Open-access Versão brasileira do Defense Style Questionnaire (DSQ) de Michael Bond: problemas e soluções

Resumos

O Defense Style Questionnaire (DSQ) é um instrumento para avaliação de derivados conscientes dos mecanismos de defesa do ego, desenvolvido e validado por Michael Bond em 1983 no Canadá. O presente trabalho consistiu da tradução e adaptação desse instrumento para o português, assim como do estudo de confiabilidade estatística da tradução em relação ao original. MÉTODOS: A tradução foi feita por um grupo de profissionais (psiquiatras, psicólogos e professores de inglês) segundo a técnica de retrotradução. O estudo da confiabilidade da tradução foi realizado em uma amostra de 51 bilíngües (inglês/português), os quais responderam aos testes nas duas versões (original e traduzida). A análise estatística da consistência interna e das correlações item por item e sujeito por sujeito, assim como entre os escores médios de cada uma das formas (original e traduzida), demonstrou que as duas versões são equivalentes e, portanto, a tradução para o português é precisa. Foram ainda avaliadas as abstenções às respostas e a taxa de concordância entre as versões. RESULTADOS E CONCLUSÃO: Todos os resultados foram bastante satisfatórios e estatisticamente significantes, o que nos permite concluir que o instrumento traduzido é adequado para uso no Brasil.

Tradução; confiabilidade; questionário; mecanismos de defesa do ego; DSQ


The Defense Style Questionnaire (DSQ) is an instrument designed to measure conscious derivatives of ego defense mechanisms. It was developed and validated by Michael Bond in 1983 in Canada. This study presents a translation and adaptation of the DSQ into Portuguese, as well as an evaluation of the statistical reliability of the Portuguese version compared to its original form. METHODS: The translation was carried out by a group of psychiatrists, psychologists and English teachers, using the back-translation technique. The reliability study was administered to a sample of 51 bilingual respondents (English/Portuguese), who performed the tests in both versions (original and translated). Statistical analysis of internal consistency and item by item and subject by subject correlations, as well as mean score between the two versions (original and translated) have demonstrated that both forms are equivalent; therefore, the translation into Portuguese is accurate. Agreement rate and unanswered items were also evaluated. RESULTS AND CONCLUSION: All results were quite satisfactory and statistically significant, which leads to the conclusion that the translated instrument is adequate for application in Brazil.

Translation; reliability; questionnaire; ego defense mechanisms; DSQ


ARTIGO ORIGINAL

Versão brasileira do Defense Style Questionnaire (DSQ) de Michael Bond: problemas e soluções

Mônica AndradeI; Itiro ShirakawaII

IDoutora. Professora adjunta de Psiquiatria, Departamento de Clínica Médica, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG

IIDoutor. Professor titular de Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Mônica Andrade Av. Nicomedes Alves dos Santos, 1854 CEP 38411-106 Uberlândia, MG Tel./fax: (34) 3214.9710 E-mail: monica@netsite.com.br

RESUMO

O Defense Style Questionnaire (DSQ) é um instrumento para avaliação de derivados conscientes dos mecanismos de defesa do ego, desenvolvido e validado por Michael Bond em 1983 no Canadá. O presente trabalho consistiu da tradução e adaptação desse instrumento para o português, assim como do estudo de confiabilidade estatística da tradução em relação ao original.

MÉTODOS: A tradução foi feita por um grupo de profissionais (psiquiatras, psicólogos e professores de inglês) segundo a técnica de retrotradução. O estudo da confiabilidade da tradução foi realizado em uma amostra de 51 bilíngües (inglês/português), os quais responderam aos testes nas duas versões (original e traduzida). A análise estatística da consistência interna e das correlações item por item e sujeito por sujeito, assim como entre os escores médios de cada uma das formas (original e traduzida), demonstrou que as duas versões são equivalentes e, portanto, a tradução para o português é precisa. Foram ainda avaliadas as abstenções às respostas e a taxa de concordância entre as versões.

RESULTADOS E CONCLUSÃO: Todos os resultados foram bastante satisfatórios e estatisticamente significantes, o que nos permite concluir que o instrumento traduzido é adequado para uso no Brasil.

Palavras-chave: Tradução, confiabilidade, questionário, mecanismos de defesa do ego, DSQ.

