Open-access O IMPACTO DO TRAUMATISMO DENTAL E DO COMPROMETIMENTO ESTÉTICO NA QUALIDADE DE VIDA DE PRÉ-ESCOLARES

RESUMO

Objetivo:  Avaliar o impacto do trauma dental (TD) e do comprometimento estético na qualidade de vida (QV) de pré-escolares e familiares.

Métodos:  Este estudo foi realizado com crianças de 2 a 5 anos em 11 pré-escolas de Florianópolis (SC), Brasil. Os pais/responsáveis preencheram a versão brasileira do questionário sobre QV Early Childhood Oral Health Impact Scales (B-ECOHIS), um questionário socioeconômico e perguntas específicas sobre TD. As crianças foram examinadas por três examinadores calibrados (kappa>0,7). O TD foi avaliado de acordo com os índices adotados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e o comprometimento estético também foi classificado. Os dados foram analisados descritivamente e submetidos à análise bivariada por qui-quadrado e teste de Fisher, sendo significante p<0,05.

Resultados:  Dos pré-escolares examinados, 62,5% foram diagnosticados com trauma e 15,6% com comprometimento estético, e somente 12% dos pais relatou que seus filhos apresentam impacto na QV. O TD não se associou a sexo, idade ou QV. A alteração de cor da coroa por TD relacionou-se ao comprometimento estético, e apenas este causou impacto negativo na QV (p<0,05) e se associou ao domínio limitações orais (p<0,05).

Conclusões:  O comprometimento estético causou impacto negativo na QV das crianças, e o trauma dental não se associou com a QV das crianças nem de suas famílias.

Palavras-chave: Estética dental; Qualidade de vida; Traumatismo dental

ABSTRACT

Objective:  To evaluate the impact of dental trauma and impaired esthetics on the quality of life (QoL) of preschool children and their relatives.

Methods:  Study conducted with 192 children aged 2 to 5 years in 11 preschools in Florianópolis, Santa Catarina, South of Brazil. Parents/caregivers completed a questionnaire on quality of life (Brazilian version of the Early Childhood Oral Health Impact Scales - B-ECOHIS), a socioeconomic survey, and then answered specific questions related to dental trauma. The subjects were examined by three accordant examiners (Kappa>0.7). Dental trauma was evaluated on the basis of indexes adopted by the World Health Organization, and esthetic impairment was then classified. Data were descriptively analyzed and put to bivariate analysis by chi-square and Fisher tests, with significance level at 5%.

Results:  The prevalence of dental trauma was 62.5% with 15.6% of esthetic impairment. Almost 12% of parents reported impact on the quality of life of their children. Dental trauma was not significantly associated with gender, age or QoL. Crown color change by trauma was associated with esthetic impairment. Also esthetic impairment had a negative impact on QoL (p<0.05) and was associated with oral limitations (p<0.05).

Conclusions:  Esthetic impairment had a negative impact on children’s quality of life, while dental trauma was not associated to it.

Keywords: Dental aesthetics; quality of life; tooth injuries

INTRODUÇÃO

O traumatismo dental (TD) é um distúrbio oral comum em crianças pré-escolares,1 sendo causado por um impacto externo sobre um dente e tecidos circundantes. Sua gravidade varia de acordo com a extensão da lesão.2 A prevalência de TD varia de 9,4 a 41,6% em pesquisas no Brasil.1,2,3,4,5 Estudo6 publicado em 2016 relata a prevalência de traumatismo em crianças de 1 a 4 anos de 2002 a 2012 e indica haver aumento da prevalência entre os anos citados. Em 2002 a prevalência do traumatismo nas idades 1, 2, 3 e 4 anos foi de 4,5, 11,4, 14,0 e 13,9%, respectivamente, e a prevalência em 2012 para as mesmas faixas etárias foi de 10,4, 15,9, 25,7 e 28,1%, nessa ordem. Já outro estudo7 semelhante avaliou pré-escolares entre 2008 e 2013 e concluiu que a prevalência oscilou: 31,7% em 2008, 13,3% em 2010 e 22,5% em 2013, mostrando que continua sendo assunto importante a ser levado em consideração. O estágio de desenvolvimento dos reflexos na idade pré-escolar e a falta de coordenação motora podem levar a quedas, sendo essa a principal causa de TD nessa população.1

