiu alguns esboços de conceitos que foram mais bem desenvolvidos posteriormente. Nesse momento a noção de trauma foi descrita como consequência de uma ocorrência externa ao próprio aparelho psíquico que obriga o ser humano a lidar com quantidades excessivas de estímulos. O trauma, portanto, é algo que invade e se instala através da ruptura da barreira de proteção exercendo, como escreve Lejarraga (1996) “[...] sua ação patogênica até muito tempo depois de ocorrido o evento” (p. 8). Trauma e memória ficam assim indissociáveis como dois tempos inseparáveis.

Dessa forma, antes mesmo de inaugurar a psicanálise na aurora do século XX, Freud construiu um pensamento teórico de natureza hipotética capaz de destituir a ideia prevalente na época de bases anatômicas na disfunção do psiquismo e deu início à elaboração da metapsicologia. No “Projeto...” define, através da ideia de neurônios permeáveis e impermeáveis, o aparelho psíquico como um sistema de memória, que se altera permanentemente com a passagem de energia, deixando marcas ou traços mnêmicos. Esse movimento teria uma influência do chamado trilhamento (Bahnungen) ou facilitações que modificam o percurso em determinadas direções e não em outras e que tornam possível o aparecimento da memória como um processo de repetição de percursos facilitados. A repetição de determinado percurso, ou seja, a memória, dar-se-á em função de facilitações que foram deixadas por percursos anteriores. A Bahnungen constitui a memória, já que ela se faz através das diferentes facilitações ou trilhamentos por onde a energia pode passar. Se todos os caminhos ou trilhamentos fossem igualmente possíveis, ou seja, se a Bahnungen fosse a mesma em todas as direções, não haveria a preferência de um caminho sobre o outro e, portanto, não haveria memória.

A questão axial do “Projeto...” em relação à díade mãe-bebê e suas vicissitudes na formação do sujeito encontra-se exposta no complexo do próximo, a cena em que o recém-nascido estabelece o primeiro e rudimentar laço social com o ser próximo (Nembenmensch), o primeiro outro (em geral a mãe) que atende ao seu grito de socorro, satisfazendo suas necessidades vitais. A intervenção do Nebenmensch tem por função responder ao desamparo original (Hilflosigkeit) da criança em sua entrada no mundo e introduzi-la no reino da linguagem. Momento em que a alteridade se impõe como traumática. Para o pequeno ser, o próximo é um desconhecido situado numa relação de extrema proximidade. A mãe torna-se, ao mesmo tempo, seu primeiro objeto de satisfação, primeiro objeto hostil e única potência capaz de lhe prestar socorro (Freud, 1895/2006b). “Ajuda estrangeira” é o termo com o qual Freud designa a assistência que marca a criança como ser falante.

Jacques Lacan, por sua vez, retorna à ideia de trauma dos primeiros textos de Freud e passa a repensá-lo como algo da ordem estruturante. Em seu entendimento, a estrutura simbólica da linguagem funda o sujeito cindido, isto é, o sujeito dividido entre o que é capturado pela palavra e o resto não passível de simbolização. Na teoria lacaniana, trauma é apreendido como um evento necessário à estruturação psíquica do sujeito. Sendo estrutural e constituinte o trauma necessariamente deixa de ser um acidente e passa a ser concebido como um evento que se alinha às outras experiências traumáticas, que só podem ser consideradas desorganizadoras a partir da história e da configuração psíquica de cada sujeito. A singularidade do trauma só pode ser elaborada a partir da interposição do inconsciente entre o trauma e seus consequentes sintomas.

Logo, é possível entender o porquê da ênfase de Lacan à noção freudiana de nachträglickeit que ele próprio traduziu para o francês por aprés-coup (só depois). As representações se tornam traumáticas por uma ação retardada, a posteriori. Um fato não é traumático no momento em que ocorre, mas apenas depois de transformado em lembrança e associado a outro, conferindo o trauma. Ou seja, o efeito a posteriori (nachträglichkeit) como causação da neurose configura-se como a atualização de uma situação que, se inicialmente não se mostrou traumática, passa a ter essa conotação quando nova cena se apresenta. Lembremos da famosa carta que Freud (1896/2006c) escreve a Wilhelm Fliess em 1896, Carta 52. Aqui, fundamentado na teoria do “rearranjo” escreve ao velho amigo que está trabalhando com o pressuposto de que o mecanismo psíquico se formou por meio de um processo de estratificação, segundo o qual o material presente na forma de vestígio de memória é sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo de acordo com circunstâncias novas, a uma retranscrição.

