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Um relevo imprescindível - Cecília Mariz e sua contribuição à sociologia da religião1 1 Texto apresentado em 30 de outubro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Cecília Loreto Mariz pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

An essential highlight - Cecilia Mariz and her contribution to the Sociology of Religion.

Resumos

Resumo: Este artigo foi escrito em homenagem à Cecilia Mariz por ocasião de sua aposentadoria na UERJ. Nele, recupera-se parte da produção acadêmica da homenageada, destacando-se os estudos de catolicismo e pentecostalismo. Foram ressaltadas algumas parcerias internacionais que Mariz realizou em sua trajetória e sua profícua contribuição para a Sociologia da Religião de matriz weberiana.

Palavras-chave:
Cecilia Mariz; Homenagem; Catolicismos; Pentecostalismos


Abstract: This article was written in honor of Cecilia Mariz on her retirement from UERJ. It recovers part of Mariz’s academic production, highlighting the studies of Catholicism and Pentecostalism. I highlighted Mariz’s international partnerships in her career and her fruitful contribution to the Sociology of Religion of the Weberian matrix.

Keywords:
Cecilia Mariz; Tribute; Catholicisms; Pentecostalisms


Foi com um prazer inenarrável que aceitei o convite da Comissão Organizadora do Ciclo de Debates no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ) para prestar homenagem à Cecília, minha querida orientadora nos vários momentos da minha trajetória acadêmica. E lá se vão trinta anos que nos conhecemos, desde que eu cursava a graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF) até os dias atuais.

Devo confessar que esta não é uma tarefa fácil por várias razões. A primeira delas é que, nesta posição, sou tomada por um misto de emoção e sentimentos que podem ser precariamente traduzidos como admiração, reconhecimento, gratidão pela partilha do conhecimento e pela certeza de ter sido introduzida na vida acadêmica por uma pessoa extraordinariamente humana: uma pesquisadora dedicada e delicada, generosa e competente. Outra razão que torna esta tarefa muitíssimo desafiadora é que, para falar de Cecília como acadêmica e profícua estudiosa das ciências sociais da religião e, mais especificamente, da sociologia da religião, é preciso ter em conta, para além dos diálogos informais sobre o campo, a amplitude de sua produtividade. Esta se define pelo permanente processo criativo na articulação de temas e pistas teóricas potentes, bem ao estilo weberiano, no que tange à articulação entre uma sociologia compreensiva e a mutante vida social na qual a religião ocupa um lugar relevante.

Dada a vastidão de sua produção, seria impossível, e talvez não recomendável, realizar uma síntese das distintas interseções que Cecília, sempre com profunda acuidade teórica e empírica, tem concretizado em sua trajetória acadêmica que, certamente, não finda com sua aposentadoria. Considerando o que a nossa comunidade tem presenciado e usufruído, o espírito de curiosidade científica em nossa ilustríssima homenageada não será debelado pelos rituais institucionais e laborais, ainda que estes sejam fundamentais na medida em que atuam como arvoredos a atenuar o árduo caminhar, às vezes desértico, dos que se dedicam ao conhecimento da vida social com a complexidade que se apresenta em diferentes épocas e contextos.

Pensando nessa vastidão, é relevante mencionar que, até o momento em que escrevo este texto, Cecília possui 76 artigos publicados nos mais diversos periódicos nacionais e internacionais. Além disso, tem um livro publicado internacionalmente e organizou três publicações em coautoria. Suas contribuições também se estendem a 48 coletâneas, algumas delas totalmente autorais, enquanto outras integram as perspectivas de jovens e colegas pesquisadores. Aliás, esta é uma das marcas distintivas de Cecília como acadêmica e como pessoa: sua abertura para a intuição investigativa dos jovens, sua habilidade em escutar atentamente seus insights, a disposição para revisar posições e a capacidade de agregar conhecimento como alguém que se abre para o frescor das manhãs outonais, caminhando atentamente sob as brisas inspiradoras.