A lesão traumática dental entre pré-escolares pode ter consequências físicas e psicossociais. É possível que resulte em dor, perda de função e estresse emocional e afete adversamente a oclusão em desenvolvimento, bem como altere a estética dentária.8 Os dentes mais acometidos são os incisivos centrais superiores.4Por serem os elementos mais evidentes, a perda de estrutura dental, nos casos de fratura coronária, a alteração de cor da coroa e a avulsão estão relacionadas a possíveis comprometimentos estéticos.9A literatura descreve que dentes anteriores com sequelas pós-traumatismo podem se associar a constrangimento social e psicológico, como sentir vergonha de sorrir, dificuldade de manter o equilíbrio emocional, problemas ao comer certos alimentos e prejudicar a limpeza dos dentes.10 Embora as diretrizes da Associação Internacional de Traumatologia Dentária (AITD) recomendem o enfoque no tratamento de lesões dentárias agudas, outras sequelas do trauma como a descoloração da coroa devem ser consideradas.11Os pais com frequência questionam o profissional em razão dessas sequelas, sobretudo por razões estéticas.12 A presença de uma ou mais dessas alterações poderá impactar negativamente a qualidade de vida das crianças.2,4,13

O conceito de Qualidade de Vida Relacionada à Saúde Bucal (QVRSB) corresponde ao impacto que a saúde ou a doença oral tem sobre o funcionamento diário do indivíduo, seu bem-estar e sua qualidade de vida.14 Doenças bucais e doenças durante a infância podem ter impacto negativo sobre a vida de pré-escolares, afetando o crescimento, o peso, a socialização, a autoestima e as habilidades de aprendizagem, além de também a qualidade de vida de seus pais.14A Escala de Impacto sobre a Saúde Bucal na Primeira Infância (ECOHIS) foi desenvolvida para avaliar o impacto das condições de saúde bucal na qualidade de vida de pré-escolares (com idade entre 2 e 5 anos) e suas famílias, tendo sido validada para uso em populações brasileiras.15,16,17

Para o clínico, é importante conhecer resultados que ajudem na tomada de decisões quanto ao tratamento no consultório odontológico, associando as características clínicas com aspectos psicológicos e sociais. A verificação do impacto causado pelo traumatismo dental e comprometimento estético dental na vida da criança e sua família pode ajudar a fornecer essas medidas de tratamento. Assim, informações sobre QVRSB são essenciais para os formuladores de políticas de saúde - para realizar uma avaliação adequada das necessidades de saúde bucal - e para os cirurgiões-dentistas clínicos.18

Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa foi verificar a ocorrência de TD e seu comprometimento estético, bem como observar o impacto dessas alterações na qualidade de vida de pré-escolares e familiares.

MÉTODO

Este estudo foi realizado com crianças de 2 a 5 anos de idade, em 11 creches municipais de Florianópolis (SC), Brasil. As creches foram selecionadas entre o total de pré-escolas autorizadas pela Secretaria de Educação a fazer parte da pesquisa e que aceitaram a participação. Foi realizado um levantamento de quantas crianças de 2 a 5 anos estavam regularmente matriculadas em cada pré-escola para que, em seguida, fosse determinado proporcionalmente o número de crianças para participar da pesquisa em cada instituição. Sendo assim, o tamanho mínimo da amostra para este estudo foi calculado com base no poder de teste de 90% e erro padrão de 7%. Como não havia dados de prevalência para as variáveis estudadas, foi considerado o valor de 50%, totalizando 187 crianças no mínimo.