Há uma cadeia representativa, uma trama que pode ser rearticulada a cada nova evocação, o que torna ainda mais complexa a memória. Freud estabelece, então, uma diferença entre traços e marcas mnêmicas, para sustentar a tese de que a memória se desdobra em vários tempos, ou seja, estando então sujeita a sofrer (re)transcrições e rearranjos dos traços que a compõem. Os traços mnêmicos são inscrições que se associam entre si nos moldes de uma cadeia complexa de representações. Em contrapartida, a marca é um tipo de impressão que não participa da cadeia de representantes, portanto, não está submetida às diretrizes do princípio de prazer e, mais ainda, poderá ser evocada como um fator energético de pura intensidade não representada, que aparecerá no aparato neuronal sob a forma de uma repetição de desprazer em relação ao qual o eu não consegue fazer frente. Essa ideia encontrará eco mais tarde em 1920 com a definição da compulsão à repetição. Os primeiros encontros entre a mãe e seu filho decerto são intermediados por experiências traumáticas que terão conotações estruturantes para o bebê, contudo, podem se apresentar também de forma devastadora infringindo um aspecto danoso. Considerando que a mãe pode talvez se sentir desamparada diante do grito da criança, expressão de seu desamparo, é possível que ela também sofra um trauma, o que por vezes explica o quanto a relação mãe-bebê pode se tornar extremamente ambivalente.

O trauma vivido por uma mulher que inicia o processo de se tornar mãe pela primeira vez, ou de um novo filho, aponta para a composição de (re) vivências passadas e atualizadas. Nesse momento surgem representações que até então não tinham tido acesso à consciência, como energia que escapa ao recalcamento. Uma jovem mãe entrou em depressão por julgar que deveria saber cuidar do seu bebê de imediato. Atendida de emergência, acometida por uma intensa crise de angústia uma semana depois do parto, verbalizou, no decorrer do tratamento, seu temor de que a perda da própria mãe, falecida em seu nascimento, “teria deixado consequências sobre sua própria capacidade de desenvolver seu instinto materno” (sic). À medida que narrava sua história e a analista se punha a escutar o trauma, a jovem consegue ouvir o que ela própria dizia e, com isso, pode passar a exercer plenamente a função materna.

Muitas mulheres no pós-parto apresentam um quadro de inibição e apatia merecedor de uma atenção especial. Revelam tristeza profunda acompanhada, como mostramos no caso apresentado acima, do medo de que não vão conseguir ser boas mães; mães que pudessem dar tudo aquilo que seus filhos precisam. Escutar o sujeito e sua angústia, expressão da dimensão excessiva, traumática e irrepresentável da pulsão, é a via pela qual o analista alcança apreender a formação de um sintoma como defesa frente ao desamparo.

Alguns dias depois do parto, me vi tomada por uma angústia que me deixou prostrada na cama sem poder atender minha filha. Foi então que passei a controlar a limpeza de seu quarto, de hora em hora, para evitar qualquer contaminação. Eu mesma desinfetava suas roupinhas e passei a exigir de todos que dela se aproximavam lavar as mãos e passar álcool antes de segurá-la. (Relato de uma mãe)

Esse fragmento clínico, por si só, coloca em evidência que o sintoma significa uma tentativa do sujeito de tratamento à angústia vivida como um estado de apreensão, no qual o sujeito antecipa uma situação de perigo desconhecido apesar de pressentido. Com efeito, quando o afeto de angústia se ligou a um objeto - o medo que seu bebê pudesse ser contaminado - a paciente constituiu como sintoma a obsessão por limpeza.

