EDITORIAL
Tétano dos recém-nascidos: revisitado
Neonatal tetanus: revisited
Jayme Murahovschi
Ex-médico e diretor clínico da Clínica Infantil do Ipiranga, livre-docente em Pediatria Clínica pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria (cadeira 8)
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Jayme Murahovschi Rua José Maria Lisboa, 915 CEP 01423-001 São Paulo/SP E-mail: jmura@osite.com.br
Atualidade
O tétano neonatal mata 180 mil recém-nascidos a cada ano(1). "Mas eu nunca vi um caso de tétano neonatal". Não, não é no Brasil. Tal estatística é mundial e atual; engloba 48 países pobres do sul da Ásia e da África Sub-Saara. Mas, ainda que isso não afete o nosso país atualmente, nem sempre a situação foi tão favorável.
A partir da primeira metade do século 20 até a década de 1970, o tétano neonatal, também conhecido como tétano umbilical, tétano neonatorum e, popularmente, o "mal dos sete dias", era um problema sério de Saúde Pública, que atingia principalmente a zona rural e a periferia das cidades.
Noções básicas
O diagnóstico é puramente clínico e se manifesta por rigidez muscular e espasmos musculares dolorosos (Figura 1) que aparecem subitamente entre o terceiro e o 21º dias, com maior freqüência do sexto ao oitavo dia, o que deu origem ao nome popular. O tétano umbilical é causado pelo bacilo tetânico. Parece óbvio, mas nem sempre foi assim.
"Dúvidas levantadas há quase meio século sobre a etiologia do chamado tétano neonatorum foram reavivadas nesses últimos anos". A terceira Jornada Brasileira de Pediatria e Puericultura, realizada em outubro de 1949 na cidade de Salvador, após ter posto o assunto em longa discussão e não julgá-lo suficientemente esclarecido, recomendou-o como tema para a Jornada seguinte, que aconteceria em Porto Alegre, em novembro de 1950.
As dúvidas sobre a etiologia do tétano foram resolvidas por Gomes de Mattos (Figura 2) e Lacaz através de pesquisas experimentais conclusivas, realizadas em cobaias (Figura 3). Mas, qual seria a solução? O ideal seria que a criança já nascesse protegida contra a doença, independentemente do tratamento do cordão umbilical, ainda que em condições desfavoráveis.
Como enfrentar a situação?
Gomes de Mattos se inspira em uma simples sugestão feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na série Rapports Techniques de 1950 que dizia: "nas regiões com freqüência elevada de tétano em recém-nascidos, convém estudar a possibilidade da prevenção pela vacinação das mulheres grávidas". Esse foi o ponto de partida para uma das pesquisas mais bem elaboradas e mais importantes da história da Pediatria, feita em conjunto entre a Clínica Infantil do Ipiranga e o Instituto Pinheiros(2): "Estudos sobre a proteção do recém-nascido contra o tétano umbilical pela imunização ativa da gestante com anatoxina na tetânica". A pesquisa levou três anos e recebeu o Prêmio Nestlé de Pediatria e Puericultura de 1953(3).
As condições operacionais da pesquisa eram dificílimas, além de não ter havido qualquer apoio ou patrocínio. As gestantes eram atendidas no Serviço Pré-Natal da Clínica Infantil do Ipiranga, pois Gomes de Mattos tinha a convicção de que a Puericultura começa antes mesmo de a criança nascer. Mas, na época, a Clínica Infantil ainda não contava com uma maternidade e, por isso, elas eram encaminhadas ao Hospital São Paulo após o atendimento.
Dessa forma, das 200 mulheres grávidas que tomaram a vacina antitetânica, 134 receberam as três doses de vacina e fizeram a subseqüente coleta de sangue; dessas 134 gestantes, apenas 60 deram entrada na maternidade colaboradora (Hospital São Paulo da Escola Paulista de Medicina) e só foi possível obter o sangue do cordão umbilical de 42 delas por esquecimento da parteira a respeito da coleta de sangue ou quebra do tubo de ensaio no transporte. Os números atingidos, contudo, foram suficientes para um pronunciamento sobre os objetivos: os recém-nascidos das mães vacinadas tiveram título protetor contra o tétano.
Em 1960, Gomes de Mattos ainda discutiu a solução do problema "Os médicos de Saúde Pública defendem a 'educação sanitária' que, na prática, é o 'trato asséptico do cordão'. O resultado é a repetição anual de um triste cortejo de mortes (em São Paulo, 1.043 casos em 1953). Educação sanitária não é uma receita e sim uma mentalidade que depende da elevação do nível cultural da população. Só existe um recurso de resultados imediatos: a vacinação da gestante com a anatoxina tetânica, com a vantagem de proteger a mulher contra o tétano acidental e o obstétrico"(4).
Gomes de Mattos também deu um passo adiante na educação sanitária das parteiras, criando um kit constituído de uma luva plástica descartável de um dedo só (polegar), meia gilete e um cadarço estéril, em uma embalagem estéril que chegou a ser comercializada pela Johnson & Johnson®. Vale ressaltar que, nessa época, o pediatra Dácio Pinheiro tratava, com sucesso muito acima da média, casos de tétano umbilical com soro antitetânico, penicilina, hidratação, dieta por gavagem e relaxantes musculares. O atendimento era feito em uma sala isolada na Pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ou seja, uma mini-Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), que poderia até ser considerada a precursora das atuais UTI neonatais (UTI).
Voltemos à atualidade
A vacinação das gestantes com toxóide tetânico foi incluída no programa expandido em imunizações da OMS pouco depois de 1974. Em 1989, a OMS adotou a resolução de eliminar o tétano neonatal e o materno em 1995 por meio de vacinação das gestantes e do parto limpo. A meta não foi atingida e adiou-se para 2007; agora, há uma expectativa de que seja atingida em 2009(1). A estratégia inclui uma dose da vacina no pré-natal, outra na infância e um reforço na adolescência.
É o passado 'de volta ao futuro'. Gomes de Mattos, em 1960, seis anos após a divulgação de sua experiência, escreveu em uma revista para obstetras: "Os resultados de nossas pesquisas e a experiência da vacinação em 1.850 gestantes comprovam que a vacinação da gestante pela anatoxina tetânica é o método profilático de maior alcance social e deve ser considerada do ponto de vista de Saúde Pública, um veículo de penetração afim de chegar a vacinação de todos os adultos e crianças"(4).
Isso justifica a republicação dessa excepcional pesquisa que, na verdade, nunca foi publicada em revista médica por ter vencido um concurso nacional, teve apenas uma divulgação limitada, o que talvez explique o fato de não ser citada na extensa bibliografia do tema(1). A Revista Paulista de Pediatria corrige agora essa falha de meio século.
Recebido em: 8/7/2008
- 1. Roper MH, Vandelaer JH, Gasse FL. Maternal and neonatal tetanus. Lancet 2007;370;1947-59.
- 2. Gomes de Mattos A, Lacaz CS. Contribuição para o estudo etiológico do tétano umbilical. Ped Prat 1951;22:1-12.
- 3. Gomes de Mattos A, Lacaz CS. Estudos sobre a proteção do recém-nascido contra o tétano umbilical pela imunização ativa da gestante com anatoxina diftérica [monografia].RJ: Prêmio Nestlé de Pediatria e Puericultura; 1953.
- 4. Gomes de Mattos A, George P. Profilaxia do tétano umbilical pela vacinação da gestante com anatoxina tetânica. Obstr Prat 1960;2:17-8.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Jan 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008