Os critérios para inclusão dos pré-escolares foram: estar regularmente matriculado, ter idade entre 2 e 5 anos, sem restrição de sexo, apresentar apenas dentição decídua completa e ter o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) assinado pelos pais/responsáveis. As 72 pré-escolas municipais públicas da cidade foram convidadas a participar do estudo, e 11 aceitaram a participação. Verificou-se o número total de crianças entre 2 e 5 anos em cada uma das 11 escolas, e a amostra foi definida proporcionalmente ao número de crianças matriculadas (Figura 1). Isto é, a escola com maior número de crianças representou o maior número de crianças da amostra. Entre as crianças que devolveram o TCLE, foram sorteadas aleatoriamente aquelas que participariam do estudo seguindo a proporcionalidade já determinada. Dos três examinadores, dois foram selecionados de maneira aleatória para a coleta de dados em cada pré-escola.

Figura 1:
Fluxograma referente à definição dos participantes da pesquisa.

Os critérios de exclusão foram crianças que apresentavam dentes permanentes irrompidos, que não tinham comportamento cooperador para o exame clínico ou não estavam presentes no dia do exame clínico e que apresentavam deficiência cognitiva e/ou motora relatada pela direção da pré-escola.

A calibração passou por duas etapas. A etapa teórica, realizada em dois momentos com intervalo de 15 dias, envolveu a discussão para os critérios de diagnóstico do trauma dental24 e do comprometimento estético por meio da análise de fotografias. O segundo passo foi clínico e contou com três examinadores, os quais avaliaram crianças de 2 a 5 anos em duas ocasiões, com intervalos entre 7 e 14 dias, com coeficiente kappa >0,70 alcançado para a avaliação interexaminadores e intraexaminadores (Quadro 1).

Quadro 1:
Resultados do coeficiente kappa para a avaliação da concordância interexaminadores e intraexaminadores para as variáveis trauma dental e comprometimento estético.

O estudo piloto foi conduzido para testar a metodologia e ter compreensão dos instrumentos. Participaram deste estudo 27 crianças pré-escolares de uma creche municipal. As crianças que participaram da calibração e do estudo piloto não foram incluídas na amostra principal. O estudo piloto permitiu melhora da dinâmica dos exames clínicos, facilitando a aceitação por parte das crianças.

A coleta de dados não clínicos consistiu na aplicação de dois questionários enviados aos pais por meio das agendas escolares das crianças em duas etapas. Na primeira etapa, enviou-se o questionário para a avaliação da QVRSB; foi usada a versão brasileira do Early Childhood Oral Health Impact Scale (B-ECOHIS).16 Esse questionário é dividido em duas seções: impacto na criança e impacto na família. No total, são 13 questões correspondentes a seis domínios:

  • Quatro domínios na seção impacto na criança: sintomas (um item), função (quatro itens), psicológicas (dois itens) e autoimagem/interação social (dois itens);

  • Dois domínios na seção impacto na família: angústia dos pais (dois itens) e função da família (dois itens).

A categoria de respostas foi codificada em: 0 = nunca, 1 = quase nunca, 2 = ocasionalmente, 3 = frequentemente, 4 = muito frequentemente e 5 = não sei. Foi considerado como impacto na qualidade de vida se houvesse pelo menos uma das respostas: “com frequência” e “com muita frequência”.19 Os questionários com mais de duas questões não respondidas ou com resposta “não sei” na seção de impacto na criança (CIS) e uma questão não respondida na seção de impacto na família (FIS) foram excluídos da análise.14

Na segunda etapa, após os exames clínicos, foi enviado um questionário para determinar os dados socioeconômicos das famílias das crianças participantes. Foram pesquisados: sexo, data de nascimento, escolaridade do chefe da família e perguntas para classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP).20Nesse questionário também havia questões relacionadas à história de traumatismo dental na criança. A pergunta foi: “seu filho já bateu o dente de leite?”. Se a resposta fosse “sim”, as próximas perguntas eram a idade da criança na situação, onde foi o ocorrido, como ela bateu o dente e se foi atendida pelo dentista - todas as perguntas com opções de resposta.

