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O Cais do Valongo como palco religioso: ritual, memória e patrimônio num palimpsesto urbano1 1 Este trabalho foi beneficiado pelo apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) - Pós-Doutorado Sênior (PDS 2022).

The Valongo Wharf as a religious stage: ritual, memory and heritage in an urban palimpsest

Resumos

Desde a abertura ao público do sítio arqueológico do Valongo, em julho de 2012, numerosas performances artísticas e festivas, militantes, rituais e religiosas, acontecem no anfiteatro e na esplanada em torno do antigo cais. O artigo se interessa pela atuação das religiões de matrizes africanas nesse espaço, focalizando o ritual anual de lavagem do cais dos escravizados pelas Baianas. Ele mostra que as performances rituais ligadas ao candomblé de nação nagô-ketu (apesar de uma antiga e massiva presença bantu neste lugar) foram investidas de um papel central assim como de uma legitimidade singular no trabalho de resgate memorial, de afirmação de identidades e de reivindicação sociopolítica. Essas práticas populares, imateriais e efêmeras participam também da patrimonialização do Cais do Valongo.

Palavras chaves:
Ritual; Performance; Candomblé; Cerimônia de lavagem; Memória.


Since the Valongo archaeological site was opened to the public in July 2012, numerous artistic, festive, militant, ritual and religious performances have been held on the esplanade bordering the old wharf. This articles centres on the role of religions of African origin in this locality, focusing on the annual ritual of washing the stones of the old wharf where slaves disembarked. Ritual performances linked to the Candomblé of Yoruba tradition - despite an ancient and huge Bantu presence in this aera - have been invested with a central role and a singular legitimacy in the work of recovering memory, affirming identities and making socio-political demands. These popular, immaterial and ephemeral practices also participate in the heritagization process of the Valongo Wharf.

Keywords:
Ritual; Performance; Candomblé; Washing ceremony; Memory.


Introdução: Uma ruína-palimpsesto

No início de 2011, durante obras na antiga região portuária de Rio de Janeiro, no contexto da operação de urbanismo Porto Maravilha (que começou em 2009), o Sítio Arqueológico Cais de Valongo foi "reencontrado". Uma rápida e intensa campanha de escavações arqueológicas, trouxe à luz uma série de ruinas empilhadas, um conjunto de vestígios históricos sobrepostos, assim como numerosos objetos.

O espaço (o cais e a esplanada em torno) foi inaugurado em julho de 2012 permitindo ao público acessar de perto o sito arqueológico. No recorte transversal, são bem visíveis três camadas, cada uma com um tipo de vestígio: 1) um cais de pedras, com calçamento do tipo “pé de moleque”, construído em 1811 e ativo até 1831, que foi o mais importante cais de desembarque de pessoas escravizadas das Américas;2 2 Segundo as estimativas, desembarcaram neste cais entre 600 mil e mais de 1 milhão de cativos (Karasch 2000:512, nota 2; Soares 2013:10-27). O Rio de Janeiro foi o maior porto do mundo para o tráfico de escravizados africanos. 2) algumas dezenas de centímetros acima, encontram-se pedras retangulares e regulares, vestígios do Cais da Imperatriz, local de chegada, em 1843, de Teresa Cristina Maria de Bourbon, futura esposa do Imperador do Brasil Dom Pedro II ; 3) mais próximo do nível atual do chão, pode-se ver pedras de pavimentação urbana, que são os restos de uma praça inaugurada no início do século XX, durante a construção (1904-1911) de novos aterros e do que foi então o primeiro grande porto moderno do pais.

Constituído por consecutivos aterramentos que revelam uma sucessiva reescrita da história na superfície urbana, o Cais do Valongo constitui um magnífico exemplo de palimpsesto urbano/arquitetônico.

O espaço em geral, e os edifícios em particular, são um suporte privilegiado para a inscrição das memórias de certos grupos sociais e, como tal, são produtos e produtores de identidades coletivas. O sociólogo Maurice Halbwachs foi provavelmente o primeiro a mostrar que a memória coletiva dos grupos sociais se constrói menos com base no passado coletivo do que nos confrontos com questões contemporâneas (Halbwachs 1994 HALBWACHS, Maurice. (1994) [1925], Les cadres sociaux de la mémoire collective. Paris: Albin Michel. ). Mostrou também que a memória coletiva religiosa precisa se inscrever numa dimensão material, e é frequentemente (re)inscrita a posteriori num espaço selecionado, reconfigurado e ressignificado (Halbwachs 1972HALBWACHS, Maurice. (1972) [1941], La Topographie légendaire des Évangiles en Terre Sainte; étude de mémoire collective. Paris: PUF .).

Em 2012, quando foi aberto ao público, o Cais do Valongo passou repentinamente de uma longa invisibilidade a uma grande visibilidade. Ao longo dos anos observei que a nova esplanada em torno do cais se tornou suporte de muitas intervenções e performances de diversas naturezas (artísticas e festivas, militantes, rituais e religiosas).3 3 A partir de 2008 comecei a frequentar os bairros de Saúde, Gamboa e Santo Cristo, que compõem a antiga região portuária carioca. Entre 2010 e 2016, desenvolvi um trabalho de campo sobre as transformações culturais e sociais no contexto da operação de “revitalização urbana” da região. Desde o dia da sua inauguração pública, o sítio do Valongo se afirmou, com essas manifestações, como um lugar no qual são feitas tentativas de dar visibilidade ao passado local (do tráfico transatlântico e da escravidão, das manifestações socioculturais e religiosas afrodescendentes), de resgatar/ativar memórias coletivas, de convocar e homenagear ancestralidades, dando visibilidade neste processo à afirmação de identidades coletivas (principalmente de grupos ligados ao universo cultural e religioso afro-brasileiro) e às reinvindicações sociopolíticas (referentes, em particular, às políticas de reconhecimento, reparações e promoção da igualdade racial).

Privilegiando as manifestações populares em relação às políticas públicas (turísticas, patrimoniais e memoriais), este artigo propõe uma análise crítica das formas e modalidades de apropriação, de requalificação e de ressignificação do espaço social público do Valongo. Para isso, aborda as performances rituais ligadas às religiões de matriz africana que ocorrem no sítio, focalizando o ritual anual de lavagem do Cais dos escravizados pelas Baianas do candomblé.

Monumentos recobrindo um cais anônimo

O termo monumento (do latim monumentum, derivado do verbo monere, i.e., "lembrar") refere-se a uma obra de arquitetura e/ou escultura feita para transmitir à posteridade a memória de um acontecimento/evento importante ou de uma pessoa ilustre. Segundo Françoise Choay, um monumento tem por finalidade “fazer reviver no presente um passado engolido pelo tempo” (Choay 2014CHOAY, Françoise. (2014), Alegoria do patrimônio. Lisboa: Edições 70.:25).

Fica claro que o cais dos escravizados do Valongo nunca foi construído na perspectiva de tornar-se um "monumento", mas pelo contrário, com o objetivo prático de disfarçar um comércio vergonhoso: de permitir aos navios negreiros descarregarem a sua mercadoria da maneira mais discreta possível, longe do centro da cidade colonial,4 4 Até 1769 os escravizados desembarcavam na área central (Praça XV, Alfândega) e o mercado dos cativos ficava na rua Direita (atual rua 1° de março). fora da vista da alta sociedade. A partir de 1779, o desembarque e o comércio das pessoas escravizadas foram transferidos para essa região da Saúde, que ficava então fora dos limites da cidade, numa zona de relegação.5 5 A chamada passagem do Valongo (hoje rua Camerino) ligava o centro da cidade colonial a essa área litoral, separada por uma barreira de morros.

Por outro lado, a partir de 1842, uma década após a desativação do cais dos escravizados, o chamado Cais da Imperatriz, construído (pelo engenheiro militar Henrique de Beaurepaire Renan) em cima desse primeiro cais de pedra, tinha, inegavelmente, uma função monumental: destinava-se a marcar de maneira solene e fastuosa a chegada da princesa das Duas Sicílias para se casar com o Imperador do Brasil e, assim, unir simbolicamente o Império. Na manhã de 4 de setembro de 1843 a princesa da casa reinante de Nápoles saltou de uma galeota de toldo de damasco verde e ouro, colocando o primeiro pé em terras brasileiras neste cais (re)construído especialmente para recebê-la. O lugar da suntuosidade, da representação e do prestígio tornou-se um lugar memorável. Aliás, o conjunto arquitetônico da Praça Municipal, em torno do cais (um projeto do arquiteto Auguste Grandjean de Montigny), representou segundo Brasil Gerson a primeira "praça monumental" do Rio de Janeiro (Gerson 2013GERSON, Brasil. (2013), Histórias das Ruas do Rio, Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi.: 175; ver também Pessôa 2022PESSÔA, José. (2022), “Cais da Imperatriz e Praça Municipal: análise de um espaço público do neoclássico carioca”. Anais do Museu Paulista, vol. 30: 1-27.).

Figura 1:
Cais do Valongo preparado para o desembarque da Imperatriz.

A coluna de granito inaugurada três décadas depois, em 1872 e visível até hoje, também compõe um "monumento".6 6 Encimada por uma esfera armilar, essa coluna (às vezes chamada de obelisco) era inicialmente embasada num chafariz retangular (hoje desaparecido) (Pessôa 2022:13). Foi erguida para recordar a chegada da Imperatriz (como o indica uma antiga placa comemorativa).

No contexto republicano, em 1911 e com a construção de um porto industrial, uma nova praça monumental, a Praça Jornal do Comércio, recobriu a Praça Municipal, celebrando a modernidade da República e a abertura ao comércio internacional.

