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Tradição e conversão religiosa em quilombos: cotejando produção bibliográfica e notas de pesquisa

Tradition and religious conversion in quilombos: comparing bibliographic production and research notes

Resumos

Resumo: Neste artigo, apresentamos questões que atravessam o debate das ciências sociais sobre as religiões nos quilombos, cotejando um mapeamento bibliográfico com observações da nossa experiencia de pesquisa em comunidades quilombolas no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Iniciamos com a conceituação dos quilombos contemporâneos e seus desdobramentos para a investigação das religiões em quilombos, mapeando, em seguida, alguns desafios implicados na crescente expansão dos evangélicos nessas comunidades. Ao final, problematizamos a questão da “autenticidade” das identidades religiosas legítimas na construção da etnicidade quilombola, bem como nossa posição de pesquisadores-parceiros nessa controvérsia.

Palavras-chave:
Evangélicos; Afrorreligiosos; Afrocatólicos; Quilombos; Etnicidade Quilombola


Abstract: In this article, we highlight some issues that intersect with the social sciences debate on religions in quilombos by quoting a bibliographic mapping and observations from our research experience in quilombola communities in the municipality of Cachoeira, in the Recôncavo Baiano. We begin by reviewing the conceptualization of contemporary quilombos and its implications for the investigation of religions in those communities, and then map some of the challenges involved in the growing expansion of evangelicals in these groups. Finally, we problematize the issue of the "authenticity" of legitimate religious identities in the construction of quilombola ethnicity, and our position as research partners in this controversy.

Keywords:
Evangelicals; Afro-religious; Afrocatholics; Quilombos; Quilombola Ethnicity


Em entrevista, Almeida (Dias 2009DIAS, Guilherme Mansur. (2009), “Entrevista: Alfredo Wagner Berno de Almeida”. RURIS - Revista do Centro de Estudos Rurais, vol. 3, nº 2: 18-54.), antropólogo que vem tendo importante participação no processo de conceituação dos quilombos contemporâneos desde as discussões na Constituinte, nos idos de 1987 e 1988, relembrou alguns momentos da trajetória de reconceituação dos quilombos. Um desses aspectos, que nos interessa especialmente, referia-se ao problema da definição, até então ancorada exclusivamente no espaço físico e pertencimento identitário, que situava a cultura numa abordagem racializada. Em seu entendimento, a projeção do “espaço social sobre o espaço físico” (Dias 2009:34) redefine o conceito de quilombo e problematiza abordagens essencialistas da identidade: “Quer dizer, não há uma religião dos quilombolas, não há uma língua dos quilombolas, não há um ou mais traços físicos definidores do quilombola.” (Dias 2009:35). Na mesma entrevista, ele chama ainda a atenção para o problema dos “itinerários cartografados”, nos quais “[...] para se falar de negro, falava-se de religião. [...] ou ‘negro era visto do prisma da religião’ ou negro era um elemento submerso dentro de categorias econômicas” (Dias 2009:37DIAS, Guilherme Mansur. (2009), “Entrevista: Alfredo Wagner Berno de Almeida”. RURIS - Revista do Centro de Estudos Rurais, vol. 3, nº 2: 18-54.).

As advertências indicadas nas passagens que destacamos acima sobre a essencialização da “cultura negra” - sua associação naturalizada com “certa” filiação religiosa - parecem ser um importante ponto de partida para nos aproximarmos de alguns dilemas apontados nas pesquisas acadêmicas sobre as transformações contemporâneas dos quilombos. Essa discussão vai ao encontro do movimento de desnaturalização das identidades étnicas, dando atenção à investigação dos modos de ser e de viver desses coletivos que têm que lidar com pertenças e escolhas religiosas - tanto das religiões “tradicionais” (catolicismos e religiões de matriz africana) como dos desafios implicados na recente expansão dos evangélicos1 1 Utilizamos o termo “evangélicos” para abarcar denominações protestantes e pentecostais. Nas citações dos trabalhos buscamos reproduzir os termos utilizados pelos autores, seja com categorias genéricas como evangélicos” ou “pentecostais”, seja com a menção à denominação específica. nas comunidades quilombolas, questão que desenvolvemos neste trabalho.

No contexto mais amplo das transformações no espaço público brasileiro contemporâneo, a crescente presença evangélica tem orientado pesquisas em algumas direções. Investigando as relações entre pentecostalismo e identidade negra no Brasil, Burdick (2001BURDICK, John. (2001), “Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura impossível?” In: Y. Maggie & C. Resende. (orgs.). Raça como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) explora suas complexidades e contradições, reconhecendo de saída as tensões envolvidas no pensamento pentecostal e a emergência de um discurso étnico: as relações entre o individual e o universal (sem espaço para as experiências coletivizantes), a questão da salvação neste mundo ou em outro, e a recusa do patrimônio afrorreligioso. Por outro lado, ponderando vários aspectos da transformação da experiência pentecostal no empoderamento dos sujeitos, ele sugere a pergunta: “Será que a etnicidade negra pentecostal ‘cotidiana’ algum dia se traduziu em etnicidade politizada ‘não-cotidiana’?” (Burdick 2001:204). O autor responde afirmativamente, listando algumas iniciativas de luta contra o racismo em igrejas pentecostais.2 2 Merece menção a “Associação Cultural da Missão Quilombo”, fundada em 1991, por Ernani da Silva, da igreja pentecostal Brasil para Cristo, em São Paulo.

Gostaríamos de reter a questão de Burdick, deslocando-a para o contexto quilombola, em busca de compreender que transformações são desencadeadas com a “chegada” dos evangélicos em quilombos. Ponderações como as apresentadas acima nos levam não exatamente à questão do crescimento pentecostal entre a população pobre e negra deste país (que já não configura mais uma novidade), mas aos seus desdobramentos para as controvérsias da etnicidade quilombola. Realizar pesquisas sobre a pluralidade religiosa em comunidades quilombolas contemporâneas é iniciar uma conversa sobre o difícil problema da convivência religiosa, mas que também se desdobra na questão da “autenticidade” da cultura e da legitimidade das identidades étnicas e políticas da luta quilombola.