A coleta dos dados foi realizada nas próprias creches, em duas etapas. A primeira etapa foi a análise do comprometimento estético com a criança sentada de frente para o examinador a uma distância de conversação, sem manuseio de lábios, sem iluminação artificial, pedindo para o menor sorrir. O comprometimento estético foi avaliado como presente quando houvesse presença de alteração de cor na coroa, fratura de mais da metade da coroa ou ausência dental (avulsão) em dentes anteriores superiores.21,22 Para as demais situações, o comprometimento estético foi considerado ausente.

Na segunda etapa, foi realizado o exame clínico para avaliação do trauma dental, com a criança sentada em uma cadeira e de frente para o examinador, mediante observação visual direta da cavidade bucal e iluminação artificial (lanterna de luz de diodo emissor de luz - LED). Para o exame, utilizaram-se gazes e espelho clínico. As alterações foram anotadas em ficha clínica específica. Todas as normas de biossegurança foram consideradas (luvas, gorros e máscaras descartáveis).23

A avaliação do trauma foi baseada na classificação de Andreasen e Andreasen,24 de 1994, que segue o sistema adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).23 Tal classificação inclui fratura de esmalte, fratura de esmalte e dentina e ausência dental (nos casos de avulsão ou exodontia precoce). Para os casos em que houve dúvida em relação à exodontia precoce por sequela de traumatismo e/ou avulsão, os dados clínicos foram confrontados com informações repassadas pelos responsáveis e pelas próprias crianças. Os traumas luxação lateral e intrusão, quando verificados ao exame clínico, foram classificados como outros traumas. Ainda se verificaram a presença de fístula/abscesso e alteração de cor da coroa.2

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (n.º 343.658) e pela Secretaria Municipal de Educação, também de Florianópolis. Os responsáveis pelos pré-escolares também assinaram o TCLE.

Estatística descritiva simples foi usada para características da amostra e para mostrar a distribuição dos itens do B-ECOHIS. A variável socioeconômica foi calculada de acordo com os critérios da ABEP, que utiliza um sistema de pontuação.20Foi usado o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS for Windows, version 21.0, SPSS Inc., Chicago, IL, Estados Unidos), e os testes qui-quadrado e Fisher foram aplicados para verificar a associação entre trauma e sexo, idade, qualidade de vida e comprometimento estético. O nível de significância foi estabelecido em 5%.

RESULTADOS

O número total de participantes foi de 192 pré-escolares. A análise descritiva das variáveis encontra-se na Tabela 1. Para o questionário de qualidade de vida, a taxa de resposta foi de 100%, e para o segundo questionário, de 51,5%. Verificou-se que a escolaridade do chefe da família foi maior ou igual a oito anos em 83% dos casos, e a renda familiar foi de ≤3 salários-mínimos em 56,8%. Além dos dados socioeconômicos, os pais responderam ao questionário sobre perguntas de TD e mostraram ter conhecimento do TD de seus filhos em somente 14,7% dos casos, e 66,6% dos acidentes ocorreram em casa por quedas (47,6%).

Tabela 1:
Análise descritiva das variáveis examinadas nos pré-escolares (n=192).

Das 192 crianças, 120 (62,5%) apresentaram dentes traumatizados, sendo o dente mais acometido o incisivo central superior direito (35,7%), seguido pelo incisivo central superior esquerdo (32,1%). No total, 2.304 dentes anteriores superiores e inferiores foram avaliados, dos quais 214 (9,2%) apresentaram algum tipo de trauma. Entre os dentes avaliados, 147 (68,7%) tinham trauma de esmalte; 37 (17,3%), trauma de esmalte e dentina; 12 (5,6%), alteração de cor da coroa; 6 (2,8%), fístula/abscesso; 3 (1,4%), ausências dentais; e 9 (4,2%), outros traumas. Os incisivos centrais superiores foram os dentes mais afetados (20,5%).

Em análise descritiva do B-ECOHIS, ressaltando-se que todos os pais das crianças participantes responderam ao questionário, observou-se, na seção sobre impacto da criança, que itens relacionados à dor (11,9%), dificuldade de comer (9,3%), dificuldade de dormir (6,7%) e irritabilidade (6,7%) foram os mais citados pelos pais. Na seção sobre impacto da família, itens associados a sentimentos (aborrecido/chateado) (13,5%) e culpa (13,5%) foram mencionados com mais frequência (“às vezes”, “com frequência” e “com muita frequência”).

