Open-access Alimentação complementar e estado nutricional de lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca

Resumo

Objetivo:  Avaliar a dieta e o estado nutricional de lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca.

Métodos:  Estudo observacional, transversal, que comparou: lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca (n=60) atendidos em unidade de dispensação de fórmulas hipoalergênicas e lactentes sem restrições alimentares (n=60), de mesma idade e sexo (grupo controle). A idade variou de seis a 24 meses. A dieta foi avaliada com o emprego do inquérito alimentar e foram mensurados o peso e a estatura.

Resultados:  A ingestão de macronutrientes foi adequada em ambos os grupos. No grupo em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca, as proporções de lactentes com ingestão insuficiente foram menores em relação aos controles, para ferro (13,3 e 31,7%; p=0,029), zinco (5,0 e 18,3%; p=0,047) e vitamina D (25,0 e 71,7%; p<0,001). A fórmula hipoalergênica contribuiu com maior oferta de nutrientes do que os alimentos lácteos para o grupo controle. Entre 12 e 24 meses, o número de lactentes em dieta de exclusão que nunca consumiram carne bovina, peixe, cereais e ovo foi maior do que no grupo controle (p<0,05). Os escores Z de comprimento-idade nos lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca (-0,4±1,6) foram menores (p=0,039) do que no grupo controle (+0,2±1,3).

Conclusões:  A dieta de lactentes em exclusão do leite de vaca foi adequada apesar do atraso na introdução de alguns alimentos. Lactentes em dieta de exclusão apresentaram menor crescimento linear não acompanhado de déficit ponderal.

Palavras-chave: Hipersensibilidade a leite; Alimentação complementar; Estado nutricional; Lactentes; Substitutos do leite

Abstract

Objective:  To evaluate the diet and nutritional status of infants on an elimination diet of cow’s milk proteins.

Methods:  Observational and cross-sectional study that compared: Infants on a cow’s milk protein elimination diet (n=60) assisted at a hypoallergenic formula distribution unit and a control group of same age and gender without dietary restrictions (n=60). Age ranged from 6 to 24 months. The diet was evaluated using the 24-hour food survey and weight and height were measured.

Results:  The macronutrient intake of both groups reached nutritional recommendations. The proportions of infants in the group of elimination of cow’s milk proteins with insufficient intake were lower, compared to controls, for iron (13.3 and 31.7%; p=0.029), zinc (5.0 and 18.3%; p=0.047), and vitamin D (25.0 and 71.7%; p<0.001). The hypoallergenic formula contributed to a greater supply of nutrients than dairy foods for the control group. Between 12 and 24 months, the number of infants on a restriction diet who never consumed meat, fish, cereals, and eggs was higher than in the control group (p<0.05). The length-age Z scores in infants on a cow’s milk protein elimination diet (-0.4±1.6) were lower (p=0.039) than in the control group (+0.2±1.3).

Conclusions:  The diet of infants with exclusion of cow’s milk protein was adequate despite the delay in the introduction of some complementary foods. Infants on an elimination cow’s milk protein diet showed lower linear growth without weight deficit.

Keywords: Milk hypersensitivity; Complementary feeding; Nutritional status; Infant; Milk substitutes

INTRODUÇÃO

A alergia alimentar é uma reação adversa decorrente de uma resposta imunológica anormal e reprodutível, que é desencadeada pela ingestão de um ou mais alimentos. A alergia à proteína do leite de vaca (APLV) é o tipo mais frequente de alergia alimentar no primeiro ano de vida, com prevalência estimada entre 2 e 3%.14

O tratamento da APLV baseia-se na exclusão da proteína alergênica e na prescrição de dieta substitutiva que atenda plenamente às necessidades nutricionais do paciente. A dieta de eliminação deve ser mantida até que o paciente desenvolva tolerância oral, em geral, após o primeiro ou segundo ano de vida.1,2

A exemplo dos lactentes saudáveis, os pacientes com APLV devem iniciar a alimentação complementar no sexto mês de vida. Não deve ser feita nenhuma restrição, exceto de alimentos que contenham as proteínas do leite de vaca.1,2,5,6

