Resumos
O trabalho visa traçar um paralelo entre o panóptico de Bentham, a partir de Foucault, e o supereu freudiano. O panóptico não era apenas uma construção física, mas correspondia à transposição para a realidade do ideário político-social de uma época. Retrata uma relação de poderes em que o sujeito se vê controlado por um outro, cuja invisibilidade é catalisadora da percepção de vigilância e opressão. A partir do supereu, o representante da cultura no sujeito, busca-se articular os dois conceitos e, do encontro, abordar as mudanças oriundas da mudança do lugar do pai na contemporaneidade e suas implicações na subjetivação.
Palavras-chave: Supereu; panóptico; pai; cultura
This article aims to draw a parallel between Bentham's panopticon, based on Foucault, and the Freudian superego. The Panopticon was not just a physical construction, but rather corresponded to the transposition to reality of the political-social ideal of an era. It portrays a relation of powers in which the subject sees himself controlled by another, whose invisibility is a catalyst for the perception of vigilance and oppression. From the superego, the representative of culture in the subject, we seek to articulate the two concepts and the encounter, to address the changes arising from the change of the father's place in contemporary times and its implications for subjectification.
Key words: Superego; panoptic; father; culture
Cet article vise à tracer un parallèle entre le panoptique de Bentham, à commencer par Foucault, et le surmoi freudien. Le panoptique n'était pas seulement une construction physique, mais il correspondait à la transposition vers la réalité de l'idéologie politico-sociale d'une époque. Il dépeint une relation de pouvoirs dans laquelle le sujet est contrôlé par un autre dont l'invisibilité est un catalyseur de la perception de la vigilance et de l'oppression. A partir du surmoi, représentant de la culture dans le sujet, nous cherchons à rapprocher les deux concepts et, à partir de cette rencontre, à traiter les changements issus du changement de la place du père à l'époque contemporaine, ainsi que ses implications pour la subjectivation.
Mots clés: Surmoi; panoptique; père; culture
El objetivo del trabajo es establecer un paralelo entre el panóptico de Bentham, a partir de Foucault, y el superyó freudiano. El panóptico no era sólo una construcción física, sino que correspondía a la transposición a la realidad de la ideología político-social de una época. Representa una relación de poderes en donde el sujeto se ve controlado por otro, cuya invisibilidad cataliza la percepción de vigilancia y opresión. Desde el superyó, el representante de la cultura en el sujeto, se busca articular los dos conceptos y, a partir de ese encuentro, abordar los aspectos provenientes del cambio del lugar del padre en la contemporaneidad y sus implicaciones en la subjetivación.
Palabras claves: Padre; Superyó; panóptico; padre; cultura
O panóptico, a cultura disciplinar e o supereu
Ao fundamentar a cultura através do mito de “Totem e tabu” (1913/1994c), Freud estabelece um corte epistemológico, dissociando natureza e cultura, e supondo o homem marcado e constituído pela indeterminação pulsional que “perverte” o instinto, homologa a culpa e a renúncia como molas fundadoras da civilização.
Resumidamente, o mito de “Totem e tabu” (1913/1994c) narra o ato fundador da cultura e do sujeito. Nos tempos primordiais os homens se reuniam em hordas onde somente as relações de força e a violência estavam presentes. Esses pequenos grupos estariam submetidos ao poder despótico do macho-orangotango (pai da horda), que livremente se apropriava das fêmeas e delas fazia uso sexual, sendo este vedado aos demais. Um dia, num ato de rebeldia, violência e ódio, os irmãos se unem para matar o pai e banquetear--se com seu cadáver, e com isso, usurpando seu lugar, usufruir das fêmeas de seu poder. Porém, após seu assassinato descobrem que apesar de odiá-lo também o amavam e respeitavam, e por isso são imediatamente perseguidos pelo remorso e a culpa, percebendo que o lugar do pai é impossível de ocupar. Assim inauguram uma nova ordem social: a exogamia, a proibição do incesto, isto é, a organização da sexualidade e o totemismo (a proibição de matar o pai totêmico). Estas são as duas bases fundadoras de todas as sociedades humanas. É através do remorso, da culpa, da proibição do incesto e do parricídio que marcamos a passagem da natureza para a cultura, e instauramos as leis que regem as sociedades humanas.
Assim, cada cultura interfere de maneira radical e fundamental na produção de nossa subjetividade pois que, como seres de cultura, somos “tingidos” pelas formas prevalentes que determinada época, contexto histórico, social e econômico privilegiam, ainda que não deixemos de considerar o papel da singularidade da história de cada sujeito em sua constituição e sua indeterminação frente ao desejo e às pulsões.
