ATUALIZAÇÃO RÁPIDA
Parâmetros legais para a internação involuntária no Brasil
Legal criteria for involuntary hospitalization in Brazil
Daniel Martins de BarrosI; Antonio de Pádua SerafimII
IPsiquiatra clínico e forense, coordenador da Sessão Médica do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP)
IIPsicólogo doutor, coordenador-geral do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense (Nufor) do IPq-HC-FMUSP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Antonio de Pádua Serafim Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, 1º andar, Ala Sul Nufor, Cerqueira César 05403-903 São Paulo, SP E-mail: apserafim@hcnet.usp.br
A interface entre a Psiquiatria e o Direito, embora seja necessária, é complexa e difícil, já que enquanto a linguagem médica descreve o estado do paciente em uma escala que vai de grave a completamente saudável, a linguagem jurídica é binária: o doente é capaz ou incapaz, necessita ser internado ou não, oferece ou não perigo1. Quando se reporta às internações involuntárias aquelas feitas sem o consentimento do paciente , a questão fica mais evidente.
A essência das justificativas de uma internação involuntária está na perda da autonomia do indivíduo, decorrente de sua doença mental, que o impede de compreender e entender o caráter desadaptativo de seu estado2,3. Quadros psicóticos graves, cursando com delírios e alucinações, e casos de depressão com risco de suicídio ilustram bem essa condição2. Há ainda outros quadros psiquiátricos que, mesmo não apresentando desorganização das funções psíquicas como a consciência e o pensamento, muitas vezes demandam internação contra a vontade do paciente, como nos transtornos alimentares4.
A maioria dos países desenvolveu legislações específicas para tratamentos involuntários, porém nenhuma dessas orientações contempla em sua totalidade os procedimentos, critérios, condições e patologias que sejam aceitas sem contestações5. Além disso, os dados de literatura não são consistentes quanto à taxa de pacientes que apresentam incapacidade para decidir sobre ser submetido ou não a um determinado tratamento6. Faz-se necessário, portanto, analisar brevemente o estado da legislação brasileira concernente às internações psiquiátricas.
A Lei Federal 10.216/20017, promulgada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, como deixa explícito em seu subtítulo, se dispõe a proteger os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionar o modelo assistencial em saúde mental. Ela veio em substituição ao Decreto 24.559, de 1934, que até então dispunha "sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas"8. Desnecessário dizer que tal lei era cheia de anacronismos e inadequações acumuladas diante dos quase cem anos de avanço do conhecimento médico que ela atravessou. Assim, muito embora algumas medidas propostas como "redirecionamentos" para a assistência sejam passíveis de questionamento, em seu cômputo geral é uma lei que trouxe avanços na regulamentação de atos médicos envolvendo pacientes portadores de transtornos mentais.
Com relação às internações psiquiátricas, a lei define suas modalidades, bem como suas justificativas. No parágrafo único do artigo 6º define-se que:
"São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III internação compulsória: aquela determinada pela Justiça."
Portanto, qualquer paciente que se encontre numa enfermaria psiquiátrica se enquadra numa dessas categorias: afora as judicialmente determinadas (compulsórias) casos nos quais a vontade do paciente não interfere , a internação só é voluntária se o paciente declara por escrito que a aceita; todos os outros casos são involuntários. Isso fica claro no artigo 7º: "A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento." No parágrafo único lê-se que: "O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico assistente." Ou seja, as categorias podem mudar ao longo do tempo se o paciente voluntariamente internado pede a alta, ou se esta é conferida ou a internação se torna involuntária.
Essa modalidade de internação tem regras específicas também determinadas na lei:
"Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento."
Alguns pontos merecem destaque: em primeiro lugar, a necessidade de comunicar o Ministério Público da internação e da alta desses pacientes. Tal norma tem sido cumprida anexando-se um "Termo de Comunicação de Internação Psiquiátrica Involuntária" aos documentos médicos necessários para proceder à internação9. O próprio hospital se encarrega de transmiti-los ao Ministério Público, geralmente via fax, sendo o Diretor Clínico o responsável técnico referido na lei.
Outro ponto de interesse diz respeito ao fim da internação involuntária. Além do evento de alta médica, fica claro na lei que os responsáveis legais têm o direto de retirar o paciente. É natural que seja assim: se um indivíduo tem a capacidade de discernimento preservada, ele pode aceitar se tratar ou não (a não ser que isso implique iminente risco de morte). A internação involuntária existe em psiquiatria porque tal capacidade por vezes falta ao paciente. Quando isso ocorre, alguém toma em suas mãos as deliberações sobre a vida dele, analogamente ao caso das pessoas interditadas. E a lei brasileira é clara ao dizer quem assume tal papel, no artigo 1.775 do Novo Código Civil:
"O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.
§ 1º Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.
§ 2º Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.
§ 3º Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador."
Da mesma forma que uma pessoa em sã consciência decide sobre si, é a família que decide sobre um parente com transtorno mental que o prive de entendimento. O médico, entretanto, decide nos casos em que não há família no momento ou se o risco da não internação é extremo. Nesse último caso a alta pode ser recusada, conforme o artigo 46º do Código de Ética Médico: "É vedado ao médico: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida" [grifo nosso]. Na tabela 1 procurou-se exemplificar com casos práticos situações em que a internação involuntária pode ser necessária, sendo proposto um fluxograma (Figura 1) para a conduta nos casos.
Finalmente o artigo 9º trata das internações compulsórias, aquelas ordenadas por juízes: "A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários". Embora não seja rara, não é a situação mais comumente encontrada nos hospitais psiquiátricos, excluídos os Hospitais de Custódia e Tratamento. O quadro 1 resume os principais tópicos das três modalidades de internação.
Assim, embora a autonomia seja um dos pilares da atuação ética na assistência à saúde, há casos em psiquiatria que a capacidade de decidir autonomamente do indivíduo está prejudicada. Os Estados de Direito reconhecem isso e preveem leis específicas para tais circunstâncias, e é da responsabilidade dos profissionais que atuam em saúde mental conhecê-las.
Recebido: 27/5/2009
Aceito: 10/6/2009
- 1. Zemischlany Z, Melamed Y. The impossible dialogue between psychiatry and the judicial system: a language problem. Isr J Psychiatry Relat Sci. 2006;43(3):150-8.
- 2. Craw J, Compton MT. Characteristics associated with involuntary versus voluntary legal status at admission and discharge among psychiatric inpatients. Soc Psychiatr Epidemiol. 2006;41:981-8.
- 3. American Psychiatric Association. Guidelines for legislation on the psychiatric hospitalization of adults. Am J Psychiatry. 1983;140(5):672-9.
- 4. Gostin LO. Human rights of persons with mental disabilities. Int J Law Psychiatry. 2000;23(2):125-59.
- 5. Segal SP, Burgess PM. Factors in the selection of patients for conditional release from their first psychiatric hospitalization. Psychiatric Services. 2006;11(57):1614-22.
- 6. Byatt N, Pinals D, Arikan R. Involuntary hospitalization of medical patients who lack decisional capacity: a unresolved issue. Psychosomatics. 2006;47(5):443-8.
- 7. Lei Federal 10.216 Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 9 abr. 2001. Seção 1, p. 2.
- 8. Britto RC. Internação Psiquiátrica Involuntária e a Lei 10.216/01. Reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da pessoa com transtorno mental. 2004. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) Fundação Oswaldo Cruz.
- 9. Lima MA. Internação involuntária em Psiquiatria: legislação e legitimidade, contexto e ação. In: Ética e Psiquiatria. 2Ş ed. São Paulo: CREMESP; 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Set 2009 -
Data do Fascículo
2009