Está bem definido que o atraso na introdução de alimentos potencialmente alergênicos não proporciona efeito benéfico para o lactente em tratamento de APLV. Sendo assim, a introdução da alimentação complementar deve seguir as mesmas recomendações preconizadas para crianças saudáveis,1,2,5,6 com a ressalva de que esse processo deve ser realizado de forma mais cautelosa, observando-se o possível aparecimento de reações para cada alimento novo inserido na dieta.1,2

É fundamental, também, que a dieta de eliminação atenda a todas as necessidades nutricionais, não somente em função da elevada velocidade de crescimento observada nessa faixa etária como também pelas evidências que apontam comprometimento nutricional em pacientes com APLV.711

Apesar de escassos, estudos realizados no Brasil9,10 e em outros países7,8,11 demostraram que é frequente a observação de déficits antropométricos em lactentes com APLV. Entretanto, ainda não estão bem definidos os fatores determinantes do déficit nutricional. Teoricamente, ele pode se estabelecer antes do início da dieta de exclusão e ser decorrente da própria APLV ou da persistência do estado inflamatório decorrente da ingestão acidental ou voluntária da proteína alergênica ou, ainda, de inadequações qualitativas e/ou quantitativas da dieta de exclusão. Evidentemente, esses mecanismos podem atuar de forma isolada ou em conjunto.7,9,11,12

Considerando-se que existem poucas informações sobre a dieta de eliminação para o tratamento da APLV, especialmente quanto às características da alimentação complementar, este estudo foi realizado com o objetivo de avaliar a dieta e o estado nutricional de lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca em comparação com lactentes sem restrições alimentares.

MÉTODO

Neste estudo transversal foram comparados dois grupos de lactentes pareados por sexo, grupo etário e classificação econômica:
  1. 1) grupo de estudo em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca;

  2. 2) grupo controle constituído de lactentes sem restrições alimentares.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, sob o número 081783/2015. Foi obtido consentimento livre e esclarecido (TCLE), por escrito, dos responsáveis pelos lactentes incluídos na pesquisa. A coleta foi realizada entre fevereiro de 2016 e agosto de 2018.

Foram incluídas 60 crianças, com idade entre seis e 24 meses, com suspeita ou diagnóstico de APLV e que realizavam dieta de exclusão do leite de vaca e derivados. Os lactentes foram incluídos consecutivamente na Unidade Municipal de Saúde de Fátima (Belém, Pará). Essa unidade assistencial pública é a única da cidade na qual ocorre a dispensação de fórmulas especiais para lactentes com APLV. Os critérios de inclusão foram idade entre seis e 24 meses e realização de dieta de exclusão por APLV.

Considerou-se como critério de exclusão a presença de outras doenças nas quais são empregadas dietas especiais (doença de Crohn, doença celíaca, síndrome do intestino curto) e/ou doenças que impedem a administração de alimentos exclusivamente pela via oral, como aquelas com comprometimento neurológico.

Para o grupo controle foram considerados os mesmos critérios de inclusão e exclusão, exceto quanto ao tipo de dieta, ou seja, sem restrições alimentares. Para o pareamento foram respeitados o mesmo sexo, classe econômica e faixa de idade (mesmo trimestre de vida) em relação aos lactentes admitidos no grupo em dieta de exclusão do leite de vaca e derivados. Assim, o grupo controle foi composto de 60 lactentes que recebiam dieta sem restrição alimentar, pareados com o grupo em dieta de exclusão. Os lactentes que constituíram o grupo controle foram recrutados nos consultórios de puericultura da Maternidade Saúde da Criança, em Belém, Pará.

Na estimativa do tamanho da amostra, considerou-se poder de 0,8 e erro α de 5%. Considerou-se que os dois grupos apresentariam diferença mínima entre as médias dos escores Z de peso-idade e comprimento-idade de 0,6, com 1,0 de desvio padrão, conforme observado em pesquisas anteriores.9,10 Com o emprego do programa SigmaPlot 11.2 (San Jose, CA, USA) foi calculado o número mínimo de 45 lactentes para cada grupo.

Utilizou-se um formulário padronizado elaborado pelos pesquisadores para a obtenção de informações clínicas, demográficas e nutricionais. Para a avaliação econômica, foi adotado o critério proposto pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP).13 As informações foram obtidas dos pais durante entrevista com um dos pesquisadores.