Lembremos que ao concluir, ainda na primeira tópica, que a angústia pode apresentar-se livre ou fixar-se a determinadas representações ou sintomas somáticos, Freud deixou em aberto o que resolveria com a escrita de “Inibição, sintoma e angústia” (1926/2006g), texto no qual introduz as ideias elaboradas em “Além do princípio de prazer” (Freud, 1920/2006e). Observando os fenômenos liderados pelo que designou como além do princípio de prazer, a compulsão à repetição, pulsão de morte e desamparo psíquico é que, então, irá propor o modelo metafórico da vesícula viva que funcionaria como uma linha fronteiriça entre o interior, englobando o sistema perceptivo-consciência, e o exterior, situando espacialmente esse sistema. O aparelho psíquico estaria, sob essa lógica, em contato com o exterior e teria, ao mesmo tempo, todo o aparato de memória no seu interior. Nessa perspectiva, então, o trauma poderia ser resultado de uma impressão perceptiva de muita intensidade que romperia a vesícula viva atingindo a consciência sem entrar na engrenagem da representação. Essas seriam, então, as marcas descritas na “Carta 52” acima referida.

O trauma também, nesse aspecto, está intimamente vinculado ao pulsional. A ideia do inassimilável, do que foge ao representável, retoma seu valor em termos que vão além do princípio de prazer que vigorava, até então na teoria. A irredutibilidade da pulsão à representação, um dos destinos da pulsão, resultante do trabalho psíquico, revela o despreparo do aparelho psíquico em suportar a dimensão excessiva, traumática e irrepresentável da pulsão (Barbosa, 2008, p. 41). Nesse sentido, a segunda teoria da angústia (Freud, 1926/2006g), formaliza a ideia de que o inconsciente não se encontra apenas restrito à memória equivalente ao recalcado, ou aos elementos da ordem da representação. Sob o domínio da compulsão à repetição o evento traumático emergiria então de um ato inesperado que repercute um evento que não pode ser deixado para trás. A compulsão à repetição é algo mais básico do que o princípio de prazer, pois responde justamente às situações traumáticas, dolorosas, causadoras de grande sofrimento (Rudge, 2003). Em todas essas situações a psicanálise mostra que esses desfechos são produzidos pelas próprias pessoas e determinados por influências infantis remotas.

Em nossa cultura, após o parto a maioria das mulheres apresenta um estado de angústia frente às demandas urgentes do bebê e para as quais não se sentem capazes de responder de imediato. “Que quer ele comigo?” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 14), é uma interrogação que a mulher se faz quando se torna mãe, ou a mãe de um novo filho. Uma demanda que “[...] assume diferentes significações e, portanto, mediada por diversos objetos de satisfação” (Jerusalinsky, 2008, p. 2), e que por vezes chega a provocar no corpo materno sentimentos de desamparo, de estranhamento e outras formas de angústia.

Os bebês não fazem nada. Não interagem. Minha vida agora é somente em função do bebê. Os dias são todos iguais. Acordo pela manhã sem ânimo para mais um dia idêntico ao que foi ontem. Antes eu conseguia trabalhar, cuidar da casa e ainda estava cursando o doutorado. Agora não dou conta de fazer mais nada, a não ser cuidar dele. (Relato de uma mãe)

Na clínica atual, não é incomum escutar esse tipo de testemunho revelador do quanto muitas mães, mesmo aquelas que desejaram engravidar, temem em se perder como sujeito frente ao exercício da maternidade, momento em que é preciso responder prontamente ao grito do bebê. Em geral, se mostram ansiosas ou extremamente angustiadas, situação que nos permite reiterar a pertinência clínica da relação entre trauma, desamparo e angústia no atendimento às gestantes e às mulheres no puerpério.

Édipo feminino e narcisismo

Relatos clínicos de mal-estar na maternidade mostram que muitas mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal encenam, sem que elas próprias tenham consciência, traços e marcas de sua história e, sobretudo aquelas que dizem respeito às vivências edípicas precoces. Com o intuito de nos valer de ferramentas que possam iluminar, com maior nitidez possível, o que acabamos de afirmar, apresentaremos de forma breve, mesmo correndo o risco de certo reducionismo, a construção freudiana que desembocou na formulação do que conhecemos sob a rubrica de complexo de Édipo, em torno do qual se constroem as bases e condições de subjetivação dos sexos.