Como escrevi em sua minibiografia para a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Cecília Mariz sempre esteve atenta às mudanças sociais e às temáticas emergentes no campo. Por essa razão, sua produção acadêmica tem buscado compreender as relações entre religião e mídia; religião e saúde; religião e migração; religião e política; religião e juventude; religião e globalização. Em particular, sua abordagem integrada sobre fluxos religiosos, transnacionalidade e globalização foi desenvolvida em colaboração com sua amiga e colega Clara Mafra (em memória), da UERJ, resultando na criação do Grupo de Estudos de Cristianismo, que reúne pesquisadores de diversas instituições e no qual eu me incluo.

Cabe ainda acrescentar que o acento da produção de Cecília tem estado no Cristianismo em suas vertentes católica e pentecostal e, por aí, já temos quase um universo inteiro de variações dada a heterogeneidade das instituições e as correntes interinstitucionais que sempre impõem a nós, pesquisadores, novas sensibilidades ao adentrar no campo multifacetado do cristianismo no país.

Para esta homenagem decidi sublinhar alguns momentos da produção de Cecília que me parecem ter produzido referências incontestáveis aos que pesquisam religião no Brasil. Destacarei seus estudos sobre catolicismo e pentecostalismo, sem comentar aqui sua produção sobre o tema da pobreza e seu enfrentamento de forma direta, e as pesquisas mais recentes sobre juventude e transnacionalidade. Começo sublinhando ainda a relevância do seu trabalho em rede, articulado com parceiros internacionais.

O diálogo com a comunidade acadêmica internacional

Uma das marcas importantes da trajetória de Cecília, enquanto estudiosa atenta à produção internacional, é a interlocução estabelecida com pesquisadores norte-americanos, europeus e latino-americanos. Essa condução favoreceu pregnantes articulações entre pesquisadores brasileiros e alguns de seus orientandos com esses estudiosos, seja produzindo convênios interinstitucionais, seja costurando projetos de pesquisa que possibilitaram a abertura de perspectivas comparadas sobre o fenômeno religioso em observação. Assim, Cecília produziu estudos com Carol Drogus, professora do Hamilton College, Hannah Stewart-Gambino, de Duke University, Virginia Garrard-Burnett, da Universidade do Texas; com os italianos Roberto Cipriani e Arnaldo Nesti; os holandeses André Droogers, Marjo de Theije; o britânico Paul Freston, dentre outros colegas. Em termos de América Latina, cabe mencionar a parceria com o mexicano Roberto Blancarte, o argentino Alejandro Frigerio, e toda a rede de pesquisadores da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul, em que os trabalhos de Cecília despertaram interesse e provocaram debates promissores.

Cecília teve contato com um conjunto muito mais amplo de pesquisadores internacionais, como David Martin, Tony Leeds, Brigitte Berger, entre outros mencionados em seu memorial (Mariz 2019MARIZ, Cecília L. (2019), “Memorial de Cecília Loreto Mariz”. Interseções, vol. 21, nº 2.). Embora não tenha publicado conjuntamente com esses pesquisadores, eles foram importantes interlocutores durante sua formação e além dela, ampliando sua visão sobre o fenômeno religioso em sua polissemia.

Ainda no início de sua formação nos anos 1980, o diálogo com Peter Berger alcançou influência considerável na constituição de sua maneira de pensar a Sociologia. Nossa homenageada estava interessada em realizar uma Sociologia do Conhecimento, tal como aprendera ao ter contato com a produção de Peter Berger na Universidade de Boston (Cf. Moreira 2022MOREIRA, Alberto. (2022).“Entrevista concedida por Cecília Loreto Mariz a Alberto da Silva Moreira sobre a pessoa e a obra de Peter Berger.” Caminhos, vol. 20, nº 1: 87-98.). Desse modo, o conceito de plausibilidade religiosa trabalhado por Berger é presente em vários estudos de Cecília mobilizando a ideia de que, a depender do contexto sociocultural, a religião se torna mais ou menos plausível, sendo a fé religiosa condicionada às mudanças socioculturais.