Para a melhor análise dos resultados, a variável trauma foi dicotomizada como: ausente (n=143; sem trauma e com trauma de esmalte)25 e presente (n=49; fratura de esmalte e dentina, ausência dental, fístula/abscesso, luxação lateral e intrusão). Ao fazer associação do TD nesse contexto com o sexo, a idade e o comprometimento estético, nenhuma das variáveis mostrou associação significante.

Os dados apresentados na Tabela 2 indicam não haver associação significante entre o B-ECOHIS - seção de impacto da criança, seção de impacto da família e domínios - e o trauma dental, porém, quando foi testada a associação entre qualidade de vida e comprometimento estético, ela foi significante. Ainda, encontrou-se ligação entre o comprometimento estético e o domínio limitações orais.

Tabela 2:
Associação da versão brasileira do Early Childhood Oral Health Impact Scales - seção de impacto da criança, seção de impacto da família e domínios - com trauma e comprometimento estético nos pré-escolares.

A Tabela 3 traz a associação da qualidade de vida com a variável trauma (fratura de esmalte, fratura de esmalte e dentina, alteração de cor, fistula, ausência dental, outros traumas), não havendo nenhum resultado significante. Das 192 crianças examinadas, 120 apresentaram algum tipo de trauma. Dessa forma, a Tabela 4 contém a associação do comprometimento estético com o trauma. Observou-se associação significante do comprometimento estético com a alteração de cor da coroa. Em 63,6% das crianças, a alteração de cor da coroa não foi observada a uma distância de conversação, mas somente quando houve o manuseio dos lábios e o uso de espelho clínico e luz. Esses dados enfatizam a diferença entre a estética verificada pelo cirurgião-dentista e a percebida durante a convivência social.

Tabela 3:
Associação da qualidade de vida com tipos de trauma.
Tabela 4:
Associação da variável trauma com comprometimento estético (n=120).

DISCUSSÃO

Neste estudo foi encontrada alta ocorrência de trauma nas crianças avaliadas. Outros estudos obtiveram as seguintes taxas de ocorrência: 14,7%,3 34,6%,4 41,4%,8 30%26 e 49,4%.27 As diferenças podem ser explicadas porque alguns estudos foram realizados em centros de atendimento odontológico, e, por isso, a necessidade de tratamento das crianças pode ter influenciado a frequência observada. Além disso, os critérios de avaliação do trauma dental são diferentes. No presente estudo, por exemplo, foi utilizada a classificação de Andreasen e Andreasen23,24 com modificações, como alteração de cor da coroa2,27e fístula/abscesso. A alteração de cor da coroa, apesar de não constar do índice sugerido por Andreasen e Andreasen,24 apresenta-se como um dado clínico importante na determinação de história de trauma dental e também pode influenciar a estética da criança.

Para a variável trauma, a maior prevalência foi a fratura de esmalte, seguida de fratura de esmalte e dentina e alteração de cor da coroa. Esses resultados são semelhantes aos encontrados,27 em que a fratura esmalte foi a mais comum (50,6%), seguida por alteração de cor da coroa (25,8%) e fratura de esmalte e dentina (14,4%). No estudo de Siqueira et al.,4 a fratura de esmalte também foi a mais comum, com 17% de prevalência, seguida por alteração de cor da coroa, com 11,2%. Os dentes mais afetados neste estudo foram os incisivos centrais superiores, com 88,4% dos traumas, o que coincide com a pesquisa de Viegas et al.,27 que observou 62,8% de incisivos centrais superiores afetados. No entanto, não é possível observar lesões de tecido mole, luxações nem subluxações que ocorreram no momento do trauma. Isso limita a avaliação por meio do exame clínico, que não é capaz de avaliar a completa extensão do trauma nem seu impacto na qualidade de vida.28

Na presente investigação, os itens com maior ocorrência de impacto na seção criança do questionário B-ECOHIS foram “relacionados com dor” e “tinha dificuldade para comer alguns alimentos”, o que pode ser explicado pelo fato de o trauma dental causar dor e sensibilidade dental. Os itens com maior ocorrência de impacto na seção de família foram “sentia culpa” e “ficado chateado/aborrecido”, corroborando outros estudos.3,27,29 Os sintomas relatados são compatíveis com trauma dental, e é comum que os pais se preocupem com os filhos, sentindo-se culpados por seus problemas bucais, considerando que a dor é perceptível para os pais quando relatada pelos seus filhos.

