Open-access A dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve

Resumos

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado que estudou as representações da sexualidade de jovens solteiros, membros da Igreja Evangélica Bola de Neve. O interesse dessa denominação neopentecostal por moralizar o comportamento sexual dos fiéis é evidente. Seus pastores dedicam-se ao controle da sexualidade e preconizam a virgindade e o casamento, considerados princípios cristãos por excelência. A análise dos dados permitiu-nos constatar que os fiéis representam o desejo como pecado e patologia, procurando interditá-lo conforme o imperativo moral da instituição eclesiástica. Contudo, a repressão do desejo convive paradoxalmente com a liberação dos corpos, que ficam à mostra para serem vistos, admirados e desejados. Nessa congregação religiosa, a libido é simultaneamente coibida e estimulada.

Igreja Evangélica Bola de Neve; sexualidade; desejo; corpo; pecado


The present article is the result of a Master's thesis that studied the sexuality representations of single youths, members of the Bola de Neve (Snowball) Evangelical Church. The interest of this neo-pentecostal denomination in moralizing the sexual behavior of the faithful is evident. Its priests dedicate themselves to sexuality control and preach virginity and marriage, considered christian principles par excellence. The data analysis revealed that the faithful represent desire as sin and pathology, trying to interdict it according to the moral imperative of the ecclesiastical institution. However, desire repression paradoxically coexists with the liberation of bodies, which are displayed to be seen, admired and desired. In this religious congregation, libido is simultaneously restrained and stimulated.

Bola de Neve Evangelical Church; sexuality; desire; body; sin


A dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve

Bruna Suruagy do Amaral Dantas

RESUMO

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado que estudou as representações da sexualidade de jovens solteiros, membros da Igreja Evangélica Bola de Neve. O interesse dessa denominação neopentecostal por moralizar o comportamento sexual dos fiéis é evidente. Seus pastores dedicam-se ao controle da sexualidade e preconizam a virgindade e o casamento, considerados princípios cristãos por excelência. A análise dos dados permitiu-nos constatar que os fiéis representam o desejo como pecado e patologia, procurando interditá-lo conforme o imperativo moral da instituição eclesiástica. Contudo, a repressão do desejo convive paradoxalmente com a liberação dos corpos, que ficam à mostra para serem vistos, admirados e desejados. Nessa congregação religiosa, a libido é simultaneamente coibida e estimulada.

Palavras-chave: Igreja Evangélica Bola de Neve, sexualidade, desejo, corpo, pecado.

ABSTRACT

The present article is the result of a Master's thesis that studied the sexuality representations of single youths, members of the Bola de Neve (Snowball) Evangelical Church. The interest of this neo-pentecostal denomination in moralizing the sexual behavior of the faithful is evident. Its priests dedicate themselves to sexuality control and preach virginity and marriage, considered christian principles par excellence. The data analysis revealed that the faithful represent desire as sin and pathology, trying to interdict it according to the moral imperative of the ecclesiastical institution. However, desire repression paradoxically coexists with the liberation of bodies, which are displayed to be seen, admired and desired. In this religious congregation, libido is simultaneously restrained and stimulated.

Keywords: Bola de Neve Evangelical Church, sexuality, desire, body, sin.

Nosso interesse pelo tema da sexualidade no movimento pentecostal surgiu da constatação de que as igrejas evangélicas demonstram preocupação com a vida sexual dos fiéis, dedicando-se à regulamentação dos desejos e à domesticação dos prazeres. Em diferentes denominações evangélicas, a questão da sexualidade aparece nas conversas informais, no cotidiano das relações interpessoais, nos discursos eclesiásticos e nos códigos de conduta. A experiência sexual ocupa lugar de destaque nas propostas doutrinárias, nas reflexões teológicas e nas práticas litúrgicas do pentecostalismo. Desde a década de 80 do século XX, proliferam as publicações evangélicas que abordam o comportamento sexual de jovens solteiros e a intimidade dos cônjuges. Orientações são fornecidas ao público religioso que não sabe o que fazer com seus desejos. A sexualidade é alvo da moralização pentecostal.

Entretanto, o controle sexual não é uma característica peculiar ao protestantismo. O cristianismo de modo geral, desde suas origens, voltou sua atenção à sexualidade a fim de inibir sua expressão, já que a considerava sob uma perspectiva negativa. Santo Agostinho (1997) foi um dos maiores defensores da castidade, pois concebia a atividade sexual como algo incompatível com a vida espiritual e a moralidade da igreja. Em sua obra "A cidade de Deus" (2005), o ato sexual aparece como pecado da "carne", submetido à força da libido. Trata-se de um mal tão abominável que nem o matrimônio é capaz de absolvê-lo da condenação do clero cristão. A relação sexual só se justifica pela procriação, o que não a exime do estigma da "concupiscência".

(...) da leitura dos padres da Igreja fica-se com a impressão de que o pensamento cristão, desde suas origens, não soube o que fazer da sexualidade a não ser inibi-la, canalizando-a primeiro para a virgindade e depois para a procriação (Pierucci 1978:25).

O protestantismo manteve a desconfiança e a apreensão, que vigoravam na igreja católica, em relação às práticas sexuais. Por isso, desenvolveu dispositivos mais eficazes de controle da conduta sexual, que penetraram de fato nas relações íntimas, asseguraram a internalização do código moral e interferiram no comportamento afetivo dos fiéis (Weber 2004). As igrejas pentecostais herdaram da Reforma Protestante a preocupação com a vida privada de seus membros, assumindo a responsabilidade de moralizar e regulamentar a sexualidade de cada um deles. Embora a questão sexual seja uma tônica importante das práticas e discursos evangélicos, na área da Psicologia Social há poucos trabalhos acadêmicos que exploram essa temática. Em Ciências Sociais, o interesse dos pesquisadores pelo tema tem crescido significativamente, dando origem a novas pesquisas e publicações científicas que abordam o assunto. Autores como Machado (1996), Heilborn (1999), Fernandes (1998) e Pinezi (2005) têm contribuído para aprofundar a compreensão das concepções de sexualidade, corpo e família no contexto das instituições evangélicas. Porém, a despeito da crescente produção científica, esse campo ainda apresenta muitas lacunas e indagações, oferecendo múltiplas possibilidades de investigação.

O presente artigo analisa as representações da sexualidade de jovens solteiros, membros da Igreja Evangélica Bola de Neve. Realizamos um estudo dos sentidos e significados que os fiéis dessa instituição atribuem à sua vida sexual e afetiva. Concentramos nossa atenção nas teorias que esses jovens construíram sobre a sexualidade, combinando elementos do discurso oficial da organização religiosa, de suas histórias de vida e da trama ideológica em vigor na sociedade. Para compreender esse fenômeno, recorremos ao conceito de representação social que, segundo Moscovici (2004), é um sistema dinâmico de teorias, ideias, práticas e saberes articulados, construído coletivamente no espaço da vida cotidiana por meio de conversas informais, experiências diárias e interações sociais. Neste trabalho, a análise das representações sociais permite-nos entender como os fiéis da Igreja Bola de Neve pensam, sentem e concebem a questão da sexualidade.

Os instrumentos metodológicos que utilizamos para efetuar a coleta de dados foram observação participante e entrevistas semiestruturadas. Durante um ano frequentamos os cultos da igreja, participamos de reuniões privadas conhecidas pelo nome de "células", assistimos a cerimônias de batismo, conversamos informalmente com alguns membros e registramos as pregações, sobretudo aquelas que tratavam da temática da sexualidade e do corpo. Os sermões transcritos tornaram-se importantes documentos que complementaram nossa compreensão do funcionamento da igreja, das regras institucionais, dos códigos de conduta, das relações afetivas e da vida sexual dos cristãos. Dessa forma, examinamos também as pregações coletadas durante os cultos a fim de aprofundar a análise das entrevistas realizadas com os fiéis e de captar o conteúdo ideológico do discurso oficial da igreja.

Igreja Evangélica Bola de Neve

Fundada em 1999 pelo apóstolo e surfista Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, a Igreja Evangélica Bola de Neve em menos de uma década conquistou prestígio social e visibilidade pública, tornando-se um empreendimento religioso de expressividade, visitado a cada culto por inúmeros jovens, atraídos pela publicidade que anuncia a igreja como a grande novidade do mercado de bens simbólicos. Formado em Propaganda e Marketing e pós-graduado em Administração1, seu fundador e idealizador anteviu a necessidade de criar um produto diferenciado para atingir um público específico, acompanhando, desse modo, a tendência de especialização, diferenciação e segmentação das organizações evangélicas. No mercado saturado de ofertas pentecostais, o pastor Rina, como é conhecido, teve a ousadia e a perspicácia de escolher um segmento pouco prestigiado e explorado pelas igrejas evangélicas. A fim de cativar surfistas, skatistas, fisiculturistas, lutadores de jiu-jítsu e esportistas de modo geral, a Igreja Bola de Neve lançou um tipo de produto religioso que associa cuidado com a saúde, culto ao corpo, imagem descontraída e linguagem informal.

