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O que faz a excelência de uma revista científica

EDITORIAL A CONVITE

O que faz a excelência de uma revista científica

Antonio Marques da Rosa; Júlio Chachamovich

Ocorreu em setembro, em São Paulo, o XI Curso de Editoração Científica, promovido pela Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), entidade à qual nossa revista é filiada.

O Conselho Editorial da Revista de Psiquiatria lá esteve presente, representado por um de seus membros, ao lado de cerca de oitenta outros participantes de todo o país, representantes das diversas sub-áreas do conhecimento científico nacional, trocando experiências rumo ao aprimoramento que todos desejam em suas respectivas publicações.

Dentre as diversas contribuições do encontro, trazemos aos leitores aquelas ligadas ao processo de realização, avaliação e publicação de um artigo científico e que constitui o eixo de nossa revista.

Antonio Briquet de Lemos, biblioteconomista, editor e livreiro, ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e ex-diretor da editora da UnB, mostrou, com didatismo, uma visão das características do artigo científico. Quanto ao conteúdo, ele deve apresentar:

(1) objetividade, em oposição à subjetividade, que se baseia em critérios emocionais ou ideológicos.

(2) inteligibilidade, isto é ter o mínimo de confusão e entropia, evitando os extremos da prolixidade e da concisão. Claro que isso pressupõe que haja em cada leitor um acervo de conhecimentos que ajude a compreender o texto.

(3) impessoalidade, do ponto de vista do autor. Não personalizar críticas. Obedecer à ética da comunicação científica, para a qual existem recursos de linguagem, como o uso do condicional "se", da voz passiva e do pronome pessoal no plural.

(4) reprodutibilidade das experiências.

(5) coerência interna das idéias. Uma má regência verbal ou colocação de vírgulas equivocada podem comprometer essa coerência.

(6) Raciocínio lógico, que tanto poderá ser dedutivo ou indutivo, desde que esteja presente. A criatividade é possível, mas apenas do ponto de vista do conhecimento, não do ponto de vista da forma.

Briquet de Lemos alinhou, como características do artigo científico quanto à forma, as seguintes:

(1) Emprego do padrão da língua culta, em oposição à coloquial. Adoção de uma boa gramática e de um bom dicionário. Na questão dos inevitáveis neologismos, ter cuidado com exageros.

(2) Obediência à nomenclatura e terminologia da respectiva área.

(3) Obediência às normas e padrões oficiais e consensuais (nas abreviaturas, p. ex.).

(4) Concisão: evitar adjetivos e advérbios, bem como pronomes pessoais dispensáveis (eu observei, nós pesquisamos).

(5) Adoção de regras e tradições redacionais prevalentes na respectiva área; não tentar inovar.

Quanto aos diferentes tipos de artigos, são considerados trabalhos originais : a comunicação prévia – feita para assegurar prioridade ou pela urgência daquele conhecimento; a comunicação breve – que algumas revistas estimulam devido ao afluxo de artigos, visando a textos mais concisos; cartas ao editor, que são também formas de comunicação prévia e de comunicação breve; os editoriais, que podem trazer informações importantes e originais e que algumas vezes são encomendados pelo editor a um especialista da área; além desses os artigos de opinião, as notas prévias, os relatos de casos e estudos de casos. Cabe lembrar que trabalho original refere-se a uma novidade; trabalho inédito refere-se a um artigo não publicado anteriormente (requisito quase universal das revistas).

São considerados artigos de revisão as revisões bibliográficas e os ensaios bibliográficos. O ensaio, mais amplo, traça um quadro geral da literatura sobre um assunto. As resenhas (ou recensões) de livros devem ser concisas, objetivas e práticas. Não é seu objetivo dar ao autor da resenha uma chance de mostrar erudição.

Os textos de divulgação científica são aqueles textos para o público leigo. É passado um release para a mídia de artigos selecionados. Pode haver ou não uma adaptação do texto.