Ao identificar em Édipo-rei os dois crimes máximos contra a civilização, incesto e parricídio, Freud encontra na tragédia de Sófocles a expressão próxima do amor às fantasias incestuosas que reconheceu em si próprio e em seus pacientes. Em relação ao Édipo feminino, é conhecida sua tese de que o objeto original, a mãe, precisa ser abandonado, depois de uma intensa ligação, para em seguida a menina aproximar-se do pai. Embasado na suposição lógica de que percebendo a pequenez do seu órgão sexual a criança do sexo feminino cai vítima da inveja do pênis, Freud admite que ao afastamento se junta a acusação de que a mãe é a responsável pela falta do um pequeno órgão, o pênis, em seu corpo. Instaura-se, assim, o sentimento narcísico de humilhação ligado à ausência, que a impulsiona em direção ao pai (Freud, 1925/2006f).

Após todo esse processo, a menina encontra a saída em direção à feminilidade abraçando a posição passiva no exercício da sexualidade, por identificação à mãe. Além do abandono do primeiro objeto de amor, para alcançar a sexualidade feminina, é necessário que a menina renuncie à excitabilidade do clitóris e perceba seu próprio órgão genital, a vagina. Com isso a mulher passará da posição sexual ativa aos fins sexuais passivos, necessários à concepção de uma criança (Freud, 1931/2006h, pp. 274-275).

A inveja do pênis perpetrada na menina indicaria, assim, algumas soluções possíveis à mulher. Dentre elas, a que incide sob o desejo de um filho implica a operação de permutar aquilo que lhe falta, o pênis, por um filho. O desejo do pênis, segundo Freud, é substituído pelo desejo de um bebê com o pai. Portanto, a equação simbólica pênis-falo-bebê, resposta à castração, resulta no tamponamento da falta na mulher. Nesse sentido, o feminino seria, portanto, equivalente à posição de mãe, dado que a menina escolhe seu objeto em conformidade com o ideal narcísico, ou seja, o que gostaria de ter se tornado, e se identifica com a mãe.

Para certa corrente crítica, a tese freudiana sobre sexualidade feminina que acabamos de expor, o desejo de um pênis igualado ao desejo feminino de ser mãe, confunde o tornar-se mulher com o tornar-se mãe. É o que defende Serge André em sua obra O que quer uma mulher? (1988): “[...] o desejo de ter um filho, suposto dar uma realização simbólica ao desejo inicial de pênis, significa, em última instância, que Freud atribuiu ao filho o papel de significante da identidade feminina, à falta de um outro sinal” (p. 22). Para André, a tese do desejo feminino pela maternidade não é compatível à prova real da clínica psicanalítica contemporânea.

Para Assoun (1993, p. 22), é preciso avaliar a limitação e a fecundidade da questão freudiana sobre a mulher; o que significa reconhecer que se a lógica fálica não dá conta de responder sobre o devir mulher, também não se pode prescindir dela. Portanto, trata-se de uma questão de difícil resolução, pois tanto a maternidade quanto a feminilidade são construções complexas da ordem do singular. De qualquer forma, o fato é que a mulher, mesmo tendo levado o mestre de Viena a criar a psicanálise, paradoxalmente se cala diante de sua própria sexualidade, suscitando-lhe uma questão. “A grande indagação que ficou sem resposta, e à qual eu mesmo nunca soube responder, apesar dos meus trinta anos de estudo da alma feminina, é a seguinte: que quer a mulher?” (Assoun, 1993, p. 20). Querer que contraposto ao “desejo de um filho”, obriga o analista a reconhecer, com Freud, que sobre a “alma feminina” quem melhor responde é o poeta.

A clínica certamente leva à investigação das possíveis conjugações do desejo de um filho, que faz da criança uma modalidade de relação da mulher com o falo, sobretudo quando o exercício da maternidade se torna palco de ambivalência dos sentimentos.