Os fiéis que dela fazem parte possuem visual despojado, usam tatuagens e piercings, vestem roupas descontraídas que valorizam os contornos do corpo, aderem a acessórios da moda, pertencem a diferentes "tribos" e apresentam os mais diversificados perfis estéticos. As meninas vestem calças justas, miniblusas e saias curtas, exibindo corpos bonitos e bronzeados. Alguns rapazes são musculosos e possuem corpos atléticos. Muitos usam roupas despojadas, bermudas folgadas, camisetas, bonés e chinelos. Eles praticam esportes radicais e participam de torneios esportivos promovidos pela própria igreja. A maioria dos eventos de evangelização – luau e festivais musicais –, assim como os campeonatos esportivos organizados pela Igreja Bola de Neve, ocorrem na praia, o que contribui para reforçar a imagem e a identidade do empreendimento.

O templo é decorado com artefatos praianos para reproduzir o ambiente litorâneo. Espalhadas pela igreja há barracas de praia, pranchas de surfe e fotos de surfistas fazendo manobras radicais. No altar, avista-se uma prancha longboard, que funciona como púlpito, o que se tornou a marca da congregação e favoreceu sua divulgação no mercado da fé. A imagem da nova organização evangélica, que agrega esporte, corpo e religião, teve um efeito publicitário impressionante, garantindo a adesão de jovens, a ampliação do número de fiéis e seu consequente crescimento. O nome da igreja revela e anuncia as pretensões de seu fundador: crescer de forma progressiva e ininterrupta como uma bola de neve. Seu objetivo tem sido alcançado com êxito. Em três anos, entre 2000 e 2003, a igreja cresceu 1100%2, passando de 250 para três mil membros em todo o país. Também é possível constatar sua expansão pelo aumento do número de templos espalhados pelo território nacional e concentrados nas cidades litorâneas. Atualmente, existem setenta e seis filiais dessa congregação, dentre as quais duas estão sediadas em outros países – Peru e Austrália. Entre os anos de 20063 e 2008, o número de filiais teve um crescimento de 171%.

O sucesso da igreja se deve à identificação do jovem com sua imagem, à proximidade dos pastores, à informalidade dos cultos e à linguagem descontraída. Sua identidade, constituída pela negação de certos tradicionalismos, pela ruptura com rituais religiosos convencionais, pelo culto ao corpo perfeito, pela preocupação com a saúde e pela preconização da juventude, atrai o público jovem, que se recusa a frequentar igrejas que lhe impõem como regra abandonar sua vida para dedicar-se à devoção religiosa. Com o intuito de recrutar novos clientes, os pastores à primeira vista procuram "vender" a imagem de liberalidade e divulgar a ideia de que se opõem aos dogmas religiosos, o que na prática não se confirma. De fato, a igreja não oferece restrição às vestimentas, às tatuagens, aos piercings, aos esportes radicais, em suma, à aparência do crente. Contudo, empenha-se em coibir o consumo de bebidas alcoólicas, o uso de cigarros e a frequência a bares e boates, além de repudiar o homossexualismo, o sexo pré-nupcial e as relações extraconjugais, preconizando a virgindade e o casamento monogâmico e heterossexual. Embora a congregação pareça liberal e flexível, no cotidiano das relações institucionais ela utiliza vários mecanismos de censura e resgata códigos tradicionais de controle da sexualidade.

Sexualidade na igreja

Os dados coletados nos depoimentos permitiram-nos constatar que os fiéis também procuram divulgar uma imagem positiva da Igreja Bola de Neve, associando-a à descontração, jovialidade e espontaneidade, com o propósito de diferenciá-la das denominações do pentecostalismo clássico, tão estigmatizadas na sociedade contemporânea. Seus membros rejeitam o estigma e o rótulo do jovem da igreja pentecostal, considerado ultrapassado e anacrônico. Eles renunciam à aparência estereotipada do evangélico, exibem nova imagem estética e novos hábitos comportamentais, buscando desse modo assemelhar-se àqueles que não estão vinculados a nenhuma congregação evangélica.

Como observou Mariano (1999) em suas incursões pelas igrejas neopentecostais, os novos fiéis pretendem romper com o perfil padronizado do crente tradicional. Eles estão em busca de novos estilos de vida e novas aparências, que os distanciem do modelo estético das denominações pentecostais. Os cristãos da Igreja Bola de Neve reproduzem os padrões de beleza, o culto ao corpo perfeito e a ideologia da eterna juventude em vigor na sociedade contemporânea. Eles se mostram liberais e modernos para demarcar a distinção entre sua igreja e as demais denominações evangélicas, apresentando-a como uma verdadeira inovação no mercado de bens e serviços religiosos.

Contudo, à imagem de igreja espontânea e pouco tradicional, opõe-se a rigidez dos códigos morais e das regras de conduta sexual. A igreja assume uma postura conservadora quando o assunto é sexualidade. O discurso eclesiástico que normatiza e regula a vida sexual e afetiva dos fiéis é transparente, direto e assertivo. O sistema de regulamentação da atividade sexual encontra-se claramente definido e é transmitido ao público jovem através de uma linguagem informal e divertida, porém incisiva. A igreja demonstra demasiado interesse pelo comportamento sexual e ritualiza o controle da sexualidade, colocando-a no centro da sua atenção.

Eu acho legal que o Rina prega, apesar de ser uma igreja jovem e neopentecostal, que eles dizem que é mais liberal, mas na real não é, ela só não tem aquelas doutrinas assépticas... É o negócio que ele prega a respeito do casamento. Ele realmente ensina os jovens, da idade que for – de quinze a trinta anos – que a vontade de Deus é que você se case, não é que você fique no mundo pulando de galho em galho. Aí, namora cinco anos com um, mora junto dois anos com outro. E o Rina deixa isso bem claro que não é o que Deus tem pra gente. E para o jovem, eu acho isso muito importante porque a gente cresce com valores totalmente carnais, sexuais e de prazer que na real nem são tão prazerosos assim (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

Depois que eu entrei no Bola, eu comecei a ter mais convicção a respeito de vida cristã. No Bola, foi onde eu aprendi que pra você receber realmente as bênçãos que Deus tem pra tua vida e estar na presença de Deus, você precisa se despir das coisas do mundo, abdicar mesmo da carne, buscar e ficar em santidade mesmo, isso são coisas que eu não aprendi nas outras igrejas, esse negócio de sexo, de dinheiro, de vínculo (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

Alguns dos sujeitos entrevistados afirmam que só compreenderam a necessidade e a importância de dominar o desejo quando ingressaram na Igreja Bola de Neve. A postura reguladora da igreja é elogiada e aprovada por parte dos jovens, que a consideram demonstração do cuidado institucional com a vida afetiva e sexual dos fiéis. O discurso firme que regulamenta a sexualidade aparece como indício da seriedade eclesiástica. Os jovens alegam que a Igreja Bola de Neve orienta a vida sexual dos cristãos de forma mais precisa e rigorosa do que as congregações evangélicas conhecidas por sua tradição e austeridade. Desse modo, o seu mérito está na firmeza e seriedade com que disciplina a conduta dos seus membros.

Enquanto umas igrejas ficam muito recatadas, com medo de falar, com medo da repercussão, aqui não, aqui é diferente, aqui a gente fala mesmo. O que é errado, o que a gente considera errado, a gente joga na cara e fala assim: "Isso é errado". Não fica com medo do que possam vir a pensar. Aqui eles falam desse negócio de sexualidade, eles falam tudo. Conversam normalmente, porque o público foco é o jovem. Eu acho que o Bola, como ele é direto, ele consegue explicar pras pessoas. Não é que ele obriga. Ele mostra o errado e o certo. (...) O pastor fala na cara. É na cara (Lucas, 16 anos, 2º grau incompleto).

De acordo com os sujeitos entrevistados, o controle da sexualidade parece uma necessidade urgente numa instituição com o perfil da Igreja Bola de Neve. Como se trata de uma igreja formada predominantemente por jovens, é preciso apresentar regras e limites claros, destinados a dirigir e conter a libido. O rigor em relação à moralidade sexual é a estratégia utilizada pela igreja para domesticar adolescentes e jovens, cujos apetites sexuais são facilmente estimulados e difíceis de serem inibidos.

Eu vejo que no Bola, como é um pessoal muito jovem, eles têm regras mais rígidas até que em outras igrejas. Então, apesar de ser um público jovem, um pessoal mais assim, eles seguem as doutrinas, têm as regras (Rebeca, 30 anos, ensino superior completo).

Nós estamos numa igreja onde tem muitos jovens. E você sabe que, no mundo, os jovens ficam. Agora, você imagina se na igreja o Rina não tivesse essa postura de ensinar e orientar, o que aconteceria? Ia ficar um oba-oba que ninguém ia segurar, porque no Bola de Neve as mulheres são bonitas e os homens são bonitos. Então, é uma galera bonita. Se ele não tivesse esse direcionamento de Deus... Eu acho isso muito legal, acho que é uma visão muito legal porque senão ia ser um oba-oba daqueles que não ia ter fim (Ester, 30 anos, 2º grau completo).