INTRODUÇÃO

As precárias condições de pesquisa nos chamados países em desenvolvimento, cujos recursos para investimento são sempre muito limitados, têm contribuído para que a prática da tradução e adaptação de instrumentos de avaliação desenvolvidos por pesquisadores de outros países seja relativamente difundida. Além disso, a perspectiva de padronização e ampliação dos universos a serem pesquisados, assim como a busca do enriquecimento propiciado pelos estudos multicêntricos transculturais também incentivam a tradução e adaptação de instrumentos diversos para avaliação em psiquiatria. Isso não significa, entretanto, que as dificuldades desse tipo de procedimento estejam próximas de estar solucionadas. Vários autores têm discutido os problemas encontrados durante o processo de tradução e adaptação de instrumentos de avaliação e pesquisa. Questões de natureza cultural, lingüística, gramatical e estatística têm sido apontadas, estudadas e discutidas a partir de diferentes e variados enfoques. Este trabalho tem como objetivo a tradução e adaptação para o português do Defense Style Questionnaire (DSQ), ou Questionário para Estilo de Defesas, desenvolvido por Michael Bond1, professor de psiquiatria da McGill University, em Montreal, Canadá. Também será realizado o estudo estatístico da confiabilidade desta tradução para tornar seu uso possível no Brasil.

MATERIAL E MÉTODOS

O questionário

O DSQ foi desenvolvido a partir de uma longa linha de pesquisa associada à necessidade de se construir instrumentos que permitissem o estudo experimental ou empírico dos mecanismos de defesa do ego descritos por Sigmund Freud2 em 1894. A importância e utilidade de tais instrumentos para a clínica têm sido reconhecidas vastamente na literatura psicanalítica e psiquiátrica.

George Vaillant3 considera que a mais original contribuição de Freud para a psicologia humana talvez tenha sido sua postulação introdutória de que "mecanismos de defesa inconscientes" protegem o ser humano de emoções, idéias e impulsos dolorosos. Ao descrever a natureza dos mecanismos de defesa do ego, Freud teria estabelecido que os sintomas psicopatológicos se apóiam em afetos e pensamentos perturbadores, mas também observou que grande parte do que é percebido como patológico reflete um processo potencialmente reparador. Esse autor chama a atenção para o fato de que nenhuma observação clínica ou exame psíquico da atualidade podem ser considerados completos sem que se faça uma tentativa de identificar as defesas predominantes do paciente, fundamentais não só para o diagnóstico, como também para qualquer formulação terapêutica.

Michael Bond4 observou, entretanto, que a carência de confiabilidade, validade e clareza conceitual para avaliação dos mecanismos de defesa do ego impedia sua adequada mensuração empírica. Em março de 1983, seu grupo de pesquisa apresentou publicação contendo dados que validavam o DSQ desenvolvido, em uma tentativa de eliminar os problemas de avaliação desse construto mencionados acima. Diversos achados comprovaram a validade do instrumento1,3,4. Sua consistência interna fica demonstrada por dois achados experimentais: primeiro, as correlações item/total entre as afirmativas e as defesas que representam foram todas significantes (p < 0,001); segundo, na análise fatorial, a maneira como as defesas se agruparam (clustered) confirma os estudos teóricos já desenvolvidos. Assim, manobras defensivas consideradas imaturas agruparam-se no fator 1 ou estilo de defesa 1 (afastamento, regressão, atuação, inibição, agressão passiva e projeção); onipotência, cisão e idealização primitiva agruparam-se no fator 2 ou estilo de defesa 2, representando o estilo chamado de distorção de imagem; formação reativa e pseudo-altruísmo formaram o fator 3 ou estilo de defesa 3 de tipo auto-sacrifício; finalmente, as defesas consideradas maduras (supressão, sublimação e humor) agruparam-se formando o fator 4 ou estilo de defesa 4. Além disso, o fato de haver uma forte correlação negativa entre as defesas consideradas primitivas e as consideradas de nível mais maduro fornece ainda mais evidências de consistência interna.

Para além do significado e da importância dos mecanismos de defesa do ego, surge ainda a questão da dificuldade de se trabalhar com qualquer fenômeno baseando-se apenas no julgamento clínico.

A necessidade de se estabelecer bases empíricas para identificação e avaliação dos dados em questão é uma premissa básica da pesquisa psicodinâmica moderna.