Para a avaliação do consumo alimentar, usou-se o inquérito recordatório de 24 horas.14 Para padronizar o tamanho das porções, foi empregado álbum fotográfico de porções alimentares.15 Durante a entrevista foram usados modelos de utensílios (copos, talheres, pratos, mamadeiras) para a definição da quantidade dos alimentos. Questionou-se, também, a idade de introdução dos alimentos e o consumo atual de determinados itens, independentemente de terem sido ou não mencionados no inquérito recordatório de 24 horas. Para estimar a ingestão de leite materno, foi utilizado o modelo de regressão linear múltipla proposto por Drewett e colaboradores para o aleitamento materno complementado: Y=755.00.48X0.59X, em que Y é a estimativa de consumo de leite materno, X’ é a idade em dias e X” é o consumo de alimentos complementares em quilocalorias.16 Os cálculos dos nutrientes na alimentação foram realizados no software Avanutri online (AVANUTRI, Três Rios, RJ, Brasil). Para a análise de adequação nutricional foi adotada a ingestão diária recomendada (dietary reference intakes — DRI).1720

O peso e o comprimento foram aferidos de acordo com as recomendações do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde.21 Para a medida de peso foi utilizada balança pediátrica eletrônica, modelo 109-E, da Welmy (Santa Bárbara d’Oeste, Brasil), com capacidade de 15kg e precisão de 5g. Para a medida do comprimento foi usado um infantômetro portátil horizontal, modelo Inf-100, da Balmak (Santa Bárbara d’Oeste, Brasil), com precisão de 1mm.

Os escores Z de peso/idade, estatura/idade e peso/estatura foram calculados no software WHO Anthro (versão 3.2.2, 2011), que utiliza como base os valores de referência propostos pela Organização Mundial da Saúde.22

Os dados foram tabulados em uma planilha Microsoft Excel 2011 versão 14.7.3 (for Mac). A análise estatística foi realizada com o emprego do programa SigmaPlot versão 11 (Systat Software, San Jose, CA, EUA). Considerou-se o nível de significância de 5% em todas as análises.

RESULTADOS

Os resultados da Tabela 1 mostram que o procedimento para pareamento dos grupos quanto a idade, sexo e classificação econômica foi adequado. Os lactentes em dieta de exclusão de leite de vaca e derivados apresentaram menor duração do aleitamento materno exclusivo e maior frequência de uso de antibióticos no primeiro semestre de vida. Em ambos os grupos se observou elevada frequência de cesarianas e de histórico familiar de alergia. Na maioria (71,7%; 43/60) dos lactentes, as manifestações clínicas tiveram início no primeiro trimestre de vida. A mediana (percentis 25 e 75) do número de manifestações clínicas que motivaram a indicação de dieta de eliminação foi 7,0 (5,0 e 9,5). As mais comuns foram as manifestações gastrintestinais, que estavam presentes nos seguintes percentuais dos 60 lactentes: dor abdominal/cólica (66,7%), diarreia (61,7%), vômito ou regurgitação (60%), presença de sangue nas fezes (58,3%) e distensão abdominal (58,3%). Na sequência, ocorreram as manifestações cutâneas, com predomínio da dermatite atópica em 61,7% dos lactentes. Irritabilidade, recusa alimentar e dificuldade para ganho de peso/estatura ocorreram, respectivamente, em 48,3, 41,7 e 38,3% dos lactentes. Um deles tinha histórico de anafilaxia. A mediana da idade no início da dieta de eliminação foi 3,5 meses (percentis 25 e 75: 1,5 e 6,0 meses).

Tabela 1.
Dados demográficos, antecedentes e indicadores antropométricos (escore Z) do grupo em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca e do grupo controle

Com relação aos indicadores antropométricos (Tabela 1), observou-se que os escores Z de peso/idade e peso/comprimento, expressos como variáveis contínuas, foram semelhantes nos dois grupos. Por sua vez, os escores Z de comprimento para a idade foram menores no grupo em dieta de exclusão. Por outro lado, as proporções de lactentes com escore Z abaixo do limite de -2,0 desvios padrão de peso/idade, comprimento/idade e peso/comprimento foram, respectivamente: 0,0, 16,7 e 1,7% no grupo em dieta de exclusão e 3,3, 6,7 e 5,0% no grupo controle. O estudo estatístico não mostrou diferença entre os grupos.