De que maneira podemos pensar o liame entre as formas de subjetivação, propostas pela psicanálise, e as produzidas em uma sociedade de disciplina e controle, cujo ápice é simbolizado pelo Panóptico de Bentham?
Segundo estabelece Foucault (2018), em Vigiar e punir, a partir do século XVIII começa a se configurar uma mudança de objetivo no sistema penal, isto é, ao invés da punição, a disciplina e o controle ganham espaço, não só na gestão dos criminosos, mas também na dos homens comuns.
É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre sobe- rano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício se tornou rapidamente intolerável. (p. 73)
É preciso que novas formas se deem na intervenção, subordinação e controle dos corpos, para que se constituam como corpos dóceis, disciplinados e obedientes. Essas práticas já eram realizadas nos conventos, nas escolas, no exército, sendo então necessário que se espraiassem pela coletividade como um todo e garantissem sua relevância na formação de uma sociedade obediente e utilitária:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (p. 135)
A eficiência do sistema disciplinar é prioritariamente determinado pela distribuição do indivíduo no espaço, embasado no princípio de clausura. É preciso que seja delimitado fisicamente um espaço (muros, cercas etc.), que vise separar “os de dentro” e “os de fora”. A multidão, complexa e desordenada, abre espaço para as classificações e nomeações, ainda dentro de uma perspectiva utilitária.
Todas as instâncias de controle individual funcionam num duplo modo: o da divisão binária e o da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante).( p. 193)
Dessa maneira a cultura não prioriza a punição do que se fez, ao contrário ela previne e evita que “seja feito”. Delimitando o espaço, o controle é facilitado, pois com os indivíduos confinados e vigiados tornam mais fáceis as funções de observar, julgar e punir os desvios que se apresentem, desse modo evitando que se transformem em ações de maior vulto.
Este espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, [...] onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos — isto tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar... (Foucault, 2018, p. 192)
Por detrás da ideia de confinamento vigilante, é interessante observar suas raízes, alicerçadas na possibilidade da disseminação de doenças endêmicas (Foucault, 2018). Quando se declarava a presença de uma “peste”, a ameaça de disseminação provocava, em uma cidade, uma série de medidas de controle e vigilância que se faziam necessárias na tentativa de barrar o contágio. Essas práticas eram, na verdade, formas de espelhar o horror aos “contágios” de todas as “doenças” da humanidade, as que afligem o corpo ou a alma, como a vadiagem, as deserções, ou mesmo as pessoas que “vivem e morrem na desordem” (Foucault, 2018, p. 192). A partir dessa estrutura que separa e classifica os homens, Foucault (2018) aponta:
A lepra e sua divisão; a peste e seus recortes. Uma é marcada; a outra, analisada e repartida. O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o outro, de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer o poder sobre os homens, de controlar suas relações de desmanchar suas perigosas misturas. (p. 193)
Embora se apresentem de maneira diversa, a “quarentena” da peste e as medidas disciplinares, com certeza não são estratégias incompatíveis, ao contrário, poderíamos dizer que se constituem como medidas complementares. Para a desordem e tumultos, acionamos o esquema da peste, para aqueles que não se adequam aos preceitos da cultura disciplinar, a exclusão.
É importante que observemos que as transformações que marcam as mudanças no corpo social são representadas de forma emblemática pelas instituições disciplinares. No entanto, é fundamental que, para além da disciplina imposta aos indivíduos, lhes seja cobrada e observada sua “utilidade” na preservação e na alimentação da máquina social e, para tal, é imprescindível “ramificar” esses mesmos mecanismos para além de suas atribuições específicas Por exemplo: uma escola, além de formar crianças “dóceis”, também deve observar os pais e suas formas de viver, transformando em uma política de Estado a vigilância de toda a comunidade. Conforme salienta Foucault (2018):
A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia. (p. 208)
É nesse contexto que surge a figura arquitetônica do Panóptico. Uma breve descrição de sua estrutura, se faz aqui necessária:
O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário, um escolar. [...] o princípio da masmorra é invertido; ou antes de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e se suprimem as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (p. 194)
Bentham, com seu panóptico, extrai do sujeito todas as suas forças, sonhos, palavras e quiçá seus desejos, e os transforma em espaços ocos que perpetram ações que sejam “úteis”, banindo sua singularidade, sua humanidade. Como nos aponta Miller (2019) “o ideal panóptico é a servilização integral da natureza ao ‘útil'” (p. 94). Bentham concebeu aqui um mundo sem dejetos, sem crueldade, nem bondade, vazio e inumano, “onde todo resto seria imediatamente reempregado, um mundo de superutilizaçao”. (p. 95).