Neste artigo, buscamos delinear algumas dessas questões que atravessam o debate das ciências sociais sobre o tema por meio de um mapeamento bibliográfico sobre religiões nos quilombos, cotejando com observações da nossa experiência de pesquisa em comunidades quilombolas no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano.3 3 Sem a pretensão de recobrir quantitativamente a totalidade da produção sobre o tema, ainda assim o levantamento bibliográfico realizado em 2019 e 2020 pelas então bolsistas de iniciação científica Gisele de Deus Souza e Lídia Bradymir dos Santos foi extenso. Reuniu 78 trabalhos disponibilizados na internet por meio do motor de busca Google Acadêmico, na plataforma Lilacs e na plataforma de teses e dissertações da Capes (artigos, trabalhos em anais, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso), além de livros autorais e coletâneas. O recorte foi a abordagem do tema das religiões e/ou religiosidades em quilombos como questão central do trabalho ou em articulação com outros temas e questões, nos casos em que o tema da religião alcançava relevância. Foram considerados todos os trabalhos que incorporaram a categoria “quilombo” e “comunidades negras rurais”, sendo o material dividido pela religião abordada ou em associação ao tema principal do trabalho, organizado em quatro “categorias”: catolicismos (19 trabalhos); afrocatolicismos e afro-brasileiros (17 trabalhos); evangélicos (26 trabalhos); outros agenciamentos religiosos (6 trabalhos). Como exceção do trabalho de Véronique Boyer, de 1996 (que será mencionado adiante), todos os trabalhos são posteriores aos anos 2000, intensificando-se a partir de 2010 (o levantamento se estendeu até 2021, acrescido de alguns trabalhos publicados posteriormente) e compreende as áreas do conhecimento e programas de pós-graduação: antropologia, ciências sociais, sociologia política, estudos étnicos e Africanos, educação, história, ciências da religião, teologia, geografia, comunicação, literatura, interdisciplinar (para trabalhos publicados em anais). Contudo, antes de entrar nas considerações sobre a bibliografia especializada, vamos situar o problema da conceituação dos quilombos contemporâneos e seus desdobramentos para a investigação das religiões nessas comunidades.

Quilombos contemporâneos e dinâmicas religiosas

A conceituação dos quilombos contemporâneos, realizada nas últimas décadas, propiciou um movimento de dessencialização de identidades que amarrava referentes geográficos a modelos pré-determinados dos quilombos do passado. Tal como destaca Leite (2000LEITE, Ilka Boaventura. (2000), “Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas”. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia , vol. 4, nº 2: 333-354.), o quilombo como conceito socioantropológico evidencia seu aspecto contemporâneo, organizacional, relacional, dinâmico e político. A variabilidade das experiências capazes de serem amplamente abarcadas pela ressemantização do quilombo na atualidade é evidência de que o quilombo deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente situada na formação social brasileira. Enquanto uma forma de organização, o quilombo viabiliza novas políticas e estratégias de reconhecimento. O que viria a ser contemplado nas ações seria então o modo de vida coletivo, a participação de cada um no dia a dia da vida em comunidade. O’Dwyer (2002)O’DWYER, Eliane Cantarino. (2002), “Introdução”. In. E. C. O’dwyer. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: FGV. também destaca que as transformações recentes na redefinição do conceito de quilombo, anteriormente utilizado apenas por historiadores, se afasta da abordagem congelada da cultura para uma configuração de “grupos étnicos”, que mobilizam referentes diacríticos da diferença na relação com a sociedade abrangente.

Pensar nas formas como vem se consolidando o reconhecimento dos territórios quilombolas, portanto, é reconhecer que se trata de objetos em disputa, como destaca Arruti (2008ARRUTI, José Maurício. (2008), “Quilombos”. In: L. Sansone & O. Pinho (orgs.). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: ABA; EDUFBA.). O autor acentua que “quilombo” - enquanto disputa conceitual e não das existências sociais que são envolvidas pelo termo - configura mais um objeto que não “é”, mas “está em curso” (Arruti 2008:315). Resgatando a história do conceito, Arruti menciona sua ressemantização no Documento da ABA, em 1994 (do extinto GT sobre comunidades negras rurais), que passou a caracterizar os quilombos contemporâneos, processo necessário, segundo o documento, devido aos “sucessivos agenciamentos simbólicos do conceito” (Arruti 2008:317). Desde então, observa-se uma tensão entre a abordagem antropológica, que investe na diversidade empírica, e a apropriação pelo direito, que congela o conceito em modelos. Conclui Arruti que a questão da autoatribuição opera importantes deslocamentos ao não congelar o quilombo em identidades pré-estabelecidas, mas, por outro lado, não é possível estabelecer relações autoevidentes entre a diversidade das descrições étnicas e a categoria quilombo. Nesse processo, caminham lado a lado transformação conceitual e experiência social dos quilombolas desde os tempos do Brasil Colônia.

As transformações conceituais incidiram no desenvolvimento das pesquisas antropológicas. Mello (2012MELLO, Marcelo Moura. (2012), Reminiscências dos quilombos. Territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Ed. Terceiro Nome.) destaca uma mudança de interesse nos estudos das populações negras rurais: incipiente durante os anos de 1950, passam a receber maior atenção a partir da década de 1980. Acrescenta, ainda, o autor, que a mudança mais acentuada foi de perspectiva, já que “a ênfase teórico-conceitual se deslocou da condição camponesa dessas comunidades para sua condição étnica” (Mello 2012:40). Por outro lado, apesar do esvaziamento do conceito de cultura e de seu deslocamento para a chave da etnicidade, seguindo Gomes (2006GOMES, Flávio dos Santos. (2006), Histórias de quilombolas. São Paulo: Companhia das Letras.), podemos situar o “quilombo” no âmbito do “campo negro” sem recair no enfoque culturalista (do isolamento e estabilidade), destacando a rede de relações e transformações dessas comunidades com o seu entorno, que sempre envolveu autonomia e subalternidade.

Esses processos também atravessaram as religiões dos quilombolas, mas a investigação das dinâmicas religiosas nessas comunidades ainda é incipiente nas pesquisas em ciências sociais, se comparada às questões da identidade étnica e política que se dão em torno da centralidade da luta pela terra. Por outro lado, a urgência desses embates não deveria levar à reificação das “identidades” quilombolas, pois, como adverte Mello (2012MELLO, Marcelo Moura. (2012), Reminiscências dos quilombos. Territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Ed. Terceiro Nome.:84), “[...] há muito mais coisas em jogo do que a ‘conscientização’, seja ela étnica e racial ou o incremento da ‘organização política’”. Trata-se de uma ponderação sobre os limites da identidade e da etnicidade quilombola, pois a vida nesses territórios está mais além do que esses “contornos normativos e políticos” podem oferecer (Lourenço 2021LOURENÇO, Sonia Regina. (2021). “Caosmose quilombola: perspectivas, corpos, plantas e benzeções”. In: S. R. Lourenço et al. (orgs.) Dissidências, alteridades, poder e políticas: antropologias no plural. Florianópolis: Editora da UFSC.:139).