A contribuição de Cecília, dita modesta por ela mesma, sobre a leitura do livro de Peter Berger (1999BERGER, Peter (ed.). (1999), The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics. Washington: Grand Rapids, Ethics and Public Policy Center/Eerdmans.) a respeito da dessecularização do mundo (Mariz 2000MARIZ, Cecília L. (2000), “Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger”. Religião & Sociedade , vol. 21, nº 1: 25-39.), agregou, na verdade, aspectos importantes ao debate sobre secularização, tido como desgastado. O destaque dado pela autora ao texto de Berger foi o de que há uma certa simultaneidade nos processos de secularização e dessecularização, articulados que estão com a dinâmica da própria modernidade que abriga, dialeticamente, a complexidade desses processos. Assim, a ousadia de Cecília Mariz nesse texto reside no fato de que ela problematiza a própria posição de Berger, que sugerira haver se enganado anteriormente. Cito Cecília:

O que Berger nega, não é o processo de secularização em si, mas a crença de que a modernidade vá necessariamente gerar o declínio da religião como um todo nos diferentes níveis, tanto social quanto individual (Mariz 2000MARIZ, Cecília L. (2000), “Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger”. Religião & Sociedade , vol. 21, nº 1: 25-39.:27).

Trabalhos como esse têm a potência de suscitar em pesquisadores da religião a tão bem-vinda dúvida epistemológica que nos obriga a um reposicionamento permanente frente à teoria e a uma abertura para a observação dos diferentes momentos históricos em que a religião se metamorfoseia.

Desse modo, uma herança de Peter Berger que Cecília parece ter assumido é a capacidade de relativizar permanentemente as “certezas”, o que seria algo próprio aos cientistas, mas que, na verdade, não tem sido um exercício fácil nos tempos atuais, em que os vereditos ideológicos ou políticos se impõem à revelia da escuta atenta e das possibilidades de deslocamentos teóricos. Fomentar o espírito crítico e autocrítico dos pesquisadores e acadêmicos sempre será um exercício desejável (Moreira 2022MOREIRA, Alberto. (2022).“Entrevista concedida por Cecília Loreto Mariz a Alberto da Silva Moreira sobre a pessoa e a obra de Peter Berger.” Caminhos, vol. 20, nº 1: 87-98.).

Incursões no catolicismo

O catolicismo no Brasil, dado seu estatuto fundacional, tem sido objeto de muitos estudos em diferentes áreas do conhecimento. No entanto, no campo específico das Ciências Sociais, a produção sobre o catolicismo no país oscilou ao longo do século XX, tendo momentos de maior e menor interesse por parte dos pesquisadores.

Por sua vez, a especificidade da produção de Cecília Mariz sobre o campo católico é notável. Ainda nos anos 90, a parceria com Lemuel Guerra (1990MARIZ, Cecília ; GUERRA SOBRINHO, Lemuel G. (1990) . “Algumas Reflexões sobre a Reação Conservadora na Igreja Católica.” Comunicações do ISER, vol. 9, nº 39: 73-78.) resultou em um estudo publicado no caderno Comunicações do ISER sobre as tensões que emergiam de duas forças opostas no catolicismo: o setor progressista e a tendência conservadora que tinham como evento emblemático o silêncio imposto a Leonardo Boff pelo Vaticano, por meio da figura do então secretário Joseph Ratzinger. Em uma leitura fina do cenário da queda de braço dessas tendências no interior do catolicismo, os autores argumentaram que tal conflito poderia ser inscrito em um quadro mais amplo de concepções gerais sobre religião e sociedade.

As pesquisas de natureza comparativa que integram o catolicismo também merecem ser sublinhadas na produção acadêmica de Mariz. Assim, a comparação pioneira entre as Comunidades Eclesiais de Base e o Pentecostalismo, destacando a dimensão popular de ambos os tipos de propostas religiosas, ampliou o campo analítico na medida em que a autora se concentrou nas visões de mundo de adeptos dessas propostas com as normas do catolicismo tradicional, por um lado, e de grupos afro-brasileiros por outro. Na comparação, tem-se o acento da categoria “popular” como fio condutor.