No panóptico, estão dissociados aquele que vê daquele que é visto. Assim está posta a assimetria que assegura o poder e induz no sujeito a certeza paranoide de ser observado, não importa por quem, “uma sujeição real nasce de uma fonte fictícia” (Foucault, 2018, p. 196).
Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papeis, torna-se princípio de sua própria sujeição. (p. 196)
Na verdade, Foucault propõe uma tripla abordagem do Panóptico de Bentham: por um lado, ele sugere que essa estrutura arquitetônica seja estendida a vários meios de visibilidade; por outro, ele pensa o panóptico como um dispositivo de saber e poder — porque descobre técnicas de produção de verdade que ocorrem no interior de tal meio — enfim, ele diz que irá tratar o panóptico como o diagrama da sociedade disciplinar. O panóptico é descrito em dois livros fundamentais: A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 2003) — com maior precisão, na quarta conferência desse texto — e Vigiar e punir (Foucault, 2018) — no qual Foucault dedica um capítulo exclusivo a descrevê-lo minuciosamente. Em ambos os livros, ele demonstra que esse meio de visibilidade pode ser encontrado em vários espaços institucionais, tais como escolas, fábricas e hospitais, e que ele funciona como um dispositivo em que a vigilância produz um triplo efeito nos indivíduos a ele sujeitados. Primeiramente, um efeito de individualização por intermédio de técnicas sutis de adestramento; outro efeito, o de produção de verdades colocadas em discurso, que ocorre nas técnicas de exame bem justificadas no texto A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 2003, p. 88); e, finalmente, uma produção generalizada de corpos dóceis que resultarão na constituição de sujeitos disciplinados e devidamente dispostos a produzirem uma ação útil em benefício da sociedade. Vejamos no detalhe esses três efeitos produzidos pelo panóptico.
A individualização é um processo resultante de uma distribuição dos indivíduos em um determinado espaço, no qual eles são isolados uns dos outros e submetidos a um processo de vigilância virtual. Por outro lado, eles devem ser individuados por intermédio de exercícios desempenhados ao longo de uma jornada, tendo seu tempo de produtividade devidamente ordenado. A ordenação do tempo na forma de trabalho útil, carga horária de uma determinada atividade escolar, meio interno de tratamento e adestramento indispensável para a produção de uma tarefa qualquer, se faz pela exata exigência de um poder disciplinar que funciona como estratégias em meios fechados de observação. Ora, tendo o tempo ordenado e a distribuição do espaço devidamente esquadrinhada, os indivíduos se empenharão para compor uma tarefa útil, no espaço e no tempo, por intermédio de uma atividade produtiva que incidirá, imediatamente, sobre a individualidade do produtor.
Nesse meio de visibilidade, onde os indivíduos se sentem vigiados por alguém que eles não veem, a vigilância vai se tornando virtual. Breve ela será, gradativamente, subjetivada pelos indivíduos que se tornam sujeitos, sujeitados ao regime do panóptico. Ora, é dessa maneira que Foucault vai extrair do panóptico um dispositivo de vigilância que pode ser estendido a todo e qualquer meio institucional das sociedades modernas. Sendo precisa a ideia de que a disciplina é uma estratégia de exercício de forças que irá caracterizar o funcionamento de uma sociedade disciplinar, cabe lembrar que o panóptico é o meio concreto onde tais exercícios serão efetuados, assimilados e subjetivados por intermédio de treinamentos intensivos, autoadestramento das atividades úteis e procura ostensiva de um melhor rendimento da atividade que esteja sendo exigida no meio onde cada um executa sua tarefa.
Em suma, a partir da transparência e da obscuridade desse olhar que observa, podemos então dizer que o próprio sujeito torna-se agente do poder disciplinar. Quanto mais esse poder se aproxima do “incorpóreo” mais efetivos são seus efeitos: “vitória perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação” (Foucault, 2018, p. 196).
Por outro lado, ao ser submetido ao olhar virtual do outro, ele irá se posicionar como um agente capaz de executar tarefas concretas ao se sentir examinado e inquirido pelo olhar de alguém que o investiga. Nesse caso, o panóptico coloca em cena um dispositivo de vigilância que efetiva técnicas de produção de verdades pelo procedimento discursivo.
Vamos agora às condições do segundo efeito acima apresentado: no panoptismo o exercício de poder — isto é, a vigilância permanente sobre os indivíduos — cria a possibilidade de constituir sobre os sujeitos que ele vigia, e a respeito deles, um saber. Um saber que visa determinar “se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se progride ou não etc.” (Foucault, 2003, p. 88). Submetido agora à vigilância de um grande observador, o indivíduo se consolida como sujeito ao prestar contas daquilo que ele sabe por intermédio de uma técnica de produção de verdade obtida pelo procedimento do exame.