Diversos autores5-11 têm se ocupado em uniformizar conceitos, unificar nomenclaturas e estabelecer as bases teóricas e empíricas para a operacionalização do conceito de defesa psíquica, tornando-o mais adequado para aplicação nos contextos da clínica e da pesquisa.

Partindo do trabalho de George Vaillant, Michael Bond desenvolveu o DSQ, que já vem revelando suas qualidades em aplicações clinicas e de pesquisa7-12.

Bond13 ressalta vários trabalhos anteriores que tentaram desenvolver métodos experimentais para estudar mecanismos de defesa; entretanto, nenhum deles conseguiu prescindir da participação do julgamento clínico.

Sabendo ser impossível observar diretamente ou medir fenômenos inconscientes, este autor trabalhou com a auto-avaliação de derivados conscientes que, embora não meçam diretamente os mecanismos de defesa, parecem estar relacionados com eles. Lembra ainda que, nesse contexto, o termo "defesa" descreve não só os processos intrapsíquicos inconscientes, mas também comportamentos consciente ou inconscientemente destinados a conciliar impulsos internos e demandas externas. Para sustentar a possibilidade de se autodetectar processos inconscientes, partiu-se de dois pressupostos: há momentos em que as defesas falham, podendo-se, então, tomar consciência de impulsos inaceitáveis e de modos habituais de se defender dos mesmos; freqüentemente aponta-se socialmente o modo habitual de funcionamento de uma pessoa.

Sabendo, portanto, da inexistência de um instrumento que prescinda da subjetividade do terapeuta, foi construído um questionário auto-aplicável com 88 itens, os quais indicariam derivados conscientes de 24 mecanismos de defesa do ego, revelando estilos defensivos auto-observáveis. Ao completar o teste, os respondentes indicam seu grau de concordância ou discordância com cada item usando uma escala tipo Likert de nove pontos. Todos os itens foram construídos de forma que um alto escore indica que o respondente faz uso daquela defesa1,13.

Tendo em vista o extenso e rigoroso estudo ao qual o DSQ foi submetido1,4,13-15, consideramos que seria importante, útil e significativo traduzi-lo para o português, principalmente por não dispormos de um instrumento similar nesse idioma. Uma outra questão que nos ocorre é a da pequena tradição de pesquisa empírica dos conceitos psicanalíticos em nosso meio, e a disponibilidade desse instrumento poderia contribuir para o incremento dessa linha de investigações.

Gostaríamos de acrescentar que, após a defesa da dissertação de mestrado16 a partir da qual este trabalho foi elaborado, Blaya et al.17 repetiram o trabalho de tradução do DSQ para o português, porém dessa vez usaram sua versão reduzida, elaborada por Andrews et al.15, e escolheram um enfoque diferente.

A tradução do DSQ

A metodologia empregada para a tradução do DSQ foi a retrotradução (back-translation), desenvolvida por Werner & Campbell18 e considerada atualmente pela literatura especializada19-25 como a mais adequada para buscar um maior grau de equivalência quando comparada, por exemplo, com a tradução direta.

O texto original foi traduzido por três profissionais: dois psiquiatras, sendo um também psicanalista, e um psicólogo; um dos profissionais era bilíngüe* e dois eram altamente proficientes na língua inglesa. Nenhum deles conhecia anteriormente o material a ser traduzido, e nenhuma recomendação prévia foi feita.

Uma versão preliminar desenvolvida pelos tradutores separadamente foi apresentada em uma reunião, na qual foi discutida uma versão consensual. Nessa ocasião, foram utilizadas como subsídios as recomendações e a escala de Brislin19 para procedimentos de tradução, e cada item foi avaliado segundo esses critérios.

A versão final foi entregue a dois estadunidenses bilíngües, ambos residentes no Brasil há mais de 20 anos e professores de língua inglesa, que realizaram a retrotradução. As frases resultantes desse processo que refletiram exatamente o original foram imediatamente aceitas. Das 88 afirmativas do questionário, 12 foram consideradas duvidosas e foram rediscutidas com os tradutores e retrotradutores até chegar a novo consenso. Duas das afirmativas continham palavras previsivelmente mais difíceis para bilíngües brasileiros, tendo sido então apresentados o item original e uma versão simplificada do mesmo26:

Item 2: People often call me sulker. (or) People often call me moody.