Mesmo minoritárias, ainda assim, as pesquisas sobre as transformações religiosas em comunidades quilombolas vêm ganhando espaço desde os anos 2000. A referência mais antiga que encontramos foi o trabalho seminal de Boyer (1996BOYER, Véronique. (1996), “A etnicidade dos quilombolas e a religião dos Evangélicos: um exemplo do Baixo Amazonas”. Boletim Rede Amazônia, ano 2, nº1: 29-36.). Em pesquisa realizada nos anos de 1990 sobre o avanço pentecostal em comunidades amazônicas, ela identificou entre seus interlocutores do movimento negro que havia “uma certa incompatibilidade em ser ao mesmo tempo quilombola e crente.” (Boyer 1996:29). A autora aponta o distanciamento da pequena congregação da Assembleia de Deus em relação ao trabalho da associação quilombola local, embora essas diferenças não impeçam o reconhecimento da identidade “quilombola” compartilhada com os católicos, ainda que de forma tensionada.

No entanto, ainda que as redefinições conceituais do quilombo tenham se distanciado da verificação das “origens” históricas, o trabalho de Boyer já chamava a atenção para o problema da especificidade das comunidades quilombolas em relação à grupos similares em contextos rurais, nas periferias urbanas, de ribeirinhos etc. Para ela, disputas em torno das definições legítimas do que seja a etnicidade quilombola deveriam nos alertar para os desvios perigosos do engessamento em direção à racialização (a armadilha da associação da cultura negra a um fenótipo), bem como das ambiguidades da “cultura negra” e das identidades religiosas, conforme veremos a seguir.

Devoção afrocatólica e autenticidade quilombola

Nos estudos sobre as religiões dos quilombolas destacam-se abordagens ancoradas numa relação de continuidade entre as tradições católicas e das religiões de matriz africana. O “sincretismo afrocatólico” sustenta as referências culturais da identidade quilombola ou das “comunidades negras rurais” (categoria que aparece em alguns desses trabalhos).

As tradições festivas ganham proeminência e podem ser identificadas nas experiências do catolicismo rústico ou popular, com suas formas de devoção, e nas tensões com o catolicismo institucional, como nas comunidades Kalunga, em Goiás (Lima 2015LIMA, Luana Nunes Martins de. (2015), “Encontros e distanciamentos entre a religiosidade kalunga e o catolicismo oficial: um olhar para as singularidades do lugar na festa de Nossa Senhora Aparecida”. II Encontro de Pesquisadores sobre os Quilombolas Kalunga Políticas Sociais e Pesquisa no Território Kalunga: Redes de Contatos e Saberes. Goiânia: Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (Laboter).). Mais do que “articulação” entre festa e identidade social, observa-se nos trabalhos que abordam o catolicismo festivo uma expressão de diferentes dimensões da vida quilombola, dentre as quais: a identidade comunitária afrodescendente, no sertão mineiro (Benites 2019BENITES, Luiz Felipe Rocha. (2019), “Veredas do pertencimento ao Povo do Gerais: roça, religião e mobilização étnica em movimento”. Estudos Sociedade e Agricultura, vol. 27, nº 1:167-184.), em quilombo em São Paulo (Santos 2013SANTOS, Maria Walburga dos. (2013), “Festas quilombolas: entre a tradição e o sagrado, matizes da ancestralidade africana”. Revista HISTEDBR, nº 50 (especial): 286-300.), nas “Terras de Santa”, no Maranhão (Pereira Jr. 2012PEREIRA JÚNIOR, Davi. (2012), Territorialidades e identidades coletivas: uma etnografia de Terra de Santa na Baixada Maranhense. Salvador: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFBA.); os ciclos produtivos agrícolas das comunidades Kalunga, em Goiás (Coelho, Santos & Pereira Filho 2015COELHO, Rogério Ribeiro; SANTOS, Vlamir Crispim dos & PEREIRA FILHO, Paulo. (2015), “A relação entre os festejos de santos e os ciclos produtivos na comunidade quilombola Kalunga em Goiás”. II Encontro de Pesquisadores sobre os Quilombolas Kalunga Políticas Sociais e Pesquisa no Território Kalunga: Redes de Contatos e Saberes. Goiânia: Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (Laboter).); a comensalidade e produção de parentesco na Chapada dos Guimarães (Lourenço 2019LOURENÇO, Sonia Regina. (2019), “Encontros e Comensalidade nos Quilombos: O Devir Quilombo”. Iluminuras, vol. 20, nº 51: 298-322.); as benzeções em comunidades de Pelotas, RS (Schneider 2017SCHNEIDER, Maurício. (2017), Identidades em rede: um estudo etnográfico de quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes. Pelotas: Ed. UFPel.); as práticas de cura e rituais fúnebres no oeste baiano (Vidal 2013VIDAL, Rogério Lima. (2013), No chão do terreiro: tradições religiosas e festivas, aprendizagens e identidade étnica no Povoado do Mucambo, Oeste da Bahia. Salvador: Dissertação de Mestrado em Educação e Contemporaneidade, UFBA.); o samba de roda e a roda de São Gonçalo no sertão norte baiano (Damázio 2016DAMÁZIO, Itamara Silva. (2016), Sertanejos e ribeirinhos quilombolas de Vicentes: memória e identidades. Salvador: Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos, UFBA.); a dança do Congo em Mato Grosso (Oliveira 2011OLIVEIRA, Herman Hudson de. (2011), Dança do Congo: educação, expressão, identidade e territorialidade. Cuiabá: Dissertação de Mestrado em Educação, UFMT.); o patrimônio imaterial afrocatólico (Reis 2020REIS, Maria Helena de Aviz dos. (2020), “‘Bejação’: patrimônio, fé e gratidão em uma festa afrocatólica na comunidade quilombola de Jurussaca, Tracuateua-PA”. Cadernos do Lepaarq, vol. XVII, nº 34: 255-271. ). Ainda situadas no complexo da festa, também são destacadas as redes de sociabilidade que possibilitam sua preparação, os aspectos rituais e seus desdobramentos para a afirmação étnico-política das identidades quilombolas. Foram também identificadas abordagens que detalham aspectos e dimensões das festas de santos católicos como São Roque (Bassi & Tavares 2017BASSI, Francesca Maria Nicoletta & TAVARES, Fátima. (2017), “Preparando o banquete, sonhando a festa: memória e patrimônio nas festas quilombolas (Cachoeira-Bahia)”. ACENO-Revista de Antropologia do Centro-Oeste, vol. 4, nº 7: 15-32.), Nossa Senhora Aparecida (Dias 2017DIAS, Maria Helena Tavares. (2017), Entre memórias e narrativas dos festeiros das festas de santo do território quilombola Vão Grande. Cuiabá: Dissertação de Mestrado em Educação, UFMT.; Lima 2015; Lima & Nazareno 2012LIMA, Luna Nunes Martins de & NAZARENO, Elias. (2012), “Manifestações Culturais em território Kalunga: A Festa de Nossa Senhora de Aparecida como Elemento de (Re)afirmação Identitária e Reaproximação Étnica”. Multidisciplinary Journal of Educational Research, vol. 2, nº 1: 105-127.), Divino Espírito Santo, Santo Antônio e São Gonçalo (Kawaguchi 2015KAWAGUCHI, Renata Castro Cárdias. (2015), “Festas, folkcomunicação e religiosidade popular nas comunidades caiçaras e quilombolas de Cananeia (SP)”. Anuário Unesco/Metodista de Comunicação Regional, vol. 19, nº 19: 289-302.), Santa Tereza de Jesus (Pereira Jr. 2012) 4 4 Alguns trabalhos abordam aspectos da cultura católica para além da festa, como a relação entre identidade religiosa e étnica em quilombo do Paraná (Porto, Kaiss & Cofré 2012) e diferentes movimentos do catolicismo: atividade missionária católica em quilombos do Vale da Ribeira (D’Almeida 2019), Comunidades Eclesiais de Base em quilombos amazônicos (Maués 2010), confluência entre devoção mariana e política como “percurso inacabado” do devir quilombola no Ceará (Machado 2020). .