Trata-se exatamente de uma estratégia de poder que produz saber pelo exame criterioso do sujeito que se encontra vigiado, através de um procedimento de “obtenção de verdades que deve ocorrer nas escolas, hospitais, prisões, casas de correção, hospícios, fábricas etc.” (Foucault, 2003, p. 86). No exame, uma verdade é extraída do sujeito por intermédio de critérios os mais variados e modalidades diversificadas. Assim, por exemplo, há exame na escola, exame de qualificação nas instituições de formação profissional, exame criterioso da vida pregressa do sujeito examinado, exame de rendimento no trabalho, de conduta de correção etc. Breve, toda uma vontade de saber será, aos poucos, consolidada pelo mecanismo do panóptico: nele a técnica do exame irá discriminar o que é normal ou não, o que se deve ou não fazer a partir daquilo que é ordenado, o que é permitido ou não por uma determinada norma. Nesse processo de normatização, as normas regulamentarão os critérios variados de técnicas de exame.
Enfim, o panóptico é o meio produtor de indivíduos disciplinados e funciona como uma espécie de laboratório de poder; ou, como diz o próprio Foucault (2018), “o panóptico é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal” (p. 199). Nesse sentido, além de um sistema arquitetural e óptico, ele funciona “como uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (p. 199).
É polivalente em suas aplicações e funciona como o meio de efetuação do sistema disciplinar. Assim, “ele serve para emendar os prisioneiros, serve igualmente para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários e fazer trabalhar os ociosos” (p. 199).
Funciona como o meio de efetuação de uma série de disciplinas que devem impor uma tarefa ou um comportamento a certo número de pessoas mantidas sob uma vigilância permanente. Cumpre acrescentar que as disciplinas são efetuadas em meios fechados que implementam estratégias de produção de corpos dóceis e indivíduos dotados da capacidade de realização das tarefas exigidas porque subjetivam as atividades da vigilância externa, desenvolvendo, internamente, uma consciência capaz de garantir a eficácia da conduta a ser realizada. Aqui talvez esteja dada uma das condições de possibilidade para o surgimento de uma possível consciência disciplinada.
Uma sociedade disciplinar, portanto, é aquela que vê o sistema panóptico espalhar-se em todas as suas instituições, imbricar-se de todas as formas através da contínua observância e dos exames periódicos, de maneira que os eventuais desvios possam ser advertidos antes que se efetivem como realidade.
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa ideologia específica de poder que se chama de “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele pode ter se originam nessa produção. (Foucault, 2018, p. 189)
Para Bentham, seria necessário saber todas as maneiras pelas quais um homem pode sofrer individualmente; saber os efeitos desse sofrimento permitiria estabelecer uma equivalência entre intensidade de dor e gravidade de delito.
A lei natural é uma fábula; toda lei é ser de linguagem que põe em jogo duas entidades reais: o prazer e a dor, que são a única referência do discurso jurídico em seu conjunto. Uma lei é apenas um dispositivo de linguagem que associa artificialmente ações e efeitos sensíveis segundo a fórmula: tal ação provocará tal sofrimento ou tal felicidade. (Miller, 2019, p. 118)
Como nos assinala Foucault (2018), o panóptico engendra uma nova anatomia política
[...] alicerçada em relações de disciplina que se capilariza em toda a sociedade, definindo e interferindo na rotina, no quotidiano de todos os homens e suas relações. Estamos então falando de uma cultura de eterna e profunda vigilância que vai das disciplinas fechadas, espécie de “quarentena” social, até o meca-nismo indefinidamente generalizável do panoptismo. (p. 208)
Esta nova estrutura social, na verdade não substitui os outros modelos de exercício de poder; ao contrário, os interpola, dialoga com eles, e faz com que os efeitos do poder se difundam nas mais longínquas e insignificantes esferas de relações. “Não estamos nem nas arquibancadas, nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens” (p. 210).
Ao explicitarmos as linhas mestras que compõem uma sociedade disciplinar, e tendo o panóptico como seu representante, irresistível não pensar em suas relações com o supereu, olhar invisível e autoritário, mantenedor das leis que regem uma cultura, encravado no mais recôndito espaço da alma humana.
Nossa constituição psíquica é marcada, desde o início, pela presença do outro, esse outro que se coloca como representante da cultura e pelo qual somos introduzidos no campo da linguagem. Freud articulou de forma indissociável sujeito e cultura, ao ponto de assim iniciar seu texto “Psicologia de grupo e análise do eu” (1921/1994e): “O contraste entre psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto” (p. 91). Sendo assim podemos dizer que o mito de “Totem e tabu” (1913/1994c) é revisitado e revivido por cada um no complexo de Édipo, e que, ao se referir às matrizes fundantes da cultura, descreve também a constituição do próprio sujeito. Para Quinet (2019): “Se Bentham formulou a técnica do olho do Poder, foi Freud quem teorizou a instância da vigilância e crítica — o supereu que existe dentro do sujeito” (p. 145).