O controle, portanto, não assume um caráter negativo. Aparece como uma forma de cuidado e como possibilidade de pôr ordem às experiências afetivas. De acordo com alguns depoimentos, as normas da igreja não são obrigatórias. Os jovens passam a segui-las espontaneamente, sem sofrer imposição. Com o tempo, eles terminam assimilando-as e sendo orientados por elas. Contudo, a análise dos dados e a observação do cotidiano revelaram-nos algo distinto. Na realidade, ocorre um longo e contínuo processo de internalização da censura, que parece voluntário e natural. A obediência imposta e exigida é tida como comportamento deliberado. Como salientou Weber (2004), as técnicas de interiorização da interdição foram tão aprimoradas pelo protestantismo e ficaram tão refinadas que reforçam o poder e a eficácia do imperativo moral.

O pastor não impõe nada. O Espírito Santo é que vai ministrando na vida da gente. Nada é proibido. Que nem nós dizemos: "Tudo é lícito, mas nem tudo lhe convém". Eles vão mostrando o caminho e você vai seguindo aquele que você acha. Não vão te excluir de nada se você não segue. Mas você mesmo fazendo aquelas coisas erradas que estão contra aquilo, você vai se sentindo mal e não vai querendo fazer. Nada é imposto (Rebeca, 30 anos, ensino superior completo).

Embora Rebeca assegure que a desobediência às regras institucionais não gera nenhum tipo de exclusão, o procedimento da igreja em alguns casos mostra-se contrário. Marcos relatou-nos que, apesar de ter concluído o curso de líder de células, foi impedido pelo pastor Rinaldo Pereira de exercer essa função, pois teve um breve romance com uma jovem cristã, conduta reprovada pela igreja. O rapaz foi punido, sendo privado temporariamente de ocupar um novo cargo na hierarquia eclesiástica. A punição reforçou o processo de internalização do controle externo e intensificou a autocensura.

Na hora rolou, a gente ficou e depois eu nunca mais a vi. A gente parou de se falar. Aí, passou um tempo e chegou até a boca da Sara, que é a líder da minha célula. Eu estava com medo de falar e ela fazer assim: "Corta. Tira ele do curso de líder". Eu fiquei meio com medo, mas tem uma palavra que até fala que não há nada que está encoberto que não há de ser revelado. Ela veio falar comigo e eu disse: "Olha, Sara, é verdade. Foi um momento de fraqueza". Ela veio me perguntar: "Aconteceu isso mesmo?". Eu falei: "Aconteceu". Ela disse: "Então, a gente vai falar com o pastor". Eu fui falar com o pastor, depois de uns três meses e ele disse: "Por essa atitude sua, você mostrou que ainda não está preparado. Agora, você vai aguardar e, pelos seus frutos, eu vou te conhecer". Na hora, é uma coisa que dói muito porque é um sonho que você tem, é uma coisa que você quer, você quer ministrar, você quer pregar. E acabou não acontecendo ainda (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Como se pode verificar, a Igreja Bola de Neve caracteriza-se pela tensão entre a tradição e a novidade, a manutenção e a inovação. A linguagem inovadora veicula a mensagem convencional. Os sistemas de comunicação modernos anunciam códigos de conduta tradicionais, há muito conhecidos dos ambientes eclesiásticos. A flexibilidade das formas discursivas opõe-se à rigidez das normais sexuais. Segundo Jardilino (1997), apesar das mudanças na configuração da linguagem, o conteúdo moral e dogmático das igrejas neopentecostais permanece praticamente inalterado: "Isso pode ser um `remendo novo em roupa velha', pois, no que pese sua adequação às técnicas de comunicação de massa, o conteúdo central dessas crenças ainda parece domesticado pelos dogmas da tradição religiosa" (Jardilino 1997:190).

Desejo e "carne": representações dos fiéis

Os fiéis apresentam em seus discursos representações da sexualidade, produzidas nas relações que ocorrem cotidianamente na igreja. Ao se converterem, eles interiorizam gradativamente os sistemas de significação transmitidos pela liderança eclesiástica, assumindo um novo modo de conceber e experimentar a sexualidade. Ao longo da interiorização, as representações sexuais – subjacentes ao discurso oficial e à moral da igreja – tornam-se familiares e se consolidam de tal maneira que parecem naturais. O processo de naturalização transforma construções humanas em determinações divinas, de sorte que as normas institucionais passam a ser consideradas fruto de revelação sobrenatural, gerando, assim, comportamentos de obediência e resignação. Esse processo, no entanto, não garante a absoluta correspondência entre os sistemas de representação do sujeito, seus códigos morais e suas ações diárias. Se por um lado as prescrições sexuais, uma vez naturalizadas, são facilmente interiorizadas e aceitas, por outro, são difíceis de serem seguidas. Apesar de assimilarem os códigos de conduta e as representações sexuais da igreja, os jovens muitas vezes não conseguem adotá-los como parâmetro de orientação de suas práticas cotidianas. Como apontam os depoimentos coletados, a representação da sexualidade está relacionada à ideia de pecado. O desejo, mesmo quando se manifesta sutilmente nos pensamentos e sonhos, é tratado como pecado de natureza sexual.

A gente evita ao máximo pecar. O certo é não pecar. Mas a gente peca todo dia no falar ou em pensamento. Muitas das vezes você está dormindo e você começa a ter um sonho, por exemplo. Você está lá no maior ato sexual. Às vezes quando acontece isso comigo, eu acordo à noite e já repreendo, porque eu sei que não é coisa de Deus (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

É necessário precaver-se de tudo que é obsceno. O cristão precisa, a todo instante, estar atento a si. Cada pensamento, palavra e conduta devem ser observados com desconfiança. O desejo pode esconder-se atrás do mais singelo e ingênuo gesto. Por isso, é preciso vigiar-se constantemente para evitar sua manifestação. A técnica da vigilância de si, proposta pela igreja, é adotada pelos jovens para afastar o perigo que as paixões representam. Prescreve-se aos fiéis perscrutar cada ideia que surge, cada sentimento que aparece, cada movimento simples do corpo. Tudo deve ser examinado com atenção a fim de captar o desejo, que pode se manifestar discretamente. Segundo Foucault (2001), a observação de si e a decifração do desejo são antigas prescrições cristãs por meio das quais se busca banir a sexualidade dos pensamentos, imaginações, palavras e ações. Na Igreja Bola de Neve, a tese foucaultiana se confirma: os cristãos devem esquadrinhar incessantemente as vontades do coração e os anseios da "carne", a fim de conhecê-los e eliminá-los. "Somente uma autovigilância contínua pode assegurar ao fiel que ele não está sendo vítima de sua própria inclinação pecaminosa ou das artimanhas do diabo" (Mariano 1999:191).

Os pensamentos e desejos se fazem presentes a partir do momento que você dá oportunidade. Porque constantemente você tem que estar vigiando. A palavra de Deus fala assim: "Vigiai e orai". Você tem que estar o tempo todo vigiando, você tem que estar orando, você tem que estar alerta. Porque na Bíblia está escrito: "Quem está de pé, cuide pra que não caia" (Ester, 30 anos, 2º grau completo).

Além da vigilância contínua, os jovens adotam com frequência estratégias de controle, como a prática de rituais espirituais, para combater o desejo. A oração é o ritual mais comumente praticado, pois corresponde a um sistema de censura da sexualidade, institucionalmente elaborado e internalizado por cada cristão. Outras tecnologias de controle do desejo, como a leitura da Bíblia e o jejum, também são adotadas. Não apenas os ritos religiosos servem para dominar a vida sexual dos fiéis. Os esportes, tão estimulados pela igreja, são praticados muitas vezes para administrar as vontades da "carne".

É dificílimo se segurar, mas a gente vai orando, vai pedindo ajuda pra Deus, vai muito à igreja, no mínimo duas vezes por semana e mais uma vez na célula de quarta-feira. Além disso, eu estudo bastante a Bíblia. Os estudos me seguram bastante, eu me ocupo muito com a palavra de Deus. Pratico esportes também. Eu gosto de surfar e ando de skate. Então, eu vou administrando... (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

Portanto, recomenda-se que cada cristão domine seus desejos mais ocultos por meio de rituais religiosos. Os fiéis se preparam espiritualmente para enfrentar as paixões mais ardentes, como se fossem participar de uma guerra contra seu principal inimigo. Eles parecem travar um combate cotidiano contra um adversário íntimo, há muito conhecido, porém imprevisível e astuto, que surge de forma sorrateira nos gestos mais simples, nos olhares mais ingênuos e nas ocasiões mais inesperadas. Trata-se, pois, de uma relação de embate com as próprias necessidades sexuais. Prescreve-se aos jovens lutar permanentemente contra si mesmos. Nessa batalha, são utilizados expedientes religiosos para conter a "carne", considerada a principal e mais próxima adversária do cristão, que o acompanha em todas as circunstâncias. Conforme coloca Foucault (1999), a pastoral da "carne" desenvolveu e aperfeiçoou tecnologias de si que possibilitaram ao indivíduo examinar-se a fim de decifrar os desejos mais sutis e enfrentar a "carne". Segundo o autor: "Uma dupla evolução tende a fazer da carne a origem de todos os pecados e a deslocar o momento do ato em si para a inquietação do desejo, tão difícil de perceber e formular, pois que é um mal que atinge todo homem e sob as mais secretas formas" (Foucault 1999:23).