No momento do estudo, no grupo em dieta de exclusão, 41 (68,3%) lactentes estavam recebendo fórmula com proteína extensamente hidrolisada, 16 (26,7%) recebiam fórmula de aminoácidos livres e três (5,0%) recebiam fórmula à base de proteína isolada de soja. Dos 60 lactentes, 25 (41,7%) excluíam, além do leite, um ou mais alimentos da dieta, principalmente carne bovina (15,0%, 9/60), ovo (13,3%, 8/60) e soja (11,7%, 7/60).

As estimativas de ingestão diária de energia e lipídeos foram menores no grupo em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca. Por outro lado, a ingestão de ferro, zinco e vitamina D foram maiores. Não se observou diferença estatisticamente significante na ingestão de proteínas, carboidratos, cálcio, vitamina A e vitamina C (valores medianos, dispersão e valores p disponíveis com o autor correspondente). Apesar de terem sido encontradas diferenças estatisticamente significantes na estimativa de energia e lipídeos em relação ao recomendado pela DRI, todos os lactentes de ambos os grupos alcançaram suas necessidades individuais de energia, carboidratos, proteínas e lipídeos, considerando-se a idade e o sexo.

A Tabela 2 apresenta o número e a porcentagem de lactentes que apresentaram ingestão alimentar inferior ao recomendado pela DRI para cálcio, fósforo, ferro, sódio, potássio, zinco, vitaminas A, C e D. O grupo em dieta de exclusão do leite de vaca apresentou, em comparação ao grupo controle, menor percentual de lactentes com ingestão dietética inadequada de ferro, zinco e vitamina D em relação à DRI.

Tabela 2.
Ingestão inferior à ingestão diária recomendada de cálcio, fósforo, ferro, sódio, potássio, zinco e vitaminas A, C e D no grupo em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca e no grupo controle

O Gráfico 1 apresenta o percentual, em relação à ingestão diária total, de energia e nutrientes proveniente das fórmulas hipoalergênicas no grupo em tratamento de APLV ou do leite materno e mamadeiras com proteínas do leite de vaca no grupo controle. Em ambos os grupos, as fórmulas hipoalergênicas ou o leite materno e mamadeiras representam importante fonte de energia e nutrientes. Os percentuais de lipídeos, ferro, fósforo, sódio, zinco, vitaminas A, C e D proporcionados pelas fórmulas hipoalergênicas foram maiores (p<0,05) no grupo em dieta de eliminação das proteínas do leite de vaca do que os ofertados por leite materno e mamadeiras no grupo controle.

Gráfico 1.
Percentual de contribuição das fontes lácteas (fórmula hipoalergênica ou leite materno, fórmula infantil, leite integral), em relação à ingestão total, de energia e de nutrientes nos dois grupos de lactentes estudados

A Tabela 3 apresenta a idade de introdução e os alimentos que ainda não foram introduzidos na alimentação dos lactentes. Para essa análise foram considerados somente os lactentes com idade entre 12 e 24 meses. A introdução de água ou chá ocorreu em idade inferior no grupo em dieta de exclusão de leite de vaca, porém a introdução de ovo ocorreu mais tardiamente nesse grupo quando comparado ao grupo controle. Observa-se também que, no segundo ano de vida, a proporção de crianças que não havia recebido carne bovina, peixe, cereais, oleaginosas e ovo foi maior no grupo em dieta de exclusão. Com relação ao consumo de alimentos não recomendados para lactentes, constatou-se que em ambos os grupos ocorreu consumo por parte dos lactentes de embutidos, guloseimas, doces, refrigerantes, suco de frutas artificial e café. Consumo de café foi mencionado com maior frequência (p<0,05) nos lactentes do grupo controle.