Sabemos que o sujeito freudiano se viu, a partir da segunda tópica, caracterizado e constituído por Isso, Eu e Supereu. As duas últimas instâncias são distintas entre si apenas pelas identificações que as caracterizam, e pela cisão de eu que as produz. Freud vai dizer que o Supereu surge a partir da primeira identificação, que é não mediatizada e marcada por ser fruto da identificação com o Supereu dos pais.
Assim cultura, Supereu, outro, recalque e transmissão se veem numa trama que se repete nos laços que vivificam as gerações e que intercambiam os conflitos. Neles são marcados os ideais que vão caracterizar determinada cultura. Como a arquitetura do panóptico, o Supereu age como a sentinela paterna, guardiã dos ideais de uma cultura em nós. Aquela que tudo vê, onde a claridade não se apresenta só como reveladora, mas essencialmente como responsável por julgamento e punição. Punição, como previa Bentham, adequada para cada sujeito em sua forma e intensidade.
[...] um dia se precisará mostrar como as relações intrafamiliares, essencialmente na célula pais-filhos, se “disciplinaram”, absorvendo desde a Era Clássica esquemas externos escolares, militares, depois médicos, psiquiátricos, psicológicos que fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal. (Foucault, 2018, p. 208)
Podemos assim pensar, a partir da citação acima, que, para que seja possível a adaptação na sociedade disciplinar, é preciso que o sujeito tenha sido “domesticado” e preparado para aceitação das diretrizes impostas, tarefa na qual a família desempenha papel significativo. Em outras palavras, para que seja possível a adaptação frente à instituição pedagógica, o sujeito precisa ser previamente docilizado, domesticado e adestrado, ainda que “ortopedicamente”, no seio de sua própria família. Como nos aponta Foucault, se o poder do soberano é o poder alicerçado na força da espada que ameaça e intimida a vida, o poder disciplinar, ao contrário, regulamenta, controla e expande seu poder tentacular a todas as formas possíveis do viver. A passagem do poder soberano ao poder disciplinar se deve à alteração das formas de produção, como nos relata Han (2018). Em função da transformação da produção agrária e o advento da industrialização, tornou-se “necessário disciplinar o corpo e adaptá-lo à produção mecânica. Em vez de torturar o corpo, inseri-lo em um sistema de normas” (Han, 2018, p. 34).
Dessa maneira, é importante salientar e especificar o lugar do pai, ou melhor, da função paterna na sociedade disciplinar, uma vez que é pela interdição paterna que adentramos na cultura. Ao falarmos de cultura, função paterna e lei somos imediatamente lançados no rodamoinho sombrio e paradoxal do Supereu. Ainda que só nomeada em 1923, já é vestígio e rastro na teoria freudiana muito antes de sua nomeação. Os primeiros textos psicanalíticos já apontam para o esboço dessa instância. As autopunições da histeria que, já no “Rascunho K” (1896/1994a) são atribuídas à escrupulosidade da consciência moral, que entra em conflito com certos desejos e os censura, já apontam para a presença de uma instância de observação e julgamento e antecipam o que será exposto em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1994d) onde algumas funções do Supereu, já começam a ser delineadas. “[...] no princípio era o parricídio constitui o prelúdio, nas próprias origens da psicanálise, de toda a questão sobre o surgimento do supereu em Freud, encavalado nos labirintos do pai”. (Ambertin, 2009, p. 37).
Sendo herdeiro do Isso e do complexo de Édipo, o supereu é originário das primeiras identificações, não com os pais, mas com o Supereu dos pais. De origem narcísica, é parte cindida do Eu e, portanto, marcado pelo “amor de si”, tão característico dessa fase. Inicialmente há o “Eu puro prazer”, cuja magnitude exuberante e onipotente marca o momento em que o Eu foi percebido como ideal. A interferência imposta pelos limites da realidade representados pela crítica dos pais, revela ao pequeno infante sua real dimensão. Na impossibilidade de abandonar completamente uma satisfação contemplada, a criança elabora para si um ideal a ser perseguido: o Ideal de Eu. Essa instância implica a vigência de constante observação para que, frente a esse parâmetro, o Eu seja medido. A consciência moral depende do estabelecimento desse Ideal a partir do desejo dos pais e, posteriormente, dos educadores, e dos valores instituídos pela cultura (Ideal de Eu). Dessa maneira, Freud pressupõe que uma parte do Eu dobra-se sobre si mesmo e, dessa forma, se dedica à auto observação, ação que se coloca como arauto de ações futuras como julgar e punir.