Atenta às dinâmicas internas do catolicismo, Cecília ocupou-se de examinar as relações entre sincretismo e trânsito religioso juntamente com o grupo ampliado de Estudos do Catolicismo no Instituto de Estudos da Religião (ISER). À época, inicia-se, com Maria das Dores Campos Machado, aquela que seria - ouso dizer - sua parceria intelectual e afetiva mais consistente. Ambas publicam um artigo que representou referência obrigatória nos estudos sobre sincretismo (Mariz & Machado 1994MARIZ, Cecília; MACHADO, Maria das Dores C. (1994). “Sincretismo e Trânsito Religioso: Uma Comparação Entre Pentecostais e Carismáticos.” Comunicações do ISER vol. 45: 24-34.), especialmente pela novidade em acionar o conceito de racionalização religiosa para pensar uma modalidade de construção de identidade mais refratária ao sincretismo enquanto uma prática religiosa múltipla. Nesse estudo comparado, Mariz e Machado (1994) aproximam carismáticos católicos de adeptos do pentecostalismo, com foco em como os fiéis de ambos os grupos constroem suas respectivas identidades numa perspectiva aparentemente menos sincrética e mais exclusivista.

Em meados da década de 1990, observa-se o fenômeno de expansão das redes televisivas de orientação católica, que transgrediu, de certo modo, o modus operandi do catolicismo em relação às incursões na mídia. Por muito tempo, rádio e missas televisivas predominaram como os principais recursos da Igreja Católica para a difusão de sua mensagem religiosa. No entanto, com o arranjo midiático de igrejas como a Universal do Reino de Deus e a expansão dos evangélicos na TV, a Igreja católica se viu constrangida a ampliar seus canais, sobretudo capitaneada pelos grupos de orientação carismática.

O estudo de Cecília sobre a Rede Vida, uma emissora de orientação católica, mostrou as modulações do catolicismo no campo televisivo, além de caracterizar as incursões de lideranças e intelectuais católicos no canal de TV (Mariz 1998MARIZ, Cecília L. (1998), “A Rede Vida: o catolicismo na TV”. Cadernos de Antropologia e Imagem, vol. 7, nº 20: 41-55.). Em sua análise, a autora levanta algumas hipóteses sobre o predomínio da palavra em detrimento da imagem, revela o perfil de apresentadores leigos e religiosos e analisa os distintos papeis que a Rede Vida desempenha como difusora da mensagem católica.

Como estudar o catolicismo sem direcionar o olhar para o papel das mulheres? Em diferentes pesquisas Cecília analisou como as mulheres se integravam à Igreja e como esse segmento favorecia, de modo peculiar, a expansão da instituição. Assim, em nova parceria de pesquisa com Maria das Dores Campo Machado (Mariz & Machado 2000MARIZ, Cecília; MACHADO, Maria das Dores Campos. (2000), “Progressistas e Católicas Carismáticas: uma análise do discurso das mulheres de Comunidade de Base na atualidade brasileira”. Estudos de Política e Teoria Social, vol. 3, nº 2: 8-29.) tem-se o estudo que compara mulheres católicas progressistas com as carismáticas. No trabalho, as autoras apontaram o labirinto dos criativos modos de inserção no catolicismo por parte dessas mulheres, que ora veem o outro como diferente e opositor, ora apresentam simpatia pela diferença encontrada.

Podemos pensar que o discurso sobre a diferença no catolicismo constitui-se de modo ambivalente, podendo ser acionado tanto como estratégia de inclusão quanto como apenas uma retórica visando manter a unidade católica.

Discutindo precisamente a questão das estratégias de manutenção da unidade católica e apresentando um contraponto interessante sobre o tema da desinstitucionalização religiosa, Cecília Mariz (2007MARIZ, Cecília L. (2007), “A Renovação Carismática Católica: uma igreja dentro da Igreja?” Civitas: Revista De Ciências Sociais, vol. 3 nº 1: 169-186.) analisa a Renovação Carismática Católica (RCC), demonstrando o paralelismo desse grupo em relação à Igreja Católica, por um lado, e, por outro, assinalando como a dinâmica da RCC se estabeleceu de modo ambivalente, na medida em que reforça o catolicismo, mas advoga sua diferença no interior da Igreja.