Figura 2:
Largo da Imperatriz, com a coluna de granito (obelisco).

Modéstia do novo dispositivo memorial

E agora? Podemos considerar que desde a sua "redescoberta" o Cais do Valongo tornou-se um "monumento"? Para responder, é necessário, primeiro, analisar em qual contexto o sítio do Valongo foi “requalificado’’ nos anos 2011 e 2012.

A preocupação inicial dos representantes oficiais do Movimento Negro e, em particular, dos membros do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro, era poder definir/controlar o projeto de construção de uma nova praça que viabilizasse formas locais de apropriação abertas à pluralidade de interpretações do passado e formas populares e espontâneas de comemoração. Pois, entre 2011 e 2012, sob a grande pressão do mercado imobiliário e do marketing urbano ligado à operação Porto Maravilha, com a imposição de políticas públicas de cima pra baixo, havia o risco real do surgimento descontrolado de uma espécie de nova praça “monumental”, construída às pressas e que não corresponderia às expectativas. Finalmente, as negociações em torno da disposição urbanística/arquitetural da esplanada chegaram ao atual projeto, caracterizado por uma configuração sóbria e despojada do espaço, permitindo um acesso facilitado ao cais: ampla esplanada, degraus, rampas de acesso a uma pequena plataforma, com barreiras protegendo parcialmente o sítio arqueológico.

O dispositivo memorial foi, portanto, propositalmente reduzido ao mínimo: alguns painéis apresentando brevemente a história do local e as etapas do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana’ (criado pela municipalidade em novembro de 2011).7 7 Porém, com a reabilitação do cais no final de 2023 foi instalado na esplanada que margeia a Rua Sacadura Cabral um aparato pedagógico mais consistente, com grandes paneis explicativos, além de um conjunto de esculturas. Do ponto de vista material, o sítio do Valongo constitui assim um modesto vestígio arqueológico a céu aberto.

Esse sítio modesto em forma de palco aberto foi aproveitado por numerosos atores. Ou seja, a ausência de “monumentalidade” e de um museu-memorial erguido no local8 8 Em 2012, a Carta “Recomendações do Valongo” propunha que fosse criado o ‘‘Memorial da Diáspora Africana’’ nas Docas Dom Pedro II, um edifício de grandes dimensões localizado exatamente ao lado do cais. Atendendo a um pedido do Movimento Negro e ao desejo da equipa responsável pela candidatura do cais do Valongo ao Património Mundial, o projeto de instalação desse memorial neste edifício (tombado pelo Iphan em 2016) foi objeto de um acordo entre o Iphan e a Unesco, ratificado pelo município. Porém, o edifício das Docas D. Pedro II sendo objeto de uma disputa judiciária, o Museu de História e Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB) está funcionando, desde 2018, no Centro Cultural José Bonifácio, no bairro da Gamboa, relativamente longe do cais do Valongo. não impediram - bem pelo contrário - formas locais/populares de apropriação efêmera do espaço.

Figura 3:
Sitio arqueológico do Valongo. Foto tirada da esplanada, com o anfiteatro em primeiro plano, o cais atrás e a coluna em segundo plano

Práticas imateriais in situ

Desde que o sítio do Valongo foi aberto ao público, numerosas práticas imateriais, sempre ligadas ao universo da cultura afro-brasileira, têm ocorrido tanto na esplanada quanto na pequena plataforma que margeiam o cais dos escravizados. O local tem sido utilizado de maneira episódica como suporte físico para peças de teatro, espetáculos, performances de arte contemporânea, sempre com o tráfico transatlântico e a escravidão como fio condutor das narrativas/encenações. Grupos de conversa e contadores de histórias também, por vezes, trocam saberes, ideias e narrativas em torno do cais. Sobretudo, a área em torno do cais foi (e continua sendo) frequentemente palco de sessões de batuque, rodas de samba, rodas de capoeira, apresentações de jongo e cortejos carnavalescos. Os ritmos/danças apresentados são por vezes provenientes de outras partes do país, como é o caso das apresentações de maracatus, coco, tambor de crioula, bumba meu boi.

Podemos afirmar que quase todas essas sessões musicais/festivas/culturais de raízes africanas carregam formas de espiritualidade e incluem uma dimensão de transcendência. Porém, nos desfiles e cortejos dançantes do tipo congada (ou congado, cucumbi, festa de reinados...) que há alguns anos (ainda que sem regularidade de calendário) atravessam os bairros da Saúde e Gamboa, e que sempre fazem uma longa parada na esplanada do Valongo, a dimensão religiosa pode ser mais explicita.9 9 Estes eventos, organizados no passado por irmandades de escravizados ou libertos em honra de santos católicos, sob a forma de coroação de reis ou rainhas da "nação", são ainda hoje celebrados em vários estados brasileiros.

Em outras manifestações, a dimensão religiosa é ainda mais evidente. Como veremos em detalhe adiante, todos os anos, desde a inauguração oficial do sítio em julho de 2012, é realizado um ritual de lavagem do cais dos escravizados por sacerdotisas e iniciados do candomblé. Além disso, os desfiles, procissões e cortejos com oferendas (Cortejo do Dia de Yemanjá,10 10 Desde 2017, o Cortejo de Yemanjá passa pelo Valongo. Cortejo das Iabás11 11 Iabás se refere aos orixás femininos nas religiões de matriz africana. , Afoxé etc.) que os adeptos e simpatizantes da umbanda e do candomblé organizam nos bairros portuários (ligando assim vários lugares referentes ao passado negro local) sempre passam pelo Cais do Valongo.

As flores, velas e oferendas, anonimamente depositadas nas bordas do cais, também testemunham formas populares de apropriações religiosas do espaço por devotos de religiões de matriz africana (principalmente a umbanda e o candomblé).

Por fim, o cais tem sido visitado também por turistas adeptos das religiões de matriz africana fora do Brasil (Santería de Cuba ou Porto Rico, Candombe do Uruguai, Orisha-Voodoo dos Estados Unidos etc.) e por autoridades religiosas africanas (de países como Benim, Nigeria e Angola), que prestam sua homenagem no local e, por vezes, se envolvem em práticas rituais.

Em seguida a essas performances, a esplanada do cais serve frequentemente de palco e de caixa de ressonância para a expressão de reivindicações e discursos militantes. Essas falas in situ ocorrem nos dias ligados à história e à cultura negra (Dia da Consciência Negra, Dia do Samba, Dia da Abolição da Escravatura, Dia da Lavagem do Cais). Elas ocorrem também na ocasião de debates, de homenagens a personalidades afro-brasileiras ou de visitas de personalidades políticas ao local.

Figura 4:
Roda de capoeira na esplanada do Valongo no Dia de Yemanjá

Figura 5:
Desfile de Congada no anfiteatro do Valongo no Dia da Consciência Negra

Figura 6:
Desfile festivo e procissão religiosa no Valongo no Dia de Todos os Santos

Todos os eventos evocados são ao mesmo tempo artes performativas, realizações culturais e/ou religiosas e expressões de patrimônios imateriais. Mesmo sendo apoiadas num suporte material, essas práticas são dispositivos - cênicos, rituais, musicais, visuais - imateriais. Em oposição a isso, nota-se que as políticas públicas (patrimoniais, turísticas e memoriais) relacionadas ao passado negro local levadas a cabo até agora (desde 2009 e do início da operação Porto Maravilha) são centradas na dimensão material do patrimônio.

Se os monumentos são, como define Aloïs Riegl, “obras que possuem um certo valor de ‘rememoração’” (Riegl 2016RIEGL, Aloïs. (2016), Le culte moderne des monuments. Paris: Allia.:86), é inegável que as modestas ruinas do Cais do Valongo constituem, desde 2012, um monumento. Mas trata-se aqui de um monumento singular: sem obra “monumental”, sem memorial explicito e oficial, sem aparato museológico e com um aparato pedagógico reduzido. O paradoxo é que a ausência de uma caracterização formal (arquitetural, estética, pedagógica) estrita do espaço autorizou uma certa abertura e polivalência a respeito dos conteúdos (memoriais, rituais, festivos, militantes) a serem projetados e performados nesse lugar. O seu caráter arejado e aberto possibilitou a realização de eventos (celebrações, performances, rememorações) plurais, circunstanciais. A observação in situ mostra que esse “palco vazio” serviu de suporte para manifestações populares, imateriais e efêmeras, permitindo assim comemorar episódios da história do ponto de vista das vítimas e dos seus descendentes, do ponto de vista dos esquecidos, dos que não puderam contar a sua própria história. Por estas razões, podemos afirmar que o cais dos escravizados está se configurando como um “contra-monumento”, tanto ímpar como insubstituível.