A propósito do processo da primitiva constituição do Eu, Lacan traz importante contribuição em “O estádio de espelho” (1949), texto em que, inspirando-se nos estudos de Wallon sobre a prova do espelho, detalha a experiência de identificação especular constitutiva do Eu. Tendo Freud antecipado que a primeiro esboço do Eu é um eu corporal, Lacan mostra que a criança em certo momento se apropria da imagem especular como sua, e que para isto é preciso que essa imagem seja reconhecida e sustentada pelo adulto que dela cuida e ampara. Como nos aponta Laplanche & Pontalis (1991):
Nessa perspectiva, em que o ego se define por uma identificação com a imagem de outrem, o narcisismo — mesmo “primário” — não é um estado do qual estaria ausente toda e qualquer relação intersubjetiva, mas a interiorização de uma relação. (p. 288)
Ainda que, quando recebida por um discurso apaixonado dos pais, a criança se veja como um “Eu ideal”, “sua majestade, o bebê”, esse momento de realização idílica será inevitavelmente questionado pelos pais em suas desaprovações ou exigências, como porta-vozes das diretrizes da cultura. Assim, seremos coagidos a aceitar um ideal que vem de fora, ideal de eu, e dessa maneira, somos lançados na eterna e perpétua busca pelo amor do outro. Permeado pela cultura, o Ideal é escopo, modelo de onde se quer chegar para merecer amor. Como se está sempre em busca de realizar esse Ideal, mas sem nunca poder alcançá-lo, ele é promotor de angústia e de admoestações em relação ao pobre Eu, que se vê enlaçado nessa trama diabólica, cujo devir prometido é armadilha de controle disciplinar social.
Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial, que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do Eu, e que com essa finalidade em vista, observasse constantemente o Eu atual, medindo-o por aquele ideal. (Freud, 1914/1994d, p. 112)
Essa é uma antecipação da função que será atribuída ao Supereu, após 1923, de auto-observação. Quando se consegue a aproximação do Ideal, parte da alegria de que desfrutou o Eu Ideal é recuperada. Porém a autocrítica impera quando isso não se dá, e a pulsão de morte, com a qual o supereu tem estreita vinculação, pode ocasionar terríveis punições buscadas inconscientemente.
O conceito de Supereu constitui importante contribuição para a abordagem da cultura a partir da teoria analítica. Os saberes e valores que constituem a cultura têm nos pais seus porta-vozes, e na relação intensamente erótica com eles a garantia de sua impressão no psiquismo.
O Supereu é constituído por uma identificação direta e imediata, que se efetua mais primitivamente de que qualquer outro investimento objetal (Freud, 1923/1994f, p. 45). A essa gênese primitiva Freud atribui o fato de ser, entre as identificações que compõem o Eu, a mais autônoma e inteiramente cindida. Apesar disso o Supereu é apenas uma parte desse Eu, com a qual pode entrar em intenso conflito. Por outro lado, é também legislador referenciado ao Édipo, do qual é herdeiro.
Primeiramente sinônimo dos ideais, o Supereu posteriormente é seu veículo, escopo pelo qual o ego se mede e por isso mesmo, observa, compara, mede, julga e castiga. Na formação dos grupos, tem papel importante. O comportamento da massa se caracteriza pela dissolução da identidade de cada sujeito. Há uma identificação horizontal entre os membros que propicia a união do grupo, assim como a identificação ao líder, que passa a ocupar o lugar do Ideal de Eu e do Supereu de cada um. O deslocamento do ideal do Eu para o líder implica que o Ideal do Eu de cada um, anteriormente em vigor, será relativamente anestesiado, o que trará uma mudança intensa no comportamento dos indivíduos. Agora seguirão os ideais pregados pelo líder, que muitas vezes servem apenas a ele próprio (Freud, 1921/1994e). O texto “Psicologia das massas e análise do eu” (1921/1994e) foi considerado por muitos, inclusive Lacan, como prenunciando o nazismo. Se esse efeito de retorno ao pai pode levar a destinos tão nefastos, é porque o pai da horda é revivido; o pai que sustenta a cultura é o pai morto.