Eu acho que a maior luta da gente é contra a carne, da carne contra o espírito, é constante. Isso é direto. Você lutando pela santidade, por tudo. É uma luta diária, constante (Rebeca, 30 anos, ensino superior completo).

As representações da "carne" estão vinculadas à ideia de pecado e doença. Por essa razão, acredita-se que é preciso submetê-la a uma espécie de tratamento espiritual. A igreja propõe que a sexualidade polimorfa, as perversões sexuais e o sexo ilícito sejam tratados para que o indivíduo alcance a cura. Os impulsos sexuais que não estão sob o controle da instituição clerical são considerados enfermidades que devem ser submetidas a procedimentos religiosos. Tecnologias de cura, como rituais de oração, jejum e leitura bíblica, são postas à disposição do fiel. O tratamento e a cura implicam em direcionar o desejo e canalizá-lo para outros fins, especialmente religiosos. De acordo com Foucault (1999), na sociedade burguesa dos séculos XIX e XX, destaca-se o processo de patologização e medicalização da sexualidade. O domínio da sexualidade, que até então era exclusivo da pastoral cristã, passa para o campo da medicina. Além de pecado, o sexo se torna patologia física e psíquica. No caso da Igreja Bola de Neve, o discurso médico funde-se ao discurso religioso. Os sujeitos entrevistados tratam o desejo sexual como pecado e doença. Ideias higienistas são muito recorrentes4. Almeja-se a higienização e regulação do desejo.

Eu sempre tive costume de ter uma pessoa junto comigo, de ter uma pessoa ali do meu lado, dormir, acordar... Então, pra mim é difícil. Isso eu preciso de tratamento. Eu penso de vez em quando nisso, mas eu consigo me conter. Eu oro, me controlo, Deus me ajuda e me liberta, a cada dia mais. Ele vai me curando dessas coisas (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

Eu aprendi. Isso foi difícil pra mim, mas eu aprendi, já sei como me portar, sei o que eu posso fazer e o que eu não posso fazer, sei quando fazer e quando não fazer. Essa parte de desejo sexual foi difícil, mas foi tratada (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

Há na igreja um ritual formal de tratamento e cura dos desejos, denominado "reunião individual de cura e libertação". Nele, o indivíduo é convidado a renunciar ao comportamento sexual de outrora e aos pecados de toda natureza cometidos no passado. Antes de participar da cerimônia, o cristão deve preencher uma ficha, na qual explicita tudo que fez anteriormente. Tudo deve ser dito e mostrado diante da autoridade religiosa. Nada deve ser escondido. Os pecados sexuais devem ser confessados para que o fiel se livre deles e seja de fato "curado". O tratamento consiste na exposição de si e na confissão dos próprios erros para o recebimento da "cura", que nada mais é do que privar a libido de sua livre manifestação.

Eu vou falar da reunião de cura e libertação. Tem pactos que você faz inconscientemente. Você precisa se libertar dessas coisas depois. Na reunião de cura e libertação, você renuncia essas coisas. Imagina uma coisa que está há anos na minha família, há décadas, de repente, você vai e coloca isso pra fora. Não é fácil (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

O pastor vai falando: "Olha, na sua lista está escrito que você teve um envolvimento com alguém...". Ele vai com a sua lista na mão. [Que lista é essa?] Antes de conversar com o pastor, você preenche essa lista. Eu já preenchi. Nessa lista, tem tudo que você já fez. Se você já acendeu vela, se você já fez catequismo... Ele pergunta, por exemplo, o envolvimento que você teve com religião e espiritismo. Aí, tem lá: quimbanda, umbanda, candomblé... Você tem que assinalar as alternativas. Você preenche essa lista antes de falar com o pastor. Na reunião, o pastor vai na lista e fala sobre o que você fez.(...) Na lista, eu coloquei tudo que eu já fiz. Tudo em detalhes. Tudo. São várias perguntas. São quatro páginas, frente e verso. É um verdadeiro check-up (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

A prática da confissão é uma invenção do cristianismo medieval, que, de acordo com Foucault (2001), se propagou pela sociedade contemporânea. Ao cristão, é prescrito que extraia de si a verdade de sua sexualidade e a exponha. O protestantismo não mantém a exigência formal da confissão, não sendo, portanto, obrigatória a revelação da intimidade sexual ao pastor. Porém, comumente o fiel lhe confessa seus desejos ocultos para receber sua orientação. Essa prática tornou-se regra no meio pentecostal, firmando-se como importante dispositivo de controle da sexualidade. Confessa-se não apenas ao líder religioso, mas a si mesmo e ao outro o que há de mais íntimo. Confessa-se o que é difícil de reconhecer no âmbito da sexualidade. A igreja continua interessada em descobrir o que se passa no quarto do casal e nos bastidores da vida conjugal: "O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar e transformar em discurso" (Foucault 2001:230).

Além do exame contínuo da "carne" e da confissão das paixões, os jovens da Igreja Bola de Neve tentam promover uma espécie de espiritualização do desejo e dessexualização da relação amorosa para pôr limites à sexualidade. A espiritualização de si é um exercício constante que serve para reduzir a força do desejo e bani-lo do relacionamento cristão.

Na presença de Deus, o amor é muito mais verdadeiro que no mundo. No mundo é mais paixão, aquela coisa de pele. Quando você está na presença de Deus, é espiritual, é uma união que vai além do nosso entendimento (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

O desejo, porém, por mais que se tente reprimi-lo, é uma presença gritante. Sua força é incontestável. Os sujeitos parecem assustar-se com tamanha intensidade. O sistema de controle a que recorrem para dominar-se potencializa a sexualidade, os pensamentos eróticos e os desejos sexuais5.

Minha maior luta é contra essa sedução do mundo. Eu sinto. É muito forte, pelo menos em mim, a influência que tem. Às vezes, eu passo, uma mulher passa por mim, é um perfume diferente, é uma coisa que você vê que não é normal. Às vezes, a mulher está com uma roupa toda folgada, parece que está de calça de moletom e você sente aquela coisa. Dá vontade de você rolar em cima da mulher. Você fala: "Nossa!". Na hora vem o pensamento na cabeça, mas você não pode deixar ir adiante (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

É fogo. Você está na praia e você olha aquele monumento. Aí, num certo momento você olha e a pessoa demonstra, ela se abre pra você. Você fala: "Meu, e agora?". Na hora, vêm `n' pensamentos. Os pensamentos que vêm na hora, você fala: "Ah, meu. Vou pegar ela, vou sair de lado. Sei lá. Vou inventar alguma coisa e vou chegar lá". Mas aí você contém isso. Não é mais forte do que você (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Os sujeitos entrevistados muitas vezes não conseguem resistir à força do desejo e terminam em algumas ocasiões satisfazendo-o, apesar das rigorosas prescrições eclesiásticas6. Alguns jovens adotam em certas circunstâncias a prática do "ficar" para satisfazer momentaneamente os impulsos sexuais e, desse modo, reduzir sua intensidade. É uma forma paliativa de extravasar a energia sexual retida e disciplinar o desejo. Trata-se de um envolvimento pontual que não deve se tornar um compromisso sério, visto que tem como função suprir necessidades de ordem sexual. Na pesquisa realizada por Carvalho (1999), alguns jovens pentecostais apresentam o "ficar" como "uma alternativa às regras rígidas de conduta às quais estão submetidos" (:115).

Eu fiquei com o Tiago que era um ex-namorado meu que vai à igreja também. A gente ficou, mas foi pra suprir carência. Na verdade, era pra eu ter ficado sozinha. Eu acabei não conseguindo, mas ao mesmo tempo eu não dei muita continuidade. Foi uma coisa de momento, só pra suprir um vazio que estava naquela hora (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

Normalmente, logo após a realização do desejo, surge a culpa. O arrependimento e a culpa são os mais eficazes instrumentos de controle do desejo. As técnicas de culpabilização desenvolvidas pela igreja contribuem para disciplinar os anseios sexuais. A culpa transforma o prazer do ato sexual em desprazer.

Eu tive uma namoradinha que era da igreja e nós tivemos algumas vezes relação sexual. Mas chegou o momento que não tinha mais condições porque depois eu ficava muito arrependido. Era um prazer de quinze minutos, vinte minutos e um arrependimento de um dia inteiro. Então, é complicado, porque o prazer não é um prazer real. Eu aprendi. Isso foi difícil pra mim, mas eu aprendi (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

A dificuldade de conter o desejo aparece constantemente no discurso dos jovens que participaram da pesquisa. Não obstante o esforço que fazem para dominá-lo, ele permanece vivo e resistente ao controle. Segundo os fiéis, as regras da igreja mais difíceis de serem seguidas dizem respeito à sexualidade. Machado (1996) também observa nos relatos de mulheres pentecostais a dificuldade de assimilar e seguir normas contrárias às que estão em vigor na sociedade. De acordo com sua investigação, as prescrições anacrônicas e defasadas, que divergem das regras sociais, são normalmente infringidas.

A coisa mais difícil mesmo eu acho que é o negócio da sexualidade, porque está muito sujo o conceito. Até pela minha idade e pelo meio em que vivo, eu acho que o mais difícil é a sexualidade. É muito difícil mudar esse negócio (Lucas, 16 anos, 2º grau incompleto).