A cerimônia da lavagem

No primeiro sábado de julho, pela manhã, cerca de dez a vinte Baianas, vestidas de branco em seu traje "tradicional",12 12 Amplo vestido branco com bordas, pano da costa, turbante, colares, pulseiras e brincos. mães e filhas de santo do candomblé, chegam em procissão à esplanada do Valongo. Descalças, carregam jarros de água de cheiro na cabeça e avançam dançando e cantando cânticos. São acompanhadas por integrantes do bloco Afoxé Filhos de Gandhi, formado por músicos homens com um turbante branco enrolado na cabeça. Uma pequena multidão alegre, formada principalmente por simpatizantes da causa afro e por membros das religiões de matriz africana, acompanha o cortejo. Os demais espectadores são curiosos e turistas, fotógrafos e jornalistas. As Baianas descem a pequena rampa que leva ao anfiteatro/plataforma ao lado do cais e fazem várias rodas, entoando os cânticos dos principais orixás (as divindades do candomblé jeje-nagô) e dançando em louvor a essas divindades nos ritmos da percussão (atabaques - os três tambores rituais -, agogôs, xequerês). Uma mãe de santo e sua assistente logo ultrapassam a pequena barreira que as separa do sítio arqueológico; descalças sobre as antigas pedras, elas se recolhem por um momento, jogam água de cheiro sobre uma parte do cais dos escravizados, e depois o lavam com uma vassoura ao som de cânticos. No cais são depositados buquês de palmas e rosas brancas, por vezes também uma coroa de flores com alguma inscrição. No pequeno anfiteatro e na grande esplanada, seguem danças, cânticos e festejos, pontuados por alguns discursos, homenagens, reivindicações. Ou seja, o palco religioso e festivo se torna também um palco político. A primeira cerimónia deste tipo ocorreu no sábado, 1° de julho de 2012, quando o cais foi aberto ao público, e repetiu-se sem interrupção nos anos seguintes até hoje.

Figura 7:
Desfile na cerimônia da lavagem.

Figura 8:
Depósito de oferenda na cerimônia da lavagem.

Uma invenção ritual?

Podemos falar do aparecimento de um novo tipo de ritual religioso? Na verdade, aumentando um pouco a escala de observação, notamos a existência de várias cerimônias públicas de lavagem perto deste cais, em bairros vizinhos e que compõe a área às vezes chamada de Pequena África.13 13 O espaço social da 'Pequena África concentrou, em particular no século XIX e início do século XX, formas de vivência, de resistência e de criação cultural negras. Além dos distritos portuários de Saúde e Gamboa, essa área se estendia até o Campo de Santana e os bairros Cidade Nova e Estácio.

A lavagem ritual das escadas esculpidas (pela trabalho escravo) da grande rocha chamada Pedra do Sal é realizada desde 1984, quando este espaço social foi reconhecido como patrimônio imaterial14 14 As primeiras lavagens comemoravam o reconhecimento oficial do local como patrimônio cultural imaterial do estado do Rio de Janeiro pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em 20/11/1984. , e com maior intensidade a partir do final da década de 2000, ou seja, quando se iniciou a operação Porto Maravilha.15 15 As lavagens da Pedra são efetuadas em geral no Dia da Consciência Negra, no Dia Nacional do Samba e no Dia de Nossa Senhora da Conceição. A Pedra do Sal constitui um lugar-símbolo do trabalho escravo, do samba e do candomblé (Mattos & Abreu 2010MATTOS, Hebe & ABREU, Martha. (2010), “Relatório histórico-antropológico sobre o Quilombo da Pedra do Sal”. In: INCRA, Relatório de identificação e delimitação da comunidade remanescente do Quilombo da Pedra do Sal. Rio de Janeiro: INCRA: 11-83. ) e o centro simbólico do que é hoje a Comunidade Remanescente do Quilombo da Pedra do Sal (Souty 2015SOUTY, Jérôme. (2015), “O Quilombo como metáfora: espaços sociais de resistência na região portuária carioca”. In P. Birman et al (org.), Dispositivos urbanos e tramas dos viventes. Ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV editora: 239-270.:252-258).

Além disso, uma vez por ano (no dia 2 de novembro, desde 2009), as mães de santo (algumas delas também ativas no Cais do Valongo) lavam o chão do Instituto dos Pretos Novos. Este pequeno centro cultural e museu/memorial, situado no bairro vizinho da Gamboa, abriga os vestígios arqueológicos do antigo cemitério dos cativos africanos recém-chegados, também chamados de Pretos Novos (Pereira 2007PEREIRA, Júlio Cesar M. da Silva. (2007), À flor da terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond.).16 16 Além do cais de desembarque e do cemitério, o Complexo do Valongo incluía edifícios onde os escravizados eram detidos e vendidos (atual rua Camerino), bem como um lazareto, situado no bairro da Gamboa (Honorato 2008; Soares 2013).

Por fim, outras lavagens acontecem um pouco mais longe, no bairro Cidade Nova e ao redor da antiga Praça Onze. Em particular, a lavagem da estátua do herói negro Zumbi no Dia da Consciência Negra (há pelo menos duas décadas), situada na Avenida Presidente Vargas. Ou ainda, a lavagem de um trecho da Rua Marquês de Sapucaí, no desfile das escolas de samba, em pleno Sambódromo, uma semana antes do carnaval (desde 2011).

Mas, para entender o significado do ritual de lavagem do cais do Valongo, a escala de observação deve ser novamente ampliada. A principal referência ritual encontra-se fora do Rio de Janeiro. Trata-se da famosa e antiga cerimônia pública de lavagem do largo e das escadarias externas da Igreja Católica do Senhor do Bonfim, em Salvador, na Bahia, em meados de janeiro, pelos adeptos do candomblé (muitos dos quais são também católicos praticantes). Essa lavagem é concomitante e indissociável de uma sequência ritual particular da tradição nagô do candomblé, o cortejo ritual das Águas de Oxalá, que acontece antes do amanhecer. Essa procissão representa um sinal de respeito e perdão a esse orixá.17 17 Os adeptos, em silêncio, trazem água de uma fonte para uma cabana localizada na parte externa do terreiro, onde Oxalá fica instalado por 7 dias. O ritual relata um episódio da mitologia iorubá. É uma cerimônia de purificação e penitência que também anuncia a abertura do calendário anual sagrado do candomblé.

O ritual público da lavagem da Igreja do Bonfim é precedido de uma procissão, que percorre vários quilômetros, desde a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. As baianas de candomblé lançam nos fiéis a água perfumada contida nos jarros que carregam na cabeça e lavam o largo e as escadarias da igreja com essa água, ao som de tambores e cânticos (elas também enfeitam o altar com flores). Ato de fé transformado em festa popular, o ritual do Bonfim, que mudou bastante desde o final do século XVIII, quando teria surgido, reúne assim elementos das duas tradições religiosas - a católica e a candomblecista.18 18 Beniste (2006:222) sugere que o ritual das Águas de Oxalá não foi trazido pelos cativos africanos, mas criado no Brasil na segunda metade do século XIX a partir dessa festa católica do Bonfim.

Importante ressaltar que, no Rio de Janeiro, alguns dos organizadores e atores da Lavagem do Cais do Valongo reivindicam explicitamente uma ligação entre sua cerimônia e a Lavagem do Bonfim.19 19 Informação colhida em depoimentos de interlocutores. Ver também o depoimento de Mãe Edelzuita à Revista Porto Maravilha, edição de julho de 2014, página 8.

Em resumo, primeiro, nos bairros portuários e centrais do Rio, existem rituais de lavagem semelhantes e anteriores ao ritual de lavagem do cais, dedicados a outros "monumentos"; segundo, a cerimônia de lavagem da Igreja do Bonfim constitui uma reivindicada fonte de inspiração para os atores da lavagem do Valongo. Por essas duas razões, a cerimônia de lavagem do cais não pode ser considerada uma criação ritual ex nihilo, como se fosse uma pura invenção formal. Trata-se de uma reinterpretação local, adaptada e contextualizada, de um modelo ritual existente.

Figura 9:
Roda na cerimônia da lavagem do Cais do Valongo

O contexto de surgimento do ritual

Descrevemos a cerimônia da lavagem do cais e identificamos as suas fontes de inspiração, traçando assim a genealogia do modelo ritual. Mas isso não é suficiente para explicar o seu surgimento.

Na verdade, a primeira lavagem do cais teve sua origem em um convite, feito em 2011 (antes das obras na esplanada), a alguns líderes do candomblé para participarem do Grupo de Trabalho Curatorial20 20 Criado por decreto municipal em novembro de 2011, composto por representantes da prefeitura e da operação de urbanismo, ativistas do movimento negro, arqueólogos, historiadores e antropólogos. que iria emitir um parecer consultivo sobre o desenvolvimento e a "apresentação patrimonial" do Cais do Valongo e, de forma mais ampla, de certos vestígios do tráfico de escravizados escolhidos pela prefeitura.

Assim, entre dezembro de 2011 e junho de 2012, os membros deste grupo deliberaram, entre outros assuntos, sobre a dimensão religiosa do cais de Valongo. Para um deles, a presença de "peças religiosas" [ver abaixo] obrigava a considerar o local como "sagrado"; outro apontava "a necessidade de fazer uma oferenda"; outro "de fazer um trabalho religioso [...] para libertar as energias entravadas"; um quarto participante ainda recomendava que as "autoridades religiosas [...] consultassem os antepassados"; foi também levantada a "possibilidade de realizar festejos" etc.21 21 Sugestões feitas pelas mães de santo, mas também por outros membros do GT (Relatório final 2012:78-79). A última palavra foi finalmente dada a três sacerdotisas, baianas do candomblé, que, aos poucos, foram integradas ao Grupo de Trabalho.22 22 Duas respeitadas mães de santo oriundas da Bahia, cada uma na época à frente de um centro de candomblé (Mãe Edelzuita de Oxaguiã e Mãe Beata de Yemanjá), e Mãe Celina de Xangô, cofundadora do Centro Cultural Pequena África. Estas três mulheres afrodescendentes visitaram o local no dia 18 de maio de 2012 e, depois de se consultarem mutuamente, recomendaram a realização de um "ritual de lavagem das pedras do cais" no dia da sua inauguração e, depois, um "ritual de paz, a realizar todos os anos, sob a forma de lavagem do Cais do Valongo, louvando assim os antepassados". Esta decisão foi imediata e unanimemente aceita pelos membros do Grupo de Trabalho (Relatório final 2012:114). O nascimento deste ritual é, portanto, indissociável de uma política pública destinada a reconhecer e valorizar o cais do Valongo como patrimônio material.

