Open-access Utilização de serviços odontológicos por pacientes em tratamento oncológico

Use of dental services by patients in oncological treatment

Resumo

Introdução  a busca por atendimento odontológico é um parâmetro importante para averiguar como os indivíduos compreendem a saúde bucal.

Objetivo  avaliar a utilização de serviços odontológicos e fatores associados em pacientes oncológicos em Minas Gerais, Brasil.

Material e método  estudo transversal, realizado com uma amostra de 441 pacientes adultos frequentadores de uma associação voluntária de apoio a pacientes oncológicos no Estado de Minas Gerais, Brasil. O desfecho foi avaliado por meio do autorrelato de consulta odontológica no último ano. As variáveis independentes incluíram condições socioeconômicas, saúde geral e relacionada ao câncer, saúde bucal e cuidados odontológicos. As associações entre o desfecho e as variáveis independentes foram testadas por meio de regressão logística bivariada e múltipla, sendo os resultados expressos por meio de odds ratio (OR) e intervalos de confiança de 95% (IC95%).

Resultado  a prevalência de consulta odontológica no último ano foi de 33,3%. Os indivíduos que possuem entre quatro e sete (OR: 1,80; IC95%: 1,02-3,18) e aqueles com oito ou mais anos de estudo (OR: 3,20; IC95%: 1,07-9,60) apresentaram maiores, enquanto os edêntulos (OR: 0,44; IC95%: 0,21-0,92) apresentaram menores chances de consulta odontológica no último ano, independentemente de condições socioeconômicas, saúde geral e saúde bucal.

Conclusão  foi baixa a procura por consulta odontológica no último ano entre os pacientes oncológicos. Além disso, houve desigualdades relacionadas à escolaridade e ao número de dentes remanescentes na utilização dos serviços. A identificação e priorização dos grupos com acesso desfavorável aos serviços são fundamentais no planejamento da prestação de cuidados odontológicos a essa população.

Descritores:  Saúde bucal; oncologia; inquéritos de saúde bucal; assistência odontológica; epidemiologia

Abstract

Introduction  the search for dental care is an important parameter to determine how individuals understand the oral health.

Objective  to evaluate the use of dental services and associated factors in cancer patients in Minas Gerais, Brazil.

Material and method  a cross-sectional study carried out with a sample of 441 adult patients attending a voluntary association to support cancer patients in the State of Minas Gerais, Brazil. The outcome was assessed through self-report of dental appointments in the last year. Independent variables included socioeconomic status, general and cancer-related health, oral health, and dental care. The associations between the outcome and the independent variables were tested using bivariate and multiple logistic regression, and the results were expressed as odds ratios (OR) and 95% confidence intervals (95%CI).

Result  the prevalence of dental appointments in the last year was 33.3%. Individuals who have between four and seven (OR: 1.80; 95%CI: 1.02-3.18) and those who have eight or more years of schooling (OR: 3.20; 95%CI: 1.07-9 .60) had greater, whereas, the edentulous (OR: 0.44; 95%CI: 0.21-0.92) had less odds to have had a dental appointment in the last year, independently of socioeconomic status, general health and oral health conditions.

Conclusion  recent dental care was uncommon among cancer patients. Furthermore, there were inequalities related to schooling and the number of remaining teeth in the use of services. The identification and prioritization of groups with unfavorable access to services are fundamental in planning the provision of dental care to this population.

Descriptors:  Oral health; oncology; dental health surveys; dental care; epidemiology

INTRODUÇÃO

São notórios os benefícios dos cuidados odontológicos como a melhor percepção de saúde bucal, redução das perdas dentárias, melhora na condição periodontal, menor risco de dor outras sintomatologias desagradáveis1, o que reflete positivamente sobre o bem-estar, a qualidade de vida e a saúde geral2, esses cuidados são especialmente críticos entre os pacientes em tratamento oncológico, considerando as complicações bucais decorrentes do tratamento3, e condições desfavoráveis de saúde que tendem a se sobrepor sobre os problemas bucais, fazendo com que estes sejam negligenciados1.

Conforme dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)4, o câncer é a segunda maior causa de morte mundial, contabilizando uma em cada seis mortes (aproximadamente 9,6 milhões no ano de 2018). A taxa de ocorrência da doença permanece em crescimento ano a ano5. Isso reflete a alteração no perfil de morbimortalidade e a distribuição dos fatores de risco para a população4. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), são esperados 625 mil novos casos de câncer para cada ano do triênio 2020-2022 no Brasil6. A patologia e suas terapêuticas são responsáveis pela fragilidade emocional, física e social, devido à morbidade associada à doença, o impacto em familiares com o diagnóstico, prejuízos na qualidade de vida, vida laboral e a dificuldade que os sistemas de saúde ainda demonstram na abordagem desta condição4,5.