Nos trabalhos que tratam das religiões de matriz africana em quilombos também são abordadas suas afinidades com as identidades “tradicionais” e/ou processos de etnicização quilombola em conexão com o catolicismo. Temos estudos sobre o culto aos caboclos em terreiro de umbanda no Recôncavo Baiano (Culto aos Caboclos 2015CULTO AOS CABOCLOS. (2015), Inventário Digital: Culto aos Caboclos na Bahia - Registro e Salvaguarda: Centro de Caboclo Sultão das Matas/Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’la/ Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo/ Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra. Porto Seguro: Instituto Tribos Jovens (ITJ).) e em terreiros de candomblé em Salvador (Rodrigues 2012RODRIGUES, José Marcos B. (2012), Três conversas de barracão em Praia Grande (Ilha de Maré): hoje, assim como no tempo de Mãe Balbina. Salvador: Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.); na prática do jongo que ativa a identidade “católica e umbandista” em Valença, Rio de Janeiro (Carmo 2012CARMO, Ione Maria do. (2012), “O Caxambu tem dendê”: jongo e religiosidade na construção da identidade quilombola de São José da Serra. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História, UFRJ.); na “disputa” como gênero poético das festas afrocatólicas na comunidade Kalunga, em Goiás (Silva Jr. 2008SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da. (2008), “Vozes e versos na festa quilombola dos kalunga”. Revista África e Africanidades, ano I, nº 1: 1-21.); na ancestralidade em encontro de “casas de terreiro” umbandistas no semiárido piauiense (Lima et al. 2018LIMA, Mariana Felinto Corrêa et al. (2018), “Primeiro Encontro de Casas de Terreiros de Comunidades Quilombolas: um relato de experiência”. I Congresso Internacional da Diversidade do Semiárido, Campina Grande: Conimas.); no pluralismo e sincretismo religiosos afrocatólicos em Irará, Bahia (Santos 2008SANTOS, Jucélia Bispo dos. (2008), Etnicidade e religiosidade da comunidade quilombola de Olaria, em Irará (BA). Salvador: Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.); na devoção mariana e na encantaria, no Piauí (Tavares 2008TAVARES, Dailme Maria da Silva. (2008), A capela e o terreiro na chapada: devoção mariana e encantaria de Borba Soeira no quilombo Mimbó, Piauí. Marilia: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Unesp.); na prática religiosa do Moçambique, no Rio Grande do Sul (Fernandes 2004FERNANDES, Mariana Balen. (2004), Ritual do maçambique: religiosidade e atualização da identidade étnica na comunidade negra do Morro Alto/RS. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFRGS.); na memória de liderança do candomblé em Ilha de Maré, Salvador (Rodrigues 2012).

As tradições afrorreligiosas e do catolicismo popular podem ser vistas como um “mundo composto”, no qual os agenciamentos de práticas indígenas, católicas e africanas têm lugar, argumenta Godoi (2023GODOI, Emília Pietrafesa de. (2023), Devir quilombola na terra do santo: a tessitura de um mundo composta. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. ) sobre o mundo caboclo dos quilombos de Alcântara, Maranhão. Estão emaranhados no território, como na comensalidade das festas de santo tratadas por Lourenço (2019LOURENÇO, Sonia Regina. (2019), “Encontros e Comensalidade nos Quilombos: O Devir Quilombo”. Iluminuras, vol. 20, nº 51: 298-322.:298), que formam um “pleno circuito de dádivas por onde transitam pessoas, palavras e coisas”. Conectam a ancestralidade às transformações políticas ancoradas num catolicismo profético que atualiza as expectativas dos antigos, como sugerem Porto e colaboradores (2012PORTO, Liliana; KAISS, Carolina & COFRÉ, Ingeborg. (2012), “Sobre solo sagrado: identidade quilombola e catolicismo na comunidade de Água Morna (Curiúva, PR)”. Religião & Sociedade , vol. 32, nº 1: 39-70.), em quilombo de Curiúva, Paraná, em que as práticas religiosas católicas têm por base a “[...] percepção do território e do próprio grupo como portadores de uma sacralidade [...]” (Porto, Kaiss & Cofré 2012:41). Outro exemplo de enraizamento vem de Goltara (2016GOLTARA, Diogo Bonadiman. (2016), “Ligando a corrente: Ensaio sobre a relação entre espiritualidade e socialidade nas irmandades religiosas de matriz africana no Vale do Itapemirim”. Religião & Sociedade , vol. 36, nº 1: 34-55.), sobre o complexo afrocatólico das “irmandades de santo” em quilombos do Vale do Itapemirim, Espírito Santo. O autor apresenta o conceito de “corrente espiritual”, que sustenta a conexão com a ancestralidade em territórios dispersos, entrelaçando as comunidades numa “[...] força conjuntiva que atua entre pessoas e entidades invisíveis.” (Goltara 2016:55).