Em 1° de julho de 2012, a primeira lavagem do cais fez parte de uma sequência de eventos que correspondeu à inauguração oficial do local, na presença de autoridades políticas, especialmente o prefeito da cidade e o governador do estado, além da cobertura de diversos veículos de mídia. A lavagem propriamente dita foi seguida de um espetáculo teatral, de demonstrações de samba e capoeira por dançarinos contratados para a ocasião. Assim, a dimensão midiática, espetacular e até folclórica atribuída a essa primeira lavagem pública foi ligada a uma conjuntura política e urbanística particular; e essa dimensão, de certa maneira, ultrapassou o controle dos atores religiosos do ritual (as Baianas).

Nos anos seguintes, a cerimónia da lavagem foi se institucionalizando progressivamente, ganhando certa visibilidade e popularidade, entrando desde 2014 no calendário oficial da cidade. Todos os anos, grupos de música e dança afro, baterias de escolas de samba, se apresentaram após a lavagem e participam das comemorações. Representantes da gastronomia e do artesanato da região portuária também marcam presença. Contando algumas dezenas ou centenas de pessoas, esta cerimónia está longe, porém, de ter a quantidade de participantes e a cobertura mediática da famosa cerimônia na Igreja do Bonfim, em Salvador, que atrai até 800 mil pessoas.

De maneira concomitante, durante esses anos, o sítio do Cais do Valongo ganhou um reconhecimento local, nacional e internacional. Foi oficialmente tombado pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2012, reconhecido como patrimônio municipal por meio do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade em 2013 e como patrimônio estadual pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em 2017. Em 2013, entrou no circuito internacional Rota do Escravo, da Unesco, e, finalmente, em 2017, passou a integrar a lista do Patrimônio Mundial da Unesco como um “sítio de memória sensível”.

Figura 10:
Cerimônia pública da lavagem do Cais do Valongo.

’’Candomblé a céu aberto’’?

Dentro dos terreiros de candomblé, vários rituais privados incluem certas “lavagens”.23 23 Uma água em que foram maceradas folhas sagradas é utilizada para o banho purificador da cabeça dos iniciados, para a lavagem das contas dos colares, dos otás, das pernas e chifres dos animais a serem sacrificados, e de outros objetos sagrados. Por outro lado, as lavagens em áreas urbanas e em torno de monumentos são cerimônia públicas situadas fora do ambiente institucional do candomblé: não fazem parte diretamente do calendário litúrgico, que é essencialmente pontuado por obrigações rituais, cerimônias dedicadas aos orixás, e por ciclos de iniciação. As lavagens públicas realizadas em igrejas católicas por membros do candomblé (sendo a lavagem do Bonfim a mais famosa delas) têm um estatuto ambíguo. Foi a partir do final do século XIX, num contexto de reforma da Igreja Católica no Brasil, que essas formas de expressão da religião popular, tradicionalmente associadas ao catolicismo, passaram a ser vistas como formas de ‘'candomblé público’', como '’candomblés a céu aberto'’, e como tal frequentemente perseguidas pela polícia e pela Igreja (Azzi 1976AZZI, Riolando. (1976), O catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes.).24 24 O candomblé manteve uma estreita relação com o catolicismo. As irmandades de escravos foram colocadas sob a tutela da Igreja Católica e muitos fiéis mantinham uma dupla filiação religiosa.

No Rio, são as mães de santo, ou seja, as autoridades máximas do candomblé, que dirigem a lavagem do Cais do Valongo. Elas são acompanhadas e auxiliadas pelos Filhos de Gandhi, também ligados ao candomblé. A maioria deles é iniciada no culto e muitos têm responsabilidades sacerdotais (são ogãs), em especial a de serem responsáveis pela música ritual (os alabês). Usam um longo colar com contas brancas e azuis, as cores dos orixás Oxalá e Ogun. O Afoxé Filhos de Gandhi é mais do que um bloco carnavalesco ou um rancho negro. Afoxé é um termo de origem iorubá, relacionado a um evento musical e de dança, e tem uma estreita ligação com as religiões afro-brasileiras. O termo afoxé também designa um instrumento musical e um ritmo específico do candomblé da nação ijexá (uma subdivisão do grupo nagô) e é esse ritmo ijexá que é tocado pelos Filhos de Gandhi. Assim, o afoxé tem sido por vezes definido como uma espécie de "candomblé de rua" (Lody 1976LODY, Raoul G. (1976), “Afoxé”. Caderno de Folclore, nº 7. Rio de Janeiro: MEC.) portador de certa ambiguidade profano/sagrado.

Na medida em que é organizada e conduzida por praticantes de candomblé em trajes religiosos, a lavagem anual do Cais do Valongo se inscreve numa perspectiva religiosa. Além disso, esse ritual não mantém, pelo menos aparentemente, uma ligação direta com uma tradição católica local.25 25 Porém, mulheres tendo responsabilidades no candomblé, ligadas à Pedra do Sal e ativas na lavagem do Valongo, frequentam as missas da Igreja de São Francisco da Prainha, localizada ao lado da Pedra do Sal. Fonte: Entrevistas com a ekedi Maria Moura e a mãe de santo Iracy de Ogun, em 20 nov. 2015; e com Frei Tatá, pai franciscano e apoiador do quilombo de Pedra do Sal, em setembro de 2017. A tradição religiosa à qual os participantes do ritual se referem aqui é em primeiro lugar a do candomblé, e também a da umbanda. Portanto, seria possível falar de "candomblé a céu aberto" ou mesmo de "candomblé de rua".

... ou ritual ecuménico e secularizado?

Contudo, essa afirmação deve ser relativizada por, pelo menos, três razões:

1. Os rituais religiosos no cais do Valongo parecem remeter a uma religiosidade difusa e aberta, bem como a uma ancestralidade genérica e indefinida. É como se, afinal, se tratasse menos de chamar alguns orixás ou eguns do que de homenagear os antigos escravizados que ali desembarcaram. Em diversas ocasiões, mães de santo declararam ter "sentido" a presença dos orixás no Cais do Valongo, em especial de Xangô. Mas é importante sublinhar que, embora os orixás sejam de fato louvados nessas cerimônias rituais, eles não são diretamente "chamados", e não "descem". Eu não testemunhei nenhum fenômeno de transe ritual, possessão ou incorporação por divindades ou entidades, enquanto esses fenômenos podem ocorrer durante outras cerimônias públicas ao ar livre da umbanda ou do candomblé (por exemplo, na festa anual de Yemanjá, geralmente realizada nas praias). Além disso, quando as mães de santo declaram realizar um ritual no Cais do Valongo para os "milhares de eguns africanos", como foi o caso em 2012,26 26 Ver Relatório final (2012:124). elas parecem se referir aos espíritos dos escravos mortos, e não ao culto específico dos eguns, os ancestrais que voltam na forma de espectros quando chamados de forma ritual em cerimônias secretas. Até mesmo se poderia dizer que os eguns chamados aqui por essas mães de santo representam "os ancestrais africanos" de modo geral, diferentemente do culto dos eguns, o qual faz referência a uma ancestralidade próxima e relativamente recente (ancestrais e fundadores de um terreiro específico).

2. A mera referência à tradição religiosa do candomblé não dá conta da dimensão ecumênica dessa cerimónia. Nem todos os participantes do ritual são membros ou simpatizantes do candomblé. Membros de outras religiões e pessoas não-religiosas também podem estar envolvidos nessas lavagens. O carácter não proselitista do candomblé, os valores de tolerância geralmente associados a ele e, de forma mais geral, a plasticidade estrutural do sistema simbólico desta religião, facilitam esta dinâmica de abertura e inclusão.

Durante a lavagem ritual anual, a abertura pacífica ao outro, às outras religiões e aos não crentes, é simbolizada, por exemplo, pela colocação no cais de uma coroa de flores com a inscrição "Paz e Amor", que é também o lema dos Filhos de Gandhi. O nome do bloco "Afoxé Filhos de Gandhi", escolhido na época de sua criação em referência à luta social não violenta liderada pelo líder independentista indiano, também ecoa o caráter consensual e ecumênico da lavagem ritual do Valongo. Além disso, o simbolismo da própria lavagem - a limpeza, a purificação e até a cura através da água - é partilhado por muitas tradições religiosas, sendo facilmente compreendido por todos os espectadores.

Convém igualmente notar que podem ser organizadas outras lavagens rituais na mesma plataforma, em outras datas. Assim, por exemplo, uma "lavagem ecumênica" (sic) com representantes do candomblé, do catolicismo e do Islam teve lugar, no dia 11 de março de 2014, durante os dias de homenagem a Abdias de Nascimento (1914-2011), artista, intelectual e ativista do movimento negro.

3. Finalmente, a diversidade de definições locais desta cerimónia mostra que a componente religiosa é apenas uma das suas facetas possíveis. Ou seja, não se trata somente de louvar certas divindades. Os atores referem-se a ela como um "ritual de purificação espiritual" ou um "ritual de cura", um "ritual de paz" e uma "cerimônia da lembrança". Antes de tudo, eles apresentam esta lavagem pública como uma forma de evocar os antepassados, de homenagear os ancestrais africanos escravizados que ali desembarcaram.27 27 Fonte: Entrevistas com participantes da lavagem. Proposta de inscrição 2016: 170; Relatório final 2012. Para utilizar um dos termos recorrentes nas falas dos atores, uma das principais funções do ritual seria “apaziguar” os espíritos dos antigos escravizados.