A saúde bucal também é frequentemente afetada em pacientes com câncer, com comprometimentos como xerostomia, trismo, osteorradionecrose, problemas periodontais, cáries, perdas dentárias, mudanças na composição e no fluxo salivar, infecções e inflamações3,7. Essas alterações podem afetar a seleção de alimentos e influenciar no aspecto nutricional8 e facilitar a ocorrência condições gerais de saúde como aterosclerose e doenças cardiovasculares9. Além disso, as doenças bucais impactam negativamente a vida diária e o bem-estar das pessoas, repercutindo sobre o sono, a comunicação, a interação social, a autoestima dos indivíduos, vida laboral e escolar10.

Apesar de os pacientes em tratamento oncológico terem complicações de sua saúde bucal, poucos estudos avaliam a utilização de serviços odontológicos por esses pacientes10. Oliveira et al.5, num estudo que avaliou 2.664 pacientes oncológicos hospitalizados em São Paulo, Brasil, registraram como necessidades de tratamento odontológico mais comuns a dor por mucosite oral, tratamento odontológico prévio à radioterapia, quimioterapia ou terapia com bisfosfonatos, exodontias e profilaxia terapia de fotobiomodulação. Kowlessar et al.10, em estudo realizado com 71 pacientes oncológicos infantis de um hospital de Trindade e Tobago, observaram que 62,5% das crianças nunca visitaram um dentista, sendo as necessidades de tratamento odontológico mais comuns a profilaxia dentária e tratamentos restauradores. Ohno et al.11, em estudo realizado em 436 unidades de cuidados paliativos para pacientes com câncer no Japão, observaram que 94% dos entrevistados achavam que o tratamento odontológico por dentistas era frequentemente ou às vezes necessários.

Observa-se que a maioria dos estudos dessa natureza inclui pacientes hospitalizados5 ou aborda a temática em grupos específicos de câncer6. No entanto, a literatura se mostra carente na avaliação do uso de serviços odontológicos e dos fatores que influenciam tal utilização em pacientes oncológicos. Dessa forma, propõe-se este estudo com o objetivo de avaliar a prevalência e os fatores associados à utilização de serviços odontológicos no último ano por pacientes oncológicos atendidos por uma associação voluntária de um município do sul de Minas Gerais, Brasil.

MATERIAL E MÉTODO

Aspectos éticos

Este trabalho é parte do estudo “Saúde Bucal e Qualidade de Vida entre Pacientes Oncológicos”. O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Alfenas (Aprovação no: 4.518.1321). A participação de todos os indivíduos que compuseram a amostra da pesquisa foi condicionada à leitura e ao consentimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Desenho de estudo, cenário e participantes

Este trabalho foi desenvolvido na unidade de uma associação voluntária para pacientes oncológicos em um município do sul de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de uma organização não governamental, sem fins lucrativos, políticos e religiosos, atuante no município desde 2002 e reconhecida como utilidade pública em diversas esferas11.

A amostra que compôs este estudo foi obtida em meio aos pacientes oncológicos assistidos nesse serviço, convidados a participar do estudo a partir de 2021, momento em que as condições epidemiológicas de controle da pandemia por SARS-COV-2 possibilitaram sua realização. Foi obtida uma amostra aleatória simples estratificada em dois grupos etários: adultos e idosos. O cálculo para a obtenção da amostra mínima teve como referência uma média populacional (CPOD para as populações de 35-44 e 65-74 anos para o interior do Sudeste brasileiro, utilizadas como referência para grupos de adultos e idosos pela OMS e obtidas no último levantamento nacional de saúde bucal)12. As fórmulas utilizadas constam no Quadro 1 e seguem os padrões aplicados no estudo SB Brasil 201015. Para a determinação da proporção de adultos e idosos a compor a amostra mínima, considerou-se um estudo prévio realizado no mesmo serviço em 2018. A amostra mínima final foi estimada em pelo menos 432 participantes.

Quadro 1
Fórmulas utilizadas para o cálculo do tamanho da amostra

Os critérios de inclusão foram: possuir diagnóstico de câncer confirmado, estar em tratamento ou acompanhamento oncológico, condição cognitiva que permita a realização da entrevista e de exame clínico intrabucal e ter idade igual ou maior que 18 anos.

Variáveis em estudo

O desfecho foi avaliado por meio da variável “utilização de serviços odontológicos no último ano”, obtida por meio do autorrelato do tempo decorrido desde a última consulta odontológica realizada (até 1 ano; + de 1 ano).