A devoção afrocatólica, que vaza pelo território e pelos corpos dos viventes e outros seres, redefine religião e identidade quilombolas. É o que sustentam Lourenço e Silva (2016LOURENÇO, Sonia Regina & SILVA, Danielli da. (2016), “Uma análise antropológica sobre a cosmologia da Comunidade quilombola de Lagoinha de Cima: entre santos, ‘arrumações’ e seres não-humanos”. ACENO - Revista de Antropologia do Centro-Oeste, vol. 3, nº 6: 71-86.), ao tratarem de práticas de arrumação e benzeção que agenciam corpos, natureza, santos e outros seres em quilombo na Chapada dos Guimarães: “A noção de religião mostra-se limitada ao entendimento das experiências identificadas, pois as dimensões cosmológicas não se reduzem à institucionalidade do religioso.” (Lourenço & Silva 2016:71). São disposições que atravessam a geografia de corpos e territórios, tornando os lugares “preenchidos” pela profundidade temporal e mítica das substâncias compartilhadas. Como aponta Kosby (2021KOSBY, Marília Floôr. (2021), “Trilhas de sangue e mel: esboço peregrino de uma cosmoecologia negra, no sul do Brasil”. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, vol. 25, nº 2: 379-403.), esse espraiamento que não deve ser compreendido como “afinidades identitárias”, mas são fluxos compartilhados entre modos de vida - “aberturas no mundo” - de comunidades de terreiro e quilombos.

A continuidade entre tradições religiosas afrocatólicas e identidade quilombola pode ter dificultado a visibilidade dos evangélicos nas pesquisas. A exceção parece ser o trabalho já mencionado de Boyer (1996BOYER, Véronique. (1996), “A etnicidade dos quilombolas e a religião dos Evangélicos: um exemplo do Baixo Amazonas”. Boletim Rede Amazônia, ano 2, nº1: 29-36.), que aponta os desafios da relação entre a associação quilombola e os evangélicos em torno da festa do padroeiro, São Benedito, enquanto referente étnico comunitário que, com o afastamento dos “crentes” desse espaço (além da recusa em participar da associação), fazem emergir dissidências já existentes sobre legitimidade das lideranças políticas, e das formas de acesso e distribuição das terras. No entanto, como veremos a seguir, a crescente visibilização da presença evangélica vai alterar esse quadro.

Evangélicos, identidade e etnicidade quilombola

A relação entre a identidade negra (homogeneizante) e etnicidade quilombola (diferenciante) se torna complexa com o crescimento dos evangélicos nas comunidades. O foco nas identidades religiosas “tradicionais” acaba obscurecendo as transformações religiosas, como se não houvesse controvérsias, ambiguidades ou pontos de escape no contexto das comunidades pesquisadas. Já nos trabalhos que tomam como questão central a presença evangélica (como chegada recente ou já mais antiga) é que se concentram as análises sobre as transformações da cultura quilombola, variando a intensidade dos conflitos conforme as dinâmicas de agenciamento dos evangélicos na produção das identidades quilombolas.

Nas pesquisas que tratam dos conflitos deflagrados a partir da “chegada” dos evangélicos, as transformações podem ser compreendidas na referência à presença recente de “estranhos” nos limites do território, como nas comunidades Kalunga, território que apresenta o maior conjunto de pesquisas nesse tema. Nesses, temos a identificação de “embates de culturas” entre católicos e evangélicos na presença da Igreja Assembleia de Deus na comunidade quilombola Riachão, no Território Kalunga, em Goiás; como processo de “tradução cultural” (Marques 2018MARQUES, Lusinaide Cordeiro de Sales Lima. (2018), “Atuação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Minaçu no Quilombo do Riachão”. Revista Mosaico-Revista de História, vol. 11, nº 1: 69-77.); e nas novas formas de relações territoriais conflitivas com a chegada do protestantismo nos limites territoriais das comunidades Kalunga (Mota 2016MOTA, Rosiane Dias. (2016), O protestantismo nas territorialidades e na identidade territorial da comunidade quilombola Kalunga-Goiás. Goiânia: Tese de Doutorado em Geografia, UFG.).

Processo similar é observado em outras regiões do país. Chatzkidi (2018)CHATZIKIDI, Katerina. (2018), “Filhos da terra e filhos da santa: manifestações de um território católico quilombola na festa de Santa Teresa em Itamatatiua-MA”. Revista Pós Ciências Sociais, vol. 15, nº 30: 29-48. apresenta as estratégias quilombolas católicas para lidar com os adversários evangélicos na defesa do território por meio do controle das festas da padroeira, em Itamatatiua, MA. Merlo (2008MERLO, Márcia. (2008), “Religiosidade: entre negociação e conflito. Pentecostais, católicos e adeptos de religiões afro-brasileiras em Ilhabela e Ubatuba”. Revista do Núcleo de Estudos de Religião e Sociedade (Nures), nº 8: 1-15.) registrou conflitos entre pentecostais, católicos e afrorreligiosos, com a perseguição ao candomblé de angola (seguidores do “saravá”, como são conhecidos) por ex-adeptos das religiões de matriz africana convertidos ao pentecostalismo, em comunidades de Ilhabela e Ubatuba, SP. “Ações redentoras” dos evangélicos, que desarticulam modos tradicionais de vida em comunidades quilombolas do Tocantins, são descritas por Nascimento e Abib (2016)NASCIMENTO, Solange & ABIB, Pedro. (2016), “O efeito da cruzada neoevangélica sobre remanescentes de quilombo: questões sobre educação e identidade quilombola”. Horizontes, vol. 34, nº 1: 33-44..