É difícil pra caramba segurar. Nossa! É maior sinistro mesmo. É dificílimo... (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

Os sujeitos entrevistados atribuem a dificuldade de controlar a sexualidade ao assédio e à sensualidade presentes no contexto social mais amplo. Eles afirmam que o desejo termina sendo despertado e revitalizado pelos jogos de sedução que ocorrem fora da igreja. Insinuam que a sensualidade provém da realidade externa, não fazendo parte do contexto da comunidade religiosa nem das relações que nela acontecem. Em seus discursos, fica clara a ideia de que na Bola de Neve não há espaço para o desejo e a sedução. Entretanto, a observação do cotidiano revela o oposto7. Os "corpos da igreja" não se escondem atrás do pudor. Eles se exibem e seduzem. Estão à mostra e são vistos com admiração. Não passam despercebidos. Seus movimentos são acompanhados por olhares atentos. Corpos fortes, bonitos e bronzeados são valorizados. Eles falam e se comunicam. Embora apareçam pouco nos discursos, estão muito presentes nos contatos que ocorrem na igreja. A sensualidade, apesar de negada, está viva no ambiente eclesiástico e emana dos belos corpos que nele circulam.

Na igreja é diferente, bem diferente. Nossa! Totalmente diferente. A mulher não olha com aquela cobiça. Ela não olha e dá aquela mordidinha no lábio, entendeu? (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Outro dia eu fiquei super constrangido no meu serviço. Tinha uma roda de seis meninas e elas estavam olhando pra mim e comentando. Eu perguntei: "O que é que vocês estão falando?". Uma delas disse: "A gente está falando que você é maior gostoso". Eu fiquei vermelho na hora. Aí, elas disseram: "É verdade. Você é gostoso". Na hora, querendo ou não, você enche o peito e fala: "Nossa! Será que eu sou mesmo?". Aí, o diabo fala: "Está vendo, seu trouxão. Aqui você tem um monte. E na igreja? Ninguém nem te olha". Na igreja, as pessoas olham, mas... Eu acho que rola isso com todo mundo. Você fica com receio de conhecer, se relacionar com as pessoas, justamente por isso, de você chegar e confundir as coisas. Então, você fica com um pouco de medo (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Pré-namoro e namoro

O pré-namoro é o momento da espera resignada. É um período de ansiedade e expectativa, pois o jovem deve aguardar pacientemente o futuro namorado e cônjuge. Acredita-se que Deus é o responsável pela escolha do parceiro afetivo e sexual. Os sujeitos ressaltam a dificuldade de esperar pela ação divina, mas afirmam que a espera garante o sucesso e a durabilidade da futura relação.

O difícil de tudo é esperar. Deus fala assim: "Espere em mim". Ele fala que quem espera tem a resposta. Então, eu não tenho pressa. Mas isso é difícil. Esperar é muito difícil. Você fica querendo respirar e você tem que esperar (Lucas, 16 anos, 2º grau incompleto).

Tem que esperar. Não adianta. Você tem que esperar a vontade de Deus. Tem que esperar, porque Ele tem uma promessa. Então, Ele vai cumprir. A promessa de Deus é que Ele vai dar uma família, vai dar um esposo, vai dar filhos abençoados. Então, é nessa promessa que eu tenho me firmado, que eu tenho esperado e tenho confiado no Deus que eu creio. Ele já me deu tantas coisas, por que não um marido? Para Ele, é tão simples dar um marido. Eu sei que Ele vai me dar na hora certa (Ester, 30 anos, 2º grau completo).

O período de espera, muitas vezes longo, aumenta as expectativas e angústias em relação ao futuro parceiro. Alguns jovens estão sozinhos há vários anos, aguardando ansiosamente o surgimento do companheiro "prometido". Os cristãos, no pré-namoro, parecem ávidos por começar a se relacionar, mas insistem em continuar esperando pelo cumprimento da "promessa divina". O desejo de iniciar um relacionamento sério parece crescer em virtude da espera cujo fim é imprevisível.

Eu preciso saber lidar com as minhas ansiedades. A minha maior ansiedade é uma esposa. É difícil, meu. Eu quero estar com uma pessoa, eu quero me entregar, eu quero suprir essa pessoa. E eu tô nessa, esperando. Essa eu acho que é a minha maior ansiedade... (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Eu conheço um cara que está há sete anos sem ficar com uma mulher, esperando, entendeu? Não é fácil. Isso é o que mais pega. É o fato de você querer estar com alguém, você vê um monte de gente bonita, mas Deus não te disse: "É ela. Chega lá e fala". É isso que eu estou esperando (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

O jovem cristão persiste em enfrentar as dificuldades da espera, pois está certo de que a relação, quando "arranjada" por Deus, é bem-sucedida. Acredita que se permanecer sozinho e aguardar o companheiro, será recompensado com uma união perfeita. Caso suporte o sofrimento da solidão e a angústia de não poder escolher o parceiro, será retribuído por Deus com uma relação firme e duradoura. Silva (2002) afirma que o sacrifício do desejo presente no protestantismo visa à recompensa. É uma espécie de troca. O crente prorroga a satisfação da libido e a realização de suas necessidades afetivas em troca de uma grande retribuição.

Não existe recompensa sem sacrifício. Eu sei muito bem disso, porque eu sempre busquei a recompensa e nunca quis o sacrifício. Agora, eu me sacrifico, porque é difícil... Era muito mais fácil eu ser do jeito que eu era. Eu aprontava e não estava nem aí pra ninguém. Agora, não (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

A gente quer ter alguém sempre, mas aí pensa: "Você quer ter alguém nos próximos três anos, um relacionamento mundano que provavelmente vai acabar em divórcio, porque é muito difícil um relacionamento do mundo não acabar em separação hoje em dia, praticamente impossível, ou você prefere ficar, sei lá, três anos sozinha e esperar uma pessoa que Deus tem pra você e passar o resto da vida com essa pessoa, porque se Deus guardou pra você, é para o resto da vida?". Pode ter crise, pode ter o que for. Se Deus preparou, Ele restaura, Ele transforma, Ele faz o que tem que fazer. É teu, sabe? (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

Para os sujeitos entrevistados, a "escolha divina" é a segurança de que a união conjugal será forte e indissolúvel, pouco sujeita a instabilidades. É o selo de garantia da durabilidade do relacionamento. O jovem, portanto, abdica do direito de escolher livremente o parceiro afetivo e sexual, pois teme fazer a opção errada. Acredita que se renunciar à liberdade de escolha a que tem direito, e aceitar de forma resignada as "decisões divinas" validadas pela instituição eclesiástica, terá a garantia de que a relação não será abalada. O livre-arbítrio do sujeito é visto como algo perigoso, pois sofre a influência dos desejos eróticos. A libido interfere na decisão afetiva do cristão, o que é repudiado pela igreja. Por isso, determina-se que o sujeito não escolha o futuro parceiro. Divulga-se a ideia de que a escolha livre do indivíduo é equivocada e confusa, podendo resultar em relações frágeis e gerar frustrações amorosas. O medo do fracasso leva o cristão a desistir de escolher, delegando a Deus a função de designar com quem irá se casar e se relacionar "pelo resto da vida".

A partir do momento que você aceita Jesus, você entrega seu livre-arbítrio a Ele. Deus o deu ao homem, mas a partir do momento que você entrega sua vida a Deus, então que seja feita a vontade dele, não a minha. Eu entreguei e aceitei essa condição, porque os planos que Deus tem pra minha vida são infinitamente maiores do que eu penso, do que eu quero. (...) É difícil estar solteiro, justamente por aquele negócio de você querer estar com uma pessoa. E como você já deixou sua vontade na mão de Deus, então você espera a vontade de Deus. A hora que Deus quiser te dar a pessoa, Ele vai dar. Isso é o difícil! É difícil não estar na tua mão a tua decisão. O poder de decisão não está na tua mão, está na mão de Deus (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Os depoimentos descrevem o pré-namoro como um período de sofrimento e angústia, difícil de ser suportado. O namoro é aguardado com expectativa e ansiedade. Contudo, embora seja desejado, é também temido. Percebe-se que o jovem, apesar de almejá-lo, frequentemente o adia. O pré-namoro termina se estendendo por mais tempo, provavelmente porque nessa fase a sexualidade do cristão está menos sujeita à regulamentação sistemática da igreja. Como nesse período os sujeitos não possuem um parceiro fixo nem um objeto de desejo definido, a relação sexual não representa uma ameaça e, por essa razão, o sistema de controle institucional é menos rígido. O desejo, portanto, encontra-se mais livre, visto que representa menos risco. Ainda que os jovens sofram pela ausência de um parceiro afetivo, sentem-se menos cerceados na expressão de sua sexualidade. No pré-namoro, são inúmeras as possibilidades de contato e encontro, os fiéis se movimentam durante o culto a fim de exibir a própria imagem, trocam olhares sensuais, conversam animadamente e desfilam seus corpos exuberantes pela igreja para serem desejados. Já no namoro, a normatização da conduta sexual e afetiva é excessiva, o que pode afugentar o cristão. Embora seja desejado, esse tipo de relacionamento é postergado.