As variáveis independentes arroladas à análise foram divididas nos seguintes blocos: 1) Características socioeconômicas; 2) Saúde geral; 3) Saúde bucal. No bloco das características socioeconômicas, as variáveis incorporadas foram: faixa etária (18-40 / 41-64 / 65-79 / ≥ 80 anos); sexo; escolaridade (0-3 / 4-7 / ≥ 8 anos de estudo) – considerando a conclusão do ciclo básico e ensino fundamental no país; e renda (< 1 / 1-2 / > 2 salários mínimos) – valores referentes ao ano de 2021. No bloco saúde geral, foram avaliados: o hábito de fumar atual (sim / não); a multimorbidade (caracterizada pela presença de duas ou mais comorbidades concomitantes ao câncer. Da lista das condições investigadas por meio do autorrelato do participante sobre o diagnóstico médico constavam: hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, problemas gastrointestinais e anemia)16; localização do tumor e tratamento/acompanhamento (cabeça ou pescoço; outros sítios); tempo decorrido desde o diagnóstico de câncer (0-1 / ≥ 2 anos); tipos de tratamento oncológico já realizados – radioterapia (sim / não); quimioterapia (sim / não); medicamentoso (sim / não); cirurgia (sim / não). No bloco das condições de saúde bucal, as variáveis utilizadas foram: número de dentes remanescentes (edêntulo / 1-9 / 10-19 / ≥ 20); presença de alguma alteração bucal pós-tratamento oncológico (xerostomia, trismo, feridas dolorosas, áreas dormentes, alteração de sabor, alteração alimentar, dificuldade de falar ou dificuldade de engolir); necessidade de tratamento odontológico (sim / não); necessidade de prótese dentária (sim / não); autopercepção de necessidade de tratamento odontológico (sim / não); frequência de escovação dentária diária (0-2 / ≥ 3 vezes).

Os blocos “características socioeconômicas” e “saúde geral” foram coletados exclusivamente por meio de entrevista e registrados em questionário. As seguintes variáveis do bloco “saúde bucal” foram coletadas por meio de entrevista: presença de alguma alteração bucal pós-tratamento oncológico; autopercepção de necessidade de tratamento odontológico e frequência de escovação dentária diária, sendo as condições clínicas (dentes remanescentes, necessidade de tratamento odontológico e necessidade de prótese) avaliadas por meio do exame físico intrabucal, conforme preconizado pelo manual básico de levantamentos de saúde bucal da OMS12. Todas etapas do estudo foram realizadas no espaço físico da instituição pelos próprios pesquisadores, que foram devidamente treinados e calibrados (kappa interexaminador = 0,98).

Análise de dados

A análise descritiva foi realizada por meio de estimativas de frequências absolutas e relativas das variáveis em estudo para a amostra total e de acordo com o desfecho (utilização de serviços odontológicos no último ano) (Tabela 1). A análise bivariada da associação entre o desfecho e as variáveis independentes foi realizada por meio de modelos de regressão logística simples. As variáveis independentes que apresentaram p-valor < 0,10 na associação bivariada com o desfecho foram incorporadas à análise de múltiplas varáveis por meio de modelo de regressão logística múltipla (Tabela 2)17. As estimativas de associação foram expressas por meio de razões de chances (odds ratio – OR) de ter se submetido à utilização de serviços odontológicos no último ano e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Para todos os procedimentos, adotou-se o nível de significância de 5% (p < 0,05). Todas as análises foram realizadas utilizando-se o programa Stata 14.0 (Stata Corp. LLP, College Station, TX).

Tabela 1
Caracterização dos pacientes em tratamento oncológico em instituição de Minas Gerais, de acordo com a utilização de serviços odontológicos no último ano, 2021. N = 441
Tabela 2
Análise bivariada e múltipla dos fatores relacionados à utilização de serviços odontológicos no último ano entre os pacientes em tratamento oncológico em instituição de Minas Gerais, 2021