Tabela 3.
Idade de introdução, alimentos que ainda não foram introduzidos na alimentação e alimentos inadequados para a alimentação de lactentes com idade entre 12 e 24 meses no grupo em dieta de exclusão do leite de exclusão das proteínas do leite de vaca e do grupo controle

DISCUSSÃO

No presente estudo, realizado em Belém, no Pará, região Norte do Brasil, observou-se que lactentes em tratamento de APLV atingiram a DRI não somente para energia como também para proteínas, lipídeos e carboidratos. Por outro lado, a proporção de lactentes em tratamento de APLV com ingestão adequada, segundo a DRI, de ferro, zinco e vitamina D foi maior do que no grupo controle. Constatou-se retardo na introdução de carne bovina, peixe, trigo, oleaginosas e ovo na alimentação dos lactentes em tratamento de APLV. As fórmulas hipoalergênicas no grupo em dieta de exclusão representaram fontes mais importantes de nutrientes em relação à ingestão total do que o leite materno e as mamadeiras para o grupo controle. Finalmente, os lactentes com APLV apresentaram menor crescimento linear. Esse conjunto de informações objetivas é tópico pouco explorado na literatura e que apresenta grande relevância prática na assistência nutricional a pacientes em tratamento da APLV.

No grupo de lactentes em tratamento de APLV, constatou-se déficit de crescimento linear, caracterizado por menores valores dos escores Z de comprimento-idade. Esse resultado é concordante com estudos realizados previamente no Brasil9,10 e em outros países.7,8,11 Menores valores de estatura-idade podem representar sequela da fase ativa da APLV antes do início da dieta de eliminação da proteína alergênica, ou seja, consequência de deficiência nutricional pregressa. Entretanto, até o presente, o mecanismo de restrição do crescimento na APLV ainda não está completamente esclarecido. Evidências sugerem a interação de vários fatores, entre os quais deficiência na ingestão de nutrientes, antes e depois do início da dieta de eliminação; processo inflamatório característico do processo alérgico; menor biodisponibilidade dos nutrientes; e maiores necessidades nutricionais. Artigo recente de revisão analisou criticamente as informações existentes sobre a relação entre alergia alimentar, dieta de eliminação e déficit de crescimento.12 É destacado que, na alergia alimentar, pode ocorrer persistência de um estado inflamatório subclínico associado com anormalidades na permeabilidade intestinal, similar ao observado em indivíduos atópicos.12 Essa anormalidade foi descrita há mais de 20 anos em um estudo7 realizado na Finlândia, no qual os lactentes, mesmo em dieta de exclusão apropriada, apresentavam menor crescimento linear em relação ao grupo controle. Essas anormalidades intestinais são essencialmente similares às observadas na disfunção entérica ambiental que acomete crianças que vivem em situação de pobreza e que apresentam, predominantemente, déficit de crescimento linear mesmo sem expressar manifestações clínicas gastrintestinais.23 Entretanto, a disfunção entérica ambiental ocorre em estratos socioeconômicos compatíveis com pobreza e, assim, não explicaria os achados em lactentes finlandeses nem nos lactentes incluídos no presente estudo, que pertenciam, em sua grande maioria, às classes socioeconômicas mais elevadas do país.

Com relação à dieta, o presente estudo mostrou que tanto os lactentes em tratamento de APLV como o grupo controle apresentavam ingestão adequada de macronutrientes em relação à DRI. Por sua vez, a proporção de lactentes com consumo inferior à DRI para ferro, zinco e vitamina D foi menor no grupo de lactentes em tratamento de APLV. Deve ser destacado que os pacientes em tratamento de APLV foram recrutados em uma unidade pública de saúde que presta assistência nutricional e realiza a dispensação gratuita das fórmulas hipoalergênicas. Observou-se, também, que a contribuição das fórmulas hipoalergênicas para a alimentação dos lactentes em dieta de exclusão foi importante para proporcionar dieta nutricionalmente adequada. Em relação à vitamina D, estudo recente realizado em Recife, no Nordeste do Brasil, mostrou que a ocorrência de nível sanguíneo baixo de vitamina D é menor em lactentes com APLV que recebem fórmula hipoalergênica.24 Esses dados reforçam a importância da utilização de fórmulas hipoalergênicas mesmo após o início da alimentação complementar e ao longo do segundo ano de vida.