Nos trabalhos sobre evangélicos em quilombos em que se toma como questão não mais a “chegada”, mas sua existência nesses territórios também transparece, em graus variados, a “exoticidade” das conversões religiosas às variadas denominações e as consequências dessas transformações para a “autenticidade” étnica. São abordados o tema da “convivência” entre evangélicos e católicos em quilombo situado em Concórdia do Pará (Rodrigues & Heinen 2021RODRIGUES, Donizete & HEINEN, Ingrid. (2021), “Católicos, evangélicos e umbandistas: Diversidade religiosa numa comunidade quilombola da Amazônia paraense”. Religare: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, vol. 17, nº 2: 505-536.); do processo de conversão de católicos às igrejas adventistas e a instrumentalização da questão étnica em Dourados, MS (Saruwatari 2014SARUWATARI, Gabrielly Kashiwaguti. (2014), Comunidade Quilombola Dezidério Felippe de Oliveira: tradição, política e religião entre os “Negros da Picadinha”. Dourados: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFGD.); a formação religiosa adventista e o “distanciamento das raízes africanas” e afastamento dos processos de reconhecimento cultural em quilombo do Vale da Ribeira, SP (Schmidt & Oliveira 2016SCHMIDT, Cristina & OLIVEIRA, Kelli Pereira. (2016), “A religiosidade no Quilombo do Peropava no Vale do Ribeira: distanciamento das raízes africanas e do reconhecimento cultural”. Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 14, nº 32: 39-52.). São destacadas as tensões surgidas entre os que permaneceram nas tradições religiosas afrocatólicas e a proximidade de “certos” quilombolas com os “de fora”, evangélicos, e o distanciamento com os “de dentro” das comunidades Kalunga (Mota 2016MOTA, Rosiane Dias. (2016), O protestantismo nas territorialidades e na identidade territorial da comunidade quilombola Kalunga-Goiás. Goiânia: Tese de Doutorado em Geografia, UFG.). Essa abordagem é especialmente explícita no trabalho de Carreiro (2020CARREIRO, Gamaliel da Silva. (2020), “O crescimento do pentecostalismo entre quilombolas: por uma sociologia da presença pentecostal em comunidades quilombolas de Alcântara (MA)”. Sociedade e Estado, vol. 35: 581-603.), sobre o crescimento pentecostal nos quilombos de Alcantara, MA, que considera as causas externas (transformações sociais com a chegada da base de Alcantara) e internas (processos comunicacionais bem-sucedidos) na transformação cultural dessas comunidades para concluir que:

Mas, diferentemente do papel que desempenha nas grandes cidades, como um lugar de reconstrução dos laços sociais [...], no campo, o pentecostalismo desempenharia um papel diametralmente oposto: seria a instituição apta a fornecer o ethos moderno [...] (Carreiro 2020CARREIRO, Gamaliel da Silva. (2020), “O crescimento do pentecostalismo entre quilombolas: por uma sociologia da presença pentecostal em comunidades quilombolas de Alcântara (MA)”. Sociedade e Estado, vol. 35: 581-603.:593).

A chegada dos evangélicos pode, no limite, transformar o quilombo, como no caso da comunidade de Mel da Pedreira, AP, retratada como “quilombo protestante” por Sousa (2014SOUSA, Ana Kelly Vasconcelos de. (2014), Mel da Pedreira: um quilombo protestante na Amazônia brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie.), que aborda o processo de conversão do catolicismo popular ao presbiterianismo e os desdobramentos da questão territorial - apontando a mudança como perda e/ou mudança “incompleta” do modo de vida tradicional. A conversão ao protestantismo seria “o resultado de uma capacidade reflexiva ou apenas uma reprodução do discurso religioso”? Se pergunta Siqueira (2018SIQUEIRA, Robson de Carvalho. (2018), A religião na construção das interfaces da identidade do quilombo do Mel da Pedreira no Amapá (estudo de caso). São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie.:7) a respeito dessa mesma comunidade protestante. Na problematização das relações entre identidade quilombola e evangélicos, a comunidade Mel da Pedreira é apontada por outros quilombos com “uma identidade negra de alma branca” (Custodio 2019CUSTÓDIO, Elivaldo Serrão. (2019), “Expressões religiosas de matriz africana em quilombo protestante no Amapá-AP”. PLURA - Revista de Estudos de Religião. vol. 10, nº 1: 71-90.), mas, por outro lado, também temos a suspeição sobre a efetividade das transformações evangélicas desse quilombo com base na identificação da persistência de certos elementos afroculturais à revelia do projeto evangelizador (Custódio 2019CUSTÓDIO, Elivaldo Serrão. (2019), “Expressões religiosas de matriz africana em quilombo protestante no Amapá-AP”. PLURA - Revista de Estudos de Religião. vol. 10, nº 1: 71-90.; Custódio & Bobsin 2019CUSTÓDIO, Elivaldo Serrão & BOBSIN, Oneide. (2019), “Formas de resistência da religiosidade, da memória e da cultura negra no Amapá: o caso da comunidade quilombola de Mel da Pedreira”. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, vol. 17, nº 52: 366-388.).

Há menos pesquisas sobre a presença evangélica que problematizam a relação de alteridade e estranhamento entre as identidades quilombola e evangélica. Mas elas existem e indicam transformações que também levam em conta a legitimidade da participação evangélica nos processos de ressignificação da etnicidade quilombola.