Ser mãe é estar no lugar mais contraditório deste mundo, já diz o conhecido ditado que une padecimento ao Paraíso. Viver isso na carne, durante o puerpério, é andar numa montanha russa emocional, permanentemente. Acordar com crise de choro pelo motivo mais insignificante, vivendo a tristeza dramática dos que não dormem. E ao mesmo tempo ser a pessoa mais realizada do mundo quando carrega o bebê e sente aquele cheirinho único. (Relato de uma mãe)

Como no verso de Clarisse Lispector que usamos para abrir o presente artigo, essa mãe testemunha o quão complexo, árduo e delicado é a construção do lugar materno que começa pelo ato de erogenização do corpo do bebê, do qual emergirá um “[...] sujeito que, por sua vez, será capaz de reproduzir sujeitos e não apenas filhotes humanos” (Iaconelli, 2012, p. 54). Lembremos que Margareth Hilferding dá um passo adiante em relação ao olhar da psicanálise ao desenrolar da maternidade, mostrando que sentimento único se instala, sem nenhum limite, entre a mãe e o bebê. Retomando a questão da relação defendida por Hilferding, propomos que Lacan complementará a extensão dessa trama ao nos indicar que num tempo mítico surge no infante uma questão em relação ao que a mãe quer e como ele será capaz de satisfazê-la. O que finalmente encontra-se em jogo diz respeito à referência do corpo como o mito que recobre a relação mãe-filho, que só será suprimida quando o corpo do filho responder, conforme Lacan (1957/1998b) aportou à teoria, como objeto pequeno a, ou seja, como falta. Dito de outro modo, o corpo da mãe ficará para sempre inacessível, estrangeiro. Desse corpo só se pode ter pequenos objetos inscritos na dinâmica do campo do Outro como objetos simbólicos, representantes do desejo da mãe.

O amor entre a mãe e o filho(a) não está garantido a priori, nem pelas forças da natureza, o discutível “instinto materno”, nem pela força do narcisismo. Embora a maternidade, como já dito, ocupe no imaginário social a conotação de um momento mágico de felicidade plena, o fato é que essa fantasia está muito longe da realidade da desilusão que as mães testemunham. O que se apresenta é a perda do instante mítico de plenitude dessa relação à qual nunca se fará um luto. A angústia está atada, ligada, à perda dessa ligação arcaica do filho com a mãe e vice-versa. Portanto, o que se segue ao nascimento é violento e traumático: instante preciso de perda e instalação da falta, aparecimento do real.

Se no momento em que acontece a maternidade a mulher não se sente apoiada, se sua história narcísica é frágil e se não consegue desafiar sua situação como mulher frente à mãe que se tornou, instala-se um conflito e a relação com seu bebê corre perigo. Lembremos que a passagem do auto-erotismo para o narcisismo (imagem unificada de si, que funda o Eu), implica também a capacidade do bebê em reconhecer-se no olhar da mãe, como uma imagem completa, conforme aprendemos na comunicação de Lacan em “O estádio do Espelho” (1949/1998a). De fato, para escapar da loucura que é a exigência de protagonizar uma mãe absolutamente perfeita para seu filho, a mulher deverá se aliar ao desejo pelo homem, abortando, assim, a relação destrutiva dela com o filho e deste com ela.

Muitas vezes, doenças e malformações fetais esfacelam a imagem que unifica o bebê aos olhos da mãe. Gestantes para quem a maternidade mostrou-se promissora, em geral, são tomadas por um intenso sofrimento subjetivo diante da vivência assustadora provocada pelo nascimento de um filho portador de anomalia.

Perguntam-me sempre com quem meu filho se parece. Se tem traços meus ou do meu marido. Respondo que ele tem seus próprios traços. Ele não parece com ninguém ainda. (Relato de uma mãe com o filho internado na Unidade de Tratamento Intensivo com suspeita de síndrome genética)

A mãe vê em seu filho a si mesma. Seu narcisismo ferido é revivido naquele bebê que não corresponde ao que ela imaginou durante a gestação, provocando frequentemente a irrupção do sentimento de terror desencadeador do trauma (Freud, 1920/2006e). Nesse sentido, o infante presentifica o real incomensurável e inassimilável do qual advém a angústia que paralisa.