Figura 11:
Afoxé Filhos de Ghandi e Afoxé Ilê Alá no dia da lavagem ritual do Valongo.

Figura 12:
Afoxé Filhos de Ghandi e Afoxé Ilê Alá no dia da lavagem ritual do Valongo.

Antigo assentamento e objetos do candomblé?

Os objetos encontrados nas imediações do Cais de Valongo durante as escavações são numerosos (cerca de 500 mil) e variados. Alguns desses objetos foram associados pelos arqueólogos a um vasto repertório de práticas, particularmente de carácter religioso. Artefatos como amuletos, talismãs, figas e ornamentos, encontrados em grande quantidade no sítio, foram interpretados pela equipe de arqueólogos como objetos associados a rituais de proteção, de resistência e de luta contra o infortúnio, alguns destes objetos constituindo o que foi designado como uma "segunda pele" (Lima, Souza & Sene. 2014LIMA, Tania Andrade, SOUZA, Marcos A. Torres. De & SENE, Glaucia M. (2014), “Weaving the Second Skin: Protection Against Evil Among the Valongo Slaves in Nineteenth-century Rio de Janeiro”. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, vol. 3, nº 2: 103-136.). O historiador Carlos E. L. Soares, devido à grande quantidade de anéis e contas intactas encontradas no local, também mencionou a presença de uma "casa secreta de culto perto da rua da praia" (Relatório final 2012:78).

É importante ressaltar que vários dos objetos encontrados no sítio, tratados e classificados pelos arqueólogos, foram posteriormente reconhecidos por membros do candomblé (no momento da restituição do sítio arqueológico, em 2012, ou mais tarde, a posteriori) como peças ligadas à sua própria tradição religiosa. Assim, um objeto foi identificado como uma escultura de Bara (orixá Exu); um diadema de metal como um adê (usado pelos orixás femininos Oxum, Yemanjá, Iansã e Nanã durante a incorporação); diferentes tipos de contas (missangas, monjolós, seguis) como ligados ao culto dos orixás em geral. Algumas pedras seriam otás (assentamento principal dos orixás), uma "pedra de raio" (símbolo de Xangô) estaria ligada a esse orixá etc.28 28 Fonte: Entrevistas com Mãe Celina de Oya, Mãe Iracy de Ogun e Ekedi Maria Maura, realizadas entre 2012, 2013, 2014; Depoimento de Mãe Celina de Xangô ao O Globo em 28 abr. 2012. Em 2012, as três mães de santo integrantes do "grupo de trabalho curatorial", todas pertencente à tradição nagô,29 29 Mãe Edelzuita e Mãe Beata eram, na época, chefe de um terreiro da nação nagô-ketu. também realizaram uma sessão de adivinhação no Cais do Valongo com um jogo de búzios encontrados nas escavações e supostamente datados de dois séculos atrás (Relatório final 2012:124).

Foi anunciado várias vezes por alguns atores desse novo ritual (e pela arqueóloga que se referiu às afirmações das Baianas) que o Cais do Valongo era um “assentamento”.30 30 O “assentamento” ou “assento” é um material sagrado que concentra a força mágico-sagrada ou axé: não é a ‘representação’ ou ‘imagem’ da divindade, é a morada do orixá é até mesmo o próprio orixá em uma de suas formas possíveis. O processo ritual visa a "assentar" a divindade num receptáculo privilegiado, ou seja, fixa essa energia dinâmica num fetiche material do orixá, e na cabeça do iniciado (Sansi 2005). Na verdade, não houve debate público contraditório entre líderes religiosos, cientistas e responsáveis pelas políticas do património (nem no âmbito do GT curatorial, nem durante a preparação do dossiê de candidatura do Cais ao Património Mundial) sobre a possível e antiga função religiosa de certos objetos encontrados e dos próprios vestígios do cais. Tudo se passou como se a legitimidade religiosa conferida às atuais mães de santo e o carisma individual delas fossem suficientes para validar as suas afirmações quanto à origem e função pregressa de determinados objetos (designados como objetos de um antigo culto aos orixás); isso também parece ter sido suficiente para qualificar o Cais do Valongo como um antigo e ativo suporte de rituais ligados a esse culto. Os cientistas do GT curatorial (arqueólogos, historiadores ou antropólogos) aceitaram e validaram de boa-fé, por assim dizer, a perícia destas líderes religiosas,31 31 Porém, o historiador Alberto e Costa Silva, membro do GT, alertou que "os escravos teriam sido convertidos ao culto iorubá aqui no Brasil" e apontou que "parte do material iorubá encontrado nas escavações seria proveniente do contrabando de marinheiros, já que os escravos eram trazidos nus"(Relatório final 2012:190). e depois apoiaram a criação de novos rituais inspirados nos elementos assim recolhidos.

Porém, vale lembrar que os cativos africanos, vindos diretamente da África, desembarcados neste cais entre 1811 e 1831 não eram iorubas nem fons... Eram em sua imensa maioria - se não for exclusivamente - pessoas originárias da África centro-ocidental (principalmente congos, angolas, cabindas, benguelas) e da África oriental (reunidas na categoria “Moçambique”). Portanto, os dados históricos e geográficos não combinam com a afirmação que, nas três primeiras décadas do século XIX, esse cais já era um local de culto aos orixás e voduns.32 32 Analisei (Souty 2018:40-43, em particular na nota 41) em detalhe essa questão.

Por outro lado, é seguro considerar que ali foram realizadas práticas rituais bantu. Entre 1811 e 1831, desembarcaram no Valongo, uma grande maioria de indivíduos portadores de representações religiosas do grupo bantu. Além disso, oferendas em honra dos orixás e voduns poderiam ter sido feitas nas proximidades do antigo cais, mas apenas a partir das duas ou três últimas décadas do século XIX (com a chegada de “baianos”, homens e mulheres libertos ou livres de origem ioruba e fon, no porto do Rio). Sobretudo, é inegável que, a cerca de 400 metros do atual sítio arqueológico, a Pedra do Sal é um local onde orixás foram “assentados”, mas isso ocorreu “somente” a partir da penúltima ou última década do século XIX. 33 33 Já em 1886 é mencionado um assentamento do Orixá Xangô Afonjá na Pedra do Sal. Foi provavelmente o primeiro centro de candomblé do Rio (Augras e Santos 2005:112; Tobiobá 2007:267-268, nota 6; Rocha 2000:25; Conduru 2010). E eles continuaram sendo regularmente alimentados por diferentes tipos de oferendas (ebós, despachos...).

Ao associar seletivamente o cais aos orixás do candomblé jeje-nagô (ou ao evocar os espíritos dos eguns), ao apontar entre os achados arqueológicos objetos rituais usados no que teria sido um antigo culto aos orixás, algumas das Baianas do Rio se empenharam em ressignificar esse lugar, em ligá-lo a uma tradição religiosa à qual ele não estava nem direta nem exclusivamente associado. Desta forma, os atores destas lavagens se inscrevem numa forma de continuidade religiosa, que permite reforçar a legitimidade de sua presença. Nesta perspectiva, eles retomariam aqui, após uma pausa de quase dois séculos, uma tradição religiosa supostamente familiar.

Axé, fetiches e faitiches

Argumentar que o cais no qual os escravizados desembarcavam não foi um local de culto aos Orixás e Voduns entre 1811 e 1831 (e mesmo que o sítio não era, nem no século XIX nem no século XX, um local religioso do candomblé jeje-nagô) em nada impede de reconhecer que essa cais se tornou, desde 2012, um local absolutamente legítimo das religiões brasileiras de matrizes africanas, incluindo o candomblé carioca contemporâneo. As novas práticas rituais dos membros do candomblé de tradição nagô inserem agora o antigo cais dos escravizados numa dinâmica de circulação e distribuição do axé. O cais do Valongo entrou nessa “rede do axé” por quatro razões interligadas:

1) O axé, esta força mágico-sagrada que atravessa todo o sistema religioso, é uma energia lábil (de essência vibratória ou fluida) presente, em várias modulações (que permitem diferentes níveis de participação), nas divindades e nos seres humanos, mas também em elementos da natureza (em particular certas pedras) e em certos objetos e artefatos, sem excluir construções e certos monumentos.

2) Na ontologia do candomblé, certos objetos (assim como pessoas e deuses) preexistem, de certa forma, a sua feitura/revelação.34 34 Na ontologia do candomblé, tudo o que contém axé (divindades, pessoas, objetos), preexiste (de forma virtual, num outro plano), antes de ser “feito”, isto é, antes de ser revelado ritualmente, antes de ser consagrado (Goldman 2009:129). Devido em particular à história singular desse lugar de desembarque de tantos cativos africanos, as pedras do cais e alguns objetos arqueológicos achados em torno, parecem entrar nessa categoria de objetos. Essas pedras e objetos arqueológicos tem, por si só, uma “qualidade de presença”, uma agência, que preexiste a sua construção ritual.35 35 Esse fato, justamente, autoriza as Baianas a identificar essas pedras ou certos objetos como sendo -ontem como hoje- da religião dos Orixás… E essa “agência” ou “qualidade” foi reconhecida, posteriormente, como tal.

3) No candomblé, os objetos normalmente reunidos sob a categoria de "fetiches" (como as pedras itá, os assentamentos), fazem parte da intimidade do iniciado com os orixás: portanto devem permanecer secretos, ficar velados; esta é normalmente a condição para a manutenção de seu poder mágico-religioso. Mas existem situações limites, ou exceções.36 36 Por exemplo, em certas ocasiões, as chamadas ferramentas ou acessórios dos orixás podem também ser reconhecidos/expostos como obras artísticas, objetos públicos. O Cais de Valongo, nessa perspectiva, é um caso singular, excepcional: apesar de ser um monumento público e exposto (e, portanto, profano), pode se tornar, parcialmente e episodicamente, um suporte do axé.