Item 26: Sometimes when I am not feeling well I am cross. (or) Sometimes when I am not feeling well I get ill humoured.

Terminado o processo, foi realizada nova verificação por um dos tradutores e por ambos os retrotradutores, tendo em vista a noção de que a repetição do processo leva à progressiva melhoria do material20. Dessa última revisão, resultou uma pequena modificação em duas das afirmativas, para as quais foram escolhidos novos sinônimos considerados mais adequados ao contexto, embora talvez menos exatos, como, por exemplo, "emburrado", ao invés de "mal humorado", para traduzir sulker e "fico de cara feia" para traduzir I am cross.

Estudo da confiabilidade da versão do DSQ em português

Para verificar a confiabilidade da tradução do DSQ (versão de 1984), ambas as versões foram aplicadas a 51 sujeitos, sendo 22 bilíngües e 29 fluentes na língua inglesa. Todos eram alunos de três diferentes cursos avançados de inglês, sendo um deles um curso de formação de tradutores e intérpretes. Todos os respondentes foram recrutados mediante solicitação de voluntários em sala de aula.

O procedimento descrito foi proposto por Spielberger et al.21 como um meio de testar a fidedignidade de uma tradução e sua equivalência ao instrumento original. A lógica dessa técnica é a de que, se as formas forem equivalentes, sujeitos bilíngües deverão obter aproximadamente os mesmos escores ao responder os testes em português ou em inglês, e as correlações entre os escores obtidos nas duas formas deverá ser alta.

Com o objetivo de afastar as influências da memória, foi respeitado um intervalo de 15 dias entre as duas aplicações, e cada grupo foi subdividido ao meio recebendo as duas versões em ordem alternada.

Foram levantadas a freqüência, a percentagem de itens não respondidos e a taxa de concordância de respostas iguais emitidas pelos respondentes para cada questão nas duas versões. Essa taxa, expressa em termos de percentagem, poderá ser um indicador do grau de conhecimento da língua inglesa apresentado pelos indivíduos que compõem a amostra, como também pode fornecer indícios de problemas a serem revistos na tradução, uma vez que poderia apontar itens especialmente difíceis para bilíngües brasileiros20,25. As taxas de freqüência e concordância entre as versões podem constituir indicadores não só do grau de conhecimento da língua de origem por parte dos respondentes, mas podem também sinalizar problemas a serem melhorados no instrumento traduzido25.

Em seguida, foram calculadas as diferenças entre os escores médios obtidos pelos mesmos sujeitos em cada questão, em inglês e em português, e o desvio padrão dessas diferenças. Esses resultados foram analisados em si e através do teste t de Student, que mede a significância estatística das diferenças entre médias de amostras emparelhadas24,25,27.

Para verificação da confiabilidade do instrumento traduzido em relação ao seu original, considera-se o cálculo do kappa de Cohen como o mais adequado22,23,26,28,29. Esse índice de correlação é uma medida percentual de concordância com base estatística e correção para as correlações atribuíveis ao acaso. Foi aplicada a correlação de kappa entre as respostas dadas em inglês e em português para cada questão separadamente. Em seguida, aplicou-se esse mesmo cálculo entre as duas versões para cada sujeito.

A consistência interna do instrumento foi avaliada separadamente para as duas versões através do coeficiente a de Cronbach. "O índice a é uma estimativa de correlação entre duas amostras aleatórias obtidas do universo global de itens de um teste"23,24,30.

RESULTADOS

Dos 51 sujeitos da amostra, havia: 22 bilíngües e 29 fluentes na língua inglesa; 27 mulheres e 24 homens; 23 casados, 24 solteiros, três desquitados e um viúvo; 41 com terceiro grau completo e nove incompleto; um com segundo grau completo e um incompleto. A idade média foi de 30 8 anos (em uma faixa de 13 a 54 anos) incompletos.

Inicialmente, foram levantadas a freqüência e a percentagem dos itens não respondidos em cada uma das formas do questionário separadamente e nas duas ao mesmo tempo. A maior percentagem de abstenções ocorreu na forma original do questionário (inglês), sendo que as questões de números 17 e 84 foram responsáveis por 5,88 e 9,80%, respectivamente. Na forma traduzida, apenas o item 84 apresentou mais de uma abstenção (3.92%).