Encontramos essa situação em Centros de Terapia Intensiva de Neonatologia onde bebês prematuros, com ou sem patologia associada, tornam real a fantasia de suas mães de que não são naturalmente boas. A mãe ferida pode, em decorrência de o trauma - lembremos que a palavra trauma derivada do latim significa “ferir” - apresentar uma depressão pós-parto, ou perder todas as suas referências e mergulhar numa tristeza profunda, melancólica. Portanto, o modelo do narcisismo é, nesses casos, mais adequado à investigação da mãe traumatizada.1

Tornar-se mãe

Será a maternidade, pelo menos, um dos destinos possíveis do “tornar-se mulher”?

Simone de Beauvoir, a partir da premissa psicanalítica de que na constituição da sexualidade feminina existe algo de enigmático, mais além da problemática edípica da castração, cunhou no segundo volume de seu livro O segundo sexo (Beauvoir, 1949/1980) o aforisma “Não se nasce mulher: torna-se mulher”. A filósofa e teórica feminista reconhecia, assim, que nenhum destino biológico, econômico e psíquico define a forma que a mulher assume na sociedade. As faces e as versões assumidas pelo feminino - o tornar-se mulher que ocupam um lugar central na teoria e prática psicanalítica sustentou a elaboração teórica de Beauvoir sobre o sexo feminino.

Essa ideia permite desmitificar alguns mitos e lugares-comuns de modelos explicativos sobre a feminilidade. A rigor, o enigma da feminilidade se insere num contexto traumático, uma vez que ela, a feminilidade, assinala desde o início da criação do método psicanalítico, algo que é da ordem de um encontro traumático com o real. Daí por que Freud se debruçou incansavelmente sobre a sexualidade da mulher, procurando diferenciá-la e dar a ela um estatuto radicalmente diferente da do homem. Se num primeiro momento de sua obra, compara a sexualidade feminina à masculina, logo se deixa guiar pelo que as palavras femininas lhe apontavam, e reconhece, prontamente, ser o feminino o “continente negro” da psicanálise. Negro porque, ausente no imaginário e no simbólico, terá de ser construído ininterruptamente e desmoronado imediatamente (Fuks, 1993, p. 10).

Com isso, vamos retomar os destinos do Édipo feminino e concluir este artigo partilhando, com o leitor, algumas reflexões finais acerca de nossa hipótese da reedição de um trauma na experiência da maternidade. Os avatares da sexualidade não se mostram simples para ambos os sexos. No que concerne às mulheres poder-se-ia pensar que a fase pré-edipiana, aquela intensamente ligada à mãe, é de tamanha importância a ponto de ser esse o momento que certamente mais contribui para o destino da sexualidade da mulher na vida madura. “Será, então, de nosso agrado conhecermos a natureza das relações libidinais da menina com sua mãe” (Freud, 1933/2006i, p. 120). O que Freud levantou com essa frase foi, certamente, a semelhança da fantasia de ser seduzida pelo pai, típico do complexo de Édipo nas mulheres, com a sedução fantasiada pelas meninas em relação à mãe na era pré-edipiana.

De fato, foi a mãe quem estimulou a menina pela primeira vez nos seus cuidados iniciais, promovendo sensações prazerosas nos genitais. Mas a troca do objeto de amor para as meninas não se faz tão simples. Traz a reboque um sentimento de hostilidade e ódio. Ódio esse que pode durar por toda a vida, parte dele pode ser superado ou permanecer sempre um remanescente. Forçada a abandonar a ligação com a mãe, em função do complexo de castração, a menina mergulha na situação edipiana como um refúgio (Freud, 1933/2006i, p. 129). Pode permanecer nessa fase por um período indeterminado, destruindo-o de forma tardia e muitas vezes incompleto.