A presença de trauma não influenciou negativamente a qualidade de vida das crianças, corroborando alguns estudos da literatura sobre o tema.4,13,27 Já outras pesquisas3,8,30 observaram haver impacto negativo na qualidade de vida causado pelo trauma. No presente estudo foram consideradas as respostas “frequentemente” e “muito frequentemente” como ponto de corte para avaliação do impacto negativo na qualidade de vida da criança. Siqueira et al.4 consideraram “ocasionalmente”, “frequentemente” e “muito frequentemente” como presença de impacto na qualidade de vida. Abano et al. e Viegas et al.,26,27por sua vez, usaram como ponto de corte a contagem por escores das questões. Essas diferenças metodológicas dificultam a comparação dos estudos.

O comprometimento estético decorrente do trauma apresentou relação com o impacto negativo na qualidade de vida e com o domínio limitações orais na seção de impacto da criança. Não há na literatura estudos que relacionem trauma ou comprometimento estético com qualidade de vida em dentes decíduos, apesar de as crianças pré-escolares atribuírem características comportamentais para outras crianças com base em sua aparência atraente ou não.31 Um estudo32 sugeriu que as crianças a partir de 3 anos de idade já são conscientes da aparência estética de sua dentição, como falta de dentes ou dentes escurecidos, o que faz com que os pais procurem os dentistas.

Ao associar o comprometimento estético com a alteração de cor da coroa, o resultado foi significante. A alteração de cor da coroa passa despercebida no olhar para o outro indivíduo como um todo, entretanto, quando o foco de atenção está direcionado para a boca de outra criança, o escurecimento dental torna-se a principal razão da percepção negativa.33Sabe-se que o traumatismo dentoalveolar é uma ocorrência muito comum na infância e, com frequência, resulta no comprometimento estético do dente.8 Surpreendentemente, nenhuma investigação epidemiológica tem sido feita sobre o impacto social causado por alterações em dentes decíduos anteriores, e pouco se sabe a respeito de como as crianças se sentem quando têm incisivos com alterações estéticas e as possíveis consequências sociopsicológicas e emocionais sobre seu comportamento.10

Vale ressaltar, entretanto, que o presente estudo apresentou duas limitações importantes. A primeira foi o número baixo de escolas participantes, o que compromete a validade externa da pesquisa. Portanto, sugere-se uma pesquisa mais ampla, contemplando um número maior de escolas, para ampliar a aplicação dos resultados. A segunda limitação é referente à baixa taxa de resposta dos pais ou responsáveis ao segundo questionário enviado. Embora essa baixa taxa já tivesse sido esperada nos estudos envolvendo questionários, o envio dos questionários em duas etapas prejudicou o levantamento dos dados.

Apesar dessas limitações, pode-se concluir que o comprometimento estético do trauma exerceu impacto negativo sobre a qualidade de vida de pré-escolares e suas famílias. Preditores de impacto negativo na qualidade de vida podem variar entre as populações, e esses aspectos devem ser levados em conta nos processos de tomada de decisão quanto à alocação de recursos para programas de saúde.4 Sugere-se que sejam feitos estudos com tamanho amostral maior para extrapolar para a população e que os estudos sejam longitudinais, para estabelecer relação causal entre as associações identificadas.

AGRADECIMENTOS

À Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis, o auxílio na pesquisa, e ao Programa de Pós-graduação em Odontologia da UFSC.

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  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2017
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2016
  • Aceito
    12 Mar 2017
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