RESULTADOS

A Tabela 1 traz uma descrição das características socioeconômicas, saúde geral e saúde bucal dos participantes do estudo. A amostra foi composta por uma maioria de mulheres (53,97%); de indivíduos com menos de 65 anos (57,37%) – média de idade dos entrevistados: 61,07; dp ± 0,61 anos; pessoas com até 3 anos de estudo (71,66%); e que apresentam renda familiar de até dois salários mínimos (83,45%). Cerca de um quarto dos pacientes apresentam duas ou mais condições crônicas concomitantes ao câncer; mais da metade recebeu o diagnóstico de câncer há dois anos ou mais (58,09%) e poucos pacientes apresentam câncer situado na região de cabeça e pescoço (7,71%). As terapias mais e menos comuns entre os participantes foram o tratamento medicamentoso e a radioterapia, com 59,32% e 44,55%, respectivamente. A avaliação das condições de saúde bucal revela que 39,61% dos participantes do estudo são edêntulos, enquanto um terço apresenta 20 ou mais dentes na boca. A maioria dos pacientes necessita de prótese dentária (87,20%), relata possuir necessidade de tratamento odontológico (54,20%) e percebeu alguma alteração bucal após o início do tratamento antineoplásico (87,76%). Em relação à última consulta odontológica, 33,33% dos entrevistados relatam a sua realização no último ano. Esses valores variam de acordo com as características do estudo, sendo os edêntulos o grupo com menor (15,85%) e os indivíduos entre 18 e 40 anos aqueles com maior prevalência de utilização de serviços odontológicos no último ano (63,16%).

Na Tabela 2 são apresentados os resultados da análise bivariada e múltipla dos fatores associados à utilização de serviços odontológicos no último ano. Na análise bivariada, observa-se que se relacionam ao desfecho: faixa etária (p = 0,001), sexo (p < 0,001), escolaridade (p < 0,001), presença concomitante de duas ou mais doenças com o câncer (p = 0,019), terapia medicamentosa antineoplásica (p = 0,012), número de dentes remanescentes (p < 0,001), necessidade de prótese (p < 0,001) e frequência de escovação diária (p < 0,001). Porém, no modelo de múltiplas variáveis, observa-se que apenas a escolaridade (p = 0,037) e o número de dentes remanescentes (p < 0,001) permanecem com associações estatisticamente significantes à consulta odontológica no último ano. Isso significa que os indivíduos que possuem entre quatro e sete (OR: 1,80; IC95%: 1,02-3,18) e aqueles com oito ou mais anos de estudo (OR: 3,20; IC95%: 1,07-9,60) apresentaram maiores, enquanto os edêntulos (OR: 0,44; IC95%: 0,21-0,92) apresentaram menores chances de consulta odontológica no último ano, independentemente de condições socioeconômicas, saúde geral e saúde bucal.

DISCUSSÃO

Este estudo abordou uma questão negligenciada na literatura ao determinar a prevalência de consulta odontológica ocorrida no último ano e avaliar os fatores associados a tal desfecho entre pacientes em tratamento oncológico. Seus principais achados apontam para um terço dos participantes tendo realizado consulta odontológica no último ano, sendo os menos escolarizados e aqueles com menor número de dentes os que apresentaram menores chances de uso recente dos serviços, independentemente de condições socioeconômicas, saúde geral e saúde bucal.

A frequência do uso de serviços odontológicos é bastante variável entre os grupos populacionais, sendo registrados desde valores próximos ao observado neste estudo (31,2%)18 até valores mais altos (62,4%)19. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou em 2019 uma prevalência de 49,4% da população brasileira maior que 18 anos em consulta com o cirurgião-dentista no último ano20. Entretanto, quando esse recorte é feito para grupos específicos, outros percentuais são observados, sendo idade, sexo, condição socioeconômica e de saúde bucal os principais fatores a influenciarem esse desfecho. No estudo de Peres et al.21, que avaliaram a necessidade e realização da consulta odontológica nos últimos 12 meses, em uma população com idade igual ou superior a 18 anos, residentes das capitais e distrito federal, observou-se que mais da metade da amostra tem necessidade de atendimento odontológico. Porém 15,2% não conseguiram tal atendimento no último ano. Em outro estudo21, que avaliou o acesso e utilização dos serviços odontológicos no Brasil utilizando dados da pesquisa nacional por amostra de domicilio de 2003 e 2008, comparando-os com 1998, observou-se que o uso recente de atendimento odontológico (último ano) aumentou ligeiramente de 2003 (38,7%) para 2008 (40,2%) para a população brasileira. Dessa forma, observa-se que a população com câncer faz uso menos frequente de serviços odontológicos. Múltiplos problemas de saúde, dificuldades financeiras e emocionais14 podem contribuir para a postergação ou mesmo a não realização dos devidos cuidados com a saúde bucal. Tal situação é preocupante, uma vez que essa população apresenta condições de saúde bucal já prejudicadas pelo próprio tratamento oncológico22. Ademais, os próprios problemas com os dentes e a boca repercutem negativamente no bem-estar e qualidade de vida13, ao afetarem aspectos estéticos, fala, mastigação e nutrição7 podendo, portanto, gerar ainda mais prejuízos a essa população.