A escolha objetal para a mulher, indubitavelmente, sofre determinação pela complexidade de estruturação. O vínculo demasiado com o pai pode determinar uma escolha segundo o tipo paterno, por exemplo. Porém, a hostilidade herdada da mãe pode se alastrar para o novo objeto, mostrando a total ambivalência do conflito da mulher. Na transformação da mulher em mãe, pode ser revivida uma identificação com a própria mãe, contra a qual havia uma batalha.2 Ambas as fases da menina, a pré-edipiana, onde se apoia a vinculação afetuosa com a mãe, e a edipiana, quando elimina a mãe e toma seu lugar junto ao pai, podem permanecer juntas no futuro da vida de uma mulher. Para Freud, a fase da ligação de amor materno, pré-edipiana, seria de maior valor e decisiva, pois encontram-se aí os preparativos para a maternidade um dos destinos do Édipo feminino que abre uma via de acesso à feminilidade (Freud, 1933/2006i)

Se a maternidade na atualidade - diferentemente do tempo em que a psicanálise se impôs como um saber sobre a sexualidade infantil e as mulheres estavam fadadas a ter bebês, pode ser uma opção para algumas, mais do que nunca há que se pensar o que pode vir a partir disso em função da plasticidade da construção materna. As estruturas clínicas certamente se reatualizam e produzem respostas singulares do sujeito ao tempo em que ele vive. A reedição da rivalidade com a mãe, o reencontro com a menina que queria oferecer um filho ao seu pai, o reaparecimento da sexualidade adolescente e a forma inesperada que se apresenta o parto, concorrem para o nascimento de uma nova mulher. Nesse processo a mulher poderá viver, como dito, as atualizações dos traumas passados junto com o filho recém-nascido. Esse duplo nascimento necessita, portanto, ser acolhido para que as transformações que possam advir sejam melhor compreendidas.

Minha mãe fica me dizendo o que devo fazer com o meu bebê. Ele está aqui na UTI, entre a vida e a morte, e ela não para de me dizer que vai tomar conta dele porque sou muito jovem e inexperiente. Me dá um desespero só em pensar que ela pode tirar o Antônio de mim. Não vou deixar! Desde pequena, sempre sonhei em ter filhos e sempre achei que seria melhor mãe do que ela! (Relato de uma mãe)

Nesse fragmento da fala de uma jovem mãe, percebe-se que a ameaça traumática da perda de um filho prematuro, exigiu dela re-transcrever, a posteriori, os traços e marcas de sua história com a própria mãe. Nesse processo de se constituir como mãe para seu filho, a separação da mãe foi uma escolha que caminhou junto com o seu próprio devir mulher.

Por fim, assumimos que as questões elencadas no presente trabalho revelam as inquietações que nos fizeram rever os conceitos freudianos apresentados e reiterar as premissas das quais parte o atendimento às mães, logo após seus partos e também com aquelas cujos bebês são internados nas Unidades de Tratamento Intensivo Neonatal. Todos as vinhetas clínicas aqui apresentadas nos trazem a necessidade de um entendimento maior sobre as vicissitudes da maternidade, considerando um contexto traumático que essa nova situação pode se revelar para a mulher.

  • 1
    Vale notar que em “Introdução à psicanálise de guerra” (1919/2006d), Freud considerou que a via privilegiada à investigação das neuroses traumáticas seriam os quadros clínicos circunscritos ao modelo do narcisismo: melancolia, hipocondria, psicose.
  • 2
    Sobre o efeito potencialmente traumático do ódio materno dirigido à filha não nos deteremos aqui. Apenas pontuamos que esse ódio, sobre o qual Freud não discorreu, apesar de ter reconhecido a ambivalência amor/ódio como constituinte do sujeito, pode ser um dos grandes disparadores do efeito traumático do ciclo grávidico-puerperal. Sobre o ódio materno ver Stein, C. As Erínias de uma mãe – Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta. 1988
  • *1
    Artigo derivado da dissertação de Mestrado da primeira autora sob a orientação da segunda autora, defendida no Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ), em 25 de janeiro de 2019, sob o título: Maternidade - experiências traumáticas.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior (Brasília, DF, Br) / This work is supported by. Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior (Brasília, DF, Br).

Referências

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  • Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2019
  • Revisado
    16 Out 2019
  • Aceito
    17 Out 2019
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