4) A principal razão (que permite ao cais participar da rede do axé) é a seguinte: no candomblé, a performance ritual é instituidora. Ela faz a coisa acontecer, ela estabelece uma nova realidade, ela ativa o axé. As cerimônias de lavagem destas pedras antigas, assim com as oferendas e as performances rituais que acompanham estas lavagens, ativam essa energia mágico-sagrada, colocando-a em movimento. O axé circula então entre os participantes e, eventualmente, entre os participantes e as entidades suscetíveis de manifestar formas ou modalidades de presença: sem mesmo falar de incorporações/transes, podem acontecer ali formas locais de irradiações (Mello 2020MELLO, Cecilia. C. do Amaral. (2020), “Aquém da possessão: a noção de irradiação nos estudos das religiões de matriz africana”. Anuário Antropológico, vol. 44, nº 2: 146-163.).

Em outras palavras, mesmo que nunca tenha existido, historicamente, um fundamento 37 37 Objetos que contêm uma modulação específica de axé, colocados na base de uma construção religiosa. do candomblé nem um assentamento de orixá, este cais tornou-se hoje um suporte para a circulação ritual do axé.

Certos objetos foram identificados pelas mães de santo, foram "reconhecidos" por elas como portadores de sacralidade e pertencendo a uma certa tradição; esses objetos são reivindicados, e mesmo usados ritualmente, por membros do candomblé carioca contemporâneo: isto é suficiente para os qualificar como objetos religiosos, dotados de uma certa agência, de uma certa eficácia no presente. Certas qualidades (uma vida passada, uma voz, uma força) são atribuídas a certos objetos, e essas qualidades condicionam o uso contemporâneo desses objetos. Ou seja, a questão não é de verificar a genealogia de certas peças ou de comprovar se já foram utilizadas ou não; o que importa é constatar que essas peças são relevantes para serem utilizadas no candomblé contemporâneo.

Na medida em que são "produzidos" tanto quanto foram "descobertos", os vestígios do cais dos escravizados, assim como certos objetos arqueológicos encontrados nas suas imediações, podem ser considerados faitiches. Esse termo, um neologismo criado pelo sociólogo Bruno Latour, nos permite sair da falsa alternativa entre o real e o fabricado, e assim agregar/articular "fatos objetivados” (faits) e "fetiches" (Latour 2009LATOUR, Bruno. (2009), Sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: Les empêcheurs de penser en rond/La découverte.:35). São autênticos achados arqueológicos, mas também objetos construídos no presente: foram enobrecidos pelo patrimônio; um passado religioso é atribuído a eles, assim como uma certa agência. Se tornaram suporte de vários tipos de identificações e de apropriações; emoções e afetos estão projetados neles e são vistos como catalizadores de questões relativa à memória e à identidade coletivas.

Figura 13:
Filhas de santo dançando na roda na cerimônia da lavagem do cais.

Figura 14:
Filhas de santo dançando na roda na cerimônia da lavagem do cais.

O ritual religioso a serviço das políticas do patrimônio material

O Cais do Valongo não precisava do candomblé nagô, nem de religião alguma, para se tornar um monumento reconhecido como “Património Mundial da Humanidade”. No entanto, a presença ativa neste lugar das Baianas mães de santo desta tradição religiosa, reconhecidas por extensão como as legítimas representantes e administradoras do sagrado afro-brasileiro, reforçou consideravelmente o valor patrimonial do sítio, ligando-o de forma dinâmica, ritual, carnal, “vivida”, não só a formas de transcendência, mas também a um determinado passado e a todo um universo cultural e social.

A presença das Baianas no Valongo faz unanimidade. A categoria das “Baianas” (e das “tias pretas”) funciona, para assim dizer, como um selo de autenticidade e de legitimidade (Souty 2018SOUTY, Jérôme. (2018), “Les lavages du quai des esclaves du Valongo. Agencements rituels et patrimoine dans le vieux port de Rio de Janeiro”, Cahiers d’Études Africaines, n° 229: 25-68.:53-54). Nota-se que, além das suas atuações rituais, algumas Baianas estão presentes no Cais do Valongo em dias comemorativos para vender comida de santo (acarajé, angu, sopas) e artesanato afro-brasileiro.38 38 As Baianas também são presentes em dias de movimentação na Pedra do Sal, e, desde 2016, em algumas ocasiões na Praça Mauá, frente aos museus de Arte do Rio (MAR) e do Amanhã.

No Cais do Valongo, a herança africana parece ser necessariamente pensada como religiosa; como se a religião de matriz africana (sintetizada aqui pelo candomblé de nação nagô) fosse, no final das contas, o melhor receptáculo da tradição afro-brasileira em geral. Haverá, portanto, uma primazia e uma legitimidade insuperável da religiosidade afro-brasileira na "recuperação" e valorização da tradição cultural africana. E esta observação remete para uma ideia antiga, implícita e que hoje parece - consciente ou inconscientemente - partilhada pelo movimento afro, pelos especialistas/eruditos e acadêmicos e pelas autoridades patrimoniais. Já no início do século XX, Nina Rodrigues via o candomblé da Bahia como um núcleo efetivo de resistência cultural das tradições africanas em geral - mas também um suporte de rebeldia social (Rodrigues 1977RODRIGUES, Raymundo Nina. (1977), Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional.). Mais tarde, Roger Bastide, em particular, considerou as religiões afro-brasileiras (e em específico o candomblé nagô) como como um núcleo precioso a partir do qual todas as tradições de origem africana no Brasil - sejam elas musicais, dançantes, plásticas, filosóficas - teriam sido reconstituídas (Bastide 1960BASTIDE, Roger. (1960), Les religions africaines au Brésil. Paris: PUF.).

Além disso, como observou Luís Nicolau Parés, “em contexto de diáspora o campo religioso tende a se converter em espaço privilegiado para reivindicar identidade, para criar formas de pertencimento e até para a mobilização e a ação política” (Parés 2016PARÉS, Luís Nicolau. (2016), O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África ocidental. São Paulo: Companhia das Letras .:358).

Acontece que as novas manifestações rituais no Valongo se encaixam perfeitamente na noção burocrática e internacional de “património intangível” ou “património imaterial”. Mais do que isso, a presença de patrimônios imateriais oferece uma visibilidade suplementar ao patrimônio material que lhe serve de suporte, conferindo a este último uma legitimidade maior e uma visibilidade reforçada. Assim, para as autoridades públicas e os especialistas técnico-administrativos, comunicar sobre a reapropriação local deste património (insistindo na dimensão "viva" e "vivida" desse patrimônio), facilita e reforça o processo político de classificação, de tombamento e de reconhecimento internacional. É, pois, significativo que os autores do dossiê de candidatura ao Património Mundial da Unesco tenham insistido bastante nestas lavagens. Apesar da modéstia destes rituais (que ocorrem apenas uma vez por ano), eles são mencionados e descritos inúmeras vezes. É inegável que essa atividade ritual realizada no Cais do Valongo está alinhada com as políticas públicas patrimoniais implementadas pelo município. Vale lembrar que estas políticas foram (e estão) em grande parte ao serviço de uma operação urbanística que reconfigurou estes bairros visando a criação de um "porto cultural" dedicado ao turismo, ao lazer e ao consumo cultural. Na operação Porto Maravilha, o patrimônio foi (e continua sendo) instrumentalizado pelo marketing urbano que acompanha um projeto de gentrificação e de especulação imobiliária (Broudehoux 2017BROUDEHOUX, Anne-Marie. (2017), Mega-events and urban image construction, Beijing and Rio de Janeiro. London/New York: Routlegde.; Souty 2019SOUTY, Jérôme. (2019), “Dinâmicas de patrimonialização em contexto de revitalização e de globalização urbana. Notas sobre a região portuário do Rio de Janeiro”. In: A. Broudehoux & M. F. Mendes (org.). 10 anos de Porto Maravilha : do projeto de renovação à construção de um novo espaço de exclusão. Rio de Janeiro: Letra Capital.).

Assim, a recuperação política do ritual é por vezes explícita. Durante os dois primeiros mantados de Eduardo Paes (2009-2016), a Prefeitura e a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP) - órgão municipal que gere a operação urbanística Porto Maravilha - utilizaram o evento da lavagem do cais como instrumento privilegiado de comunicação: as escavações arqueológicas e a requalificação desta esplanada foram apresentadas como uma marca de atenção ao património local por parte dos poderes públicos, e o ritual da lavagem pelas Baianas foi destacado como prova da receptividade popular desta ação. O cais, e os rituais que ali se realizam, tornaram-se uma vitrine da Prefeitura para exaltar os benefícios da operação urbanística e das políticas públicas locais. Dito de outra maneira: o axé ativado pelas manifestações rituais se transforma também, por parte, em valor cultural público, em “aura patrimonial”. Entre 2012 e 2016, por exemplo, não houve uma única lavagem que não tenha sido acompanhada por representantes da CDURP e do município, fotografada, filmada, comentada pelos órgãos de comunicação municipais. Durante esses anos, as manifestações rituais das Baianas e dos Filhos de Ghandi, bem como parte dos eventos artísticos, festivos, performativos ou pedagógicos organizados no Cais do Valongo têm recebido apoio direto ou indireto das autoridades municipais (através da CDURP, da concessionária Porto Novo, do Museu de Arte do Rio etc.).

