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O desafio do uso off label de medicamentos

Após a Segunda Guerra Mundial ocorreu o que se costuma chamar de explosão farmacológica, que deu lugar a grandes avanços no tratamento de enfermidades que antes eram inevitavelmente mortais ou incapacitantes.

Essa expansão farmacológica contribuiu para a ocorrência de acidentes gravíssimos, como a epidemia de focomelia atribuída à talidomida. Desde então, a preocupação com a segurança dos medicamentos contribuiu para o desenvolvimento e a aplicação de métodos clínicos e epidemiológicos para avaliar os benefícios e os riscos potenciais de qualquer tipo de intervenção terapêutica, seja farmacológica ou não.11 Laporte JR. Principios básicos de investigación clínica. 2nd ed. Barcelona: Astrazéneca; 2001.

É claro que com a administração de um medicamento pretende-se obter um efeito benéfico para quem o toma. Não obstante, é importante que as premissas que derivam de análises de evidências científicas não sejam esquecidas: em primeiro lugar, alguns medicamentos não têm a eficácia pretendida e, em segundo, independentemente de seus efeitos benéficos, todos os medicamentos podem produzir efeitos não desejados.

Quando um medicamento é lançado no mercado, todo o conhecimento sobre o fármaco baseia-se nos estudos pré-comercialização: durante o desenvolvimento da molécula, iniciam-se estudos experimentais sobre seus efeitos e sua toxicidade em animais (estudos pré-clínicos) e, caso não se observem efeitos tóxicos inaceitáveis, fazem-se os primeiros ensaios clínicos em humanos. São os denominados estudos de fase I, II e III, para investigar aspectos relacionados com a farmacocinética, toxicidade e eficácia em seres humanos.

Nos ensaios clínicos vários fatores podem interferir nos resultados, como os critérios de inclusão e exclusão, o tamanho das amostras e até mesmo critérios “aparentemente éticos”, que, embora plenamente justificados nas primeiras fases de avaliação de um novo fármaco, impedem o estudo científico em certas populações. Durante muito tempo, salvo exceções, as crianças foram excluídas dos ensaios clínicos. Apenas na fase IV (pós-comercialização) os medicamentos passam a ser usados em crianças, o que pode favorecer que se tornem sujeitos de uma prática clínica não controlada.11 Laporte JR. Principios básicos de investigación clínica. 2nd ed. Barcelona: Astrazéneca; 2001.,22 Meiners MMMA, Berqsten-Mendes G. Prescrição de medicamentos para crianças hospitalizadas como avaliar a qualidade? Rev Ass Med Bras. 2001;47:332-7.

Essa prática de indicação pediátrica sem evidências clínicas, em condições diversas das estudadas e preconizadas (indicações, posologias, formulações extemporâneas, idade em que foi testada), são conhecidas como uso off label, que está comprovadamente associado a um aumento dos efeitos adversos33 Manson J, Pirmohamed M, Nunn T. Off-label and unlicensed medicine use and adverse drug reactions in children: a narrative review of the literature. Eur J Pharmacol. 2012;68:21-8.

4 Bellis JR, Kirkham JJ, Thiesen S, Conroy EL, Bracken LE, Mannix HL, et al. Adverse drug reactions and off-label and unlicensed medicines in children: a nested case-control study of inpatients in a pediatric hospital. BMCMed. 2013;11:238.
-55 Aagaard L, Hansen EH. Prescribing of medicines in the Danish pediatric population outwit the licensed age group: characteristics of adverse drug reactions. Br J Clin Pharmacol. 2011;71:751-7. e deve ser desencorajado.

Neste fascículo da Revista Paulista de Pediatria, Gonçalves e Heineck fizeram um estudo descritivo transversal, com metodologia simples.66 Gonçalves MG, Heineck I. Frequência de prescrições de medicamentos off label e não licenciados para pediatria na atenção primária à saúde em município do sul do Brasil. Rev Paul Pediatr. 2016;34:11-7. Neste estudo os autores mostraram que, do total, 232 (31,7%) prescrições eram off label e observaram-se os seguintes tipos e frequências: off label de dose - 90 (38,8%); de idade -73 (31,5%); e de frequência de administração - 68 (29,3%). O mais preocupante foi o achado de sobredose para medicamentos cujo uso nessa situação pode ser fatal, como é o caso do salbutamol.

A indicação de uso off label de medicamentos em pediatria no Brasil é uma prática recorrente. Será que essa prática é necessária? O que se pode fazer para garantir a segurança das crianças?