Foram também levantadas as freqüências e a taxa de concordância entre as respostas emitidas pelos mesmos sujeitos nas duas formas do questionário (Tabela 1). O total de respostas iguais foi de 2.508, o que corresponde a 55,88%. Trabalhamos aqui com duas faixas de concordância: os itens 5, 13 e 81 apresentaram taxas abaixo de 40% de concordância, enquanto que os itens 60, 79 e 85 mostraram concordância acima de 80%.

Foram calculados a média e o desvio padrão dos escores totais de cada item nas duas versões. Foi aplicado o teste de t de Student (p < 0,001, bilateral), cujo resultado foi t = 0,91. Esse valor corresponde a uma probabilidade de 3,4, demonstrando assim ausência de significância estatística entre as diferenças. O intervalo de confiança estabelecido foi de 0,99 (Tabela 2).

Foram ainda avaliadas as correlações entre as respostas para cada item separadamente, em inglês e em português e entre as duas versões para cada sujeito. Foi aplicado o kappa de Cohen (Tabela 3 e 4). Para as correlações entre os escores de cada questão em português e em inglês, todos os resultados apresentaram significância estatística (p 0,001 - foi usado o teste z para decisão). No caso das correlações entre os escores de cada sujeito em cada uma das línguas, encontramos cinco sujeitos cujos resultados não foram significantes. Todos os demais apresentaram correlações estatisticamente significantes (teste z; p 0,001).

A consistência interna foi computada separadamente para as duas versões do DSQ, e os coeficientes a (Cronbach) resultantes foram muito altos e bastante semelhantes: forma original (inglês) = 0,88; forma traduzida (português) = 0,91.

DISCUSSÃO

Sechrest20 menciona a necessidade de se cuidar com mais atenção da tradução de instruções e comandos, freqüentemente negligenciados no trabalho de tradução de instrumentos de pesquisa. No caso do nosso trabalho, mesmo depois de todo o processo de tradução múltipla, retrotradução, etc., apenas na primeira aplicação verificou-se o engano do autor original, que menciona a suposta existência de uma folha de respostas, quando, na verdade, incluía uma escala para as mesmas logo abaixo de cada questão. Esse duplo engano não só demonstrou a tese de Sechrest, como resultou na necessidade de refazer todo o material a ser aplicado, pois gerou dificuldades de compreensão das instruções.

Outra dificuldade encontrada durante o trabalho de tradução foi a da busca de sinônimos para as palavras associadas à descrição dos sentimentos, estados de ânimo ou afetos em geral. Essas ocorrências ilustram a preocupação de Flaherty22, quando lembra que é especialmente difícil a tradução de adjetivos ou termos que descrevem estados emocionais, sendo que uma ampla gama deles estava presente neste questionário. Esse autor também enfatiza, em seu trabalho, a necessidade complexa de se tornar comparável, em cada uma das culturas envolvidas, a descrição de experiências pessoais, freqüentemente encontrada em instrumentos de avaliação psiquiátrica. Comenta que o significado essencial de um termo ou expressão, na maioria das vezes, não pode ser traduzido literalmente, o que torna desejável uma maior flexibilidade na retrotradução. Consideramos que, em nossa experiência, esse problema foi facilitado pelas numerosas discussões entre os tradutores e retrotradutores após a realização da versão inicial. Esse aspecto já havia sido mencionado por de Figueiredo31, o qual, revendo a técnica de retrotradução, recomenda que, enquanto a parte inicial do processo deve ser independente e às cegas (tradutores não devem se comunicar em um primeiro momento), a comunicação deve ser intensa e repetida na parte final, associada a consultas a especialistas diversos e de variadas filiações profissionais (por exemplo, psiquiatras, lingüistas, gramáticos, etc.), fazendo-se um verdadeiro "rastreamento" do material.