Cabe notar que eleger o catolicismo como objeto de estudo central implica em reposicionamentos permanentes diante da complexidade que apresenta. Na verdade, todo objeto terá a sua complexidade se o pesquisador estiver atento às suas movimentações a partir de dinâmicas que se estabelecem como efeitos das transformações da cultura e da sociedade. Um dos méritos de Cecília ao tomar este como seu objeto central de pesquisa é o de olhar sua heterogeneidade com lupa, como quem investiga minuciosamente os indícios que se manifestam nas brechas do objeto.

Esse olhar cuidadoso a conduziu a não naturalizar a RCC como sendo meramente mais um grupo dentro do catolicismo. Notadamente, Cecília Mariz (2006MARIZ, Cecília L. (2006), “Comunidades de Vida no Espírito: Um novo modelo de Família?” In: L. F. D. Duarte et al. (org.). Família e Religião. Rio de Janeiro: Contra Capa.) analisou como a espiritualidade carismática se desdobrou e teve como um de seus efeitos a formação das Comunidades de Vida e Aliança. Com uma hipótese arrojada, a autora considerou que as Comunidades de Vida se constituíram como “um modelo alternativo de convivência doméstica e familiar” (Mariz 2006:264). O discurso dos fiéis analisados por Cecília sobre a crise de valores familiares e a própria constatação das crises dos fiéis com suas famílias apresentaram-se como elementos motivadores para a difusão desse modelo religioso comunitário.

Com a distância de quase duas décadas, parece evidente que o espraiamento do discurso das comunidades de vida sobre a “restauração da família” produziu um eco que se tornou agudo em grupos e lideranças católicas radicalmente conservadores. A posição desses católicos que integram outros grupos, além da RCC, fomentou a orientação religiosa radical na direção de um alinhamento político moralizante, que teve no governo Bolsonaro sua expressão mais visível.

Leituras do Pentecostalismo e neopentecostalismo

A produção analítica de Mariz sobre o pentecostalismo e o neopentecostalismo integrou temáticas afins com uma análise sociológica que considerava as múltiplas interseções que essas expressões religiosas alcançaram no país. Nessa direção, levando em conta a interseção entre religião e saúde, Cecília analisou a relação entre alcoolismo e pentecostalismo elaborando um sofisticado argumento de que seria possível compreender a concepção pentecostal de indivíduo e liberdade a partir dos discursos dos fiéis sobre o alcoolismo e a recuperação que conseguiam alcançar. Assim, Cecília apresenta a fundamentada crítica de que a sociologia de vertentes funcionalista e materialista histórica estaria negligenciando o poder dos indivíduos enquanto agentes sociais (Mariz 1994aMARIZ, Cecília L. (1994a), “Libertação e ética - uma análise do discurso dos pentecostais que se recuperaram do alcoolismo.”. In: A. Antoniazzi et al. (org.). Nem anjos nem demônios. Petrópolis: Vozes.). Em vários outros trabalhos Cecília explorou essa relação entre pentecostalismo e alcoolismo (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Alcoolismo, Gênero e Pentecostalismo”. Religião & Sociedade, vol. 16, nº 3: 80-93., 2004MARIZ, Cecília L. (2004), “Embriagados no Espírito Santo: reflexões sobre a experiência pentecostal e o alcoolismo”. Antropolítica, nº 15: 61-80.,) uma vez que as narrativas dos adeptos sublinhavam o antes e o depois da adesão religiosa no enfrentamento da dependência.