O Abstract deve ser revisado por um native speaker (revisor que tenha como língua materna o inglês); a respeito do resumo, assinala que aquilo que está no título não é repetido no resumo, visto que o titulo já faz parte deste; na questão dos descritores e palavras-chave, ensina que enquanto o primeiro deve ser extraído de uma fonte (Thesaurus), o segundo é extraído do próprio texto.

Outro palestrante, Charles Peçanha, destacou o que considera ser o papel da revista científica. Peçanha é editor de Dados: Revista de Ciências Sociais do IUPERJ e professor de ciência política da UFRJ. É também conselheiro da ABEC. Para ele, é função da revista cientifica:

(1) A comunicação de resultados à comunidade científica e à sociedade.

(2) O fornecimento de critérios para a avaliação de indivíduos e instituições.

(3) Garantir a memória da ciência e a prioridade de autoria.

(4) Consolidar áreas e sub-áreas de conhecimento.

Peçanha salientou a importância crucial dos avaliadores dos trabalhos científicos, trazendo a seguinte citação: "A revista científica dá o imprimatur de autenticidade científica, que foi conferido pelo editor e pelos avaliadores. O avaliador é a base em torno da qual gira toda a ciência" (J.M. Ziman).

No importante capítulo da ética, esse palestrante lembrou que algumas revistas internacionais têm seu próprio conjunto de regras e exemplificou com o código de ética da prestigiosa revista Protein Science, que considera como um dos melhores e que apresenta as recomendações para os autores, editores e pareceristas.

I. AUTORES

Descrição clara e concisa da pesquisa e de sua importância.

Detalhamento da pesquisa, para permitir a repetição por outros cientistas.

Créditos a trabalhos anteriores. Citar fontes da atual pesquisa.

Os originais devem vir com carta de autorização à revista.

Evitar publicação e submissão múltipla.

Co-autoria: todos os autores devem assinar.

É responsabilidade do autor principal: incluir todos que participaram e excluir os que não participaram; estabelecer a comunicação entre editor e demais autores.

Riscos (de contaminação, p.ex)

Aceitar a autoridade do editor.

O encaminhamento de um original implica em que os autores aceitam a autoridade final do editor quanto à avaliação e edição do texto. Quem envia um artigo está fazendo um contrato com aquela revista e aceita as regras impostas.

II. PARECERISTA

Fornecer avaliação objetiva e confidencial.

O parecerista fica desobrigado nas seguintes situações: conflito de interesse (pessoal, profissional, econômico); pouca familiaridade com o assunto; já avaliou aquele texto para outra revista.

Confidencialidade: não revelar o conteúdo nem se identificar como parecerista a qualquer pessoa, inclusive os autores, sem a permissão do editor. Exceção: ao pedir cooperação de colega, que estará sujeito às mesmas regras de sigilo. Não deve copiar material do texto e deve destruir ou devolver as cópias.

Documentação: fornecer avaliação por escrito. Tem a obrigação de apontar falhas na menção a trabalhos relevantes ou de outros autores, bem como assinalar as insuficiências científicas do trabalho.

III. EDITOR

Garantir a integridade da Revista científica.

Tomar a decisão de aceitar ou recusar baseado em critérios científicos.

Razões de recusa: falta de originalidade; não confiabilidade científica; ausência de contribuição significativa; falta de clareza ou apresentação inadequada do material.

Sigilo e imparcialidade.

Autoridade do editor: cabe a ele a decisão final sobre o que é publicado na revista científica e deve exercer esse poder de forma judiciosa.

É considerada conduta antiética dos autores: apresentar dados ou fatos inexistentes, documentos forjados, dados distorcidos deliberadamente e idéias ou textos de outros sem autoria; omitir autor que participou do artigo; incluir autor que não participou do artigo; falsificar status da publicação.

É considerada conduta antiética dos pareceristas: falsificar ou emitir parecer mentiroso; retardar o parecer; roubar idéias ou texto do manuscrito.

É considerada conduta antiética dos editores: forjar parecer; mentir para o autor sobre o processo de avaliação; roubar idéias ou texto do manuscrito.