Essa perspectiva aparece nas comunidades quilombolas fluminenses. Carvalho (2015CARVALHO, Barbara Hilda Crespo Prado de. (2015), Comunidade remanescente de quilombola da Rasa: uma abordagem das relações de identificação étnica e religiosa. Campos dos Goitacazes: Dissertação de Mestrado em Ciência Política, UENF.) destaca o papel de articulação política dos evangélicos da Assembleia de Deus, na comunidade de Rasa, em Búzios, RJ. A descontinuidade entre religião e etnicidade levou à uma ressignificação das “origens” afrorreligiosas. As ações da Associação local, cuja diretoria é composta por membros da Assembleia de Deus, estimulam a pertença étnica, como a indumentária afro e a prática do jongo, mas sem remeter à religião5 5 “[...] podem usar turbante, resgatar o jongo mas não atribuem a isso um sentido religioso e sim cultural e estético, bem como fizeram com batizado das bonecas, com padrinhos e madrinhas, celebrado por um padre” (Carvalho 2015:92). Interessante registrar a abordagem destoante sobre a mesma comunidade quilombola fluminense, com as “perdas das práticas afrocatólicas”, como a resistência ao jongo, destacadas por Carmo (2018). A reabilitação do jongo parece, dessa forma, ser prática ainda controversa. A autora indica haver um movimento de ressignificação cultural em relação ao “batizado das bonecas”, mas isto não se passaria com o jongo: “A pertença evangélica de Rasa emerge como elemento fundamental para o afastamento de expressões culturais, como o jongo, na construção da identidade quilombola do grupo, embora sejam essas principais referências identitárias das comunidades quilombolas do sudeste ao legitimar seu reconhecimento dessas identidades” (Carmo 2018:9). . Temos ainda dois trabalhos sobre comunidades da região do Imbé, no município de Campos, RJ, que estão na contramão da exoticidade da presença dos evangélicos no contexto quilombola. Lifschitz (2008LIFSCHITZ, Javier Alejandro. (2008), “Percursos de uma neocomunidade quilombola: entre a ‘modernidade’ afro e a ‘tradição’ pentecostal”. Afro-Ásia, nº 37: 153-173.) apresenta uma comunidade que desde os anos de 1970 foi identificada socialmente como de cortadores de cana, e que passou, no final dos anos de 1980, pelas políticas de reforma agrária, alterando sua identidade social para assentados. Nos anos de 1990, novas transformações: anteriormente católica, se tornou adventista nos anos de 1980, com resistência à atribuição de referentes da cultura afro-brasileira no processo de se tornar quilombola por meio de empreendedores étnicos externos. A saída proposta pelos agentes públicos (da Fundação Municipal Zumbi dos Palmares) foi a dessacralização dos referentes culturais afro-brasileiros.6 6 A estratégia da Fundação foi a de separar “cultura afro” da “religião afro”, com a criação de centro de referência cultural apoiado pela Petrobrás para revitalização do jongo e da capoeira, movimento que não parece ter sido bem recebido pelos evangélicos. O segundo trabalho, de Ribeiro (2011RIBEIRO, Yolanda Gaffrée. (2011), Os limites da reforma agrária e as fronteiras religiosas: os dilemas dos remanescentes de quilombos do Imbé - RJ. Campos dos Goitacazes: Dissertação de Mestrado em Sociologia Política, UENF.), segue a mesma linha de problematização da relação entre evangélicos e afrorreligiosos e o “discurso da quilombice”, que sinaliza as tensões entre os grupos religiosos na construção da etnicidade. A autora aciona o conceito de “identidade paradoxal” para caracterizar o cruzamento da identidade evangélica e quilombola, que entra em conflito com as referências afro-brasileiras do jongo e da capoeira que são mobilizadas pelos católicos do quilombo.7 7 “A identidade quilombola que os evangélicos do Imbé assumem, em contrapartida às atividades propostas pelo pessoal dos quilombolas, produzem dimensões paradoxais quanto à assunção de um vínculo identitário ou outro. Há, em certa medida, uma dissonância entre a identidade de macumbeiro, atribuída às formas de vida de seus antepassados e a identidade de cristãos à qual os atuais moradores estão vinculados como constitutivos de suas trajetórias históricas compartilhadas. Isso exige que os evangélicos estabeleçam limites claros, embora nem sempre simples de serem formulados, entre a assunção da identidade quilombola e a existência de outros tipos de quilombolas, diferentes deles, sendo esses sim, associados ao jongo, à capoeira e à macumba.” (Ribeiro 2011:102, grifos da autora). Abordando o crescimento evangélico a partir de sua experiência de pesquisa em vários quilombos do Rio de Janeiro, Almeida (2022ALMEIDA, Marilea de. (2022), Devir quilombola: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. Editora Elefante.) destaca a relação pragmática desses grupos com as práticas populares afro-brasileiras, que são mercantilizadas na etnicidade quilombola.8 8 Interessante destacar a exceção do quilombo São Jose da Serra, em Valença, RJ, apresentada pela autora. Nessa comunidade de católicos e umbandistas, a liderança aponta ser o lugar “muito pequeno para mais de duas religiões” (Almeida 2022:172), justificando, como isso, os esforços dela e de outros na manutenção dos vínculos religiosos tradicionais.

As transformações decorrentes do crescimento dos evangélicos em quilombos também foi tema abordado por Abumanssur (2011ABUMANSSUR, Edin Sued. (2011), “A conversão ao pentecostalismo em comunidades tradicionais”. Horizonte-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, vol. 9, nº 22: 396-415.) em trabalho sobre comunidades do Vale da Ribeira, SP. Trata-se de uma das primeiras referências ao problema da conversão, embora o foco esteja na dinâmica de transformação do pentecostalismo e não nas das comunidades quilombolas: “[..] uma lacuna nas pesquisas e na produção teórica sobre o pentecostalismo no Brasil, a saber: o processo de conversão de comunidades tradicionais a essa fé.” (Abumanssur 2011:397). O autor aborda a descontinuidade das tradições religiosas quilombolas em direção ao pentecostalismo, problematizando a naturalização das sociabilidades tradicionais, que teriam sido abandonadas com a chegada dos evangélicos. Contrapondo-se a uma perspectiva exclusivista da perda dos referentes da cultura do catolicismo popular, Abumanssur argumenta que,

O que acontece com o fandango entre os caiçaras, acontece também com as demais formas de sociabilidade das sociedades tradicionais: as festas de santo, a folia de reis, a catira, a dança de São Gonçalo, a congada. Isso tudo se tornou folclore, resquícios e reminiscências de um Brasil rural e arcaico. É bonito de assistir, mas não significam mais nada, sequer para as pessoas diretamente envolvidas na coisa (Abumanssur 2011ABUMANSSUR, Edin Sued. (2011), “A conversão ao pentecostalismo em comunidades tradicionais”. Horizonte-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, vol. 9, nº 22: 396-415.:409).

Como contrapartida, o pesquisador argumenta sobre a possibilidade sociológica dos ganhos em se tornar evangélico, pois senão não haveria processo de conversão em curso. A pergunta então passa a ser: “[...] quem, nessas comunidades, tem atendido ao apelo dessa religião e, não menos importante, em que contexto socioeconômico têm acontecido essas conversões.” (Abumanssur 2011ABUMANSSUR, Edin Sued. (2011), “A conversão ao pentecostalismo em comunidades tradicionais”. Horizonte-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, vol. 9, nº 22: 396-415.:411). Destaca o autor que o modo de vida “tradicional” (as “perdas”, portanto) já estaria passando por mudanças anteriormente à chegada pentecostal: as tradições crescentemente folclorizadas da cultura local, como o turismo e as iniciativas de agroecologia, resultado das relações mais intensas com a vida das cidades. Nesse processo de chegada do modo urbano no quilombo, os pentecostais vieram junto, apresentando uma certa “maleabilidade” que otimiza as transformações em curso.