O panóptipo nada mais faz senão dar uma estrutura de cimento armado àquilo que a psicanálise desvela como o olhar do supereu, correlato da mancha que o sujeito faz na sociedade disciplinar, em que o olhar está por todas as partes como expressão do mal-estar na civilização. (Quinet, 2019, p. 144)
O Supereu, marcado por sua origem paradoxal como herdeiro do Isso, mas também do complexo de Édipo, coloca-se como guardião internalizado das normas da cultura. Constituído pelas primeiras identificações, permeadas de erotismo, como os pais, vai se tornando cada vez mais impessoal, até se confundir com dimensões incorpóreas e espirituais (governo, estado, Deus, destino). (Freud, 1933[1932]/1994i, pp. 69-70)
Podemos ver suas interligações com a cultura panóptica:
Com o panóptico, Bentham, avant la lettre (freudienne), utiliza a instância do supereu na tentativa de promover a interiorização do olhar para controlar os atos e até mesmo o pensamento dos que ele vigia. Esse olho do supereu faz existir o Outro como receptador do gozo, constituindo o Outro do poder com seu olhar fuzilante, trazendo-lhe uma existência que inexiste e uma vigilância efetiva de controle social. Torna assim o sujeito transparente submetido ao comando de dar-se a ver. (Quinet, 2019, p. 144)
Se no panóptico a indução de ser vigiado era matriz de controle e se fazia a partir da invisibilidade do observador, em nossa cultura “panóptica” o virtual exerce esse papel e é onde as leis parametrizadas pela sociedade são propagadas. Dessa forma, o invisível também se apresenta, pois que subliminarmente somos induzidos pelos desejos, gostos e desgostos, valores e desvalores que, apropriados pela cultura, compõem o arsenal disciplinar social que vão me dizer quem eu sou, o que é permitido ou inaceitável, o que é normal e anormal. A internalização e aceitação desses conteúdos se faz passivamente, sem que seja percebido ou discutido (o que coincide com a característica do supereu de ser quase totalmente inconsciente), mas determinam o ideal imposto de fora para dentro, que também se realiza dentro da geografia psíquica e que se faz manifesta nas relações entre Eu, Supereu e Id. Dessa maneira, como lei a ser cumprida, os mandatos culturais, terminam por impor ao Supereu esse lugar de nova, interna, invisível, silenciosa sentinela, eficaz em sua função, a última e derradeira vigia panóptica, ungida pela sociedade.
Se o pai e o Supereu se encontram no centro do campo de visão psica-nalítico assim como suas implicações, renúncia, culpa e lei, permeadas pelo complexo de Édipo, torna-se necessária a discussão sobre as mudanças percebidas na subjetividade frente às transformações advindas do lugar ocupado pelo pai na contemporaneidade. Se o sujeito psicanalítico se vê alicerçado no conflito entre pulsão e os interditos, que implicam a renúncia ao desejo proibido para que a cultura e o sujeito possam se constituir e se desenvolver, conforme nos aponta Prata (2012), com a crise da sociedade disciplinar e o anúncio da sociedade de controle, os meios de confinamento “desterritorializam-se” e ficam cada vez mais delegados ao campo social. Sendo assim, os lugares ocupados por esse pai edipiano, também sofre mudanças radicais frente às transformações de gênero e de sexo, assim como da posição do feminino e suas consequentes relações com a parentalidade e filiação, cedendo lugar a novos arranjos que compõem as novas formas de viver e existir na contemporaneidade.
Assim, a transformação das normas de resolução do modelo edipiano que se articulam às novas posições maternas e paternas interliga-se à produção de novos arranjos psíquicos de subjetivação, os novos arranjos, as modificações nas relações parentais, a redução do poder paterno não são, de forma necessária, uma ameaça à subjetivação, mas levam a um questionamento do esquema da referência do pai. (Prata, 2012, p. 224)
A desterritorialização leva a certa diluição dos limites institucionais, com uma consequente mudança da forma como circulam as relações de poder, assim como da forma de inserção, subjetivação e atuação na cultura. Dessa forma, deve ser indagado quais seriam as ressonâncias desta nova realidade na clínica psicanalítica, tendo em vista que, através do sofrimento que nela se apresenta, pode ser feito certo diagnóstico de fatores tóxicos da cultura, assim como Freud (1908/1994b) pôde, a partir da clínica da histeria, atinar com o diagnóstico da intensa repressão à sexualidade das mulheres na Viena do século XIX.