Palestrante de vasto e prolífico currículo acadêmico, Lewis Joel Greene é doutor em Bioquímica pela Rockfeller University, já foi presidente da ABEC e editor da prestigiada Brazilian Journal of Medical & Biological Research, além de autor de dezenas de artigos. Greene falou das razões que fazem com que um trabalho deva ser publicado, que são basicamente duas: deve ser relevante e deve ser inédito. Na aparente singeleza dessas duas razões reside sua importância.

Quanto ao design, o trabalho científico deve ser consistente com os objetivos, apresentar métodos apropriados para o objetivo, ter controles apropriados para o objetivo, ter um modelo (paciente) apropriado para o objetivo e em número apropriado e o novo método deve ser comparado ao padrão ouro. Recomendou que as tabelas e figuras sejam no menor número possível, com títulos e legendas informativas para o leitor entender sem precisar voltar ao texto e que obedeçam aos padrões da revista.

Advertiu, quanto aos trabalhos de mestrado e doutorado submetidos à publicação, que os critérios da banca não são, necessariamente, os mesmos critérios do editor e da política editorial da revista.

Greene citou, como características de manuscritos de pouca qualidade, a Síndrome do Monte Everest: quando perguntado sobre a razão que o levou a escalar o ponto mais alto do globo, o alpinista respondeu: "because it's there!". Porque escreveu o manuscrito? Porque o assunto estava lá, sem a existência de uma razão de ordem prática. Além dessa característica, existem outras: experimentos não interligados (falta um passo chave); dados não suficientemente interligados; coleta de dados sem discussão; discussão que vai além dos resultados; original, mas de relevância questionável; redação obscura ou de difícil compreensão.

Dizendo de outra maneira, o dilema do editor consiste das seguintes questões:

O objetivo é original e cientificamente válido? O método e delineamento são apropriados? Os dados têm qualidade para serem interpretados dentro do contexto dos objetivos? Os resultados justificam a conclusão? Levar em conta a prioridade para publicação: competição com outros manuscritos pelo espaço na revista.

A decisão do editor deve ser tomada com base nas recomendações do editor daquela seção da revista e dos revisores, levando sempre em consideração o conteúdo dos pareceres dos revisores, e não por votação. Uma estatística do Brazilian Journal of Medical and Biological Research mostra que 15% não retornam com as modificações recomendadas; 1% é aceito sem revisão; 24% é aceito com pequenas alterações; 30% é aceito com alterações extensas; 30% é rejeitado.

Greene salienta que a responsabilidade da revista científica é: conferir igualdade e rapidez aos manuscritos; valorizar o conteúdo do parecer, não apenas a recomendação; remeter aos autores os pareceres; manter a identidade dos autores confidencial; reconsiderar as apelações dos autores, já que o sistema não é perfeito; manter a consistência da política editorial. Traz o exemplo do British Journal of Medicine (BJM) para ilustrar que nem todos os manuscritos devem ser avaliados fora do âmbito editorial: O BJM faz uma seleção preliminar e rejeita 85%; os outros 15% vão para avaliação. É de opinião que o editor pode ignorar os conselhos dos assessores e sua decisão é soberana.

Quanto à questão dos editores publicarem nas próprias revistas, há um consenso de que é lícito, desde que dentro de certos limites. Algumas publicações aceitam um trabalho por ano de autoria do editor. Não publicar na própria revista oferece um tom de suspeição, quanto à opinião do editor sobre a qualidade de sua própria revista. Greene concluiu comentando a seguinte pergunta: os editores têm a obrigação de publicar estudos que não confirmam ou que contradizem estudos publicados anteriormente na sua revista? A resposta é sim, se esse segundo manuscrito tiver qualidade científica.

Muito mais foi visto, mas o espaço é precioso, deixemo-lo aos nossos autores. Como se viu, autores e editores, temos muito a caminhar. À frente, descortina-se uma trilha tortuosa, com obstáculos e atribulações, mas se olharmos para trás veremos o quanto nossa revista já percorreu e que, apesar dos tropeços, ou quem sabe devido a eles, mantivemo-nos no caminho certo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2003
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