Vale sublinhar que há uma evidente dificuldade em abordar o pentecostalismo sem considerar a dimensão da pobreza. Sobretudo a literatura sociológica das décadas de 1970 e 1980, de cunho predominantemente marxista, associou o fenômeno religioso ao problema da estrutura de classes (Rolim 1985ROLIM, Francisco C. (1985), Pentecostais no Brasil. Petrópolis: Vozes .; D’Epinay 1969D’EPINAY, Christian L. (1969), Haven to the Masses. London: Lutterworth Press.). Em um artigo em que faz uma densa revisão da literatura sobre pentecostalismo e neopentecostalismo, Cecília (Mariz 1995MARIZ, Cecília L. (1995), “Perspectivas Sociológicas sobre o Pentecostalismo e Neopentecostalismo”. Revista de Cultura Teológica, vol. 3, nº 13: 37-52.) desenvolveu uma argumentação controversa, à época, no que se referia a uma visão predominante que compreendia o pentecostalismo como mero mantenedor do status quo. Assim, ela elabora uma perspectiva crítica a essa visão, advogando haver um preconceito racionalista dirigido a esses grupos por parte de setores intelectualizados. Cito a autora:

A crítica ao emocionalismo baseia-se no pressuposto de que a emoção não leva à experiência da verdade religiosa. Assume-se que somente se chega a esta pela razão e que a emoção, sentimentos, experiência corporal criam ilusões e assim são menos competentes para alcançar a verdade (Mariz 1995MARIZ, Cecília L. (1995), “Perspectivas Sociológicas sobre o Pentecostalismo e Neopentecostalismo”. Revista de Cultura Teológica, vol. 3, nº 13: 37-52.:43).

O tom crítico de Cecília em relação a algumas produções sobre o pentecostalismo e neopentecostalismo no Brasil nunca teve um endereçamento personalizado, isto é, não se tratava de uma crítica à pessoa, mas primava pelo rigor conceitual tão caro à sociologia e pela importante delimitação dos campos em que os analistas se situavam. Em um jornal da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (Mariz 1999aMARIZ, Cecília (1999a), “Estudos sobre pentecostalismo: uma perspectiva brasileira”. Estudios sobre Religión - Newsletter de la Asociación de Cientistas Socialess de la Religión en el Mercosur), a autora realiza uma espécie de estado de arte da produção brasileira sobre o tema e conclui:

Uma sociologia da sociologia da religião no Brasil teria que estudar que fatores contribuem para inibir ou alimentar essas atitudes de aversão ou de certo fascínio [ao pentecostalismo e neopentecostalismo] e em que medida essas atitudes têm trazido consequências para os estudos realizados (Mariz 1999aMARIZ, Cecília (1999a), “Estudos sobre pentecostalismo: uma perspectiva brasileira”. Estudios sobre Religión - Newsletter de la Asociación de Cientistas Socialess de la Religión en el Mercosur).

Avançando um pouco mais nas trilhas percorridas por Cecília no estudo do fenômeno em tela, chegamos a uma de suas pesquisas comparadas em que são abordadas a visão de mundo e as práticas sociorreligiosas das três correntes principais do cristianismo brasileiro: neopentecostalismo, Renovação Carismática Católica e progressistas das Comunidades Eclesiais de Base. Nessa investigação de fôlego realizada a partir do Centro de Estudos da Religião e da Sociedade (CERIS), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em que tive a honra de colaborar como pesquisadora à época, Cecilia Mariz (2001MARIZ, Cecília L. (2001), “Pentecostalismo e Renovação Católica e Comunidade de Base: uma análise comparada”. Cadernos CERIS, vol. 1, nº 2: 11.) analisa as tensões entre lideranças católicas e fiéis nos grupos católicos, tanto progressistas quanto carismáticos. Assinala-se que nem sempre o discurso das lideranças progressistas fazia eco junto aos chamados leigos. Por sua vez, os carismáticos estabeleciam relações de tensão com a hierarquia, podendo inclusive promover rupturas com o catolicismo.