A igreja impõe um longo processo de ritualização do namoro, que consiste em uma série de procedimentos institucionalizados que o regulamentam. Antes de começar a namorar, os cristãos devem seguir um demorado ritual. A eles é prescrito que façam orações para receber a autorização divina. O pastor deve ser consultado. Sua "permissão" e bênção oficializam o compromisso. Ao final desse longo processo, que pode durar meses, o casal inicia o relacionamento sob o peso do consentimento eclesiástico. Essa extensa cerimônia corresponde a um sistema de controle criado pela igreja para institucionalizar o namoro e submetê-lo à tutela da cúpula eclesiástica.

No Bola, além de você orar com a pessoa um tempo, você depois tem que ir lá pedir para o pastor abençoar a relação. Então, pelo que a gente é orientado na igreja, a gente deve estar orando com a pessoa ou orando pela pessoa, se a pessoa não sabe. E com certeza, Deus vai responder. O primeiro passo é esse. Se Deus confirmou com os dois, você vai lá e conversa com o pastor pra ele estar abençoando e orando. Eu acho que tem que existir isso porque senão fica um namorando o outro de mês em mês e não é essa a vontade de Deus (Ester, 30 anos, 2º grau completo).

Esse conjunto de procedimentos torna o namoro um compromisso sério e impede o cristão de namorar várias vezes. O namoro passa a ser uma solenidade. Talvez, por essa razão, os relacionamentos afetivos demorem a ocorrer na igreja. De acordo com Carvalho (1999), o jovem pentecostal sofre tanta pressão institucional para ter cautela com o namoro que frequentemente esse tipo de relação é adiado. No caso da Igreja Bola de Neve, a ritualização do relacionamento amoroso dificulta o início do namoro entre os jovens.

Na igreja, as pessoas levam mais a sério esse negócio do namoro. Então, elas pensam duas vezes antes de se aproximar, três vezes antes de começar a namorar e cinco vezes antes de casar. É uma coisa muito mais preparada. Não é aquela coisa: "Ah! Te amo. Estamos juntos há três dias e vamos nos casar" (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

A institucionalização do namoro é tão forte que assusta o jovem cristão. Paradoxalmente, o namoro suscita expectativa, desejo, apreensão e insegurança. Os fiéis o desejam avidamente, porém o temem. Sentem-se inseguros para iniciar uma relação que receberá a marca da instituição eclesiástica. Sentem-se apreensivos para começar um relacionamento sério e formal, do qual não se deve desistir, dado que o ritual religioso o torna público. Parece difícil iniciar uma relação que deve ser de imediato um compromisso legitimado publicamente.

De certa forma, as meninas da igreja têm insegurança em se relacionar, com medo de não dar certo. Porque é difícil na igreja. Por exemplo, você vai, namora, passa por todo aquele processo que eu te falei. Você chega ao púlpito, faz aquela declaração de noivado. Aí, depois você vê no outro dia a pessoa sem aliança. E aí? É difícil depois pra pessoa aprender a lidar com a situação. Então, eu vejo assim: tem que ser na vontade de Deus, tem que ser quando ambos tiverem preparados, porque senão não vai dar certo (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

A ritualização do namoro é uma técnica institucional que visa a proteger a relação amorosa do desejo e a controlar a sexualidade, mas acaba por potencializá-la. A igreja não cansa de interferir no relacionamento dos fiéis, prescrevendo-lhes a restrição do contato físico para evitar a estimulação sexual e garantir a preservação da virgindade, tão fortemente valorizada.

Eu já tive algumas namoradas dentro da igreja. É totalmente diferente namoro de evangélico. Pra você dar um beijo numa pessoa, é uma coisa muito demorada, que tem que ser analisada com muita calma. Porque são compromissos sérios. Eu já tive duas namoradas dentro da igreja, mas nós não tivemos relação sexual. Houve o mínimo contato possível, de dar a mão, de carinho, uma coisa bem... E é isso que eu quero (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

A igreja recomenda que os namoros tenham curta duração, pois podem criar oportunidades para a realização do desejo. A fim de evitar transgressões de natureza sexual, os jovens devem logo casar-se. O namoro é um breve período de conhecimento do futuro cônjuge, uma fase curta de preparação para o casamento. Essa relação, portanto, só existe em função do matrimônio. É uma etapa que antecede o casamento, e só assim é concebida pela igreja. Alguns a consideram desnecessária. Rebeca revelou que o pastor Enzo lhe aconselhou casar com um rapaz, sem precisar namorá-lo. Conforme sua orientação, o namoro não é obrigatório nem tão pouco necessário.

Geralmente, os namoros na igreja são bem curtos. A pessoa namora, noiva e já casa. É pra não cair (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

Na verdade, o namoro na igreja não tem propósito se ele não tiver como finalidade o casamento. Isso é importante porque por ter esse compromisso do casamento, o cara não vai ficar namorando a menina – aquela que ele não está a fim – por cinco anos, sabendo que ele vai ter que casar com a menina depois. Se você está na igreja e você está buscando o propósito de Deus e você está namorando alguém, consequentemente você sabe que isso vai vir a se tornar um casamento (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

Como se pode perceber, a igreja controla a vida afetiva e sexual dos fiéis, preconiza o modelo de relacionamento cristão e estigmatiza os desejos sexuais. Ademais, "penetra" na intimidade dos jovens para moralizá-la e se comporta como guardiã dos bons costumes, como se fosse portadora de uma "procuração divina". Nas declarações dos sujeitos, fica evidente a interferência direta da estrutura eclesiástica em sua sexualidade. Aqueles que não conseguem seguir as prescrições sexuais e os rituais de namoro estabelecidos pela instituição religiosa são advertidos. No caso específico de Rebeca, as determinações e diretrizes da hierarquia clerical para sua vida amorosa foram acatadas. A jovem cristã interessou-se por um rapaz da igreja que já tinha se casado, estava separado, porém ainda não havia se divorciado judicialmente. A orientação que recebeu do pastor foi evitar namorá-lo. O namoro, portanto, não lhes foi permitido. Recomendou-se a oração como única forma possível de relação. Eles estão impedidos de namorar até a justiça liberar o divórcio.

A gente foi conversar com o pastor e o pastor disse que como ele é separado judicialmente, mas não é divorciado, a gente não poderia namorar enquanto o divórcio dele não saísse. A gente poderia orar e poderia estar juntos, mas não namorar. A gente está assim desde setembro e não depende da gente, depende da justiça. Eu respeito isso, mas essa parte está difícil, porque a gente queria estar namorando, queria estar junto. Mas não pode. A gente tenta compreender, porque na verdade ele ainda é casado. Por isso, a gente só pode orar. Ele é meu orando, não meu namorado. É meu namorando, não meu namorado. Porque a gente só está orando (Rebeca, 30 anos, ensino superior completo).

Normalmente, as advertências e repreensões dos pastores vêm seguidas de promessas que, em certo sentido, se mostram idealizadas e ilusórias. As ilusões anunciadas no ambiente religioso estão relacionadas à promessa de uma união conjugal perfeita, eterna e plenamente satisfatória. O escasso conhecimento e a pouca experiência dos jovens em relação ao namoro terminam alimentando sonhos e expectativas. A experiência parece reduzir de algum modo as fantasias que se têm acerca da vida afetiva. Todavia, os ideais de perfeição do relacionamento não são destruídos. A igreja busca reforçá-los, dado que representam as bases nas quais o discurso eclesiástico se apoia.

Casamento e sexo: produções simbólicas

As mensagens eclesiásticas e os discursos dos jovens deixam antever a importância do casamento como estrutura de apoio da igreja e da sociedade. Trata-se de uma instituição organizadora dos laços sociais que fortalece a estrutura eclesiástica. O matrimônio e a constituição da família são projetos institucionais destinados a promover a coesão da comunidade. A cúpula religiosa anuncia em suas pregações que o casamento é fruto da vontade divina e, desse modo, convence os cristãos a torná-lo um projeto pessoal. Faz-se, pois, apologia à união conjugal indissolúvel e monogâmica e à virgindade pré-nupcial.

Assim como no caso do namoro, as representações do casamento são idealizadas. Acredita-se que, por ser uma união religiosa promovida pela igreja, a relação conjugal tende a ser ideal, forte, indissolúvel, prazerosa, estável e agradável. Nada parece abalá-la. Os fiéis estão certos de que os conflitos existirão, porém serão facilmente solucionados por meio da oração, que é considerada instrumento de reconciliação do casal.

Mesmo que haja brigas e problemas, eu acredito que no casamento cristão a solução vem através do Espírito Santo. Eu não sei como vai ser meu casamento, mas eu acredito que se eu brigar com meu marido por uma besteira, em pouco tempo a gente vai estar ajoelhado orando. E Deus manifesta a reconciliação, Ele reconstrói tudo. Então, eu acho que vai ser assim, que eu vou ter problemas com meu marido, mas que por ser um casamento firmado em Deus e escolhido por Deus, vai ser um casamento próspero, duradouro, feliz, muito mais íntimo e completo do que qualquer casamento de paixão só (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

O matrimônio é antes de tudo uma união espiritual, cujo fundamento é Deus. Para os sujeitos entrevistados, não é possível concebê-lo sem a presença divina e a mediação eclesiástica. A igreja, como representante da autoridade divina, é mediadora da relação conjugal, participa da vida íntima do casal e fixa códigos de conduta que a regulam. Os pastores agem como especialistas na preservação e restauração do casamento, fornecendo a todo instante orientações aos cônjuges para fortalecer os laços matrimoniais e garantir sua permanência.