Com o objetivo de proteger a saúde das crianças e garantir que esses medicamentos sejam usados de forma mais ética, desde 2007 a União Europeia editou uma legislação para o desenvolvimento e a autorização de medicamentos pediátricos.77 Noguera VF. Trabajo de Investigación: Análisis descriptivo de los planes de investigación em Pediatria resueltos por la Agencia Europea del Medicamento durante el período 2007-2009, Doctorado em Farmacologia, Universidade Autonoma de Barcelona. Available in: http://ddd.uab.cat/pub/trerecpro/2011/hdl_2072_116979/TR_FerrandoNoguera.pdf
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Desde então as indústrias farmacêuticas estão obrigadas a desenvolver seus medicamentos tanto na população adulta como na população pediátrica, com o objetivo de adaptar os medicamentos às necessidades, à posologia, à forma farmacêutica, à via de administração, entre outros, a fim de que sejam eficazes e sua segurança não seja alterada pelo risco de superdosagem. Foi criado ainda um Comitê Pediátrico, encarregado de assegurar a avaliação dos Planos de Investigação em Pediatria, os PIPs, apresentados pelas indústrias farmacêuticas. O comitê é composto por 12 representantes dos países membros e entre suas funções se destaca a elaboração de uma lista que contemple as necessidades específicas em Pediatria.77 Noguera VF. Trabajo de Investigación: Análisis descriptivo de los planes de investigación em Pediatria resueltos por la Agencia Europea del Medicamento durante el período 2007-2009, Doctorado em Farmacologia, Universidade Autonoma de Barcelona. Available in: http://ddd.uab.cat/pub/trerecpro/2011/hdl_2072_116979/TR_FerrandoNoguera.pdf
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No mesmo ano de 2007, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou a primeira Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças, que é revisada a cada dois anos, e lançou ainda a campanha Make medicines child size, com o intuito de sensibilizar e promover uma ação global sobre o problema da falta de formulações pediátricas.88 Finney E. Children's medicine: a situation analysis [Internet]. WHO; 2011. Available in: http://www.who.int/childmedicines/progress/CM_analysis.pdf
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Nos Estados Unidos da América o órgão regulador, Food and Drug Administration (FDA), criou em 2012, subordinado ao IND (Investigação de Novas Drogas), o Safety and Innovation Act (FDASIA-2012), que implantou o Plano de Estudos Pediátricos. Esse plano é exigido para novas moléculas, nova indicação, nova forma farmacêutica, nova posologia e nova via de administração.99 https://www.fda.gov/regulatoryinformation/guidances/ucm126486.htm
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,1010 http://www.fda.gov/RegulatoryInformation/Legislation/FederalFoodDrugandCosmeticActFDCAct/SignificantAmendmentstotheFDCAct/FDASIA/
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No Brasil existem iniciativas isoladas de estabelecimentos de saúde que, ao padronizar medicamentos, criar comissões de farmacologia e outras medidas, conseguem avaliar o uso de medicamentos off label. No Estado de São Paulo, O Centro de Vigilância Sanitária (CVS), na área de farmacovigilância, tem por base as notificações de eventos adversos e faz publicar em Diário Oficial Alertas Terapêuticos em Farmacovigilância. Recentemente o CVS publicou dois Alertas, “Metilfenidato: indicações terapêuticas e reações adversas” (julho de 2013) e “Risco de neoplasia pancreática associado à terapia baseada nas incretinas” (fevereiro de 2014). Ambos têm como foco o alerta após reações adversas decorrentes do uso off label dos medicamentos. O primeiro é amplamente usado para crianças.1111 São Paulo, Secretaria de Estado da Saúde, Centro de Vigilância Sanitária. Comunicado CVS - Alerta Terapêutico em Farmacovigilância - 01/2014: Risco de Pancreatite e Neoplasia Pancreática associado à terapia baseada nas Incretinas. Available in: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/zip/ALERTA%2001_2014_Incretinas_sem_bandeirola.pdf
http://www.cvs.saude.sp.gov.br/zip/ALERT...
,1212 São Paulo, Secretaria de Estado da Saúde, Centro de Vigilância Sanitária. Comunicado CVS – 45 – Divulgação do Alerta Terapêutico em Farmacovigilância 01/2013 – Metilfenidato – Indicações Terapêuticas e Reações Adversas. Available in: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/zip/ALERTA%20TERAP%C3%8AUTICO%2010%20Metilfenidato_010813_final.pdf
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No âmbito federal, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 9, de 20 de fevereiro de 2015, que tem por objetivo definir procedimentos e requisitos para a feitura de ensaios clínicos com medicamentos, ressalta que os ensaios clínicos pós-comercialização estão sujeitos apenas a Notificação de Ensaio Clínico.1313 Brasil, Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Resolução da Diretoria Colegiada – RDC N° 9, de 20 de fevereiro de 2015, que tem por objetivo definir procedimentos e requisitos para realização de ensaios clínicos com medicamentos. Available in: http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/c3dc820047823081b0a7fbfe096a5d32/RDC+9-2015.pdf?MOD=AJPERES
hhttp://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/con...

De imediato, para induzir o emprego ético de medicamentos off label, é necessário que seu uso excepcional seja justificado clinicamente, ainda que seja acompanhado de esclarecimento e consentimento dos responsáveis.1414 Brasil, Ministério da Saúde. CONITEC no SUS Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Humanos Estratégicos. Uso off label: erro ou necessidade? Rev Saúde Pública. 2012;46:398-9. Essa medida pode ser tomada pelas unidades de saúde. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a exemplo do órgão regulador da União Europeia, deveria estabelecer critérios e normas que induzam estudos comparativos e mostrem a eficácia e segurança do uso de medicamentos em crianças. Quando promissoras, as terapias devem ser testadas em ensaios clínicos controlados e as bulas reformuladas.

  • Financiamento
    O estudo não recebeu financiamento.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    1 Set 2015
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