As performances rituais ou festivas que mobilizam Baianas, artistas, militantes, afrodescendentes e habitantes destes bairros seriam consideradas manifestações "vividas" e "autênticas" (porque incorporadas/corporificadas e "locais"), criativas e espontâneas, populares e imateriais? Ao contrário, as políticas públicas relacionadas ao patrimônio (municipais, estaduais, nacionais ou internacionais) seriam impostas de cima para baixo por políticos e especialistas externos, tecnocratas sujeitos a uma agenda neoliberal, portadores de uma visão estática do património e centrada na sua dimensão material? Na verdade, não há como opor assim, de maneira sistemática e estereotipada, as performances rituais ou festivas e as políticas públicas. Entre estes dois campos, existe certamente uma relação muito assimétrica, geralmente desfavorável aos "afro-brasileiros", performers, militantes e habitantes locais. Mas há também um interesse compartilhado na patrimonialização (material, monumental) dos vestígios do tráfico negreiro, um pragmatismo e senso de oportunidade mútuos, se não mesmo uma instrumentalização mútua. As performances imateriais (“contra-monumentais”) que aconteceram na esplanada do Valongo reforçaram a visibilidade do cais como “monumento”, como património material, mas essas performances também ofereceram visibilidades aos atores e às suas reivindicações. Vemos, portanto, que não há necessariamente oposição entre o monumento (oficial, material) e o contra-monumento (popular, ligado às práticas imateriais): existem também formas de sinergia possíveis em um movimento dialético.

Conclusão: Monumento e contra-monumento

No Valongo, foram construídos monumentos para celebrar regimes políticos. A construção do Cais da Imperatriz e da Praça Municipal em 1843, assim como do chafariz e da coluna em 1872, glorificaram o Império. A edificação da Praça Jornal do Comércio em 1911 celebrou a República e a criação de um porto moderno.

Mas tratou-se, sobretudo, de tirar definitivamente da vista os edifícios antigos para (tentar) apagar os fatos e as emoções associados a eles. O recorte arqueológico apresentado ao público no Sítio Arqueológico Cais do Valongo mostra perfeitamente que, em várias ocasiões, a imposição da versão "oficial" da história do Brasil passou pela invisibilização de certos vestígios do passado. Foram formas repetidas de impor uma amnésia coletiva. Tentou-se apagar a memória social do tráfico negreiro transatlântico e do regime colonial (em 184339 39 Em 1843, o Brasil independente (desde 1822) apagava um dos principais testemunhos materiais de um tráfico transatlântico de escravos supostamente proibido a partir de 1831 (o tráfico foi oficialmente abolido em 1851, e mesmo assim continuou ilegalmente), e mostrava que se libertava da sua antiga tutela colonial portuguesa. e 1872), e depois a memória do regime imperial e da instituição da escravidão (em 191140 40 Em 1911, a jovem República (nascida em 1889), com a construção de um porto industrial moderno, enterrou a Praça Municipal, apagando um poderoso símbolo do Brasil imperial e escravocrata (a escravidão tinha sido abolida apenas em 1888). ).

Durante quase dois séculos (de 1843 a 2011), o cais dos escravizados foi proibido de entrar na história. Enterrado várias vezes, foi negada a ele a possibilidade de se tornar monumento. Mas, por uma ironia da História, o cais de pedra onde desembarcavam os escravizados, o mais antigo vestígio do local, é hoje o elemento melhor conservado. Os seus sucessivos soterramentos o protegeram, paradoxalmente, da ação do tempo, da manipulação das elites dirigentes, bem como das reviravoltas da História. O vestígio mais profundamente enterrado é agora o mais visível, em detrimento dos monumentos oficiais que o recobriam.

Num palimpsesto, um pergaminho reescrito, é a última camada que é visível. Aqui, neste palimpsesto urbano/arquitetônico, estamos diante de um fenômeno inédito, pois é a camada mais profunda que está agora exposta. O palimpsesto foi virado pelo avesso. A arqueóloga responsável pelas escavações e os responsáveis pela configuração do sítio quiseram valorizar o cais dos escravizados, dar-lhe visibilidade (em detrimento do Cais da Imperatriz).41 41 Cf. Lima (2013); Relatório Final (2012).

A construção mais afundada, que nunca foi um ‘’monumento’’, recentemente foi reconhecida como tal pelas políticas públicas oficiais, inclusive pelas instâncias internacionais do patrimônio. Mas, mesmo sendo ‘’Patrimônio mundial da Humanidade’’, esse monumento oficial não celebra uma história distanciada, aceita, consensual. Nessa perspectiva, não se trata de um “lugar de memória’’ no sentido clássico de Pierre Nora (1984NORA, Pierre. (1984), “Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux”. In : P. Nora (dir.), Les Lieux de mémoire, I. Paris: Gallimard, XVI-XLII.).42 42 Existe um "lugar de memória" (no sentido de Nora) quando a intimidade de uma memória individualizada e vivida desaparece em favor de uma história reconstituída, inscrita num lugar coletivo. Neste sentido, as memórias vividas/específicas opõem-se a uma história celebrada, a incorporação opõe-se à inscrição (Nora 1984). Ao contrário, o cais serve de suporte para memórias “vivas” (e/ou reivindicadas como tais): memorias sem arquivo material ou monumento, encarnadas e corporificadas, sensíveis e inquietas, capazes de articular passado e presente; ele serve de amplificador para contestações e reivindicações; serve de palco e de vitrine para religiões minoritárias e ainda vítimas de intolerância.

As pessoas ativas no Valongo (militantes afro e antirracistas, líderes religiosos, artistas, produtores culturais) recusam a versão da história representada pelos “monumentos oficiais” sob os quais o cais dos escravizados permaneceu enterrado durante muitas décadas.43 43 Sobre as tensões e disputas em torno das interpretações do passado local no Valongo, ver, por exemplo, Carneiro & Pinheiro (2022). Elas propõem outras narrativas. É a narrativa (la mise en récit) que possibilita projetar o passado lembrado no futuro (Ricoeur 1998RICOEUR, Paul. (1998), “Architecture et narrativité Urbanisme”, n° 303: 44-51.). Por meio dessas práticas populares, performáticas e imateriais, contextuais e efêmeras, o cais dos escravizados está sendo configurado no que poderia ser qualificado de contra-monumento. Um contra-monumento que se insere num dispositivo memorial mais amplo, e num memoryscape ou “paisagem de memória” que nos últimos anos está sendo construído, a partir da base, nos bairros portuários de Saúde e Gamboa (Souty 2020SOUTY, Jérôme. (2020), “La gestion du passé de l’esclavage depuis le vieux port de Rio de Janeiro. Politiques publiques, réappropriations locales, paysage de mémoire”, Ethnologie Française, n° 177: 91-108.:101-102).

As formas recentes de sacralização do cais, pelas religiões de matriz africana, visam também impedir a despolitização e a nova inviabilização deste espaço social. Nota-se, a esse respeito, que o profundo desprezo pelas religiões/culturas de matrizes africanas na gestão do Prefeito Marcelo Crivella (2016-2020), assim como o descaso em relação à gestão do patrimônio cultural público (e em particular afrodescendente) na cidade do Rio de Janeiro, não conseguiram invisibilizar de novo o Cais do Valongo.