Ainda outro aspecto que nos chamou a atenção durante as discussões foi o da necessidade de considerar o contexto do significado das afirmativas em contraposição a uma possível tradução mais literal. Houve consenso entre os profissionais que trabalharam neste estudo de que o contexto se fazia mais importante na maioria dos casos, mesmo quando poderia haver perdas na precisão da tradução. Werner & Campbell18, idealizadores da técnica de retrotradução, criaram também a noção de "descentralização", que preconiza que ambas as versões (fonte e alvo) sejam consideradas igualmente importantes na preparação da tradução; portanto, se necessário, deve-se alterar a forma da língua original em prol da clareza do significado na língua-alvo. Esse cuidado caracteriza uma diferenciação entre tradução literal ou lingüística e tradução cultural, possibilitando a somatória de ambas. É o que também recomenda Berkanovic32, ao afirmar que se deve tomar extremo cuidado no sentido de assegurar que qualquer tradução, culturalmente específica ou não, atinja um nível de uso lingüístico equivalente ao da língua-fonte, mesmo que com algum prejuízo da forma.

Esse aspecto foi ilustrado, em nossa experiência com o processo de tradução, através da decisão de substituir algum vocábulo referente a atividades mais comuns na cultura de origem do instrumento não por seu sinônimo, mas, por analogia, com o habitual na cultura-alvo. Foi este o caso, por exemplo, da substituição, em nosso questionário, de woodwork por "trabalhos manuais". Este nos parece ser também o caso da tradução, por exemplo, do verbo modal can por "conseguir", ao invés de "poder" ou "ser capaz", os quais, embora talvez mais precisos, nos pareceram menos usuais em nosso meio. Achamos ainda importante sugerir que a mesma consideração se faça em relação ao uso do presente simples em português para traduzir o presente contínuo ou o gerúndio do inglês.

Pudemos ainda, por exemplo, verificar a observação de Sechrest20 de que muitas vezes é mais importante explicar o significado de uma palavra ou expressão do que tentar parear vocábulos sinônimos sem considerar seu uso contextual e/ou cultural. Em nosso estudo, percebemos que, em línguas menos concisas, como o caso do português em relação ao inglês, talvez seja melhor sacrificar a concisão da tradução em benefício da compreensão.

Ainda com relação a esse aspecto, consideramos interessante comentar um fato pitoresco ocorrido durante a aplicação, quando um sujeito perguntou se a palavra "palhaço" no item 34 era no sentido de "engraçado" ou de "bobo". Pudemos perceber então que, apesar de todos os cuidados tomados ao longo do processo, ainda havia passado despercebido um viés contextual, uma vez que a palavra clown do original permite as duas possibilidades apontadas no exemplo. Mais uma vez, deve-se apontar que a tradução deve ser um processo dinâmico, constantemente reavaliado e reexaminado.

Finalmente, em um aspecto global, podemos dizer que nos surpreendeu o pequeno número de publicações relativas aos problemas de tradução de instrumentos de avaliação psiquiátrica para o português. Garyfallos23 relata a mesma surpresa em relação à sua língua materna, o grego, ressaltando a importância dos cuidados com os procedimentos de tradução e adaptação, assim como com o estudo da fidedignidade do instrumento traduzido. Esse mesmo autor lembra ainda que "palavras e expressões são, na verdade, símbolos que condensam um conjunto distintivo de significados, uma rede semântica específica de uma cultura. Logo, o conceito cultural desempenha um papel significativo que faz com que as diferenças culturais aportem problemas para a tradução e padronização de testes e instrumentos que tornam este procedimento muito complexo".

O trabalho de Blaya et al., por exemplo, faz a retrotradução e estuda a validade de conteúdo da versão reduzida do DSQ. Acreditamos que o estudo da validade de conteúdo, associado ao estudo de fidedignidade e às reflexões lingüísticas aqui apresentadas, pode representar uma contribuição significativa ao desenvolvimento de melhores versões do DSQ a serem usadas no Brasil. De nossa parte, consideramos que a complexidade dos procedimentos de tradução e adaptação de testes deve ser enfrentada, estudada e compartilhada, para que se possa promover um maior intercâmbio no uso de testes e instrumentos de avaliação de uma cultura para outra.

O estudo da confiabilidade

A análise estatística descritiva dos resultados revelou que, entre os itens não respondidos, as questões de número 17 e 84 apresentaram um maior grau de abstenção à resposta. Pensamos que é possível atribuir essa abstenção a dificuldades na compreensão do texto em inglês, que apresenta expressões idiomáticas em ambas as afirmativas em questão. Esse resultado poderia indicar, ainda, a necessidade de se reestruturar a afirmativa 84; talvez a expressão "me ocupo de uma tarefa" seja mais clara do que "me apego a uma tarefa". Consideramos, entretanto, que o nível de abstenção, apesar de ser o mais alto da amostra, ainda pode ser considerado aceitável, pois está bem abaixo dos 5% considerados como limite.