Na mesma pesquisa, neopentecostais da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), da denominação Deus é amor e da Igreja Cristã Maranata foram examinados em distintos estratos sociais. Em sua análise, Cecília estabelece as aproximações e as diferenças entre as distintas igrejas no que se refere ao comportamento dos fiéis, suas visões de mundo, relações com a liderança e práticas religiosas. A presença juvenil foi identificada na IURD situada na favela. A Igreja organizava cultos especiais para a juventude visando atrair os jovens que participavam ativamente dos bailes funk. Claramente se notabilizava a plasticidade da IURD em relação às culturas locais e seu sucesso nos anos 2000 em moldar-se, adaptando-se às demandas culturais.

Cecília Mariz aproximou pentecostais e carismáticos em vários de seus estudos, ora analisando o discurso das lideranças de ambas as correntes (Mariz 2016; 2001), ora destacando as percepções e práticas dos agentes desses grupos em relação a temáticas específicas como por exemplo, o ecumenismo (Mariz & Souza 2015).

No reverso do ecumenismo está, salienta Mariz, a “batalha espiritual” encampada por “um estilo religioso bélico de confrontação e acusações explícitas” (Mariz 1999bMARIZ, Cecília L. (1999b), “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 47: 33–48.: 33). Estudar esse estilo religioso advindo sobretudo das igrejas pentecostais e neopentecostais era também dar, por assim dizer, uma certa atenção ao demônio, ou aos modos como essa figura do cristianismo era tratada na literatura socioantropológica. Em um trabalho de fôlego no que tange à revisão da literatura, Cecília argumenta haver um aspecto modernizante na teologia da guerra espiritual que era negligenciado pelos pesquisadores brasileiros. De modo provocativo, ela aproxima a teologia da libertação à teologia da batalha espiritual no que se tange à exteriorização do mal.

Um dos méritos de Cecília na análise de um fenômeno tão multifacetado como o pentecostalismo é considerá-lo em conexão com a realidade social mais ampla. Com efeito, a autora conjuga rigor metodológico, próprio de seu aprendizado nas fontes weberianas, com a busca da compreensão dos sentidos que os atores imprimem às próprias ações. É este, afinal, o caminho que conduziu suas análises por vias mais seguras não impregnadas por juízos de valor, que repousam na esteira confortável do senso comum.

Finalizando...

Em seu texto sobre a ciência como vocação, Max Weber afirma:

As ideias chegam quando não as esperamos, e não quando estamos pensando e procurando em nossa mesa de trabalho. Não obstante, elas certamente não nos ocorreriam se não tivéssemos pensado à mesa e buscado respostas com dedicação apaixonada (Weber 1982WEBER, Max. (1982), “A ciência como vocação”. In: M. Weber. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara:162).

Como palavras finais neste texto-homenagem talvez caiba falar de paixão e dedicação e acrescentar que, como boa weberiana, Cecília soube apreender as lições do pensador ao fazer perguntas à realidade; escutar seus ruídos numa “dedicação íntima à tarefa” (Weber 1982WEBER, Max. (1982), “A ciência como vocação”. In: M. Weber. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara:163). Certamente, é devido ao seu apaixonamento pela ciência e sua dedicação ao conhecimento que Cecília tem tornado a sociologia da religião muito mais que um mero campo de investigação. Seus estudos constroem uma ampla rede trançada e sustentada por sólidas articulações e inspirações teóricas que enriqueceram o diálogo com a comunidade acadêmica nacional e internacional.

O estudo do cristianismo em sua diversidade interna e suas imbricações com a cultura brasileira demanda inventividade analítica e uma escuta atenta ao “espírito do tempo”. Tanto o catolicismo quanto as correntes pentecostais e neopentecostais têm se mostrado, em maior ou menor grau, refratários às normas institucionais e aos ditames das lideranças.

Diante de um fenômeno em permanente mudança, nossa homenageada tem se dedicado a explorar algumas direções possíveis, sem pretensões proféticas, como cabe aos que fazem ciência com honestidade e humildade. Afinal, estudar religião é como olhar o curso de um rio em movimento: nunca se sabe ao certo a origem e o destino de suas águas, mas podemos segui-las em suas curvas.

Bibliografia

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    Texto apresentado em 30 de outubro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Cecília Loreto Mariz pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2024
  • Aceito
    04 Abr 2024
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