Eu entendo que nós vamos construir uma família de Deus, nós vamos ser um corpo só e um espírito só. A nossa união não é só carnal, é espiritual também. Nós vamos nos completar (Mateus, 31 anos, 2º grau completo).

O casamento legitima o sexo e circunscreve o desejo. Nele, o prazer sexual é autorizado. A despeito do rigor do código sexual em vigor na igreja, o sexo não é destinado apenas à procriação. O prazer é permitido. A instituição eclesiástica faz, portanto, uma concessão às satisfações do corpo. Todavia, nem toda espécie de prazer é tolerada. As ousadias e perversões sexuais não são admitidas. Sistemas de controle são acionados para restringir o prazer e impedir a plena liberação da sexualidade. O que não é convencional precisa ser reprimido. Autoriza-se, pois, o prazer, desde que seja comportado. O sexo não pode ultrapassar os limites da "decência". A igreja, no entanto, não define com clareza quais são os limites das práticas e dos prazeres sexuais.

É da vontade de Deus que a gente tenha prazer com o nosso marido, com a nossa esposa. Eu acredito que o sexo é melhor ainda no casamento cristão, porque é um casamento abençoado. Tem igreja que prega que o casamento é só pra procriação, que o sexo é só pra procriação. Eu não acredito. Eu acredito que Deus quer que você sinta prazer. Eu já vi pregação a respeito disso. Deus não gosta de perversidade: você não vai ter seu casamento cristão e pendurar seu marido com algemas e ficar dando chicotada nele, lógico. Isso é perversidade. E isso não é o que Deus tem no coração. Deus tem no coração o toque, a carícia, o contato, aquele prazer mesmo de amor. Sexo pode ser até um pouco mais forte, se a pessoa for uma pessoa mais quente, mas se está na mão de Deus, todo sentimento que não provém d'Ele, de promiscuidade, tudo, eu acho que Ele abafa, Ele não deixa, não (Raquel, 22 anos, 2º grau completo).

O sexo é de Deus, é um presente, mas você tem que saber o que é o sexo. Por exemplo, você vê hoje pessoas, meu, que... Eu já fui em show de strip, de estar na balada e rolar coisas bizarras! As coisas que as mulheres fazem, sadomasoquismo... O sexo não é pra isso. Eu acho que o sexo nada mais é do que um presente de Deus. O sexo do casal é tanto pra criar filhos quanto para o prazer da pessoa também (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

O casamento é o espaço legimitado do desejo e da atividade sexual. No matrimônio, o sexo não só adquire legitimidade como é bastante valorizado. Os jovens o percebem como uma dádiva divina e uma recompensa fornecida àqueles que seguiram todo o ritual do namoro e passaram por todas as etapas de gerenciamento do desejo.

Hoje, eu vejo o sexo como um presente de Deus. Depois que você passou por todas essas fases, a oração dos dois, o namoro, o noivado e o casamento, Deus vai te dar o sexo (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

O casamento, pois, termina sendo a única saída institucional para o desejo e o ato sexual. Ele foi criado pela organização eclesiástica para purgar o sexo, considerado sujo quando não ocorre na esfera do matrimônio. A igreja, por conseguinte, tratou de trazer para seu domínio a relação sexual, convertendo-a numa espécie de união de natureza espiritual. Segundo os depoimentos, durante o sexo há uma "troca espiritual" entre os parceiros: espíritos saem de um corpo e penetram no outro por meio do sangue.

O sexo é uma troca de sangue e espíritos. Quando você tem relação sexual com alguém, ali há uma troca de espíritos que está sobre a vida da pessoa. Se você conhece uma prostituta e tem relação com ela, rola esse negócio, essa troca. Você acaba absorvendo aquilo que a pessoa tem, aquelas influências, e a pessoa absorve o que você tem. Então, às vezes, o seu estado fica muito pior depois que você faz isso. É uma troca que ocorre através do sangue (Marcos, 23 anos, 2º grau completo).

As representações do sexo fora do casamento estão associadas à ideia de pecado, contaminação e sujeira. Como aponta o relato dos sujeitos, ao se relacionar sexualmente com alguém antes de casar, o indivíduo fica "contaminado" espiritualmente. Quando o parceiro sexual é alguém que não pertence à igreja, o grau de contaminação é ainda maior. O sexo continua vinculado à noção de impureza, quando não está situado nos limites da relação conjugal. Ele só assume uma conotação positiva na esfera do matrimônio. O casamento, pois, foi criado para "purificar" algo que por natureza é sujo.

A dupla linguagem do desejo

Apesar da flexibilização dos costumes e da liberalização do padrão estético dos fiéis, a Igreja Evangélica Bola de Neve resgatou valores tradicionais a fim de propiciar a moralização da sexualidade. Tudo parece indicar que há um retorno à tradição puritana8 de repressão sexual, que resultou na redistribuição de um sistema de interdições. A cúpula clerical demonstra preocupação com a vida sexual dos solteiros e, por isso, promove a regulamentação e a ritualização do namoro. Seu projeto moralizador volta-se à conduta afetiva e sexual dos jovens solteiros. Foram produzidos dispositivos de controle da sexualidade não conjugal, como o procedimento de espera do parceiro afetivo e a institucionalização do namoro, os quais criam obstáculos ao flerte, à aproximação e ao início da relação amorosa.

O casamento, por sua vez, não causa tanta preocupação, dado que nele o ato sexual é liberado. A moral conjugal é, pois, flexibilizada e o prazer sexual é permitido. A igreja não apenas tolera o gozo erótico como o integra à sexualidade do casal. O prazer entre esposos recebe o consentimento da Igreja Bola de Neve, que o concebe como componente importante da relação conjugal. Entretanto, a liberação não é total. Cabe ao casal pôr limites à intensidade do prazer para impedir que as práticas sexuais atinjam a obscenidade. A igreja, embora se faça presente, não interfere tanto na dinâmica matrimonial. A intimidade dos cônjuges não é tão regulamentada como a vida íntima dos solteiros. A verdadeira obsessão da igreja é a sexualidade dos não casados, a qual está sujeita à intensa racionalização e ao constante gerenciamento.

Censores institucionais desenvolvem políticas higienistas, destinadas a expurgar e extrair do corpo as múltiplas formas de desejo, consideradas simultaneamente patológicas e pecaminosas. A ideia de contaminação acompanha as representações da libido. Medidas profiláticas são recomendadas aos cristãos solteiros para evitar o contágio sexual e as patologias do desejo. As paixões, por conseguinte, representam um risco à saúde espiritual e à integridade moral dos indivíduos não casados. Por essa razão, são construídas tecnologias de cura cuja função é debelar o desejo e restabelecer a austeridade moral. Tratamentos espirituais visam a assegurar o controle da libido e a cura da doença da "carne". Além de vigiado, o desejo patológico é examinado, dissecado, diagnosticado e tratado (Foucault 2001 e 1999). Busca-se erradicá-lo, como se fosse uma perigosa epidemia capaz de produzir estragos. Na realidade, ele parece ameaçar a ordem institucional e a estrutura clerical. Por isso, deve ser banido do meio religioso. Contudo, não são combatidas todas as expressões da sexualidade. O desejo conjugal é a única espécie de desejo autorizada, pois é institucionalizada e, desse modo, está protegida das mazelas sexuais. Nesse contexto, o desejo é considerado saudável, decente e inofensivo, indispensável à consolidação do matrimônio.

Resta-nos perguntar como uma instituição eclesiástica que apresenta imperativos morais tradicionais consegue se inserir numa sociedade pós-revolução sexual, marcada pela erotização das relações, valorização do sexo e adoração do prazer. Será que se trata de uma "ilhota" isolada, constantemente ameaçada pelos apelos sexuais e disposta a combater a permissividade moderna? A sociedade contemporânea, segundo Guillebaud (1999), não é sinônimo apenas de liberação sexual. As conquistas eróticas e as liberdades individuais que foram alcançadas após os anos "dourados" da revolução sexual passaram a conviver com a revitalização de tabus sexuais e a renovação de interditos morais. O hedonismo das décadas de 60, 70 e 80 foi abalado pelo renascimento do puritanismo e pelo ressurgimento da moral sexual. Prevalece, na atualidade, uma dupla linguagem do desejo, marcada a um só tempo por repressão e liberação, interdição e permissão.

(...) organizamos a mais dura das junções entre uma ostensiva permissividade e uma repressão que se apega até a bagatelas. O dilema chega a ser ainda mais insolúvel quando vemos que tal oposição mantém permanentemente, em nossa própria vida cotidiana, a solicitação e a rejeição, uma pansexualidade proselitista e uma vigilância detalhista, uma extraordinária "convocação ao deleite sexual" e a ameaça maníaca de uma inquisição (Guillebaud 1999:37 e 38).