Lactentes em tratamento de APLV devem iniciar a alimentação complementar no sexto mês de vida, similarmente aos lactentes sem restrições alimentares. A única restrição são alimentos com proteínas do leite de vaca.1,2 Entretanto, o presente estudo mostrou que uma parcela dos lactentes em dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca ainda não consumia vários alimentos no segundo ano de vida, como carne de vaca, peixe, trigo, ovo e oleaginosas, em desacordo com as diretrizes de alimentação complementar. Em projetos futuros será importante avaliar os motivos pelos quais esses alimentos não foram incluídos na alimentação, ou seja, se por recomendação da equipe de saúde ou por iniciativa da família. É interessante mencionar que, em estudo realizado no Brasil, observou-se que parcela expressiva dos médicos e nutricionistas ainda acreditava que retardar a introdução de alimentos poderia prevenir a ocorrência de doenças alérgicas,25 em desacordo com as diretrizes e evidências sobre o assunto.1,2,26 Deve-se destacar que o retardo da introdução alimentar pode se associar com maior risco de alergia alimentar, como por exemplo ao ovo, conforme observado recentemente.26 Outro aspecto interessante é que, exceto para o café, as proporções de crianças que haviam consumido alguma vez alimentos inadequados para a idade, como guloseimas e refrigerantes, foram similares nos lactentes em tratamento de APLV e sem restrições alimentares, contrariando a expectativa de que as famílias de lactentes em tratamento de APLV fossem mais cuidadosas em relação à dieta. Oferta de alimentos inadequados para lactentes já havia sido registrada em Belém do Pará27 e em outras regiões do Brasil.28

Entre as limitações do estudo, deve-se levar em conta que foi estudada uma amostra por conveniência de uma única cidade, o que impossibilita a generalização dos dados para o universo de lactentes em dieta de exclusão. No entanto, é provável que as mesmas práticas alimentares ocorram em outras regiões do Brasil, bem como em outros países. Outra limitação decorre da impossibilidade de estabelecer relação de causalidade entre a dieta de eliminação do leite de vaca e a APLV uma vez que nem todos os lactentes do grupo em dieta de eliminação apresentavam diagnóstico confirmado de alergia alimentar. Sendo assim, os resultados do presente estudo apoiam a realização de outras pesquisas sobre esse tema, que utilizem delineamentos mais abrangentes. Por sua vez, o tamanho da amostra foi estimado com base na expectativa de diferenças nos parâmetros antropométricos, entretanto permitiu, no que se refere às informações da dieta, que fossem encontradas várias diferenças estatisticamente e nutricionalmente significantes entre os dois grupos estudados.

Outro aspecto foi a inclusão de maior número de lactentes de famílias das classes A e B, em desacordo com a distribuição socioeconômica da população brasileira. Esse ponto é atenuado pelo fato de as doenças alérgicas serem mais comuns nas classes socioeconômicas mais elevadas. É possível, também, que nas classes mais favorecidas exista maior acesso às informações relacionadas à saúde e atenção quanto à ocorrência de manifestações clínicas de alergia alimentar.

No entanto, deve-se atentar para que, perante o princípio de universalidade do Sistema Único de Saúde do Brasil, seja proporcionado acesso a todos os lactentes com APLV aos serviços de dispensação de fórmulas especiais. Um ponto forte do presente estudo é o fato de ser um dos primeiros, até onde vai nosso conhecimento, a avaliar a alimentação complementar de lactentes com APLV, proporcionando subsídios para a elaboração de estratégias para aperfeiçoar a assistência nutricional aos lactentes em dieta de exclusão do leite de vaca e derivados.

Concluindo, lactentes em tratamento de APLV apresentam menor crescimento linear mesmo com dieta de eliminação adequada dos pontos de vista qualitativo e quantitativo. As fórmulas hipoalergênicas constituem fontes de nutrientes para os lactentes em tratamento de APLV mais importantes do que para os lactentes sem restrições alimentares, e é menor a proporção de lactentes com ingestão insuficiente de ferro, zinco e vitamina D. Em parcela dos lactentes em tratamento de APLV, em relação aos controles, observou-se retardo na introdução de alimentos para os quais se atribui maior potencial de ocasionar alergia alimentar.

Agradecimentos

À Profa. Dra. Maria Florinda Pacha Penna de Carvalho, da Maternidade Saúde da Criança (Belém, Pará), por viabilizar a constituição do grupo controle desta pesquisa.

  • Financiamento
    O estudo não recebeu financiamento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2020
  • Aceito
    17 Jan 2021
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