Para analisar a taxa de concordância entre as respostas atribuídas a cada questão em cada língua, trabalhamos com duas faixas. Abaixo de 40% de concordância, encontramos as afirmativas 5 (39%), 13 (33%) e 81 (37%). Acima de 80% de concordância, encontramos as afirmativas 60 (94%), 79 (83%) e 85 (92%). A afirmativa 5, além de apresentar uma expressão idiomática, sofreu uma modificação de conteúdo ao ser traduzida (trabalhos manuais para traduzir woodwork). As afirmativas 13 e 81 contêm palavras pouco usuais, facilmente identificadas como especialmente difíceis para nativos brasileiros, o que pode ter gerado problemas de compreensão. O item 60 refere-se a um grave sintoma psicótico, com baixa probabilidade de aparecer em uma amostra de sujeitos normais e cujo aspecto bizarro tenderia a induzir certeza e intensidade na discordância. Os itens 79 e 85 dizem respeito ao uso de drogas, medicamentos e tabaco, cujo estigma social pode também ter gerado certeza e veemência na assertividade da resposta em ambas as versões. Essas características das afirmativas podem ter contribuído para elevar o índice de concordância. Vale ainda lembrar que, em uma escala de tipo Likert, com um amplo espectro (nove categorias) no grau de intensidade da concordância ou discordância, pequenas diferenças não podem ser consideradas significativas, o que fica demonstrado pela significância dos testes estatísticos. Neste caso específico, pelas diferenças entre os escores, em cada uma das versões, do teste t. Garyfallos23 comenta que essas pequenas diferenças podem inclusive ocorrer nos resultados de um mesmo teste, aplicado aos mesmos sujeitos em duas ocasiões diferentes23,27.

No teste de kappa, encontramos significância estatística para todas as correlações de todos os itens, o que corrobora a equivalência da tradução. Ao analisar a correlação entre as respostas de cada sujeito, encontramos três resultados não significantes, o que provavelmente indica um menor conhecimento da língua inglesa em relação aos demais componentes da amostra.

Quanto à consistência interna do instrumento, pode-se afirmar que os índices foram altamente satisfatórios. Tendo-se em vista que a literatura disponível22,28 aponta como desejável um limite de a = 0,60, lembramos que obtivemos a = 0,88 para a forma original e a = 0,91 para a versão portuguesa.

Inúmeros autores20,22,24,27 vêm tentando definir diretrizes e construir teorias para a tradução transcultural de instrumentos de avaliação psiquiátrica ou psicológica. O Quadro 1 é uma tentativa de reunir todos esses enfoques encontrados na literatura, uma vez que nos esforçamos para levar em consideração todas as dimensões sugeridas no presente trabalho.


Esse conjunto de resultados permite-nos concluir que há equivalência da tradução, sendo que o instrumento traduzido apresenta confiabilidade estatística para ser aplicado em nosso meio. Acreditamos que este estudo deve ser visto como um passo inicial no sentido do desenvolvimento da versão do DSQ em português (Anexo 1 Anexo 1 ), uma vez que amostras maiores devem ser testadas e novos estudos de validade devem ser realizados.

Recebido em 04/01/2006. Aceito em 13/07/2006.

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Anexo 1

  • Correspondência:
    Mônica Andrade
    Av. Nicomedes Alves dos Santos, 1854
    CEP 38411-106
    Uberlândia, MG
    Tel./fax: (34) 3214.9710
    E-mail:
  • *
    O conceito de bilíngüe em pesquisas transculturais é mencionado por Garyfallos
    23: pessoa que é fluente em duas línguas e viveu pelo menos 1 ano em cada país, sendo, portanto, bicultural. O autor chama a atenção para o fato de que o aspecto definidor do conceito deve ser a residência em ambos os países, o que é necessário para que um indivíduo entenda os diferentes significados das palavras e não seja apenas capaz de traduzir de uma língua para outra.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Recebido
      04 Jan 2006
    • Aceito
      13 Jul 2006
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