Como afirma Adorno (1969), vivemos uma situação de aparente liberdade sexual. Contudo, há uma permanente administração do desejo e uma consolidação dos tabus sexuais, reforçados pelos poderes institucionais. A Igreja Evangélica Bola de Neve, portanto, não é uma inquisição moral em meio à plena liberalização sexual. Não se trata de uma discrepância institucional que nada tem a ver com a sociedade contemporânea. É uma instituição que contribui para ampliar os estigmas sexuais em vigor na cultura moderna. Logo, não é uma organização religiosa refratária à modernidade, nem é absolutamente contrária às transformações dos costumes. Ela combate as perversões sexuais e dá suporte às repressões que invadem sutilmente a cultura hedonista. Adorno (1969) declara ainda que a racionalidade tecnológica construiu uma máquina refinada e pouco perceptível de controle sexual.

A ideia de pecado, que é inerente à igreja, começa a ser resgatada pela sociedade de consumo, que associa o prazer erótico à transgressão. Acredita-se que é preciso proibir para transgredir e despertar o desejo, que corre o risco de se esgotar, em virtude do excessivo apelo à sexualidade. De acordo com Guillebaud (1999), a proibição aparece como possibilidade de potencializar o desejo e evitar seu esgotamento. "Esta busca nostálgica do pecado perdido visa [a] despertar um desejo esgotado" (Guillebaud 1999:132). Logo, a Igreja Bola de Neve, ao definir os pecados sexuais e discriminar as interdições morais, revitaliza o desejo, ameaçado de ser extinto. Atrás da inibição, aparece a estimulação.

Enquanto a instituição eclesiástica tenta coibir o livre fluxo do desejo, os jovens cristãos exibem corpos esculturais, que atraem olhares seduzidos por sua beleza. Paradoxalmente, reprime-se a libido e libera-se o corpo. Na igreja, os corpos ficam à mostra para serem vistos e admirados. Os movimentos corporais expõem os contornos físicos. Fiéis desfilam pelos corredores do templo, exibindo barrigas esculpidas, pernas musculosas, ombros fortes e braços bronzeados. Presença forte na igreja, o corpo é valorizado, apreciado e cultuado, segundo os padrões da cultura narcísica. A exposição corporal revela a sensualidade que circula entre os jovens. A vivência da sexualidade, pois, se dá através das manifestações e expressões corporais.

Segundo Machado (1996), o corpo é elemento indispensável nos cultos e celebrações das igrejas neopentecostais. Campos (1996) também ressalta a importância do corpo nas discussões teológicas e nas práticas ritualísticas da Igreja Universal do Reino de Deus. A teologia da prosperidade e a lógica da economia de mercado contribuem para aumentar a valorização da estrutura corporal. É preciso cuidar do corpo, enfeitá-lo, embelezá-lo, torná-lo vigoroso, saudável e disposto. Deve-se buscar a saúde e o bem-estar do corpo. O neopentecostalismo, dessa forma, ajusta-se à sociedade contemporânea, que afirma a relevância do cuidado com o corpo.

Como aponta Courtine (1995), a cultura narcísica norte-americana é oriunda da tradição protestante que, desde suas origens, preocupa-se com a saúde corporal e estimula os fiéis a voltar a atenção para sua estrutura física. A moralidade, portanto, envolve preocupações com o corpo. A ética puritana prescreve os exercícios físicos, que se tornam uma forma de disciplina religiosa e restauração moral. Os esportes possuem uma função disciplinar e hedonista. Eles favorecem o controle e a gestão das atividades corporais e são considerados fontes de prazer. O puritanismo protestante reforça a cultura de consumo de massa, o espetáculo corporal, o culto ao corpo e a obsessão pelos esportes.

A Igreja Evangélica Bola de Neve faz jus à tradição protestante, ao promover práticas esportivas, incentivar campeonatos de surfe e skate, desenvolver atividades evangelísticas no litoral e colocar o corpo no centro das cerimônias religiosas. Corpos jovens são expostos narcisicamente nas praias e cultos, num jogo de sedução que se opõe ao rigor moral da instituição clerical. Cuida-se do corpo para exibi-lo. Busca-se moldá-lo e esculpi-lo para atingir o ideal de perfeição corporal. O narcisismo hedonista da cultura de massa invade a congregação religiosa. Os esportes são amplamente valorizados, pois possibilitam a disciplina moral, contêm as paixões e remodelam a estrutura corporal. O erotismo aparece nos corpos e se esconde atrás da repressão institucional.

A contradição, portanto, caracteriza as práticas cotidianas, as discussões teológicas e o sistema doutrinário da instituição eclesiástica. Constata-se que no ambiente neopentecostal coexistem tendências moralizantes e liberalizadoras. A repressão da sexualidade dos jovens solteiros convive com a liberação da intimidade conjugal. Se por um lado, a igreja regulamenta o namoro e combate a libido dos fiéis não casados, por outro, libera o prazer sexual na relação conjugal. Paradoxalmente, interdita-se o desejo e tolera-se a exposição do corpo. As ambiguidades da igreja revelam a persistência da tradição e a emergência da novidade.

Como os jovens lidam com as contradições institucionais? Eles demonstram profundo sofrimento psíquico, sentem-se inseguros para iniciar uma relação amorosa e ficam apreensivos quando os desejos se manifestam. Procuram ocultar os impulsos sexuais, mas não conseguem negar sua força. Reproduzem, sem perceber, a contradição eclesiástica. Escondem a libido, mas exibem os corpos. O discurso pastoral interdita o desejo, mas os corpos esculturais o estimulam. A ambiguidade da igreja só torna mais difícil resistir às paixões da "carne". Os cristãos terminam encontrando formas de burlar as leis religiosas para suportar a pressão das vontades diante das prescrições. Como decorrência da transgressão, surge a culpa que intensifica a censura. Há, pois, entre os jovens e a instituição, uma oscilação entre repressão e liberação, uma dupla linguagem do desejo.

Notas

Recebido em outubro de 2008

Aprovado em outubro de 2009

Bruna Suruagy do Amaral Dantas (bsuruagy@uol.com.br)

Mestre e Doutoranda em Psicologia Política pelo Programa de Estudos Pósgraduados em Psicologia Social da PUC-SP.

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  • 1
    Dados extraídos do jornal Folha de São Paulo, de 14 de dezembro de 2003.
  • 2
    Dados obtidos da revista Época, de 28 de Julho de 2003.
  • 3
    De acordo com Dantas (2006), a Igreja Bola de Neve possuía, em 2006, vinte e oito templos, quantidade significativamente inferior ao quadro atual.
  • 4
    Adorno (1969) declara que na sociedade burguesa do século XX prevalece o higienismo sexual, proposto por médicos e adotado por algumas denominações pentecostais. "El ideal higiénico es más riguroso que el ascetismo, que nunca quiso permanecer siendo lo que ya era. Los tabús, en medio de apariencias de verdad, no permiten, sobre todo, que se los tome a la ligera puesto que si bien ya nadie cree enteramente en ellos, siguen firmes en el inconsciente de los individuos y son amparados por los poderes institucionales" (:97).
  • 5
    Referindo-se às freiras reclusas nos conventos, Miranda (1998) afirma que "a interdição sexual teve a função de afrodisíaco", pois ao submeter a sexualidade ao poder da repressão, as monjas intensificaram sua força, em vez de reduzi-la.
  • 6
    Desde o século XV, quando o clero católico elaborou os manuais de confissão e as práticas penitenciais, a igreja oferece possibilidades de burlar a norma e driblar o imperativo moral. Conforme Machado (1996), além das regras, a instituição eclesiástica constrói mecanismos de tolerância à transgressão, como se soubesse de antemão que as prescrições serão violadas.
  • 7
    Conforme Moscovici (1990), o cotidiano nos revela pormenores das relações sociais e do sistema representacional que não são captados nos discursos oficiais, nas cerimônias formais nem nas solenidades institucionais. A informalidade da vida cotidiana nos mostra o que há de mais simples e complexo, o que há de mais visível e oculto, o que é frequentemente vivido e pouco notado.
  • 8
    O termo "puritano" surgiu no século III para retratar as seitas que o catolicismo considerava heréticas. Porém, apenas no século XVI, passou-se a utilizá-lo correntemente na Inglaterra para referir-se aos grupos protestantes mais radicais, que reivindicavam uma profunda purificação da Igreja. De acordo com Resende (2009), os calvinistas apresentavam as posições religiosas mais extremistas, rechaçando as práticas do catolicismo e do anglicanismo, e exigindo o retorno a códigos morais mais antigos e mais puros. Conhecidos como "puritanos", assumiam a tarefa de moralizar hábitos e costumes, reformar rituais e dogmas religiosos, assim como reprimir desvios de conduta. O puritanismo, portanto, é um movimento que ocorreu no interior da Igreja Protestante, relacionado à radicalização de determinados grupos reformistas, sobretudo os calvinistas, que exigiam o rompimento com a Igreja Católica, combatiam a corrupção das práticas religiosas e preconizavam a moralização dos comportamentos. No presente artigo, a utilização dos vocábulos "puritano" e "puritanismo" designa o retorno a valores morais tradicionais e dogmas religiosos considerados mais puros. Trata-se de um processo de resgate da tradição religiosa, radicalização dos preceitos e moralização dos valores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jul 2010

    Histórico

    • Recebido
      Out 2008
    • Aceito
      Out 2009
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