O supereu é fundamental em seu papel na transmissão na família e na cultura, mas pode assumir também o papel de figuração do poder totalitário, nos casos em que sua severidade e crueldade o aproximam do imperativo categórico kantiano. “O supereu — a consciência em ação no eu — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável contra o eu que está a seu cargo. O imperativo categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo” (Freud, 1924/1994g, pp 208-209). Freud notava os excessos à obediência das normas culturais impostas de dentro pelo Supereu, observando que esse agente interno da civilização se comporta como “uma guarnição numa cidade conquistada” (Freud, 1930[1929])/1994h, p. 168). Assim:
Em nossa pesquisa de uma neurose e em sua terapia, somos levados a fazer duas censuras contra o Supereu do indivíduo. Na severidade de suas ordens e proibições, ele se preocupa muito pouco com a felicidade do Eu, já que considera de modo insuficiente as resistências contra a obrigação de obedecê-las — a força pulsional do Id [em primeiro lugar] e as dificuldades apresentadas pelo meio ambiente externo real [em segundo]. Por conseguinte, somos frequentemente obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos opormos ao supereu e a nos esforçarmos por diminuir suas exigências. (pp. 167-168)
Na Conferência 31 encontramos a mais clara, talvez a única formulação freudiana relativa à ética da psicanálise (Rudge, 1996). Nessa formulação, Freud busca delimitar a direção dos esforços terapêuticos da psicanálise, que visam promover a independência em relação ao Supereu em sua face tirânica, cúmplice do Id, que podemos considerar solidária do poder disciplinar:
[...] pode-se admitir que os intentos terapêuticos da psicanálise tenham escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito é, na verdade, fortalecer o Eu, fazê-lo mais independente do Supereu, ampliar o campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do Id. Onde estava o Id, ali estará o Eu. É uma obra de cultura — não diferente da drenagem do Zuiderzee.1 (Freud, 1933[1932]/1994i, p. 84)
O trabalho da análise encontra uma analogia no trabalho da cultura porque sua forma de atuação é inseparável da elaboração psíquica, da simbolização. O cunho compulsivo das pulsões e dos mandatos do supereu devem ser dominados, como as águas do Zuiderzee. O ato do analista deve possibilitar ou favorecer o trabalho de elaboração psíquica.
O desamparo humano leva à nostalgia da proteção paterna. Pensa-se a existência da cultura como um ordenamento que tem como princípio o “falo”, e o tão invocado declínio do pai é vivido como o “fim do mundo”, ameaçando de falência o recalque estruturante e necessário à vida em cultura. Toda uma literatura psicanalítica insiste na lamúria sobre essa face da contemporaneidade, baseada na importância atribuída ao pai pela psicanálise ao complexo de Édipo. Entretanto, como argumenta lucidamente Zafiropoulos (2002), o pai que inaugura a cultura não é o pai da horda, todo-poderoso e tirânico, mas o pai morto de “Totem e tabu”, cuja natureza é simbólica.
A nostalgia pela proteção de um pai poderoso é a ânsia mais poderosa da humanidade, para Freud, e toda a sua teoria da religião se apoia nessa ideia. Ela deriva de um passado de desamparo e de dependência absoluta, em que o pai é um ser poderoso para a pequena criança, e da fantasia de que sua proteção poderia nos amparar em relação ao que, na realidade, são os medos e dores inevitáveis.
Essa fantasia, porque economiza angústia, nos empurra para as religiões, ou, em casos mais temíveis, à idealização e submissão completa a um líder totalitário que detém toda a perfeição e que supostamente nos ama, como mostra “Psicologia das massas...”.
É muito expressiva desse destino uma carta de Ferenczi em que, escrevendo a Freud sobre a prática terapêutica junguiana, comenta:
Sua preocupação essencial não é a teoria da libido, mas a comunidade cristã. Identifica a confissão com a psicanálise e ignora manifestamente que o reconhecimento dos pecados é apenas a menor das tarefas da terapia psicanalítica; a mais importante é a demolição da autoridade paterna que escapa por completo à confissão. É evidente que Jung nunca quis nem pôde deixar-se demolir por um paciente. (25/10/1912)
Ao que Freud respondeu: “suas observações sobre Jung me parecem totalmente indiscutíveis” (27/10/1912)2.
A clínica psicanalítica, na medida em que busca tornar o Eu mais independente do Supereu, abre um espaço para que o novo possa ser introduzido. Se somos, pela ação das identificações, frutos dos discursos da cultura veiculados por pais e seus substitutos, resta a possibilidade de questionamento dos mesmos, dispensando a fantasia de proteção por um pai poderoso.
Concluo este texto, com uma reflexão do personagem, o Selvagem, de Huxley em Admirável Mundo Novo, uma distopia desconfortante e atual: “Mas eu gosto dos inconvenientes. Nós, não preferimos fazer as coisas confortavelmente. Eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado”. (Huxley, 1996, p. 224).
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Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
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Freud se refere ao gigantesco projeto Zuiderzee: aterro e construção de diques na região do estuário do Reno, na Holanda, onde o mar do Norte invadia a terra.
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Diálogo reproduzido por Zafiropoulos em seu livro Lacan y las ciencias sociales – La declinación del padre (1939-1953)
Referências
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- Freud, S. (1994f). O ego e o id. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp. 23-89). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).
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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jul 2021 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2021
Histórico
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Recebido
27 Mar 2020 -
Aceito
28 Out 2020