A busca por atendimento odontológico no passado recente tem forte influência da condição socioeconômica23. Nesse contexto, merece destaque o papel da escolaridade. Esta pode ser entendida como um parâmetro que contém a condição cultural, intelectual e de instrução do indivíduo, o que de forma conjunta será responsável por determinar hábitos de vida e atitudes, inclusive aqueles relacionados com saúde e autocuidado19. Em relação à saúde bucal, a educação influencia a maneira como os indivíduos alcançam e mantêm a saúde bucal por meio da percepção da necessidade de cuidados odontológicos e do conhecimento sobre as melhores práticas de autocuidado com a saúde bucal24. Além disso, a escolaridade obtida nas primeiras décadas de vida está intimamente relacionada com as oportunidades de trabalho e posição socioeconômica na vida adulta, o que reflete diretamente também nas condições de saúde, autocuidado e acesso a serviços de saúde25. Dessa forma, a população mais vulnerável socioeconomicamente é aquela mais desfavorecida quanto à percepção de necessidades de cuidado de saúde, possuindo também menor acesso a bens e serviços, o que colabora diretamente para a manutenção de precariedade da saúde bucal18.

A histórica falta de acesso a cuidados odontológicos no serviço público somada à tradição mutiladora da Odontologia brasileira contribuíram para a formação de gerações de adultos e idosos com perda dental severa que fazem pouco ou nenhum uso dos serviços odontológicos26. Nesse cenário, aqueles com maior número de dentes tendem a buscar por atendimento odontológico com maior frequência, sobretudo em caso de dor ou situações de urgência18, sendo mais raras as procuras por motivos relacionados à prevenção e/ou estética27. Dessa forma, os pacientes parcialmente ou totalmente edêntulos tendem a submeter-se às consultas odontológicas com menos periodicidade ou não realizá-las, uma vez que há percepção de menor necessidade de prevenção e/ou cuidado com a boca na ausência de dentes, bem como a necessidade menos frequente de manutenção das próteses dentárias.

Os principais achados deste trabalho apontam para a necessidade de maior atenção em saúde bucal aos pacientes oncológicos. A estrutura da Atenção Primária à Saúde (APS) pode se mostrar uma ferramenta estratégica em tal demanda, seja pelo papel de porta de entrada das Redes de Atenção à Saúde, seja no papel de busca ativa e participação nos fluxos de referência e contrarreferência28. Entretanto, não se pode negligenciar a necessidade de ampliação do cuidado odontológico focado na superação das desigualdades em saúde em ambiente hospitalar. Futuros estudos devem explorar as raízes das desigualdades observadas, de modo a fomentar propostas de intervenção que sejam efetivas na alteração deste cenário.

O presente trabalho apresenta potencialidades e limitações. Este foi um dos primeiros estudos a avaliar a utilização de serviços odontológicos entre pacientes oncológicos na população brasileira, utilizando dados clínicos coletados sob padrões internacionais12, além de instrumentos e medidas reconhecidas como relevantes e válidos pela literatura16. Além disso, os dados foram avaliados por métodos padronizados, facilitando a comparação com outros estudos e elaboração de posteriores revisões sistemáticas e metanálises. Como limitações, aponta-se seu desenho transversal, que impede o estabelecimento de relações de temporalidade, além da ausência de aleatorização na seleção dos participantes. Entretanto, sob tal aspecto, ressalta-se a dificuldade comum nesse tipo de estudo na obtenção de amostras em centros de saúde e instituições de apoio a pacientes com câncer e doenças terminais. Dito isto, a natureza dos dados aqui apresentados se assemelha aos obtidos em outros estudos, tornando-os comparáveis5,10.

CONCLUSÃO

A prevalência de consulta odontológica no último ano entre os pacientes avaliados é menor que a observada na população geral. Além disso, observaram-se desigualdades relacionadas à escolaridade e ao número de dentes remanescentes em tal desfecho. Faz-se necessária a ampliação dos cuidados odontológicos aos pacientes em tratamento oncológico, bem como a identificação e priorização dos grupos com acesso desfavorável aos serviços odontológicos.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à agência de fomento CNPq pela concessão da bolsa de Iniciação Científica (Processo no 125832/2021-4) e ao MEC pelo financiamento da residente em Saúde da Família. Ademais, agradecemos aos pacientes que participaram da referida pesquisa pela disponibilidade e atenção.

  • Como citar: Carvalho AA, Costa ABMV, Aragão GC, Silva ACC, Lima DC, Oliveira EJP. Utilização de serviços odontológicos por pacientes em tratamento oncológico. Rev Odontol UNESP. 2022;51:e20220029. https://doi.org/10.1590/1807-2577.02922

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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