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  • 1
    Este trabalho foi beneficiado pelo apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) - Pós-Doutorado Sênior (PDS 2022).
  • 2
    Segundo as estimativas, desembarcaram neste cais entre 600 mil e mais de 1 milhão de cativos (Karasch 2000KARASCH, Mary C. (2000), A vida dos escravos no Rio de Janeiro - 1808-1850”. São Paulo: Companhia das Letras.:512, nota 2; Soares 2013SOARES, Carlos Eugênio Líbano. (2013), Valongo, cais dos escravos: memória da diáspora e modernização portuária na cidade do Rio de Janeiro, 1668-1911. Rio de Janeiro: UFRJ.:10-27). O Rio de Janeiro foi o maior porto do mundo para o tráfico de escravizados africanos.
  • 3
    A partir de 2008 comecei a frequentar os bairros de Saúde, Gamboa e Santo Cristo, que compõem a antiga região portuária carioca. Entre 2010 e 2016, desenvolvi um trabalho de campo sobre as transformações culturais e sociais no contexto da operação de “revitalização urbana” da região.
  • 4
    Até 1769 os escravizados desembarcavam na área central (Praça XV, Alfândega) e o mercado dos cativos ficava na rua Direita (atual rua 1° de março).
  • 5
    A chamada passagem do Valongo (hoje rua Camerino) ligava o centro da cidade colonial a essa área litoral, separada por uma barreira de morros.
  • 6
    Encimada por uma esfera armilar, essa coluna (às vezes chamada de obelisco) era inicialmente embasada num chafariz retangular (hoje desaparecido) (Pessôa 2022:13).
  • 7
    Porém, com a reabilitação do cais no final de 2023 foi instalado na esplanada que margeia a Rua Sacadura Cabral um aparato pedagógico mais consistente, com grandes paneis explicativos, além de um conjunto de esculturas.
  • 8
    Em 2012, a Carta “Recomendações do Valongo”CARTA “Recomendações do Valongo”. (2012), Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho Curatorial do Circuito da Herança Africana. propunha que fosse criado o ‘‘Memorial da Diáspora Africana’’ nas Docas Dom Pedro II, um edifício de grandes dimensões localizado exatamente ao lado do cais. Atendendo a um pedido do Movimento Negro e ao desejo da equipa responsável pela candidatura do cais do Valongo ao Património Mundial, o projeto de instalação desse memorial neste edifício (tombado pelo Iphan em 2016) foi objeto de um acordo entre o Iphan e a Unesco, ratificado pelo município. Porém, o edifício das Docas D. Pedro II sendo objeto de uma disputa judiciária, o Museu de História e Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB) está funcionando, desde 2018, no Centro Cultural José Bonifácio, no bairro da Gamboa, relativamente longe do cais do Valongo.
  • 9
    Estes eventos, organizados no passado por irmandades de escravizados ou libertos em honra de santos católicos, sob a forma de coroação de reis ou rainhas da "nação", são ainda hoje celebrados em vários estados brasileiros.
  • 10
    Desde 2017, o Cortejo de Yemanjá passa pelo Valongo.
  • 11
    Iabás se refere aos orixás femininos nas religiões de matriz africana.
  • 12
    Amplo vestido branco com bordas, pano da costa, turbante, colares, pulseiras e brincos.
  • 13
    O espaço social da 'Pequena África concentrou, em particular no século XIX e início do século XX, formas de vivência, de resistência e de criação cultural negras. Além dos distritos portuários de Saúde e Gamboa, essa área se estendia até o Campo de Santana e os bairros Cidade Nova e Estácio.
  • 14
    As primeiras lavagens comemoravam o reconhecimento oficial do local como patrimônio cultural imaterial do estado do Rio de Janeiro pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em 20/11/1984.
  • 15
    As lavagens da Pedra são efetuadas em geral no Dia da Consciência Negra, no Dia Nacional do Samba e no Dia de Nossa Senhora da Conceição.
  • 16
    Além do cais de desembarque e do cemitério, o Complexo do Valongo incluía edifícios onde os escravizados eram detidos e vendidos (atual rua Camerino), bem como um lazareto, situado no bairro da Gamboa (Honorato 2008HONORATO, Claudio de Paula. (2008), Valongo: o Mercado de Escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831. Niterói: PPGH-UFF.; Soares 2013).
  • 17
    Os adeptos, em silêncio, trazem água de uma fonte para uma cabana localizada na parte externa do terreiro, onde Oxalá fica instalado por 7 dias. O ritual relata um episódio da mitologia iorubá.
  • 18
    Beniste (2006BENISTE, José. (2006), As águas de Oxalá. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.:222) sugere que o ritual das Águas de Oxalá não foi trazido pelos cativos africanos, mas criado no Brasil na segunda metade do século XIX a partir dessa festa católica do Bonfim.
  • 19
    Informação colhida em depoimentos de interlocutores. Ver também o depoimento de Mãe Edelzuita à Revista Porto Maravilha, edição de julho de 2014, página 8.
  • 20
    Criado por decreto municipal em novembro de 2011, composto por representantes da prefeitura e da operação de urbanismo, ativistas do movimento negro, arqueólogos, historiadores e antropólogos.
  • 21
    Sugestões feitas pelas mães de santo, mas também por outros membros do GT (Relatório final 2012:78-79).
  • 22
    Duas respeitadas mães de santo oriundas da Bahia, cada uma na época à frente de um centro de candomblé (Mãe Edelzuita de Oxaguiã e Mãe Beata de Yemanjá), e Mãe Celina de Xangô, cofundadora do Centro Cultural Pequena África.
  • 23
    Uma água em que foram maceradas folhas sagradas é utilizada para o banho purificador da cabeça dos iniciados, para a lavagem das contas dos colares, dos otás, das pernas e chifres dos animais a serem sacrificados, e de outros objetos sagrados.
  • 24
    O candomblé manteve uma estreita relação com o catolicismo. As irmandades de escravos foram colocadas sob a tutela da Igreja Católica e muitos fiéis mantinham uma dupla filiação religiosa.
  • 25
    Porém, mulheres tendo responsabilidades no candomblé, ligadas à Pedra do Sal e ativas na lavagem do Valongo, frequentam as missas da Igreja de São Francisco da Prainha, localizada ao lado da Pedra do Sal. Fonte: Entrevistas com a ekedi Maria Moura e a mãe de santo Iracy de Ogun, em 20 nov. 2015; e com Frei Tatá, pai franciscano e apoiador do quilombo de Pedra do Sal, em setembro de 2017.
  • 26
    Ver Relatório final (2012:124).
  • 27
    Fonte: Entrevistas com participantes da lavagem. Proposta de inscrição 2016PROPOSTA DE INSCRIÇÃO do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo na lista do Patrimônio Mundial. (2016), Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; Iphan.: 170; Relatório final 2012RELATÓRIO FINAL do Grupo de Trabalho Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana. (2012), Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; Instituto Rio Patrimônio da Humanidade..
  • 28
    Fonte: Entrevistas com Mãe Celina de Oya, Mãe Iracy de Ogun e Ekedi Maria Maura, realizadas entre 2012, 2013, 2014; Depoimento de Mãe Celina de Xangô ao O Globo em 28 abr. 2012.
  • 29
    Mãe Edelzuita e Mãe Beata eram, na época, chefe de um terreiro da nação nagô-ketu.
  • 30
    O “assentamento” ou “assento” é um material sagrado que concentra a força mágico-sagrada ou axé: não é a ‘representação’ ou ‘imagem’ da divindade, é a morada do orixá é até mesmo o próprio orixá em uma de suas formas possíveis. O processo ritual visa a "assentar" a divindade num receptáculo privilegiado, ou seja, fixa essa energia dinâmica num fetiche material do orixá, e na cabeça do iniciado (Sansi 2005SANSI, Roger. (2005), “The Hidden Life of Stones: Historicity, Materiality and the Value of Candomblé Objects in Bahia”. Journal of Material Culture, vol. 10, nº 2: 139-156.).
  • 31
    Porém, o historiador Alberto e Costa Silva, membro do GT, alertou que "os escravos teriam sido convertidos ao culto iorubá aqui no Brasil" e apontou que "parte do material iorubá encontrado nas escavações seria proveniente do contrabando de marinheiros, já que os escravos eram trazidos nus"(Relatório final 2012:190).
  • 32
    Analisei (Souty 2018:40-43, em particular na nota 41) em detalhe essa questão.
  • 33
    Já em 1886 é mencionado um assentamento do Orixá Xangô Afonjá na Pedra do Sal. Foi provavelmente o primeiro centro de candomblé do Rio (Augras e Santos 2005AUGRAS, Monique & SANTOS, João Batista dos. (2005), “Uma casa de Xangô no Rio de Janeiro”. In: C. E. M. de Moura (ed.), Somàvo. O Amanhã nunca termina. São Paulo: Empório de Produção: 109-120.:112; Tobiobá 2007TOBIOBÁ, João Baptista dos Santos. (2007), “21 cartas e um telegrama de mãe Aninha a suas filhas Agripina e Filhinha 1935-1937”. Afro-Ásia, 36: 265-310.:267-268, nota 6; Rocha 2000ROCHA, Agenor Miranda. (2000), As nações Kêtu: origens, ritos e crenças. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad.:25; Conduru 2010CONDURU, Roberto. (2010), “Das casas às roças: comunidades de candomblé no Rio de Janeiro desde o fim do século XIX”. Topoi, 11 (21): 178-203.).
  • 34
    Na ontologia do candomblé, tudo o que contém axé (divindades, pessoas, objetos), preexiste (de forma virtual, num outro plano), antes de ser “feito”, isto é, antes de ser revelado ritualmente, antes de ser consagrado (Goldman 2009GOLDMAN, Marcio. (2009), "Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica”, Análise Social, vol. XLIV (190): 105-137.:129).
  • 35
    Esse fato, justamente, autoriza as Baianas a identificar essas pedras ou certos objetos como sendo -ontem como hoje- da religião dos Orixás…
  • 36
    Por exemplo, em certas ocasiões, as chamadas ferramentas ou acessórios dos orixás podem também ser reconhecidos/expostos como obras artísticas, objetos públicos.
  • 37
    Objetos que contêm uma modulação específica de axé, colocados na base de uma construção religiosa.
  • 38
    As Baianas também são presentes em dias de movimentação na Pedra do Sal, e, desde 2016, em algumas ocasiões na Praça Mauá, frente aos museus de Arte do Rio (MAR) e do Amanhã.
  • 39
    Em 1843, o Brasil independente (desde 1822) apagava um dos principais testemunhos materiais de um tráfico transatlântico de escravos supostamente proibido a partir de 1831 (o tráfico foi oficialmente abolido em 1851, e mesmo assim continuou ilegalmente), e mostrava que se libertava da sua antiga tutela colonial portuguesa.
  • 40
    Em 1911, a jovem República (nascida em 1889), com a construção de um porto industrial moderno, enterrou a Praça Municipal, apagando um poderoso símbolo do Brasil imperial e escravocrata (a escravidão tinha sido abolida apenas em 1888).
  • 41
    Cf. Lima (2013LIMA, Tania Andrade. (2013), “Arqueologia como ação sociopolítica: o caso do cais do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX”. Vestígios - Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica vol. 7, n.º 1: 177-207.); Relatório Final (2012).
  • 42
    Existe um "lugar de memória" (no sentido de Nora) quando a intimidade de uma memória individualizada e vivida desaparece em favor de uma história reconstituída, inscrita num lugar coletivo. Neste sentido, as memórias vividas/específicas opõem-se a uma história celebrada, a incorporação opõe-se à inscrição (Nora 1984).
  • 43
    Sobre as tensões e disputas em torno das interpretações do passado local no Valongo, ver, por exemplo, Carneiro & Pinheiro (2022CARNEIRO, Sandra de Sá & PINHEIRO, Marcia Leitão. (2022), “Cais do Valongo (RJ): Apropriações, memorias e celebrações”, Sociologia e antropologia, vol. 12, nº 3: 1-29.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
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