Como se pode observar, a identidade evangélica vem sendo problematizada por outros caminhos.9 9 Vale ainda registrar outros devires das religiões de matriz africana para além dos desafios com os evangélicos, como na Comunidade Morada da Paz, em Triunfo, RS, de espiritualidade “afrobudígena”, articulando budismo tibetano mahayana, religiões de matriz africana e xamanismo Mbyá-Guarani (Flores 2020). Ainda assim, parece-nos que abordagens críticas à exotização dos evangélicos e à naturalização do catolicismo popular ou do sincretismo afrocatólico esbarram no dilema da “autenticidade” como referente implícito da etnicidade quilombola, ao distinguir os modos de vida “tradicionais” das transformações modernizantes. A seguir, apresentamos algumas notas de pesquisa, observando a coexistência dessas tendências no contexto da nossa pesquisa.

Pluralismo religioso nos quilombos do Recôncavo Baiano

Nos quilombos do Vale do Iguape, em Cachoeira, BA, onde temos realizado parcerias e estudos, encontram-se presentes as linhas de força apresentadas acima, que tensionam a cultura afrocatólica local com a chegada dos evangélicos. São comunidades distribuídas num território geograficamente descontínuo: uma região no entorno de uma Reserva extrativista (Resex) marinha; outra região escarpada que se eleva até os tabuleiros (de maior altitude) do município.10 10 Situadas no entorno da Resex da Baia do Iguape, São Francisco do Paraguaçu (mais de 1.000 famílias) e Santiago do Iguape (cerca de 500 famílias) são comunidades bem maiores que as demais. Dendê, Kaonge, Kalembá, Engenho da Ponte, Engenho da Praia e Tombo/Palmeira são comunidades pequenas (de 16 a 31 famílias) também situadas no entorno e áreas próximas à Resex. Kalolé, Imbiara e Brejo da Guaíba (entre 150 e 205 famílias) apresentam áreas descontínuas, distribuídas entre a parte baixa e alta do território. Tabuleiro da Vitória, Engenho da Vitória, Engenho Novo, Engenho da Cruz e Muteixo/Acutinga (entre 115 e 241 famílias) não margeiam a Resex e se encontram na parte alta do território (com exceção da última). Kaimbongo (20 famílias), também longe da Resex, é a comunidade de mais difícil acesso. As comunidades são diferenciadas no número de famílias; nas condições socioambientais; nas atividades produtivas “na maré” (pesca, produção e ostra) e na “terra” (agricultura, apicultura, azeite de dendê criação de animais); nas sociabilidades festivas e religiosas; dentre outras. Para mais informações de cada comunidade, ver Araújo e colaboradores (2019).

As pertenças religiosas também diferenciam os quilombos dessa região.11 11 Nossa proximidade com as comunidades desse território é bastante assimétrica, com presença frequente em algumas e visitas esporádicas a outras (há comunidades que ainda não conhecemos). Além disso, desde 2014 nossa parceria junto aos quilombolas tem envolvido demandas deles(as) (relatório antropológico, assessorias etc.) e estudos sobre patrimônio, festas, saúde e religião. Os dados referentes às religiões estão emaranhados às outras dimensões da pesquisa, refletindo certos desequilíbrios, o que nos leva a apresentar situações específicas, sem a condição de esboçar algo como um quadro geral. Comunidades mais populosas, como Santiago do Iguape, apresentam certo “pluralismo religioso”, que abarca católicos, espíritas, evangélicos e afro-brasileiros. Dentre as religiões evangélicas temos: Assembleia de Deus (AD), Igreja Batista, Igreja Batista Filadélfia, Igreja Quadrangular e Igreja Universal do Reino de Deus (IURD - que esteve fechada durante um ano por falta de obreiro para dirigir os cultos e atualmente se encontra aberta). Das cinco igrejas evangélicas, a mais antiga é a AD, fundada em 1964.12 12 Existe outra igreja AD na periferia do quilombo. Situações de intolerância contra a AD no passado foram relatados à uma de nossas auxiliares de pesquisa13 13 Conflitos familiares também ocorreram envolvendo mudança religiosa - um caso significativo foi a mudança para o candomblé de uma das filhas de uma liderança da AD, há cerca de 15 anos. Após essa decisão pessoal, ela resolveu se distanciar por medo da não aceitação da família e por muitas vezes negava que tinha mudado de religião. Outro caso de “passagem” se deu na direção oposta: um pai de santo que se tornou evangélico. . Atualmente, segundo relatos de evangélicos da AD, o cenário parece ser de boa convivência com pessoas de outras religiões.

Em algumas comunidades menores predominam as tradições afrocatólicas, como no Kaonge e quilombos próximos, onde se localiza o Terreiro de umbanda “21 Aldeias de Mar e Terra”, sob os cuidados de Dona Juvani, importante liderança religiosa da região, cuja influência se estende até Salvador. Nascida nessa região, ela passou a adolescência na capital para estudar e retornou ao Kaonge aos 19 anos para dar continuidade ao trabalho espiritual iniciado por seu pai, José Viana, não sem alguma resistência em assumir essa “hierarquia”, como ela costuma sublinhar (Tavares et al. 2019TAVARES, Fátima et al. (2019b), Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas. Salvador: EDUFBA .b:46). É notável a proeminência de Dona Juvani e seu irmão Ananias Viana, liderança política, no processo de etnogovernança (Tavares & Caroso 2023TAVARES, Fátima & CAROSO, Carlos. (2023), “Contracolonialismo, etnopolítica e políticas públicas: cartas e etnogovernança quilombola”. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, vol. 55, nº 3: 1-26.), que vem propiciando o florescimento cultural e a etnização da cultura quilombola no Recôncavo Baiano.14 14 As lutas políticas iniciadas nos anos de 1990 se intensificam na década seguinte, com a criação do CECVI (Centro de Cultura do Vale do Iguape), em 2002, e do Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape, em 2008, organização civil sem fins lucrativos que tem como principais finalidades a defesa dos direitos comunitários, a garantia do acesso à terra, a preservação dos bens materiais, imateriais e dos ecossistemas de que dependem essas comunidades para seu desenvolvimento com sustentabilidade. Os representantes (“conselheiros”) das comunidades envolvidas compõem um fórum que se reúne mensalmente (cada mês numa comunidade diferente), onde são tomadas as decisões coletivas sobre questões que envolvem desde o cotidiano das comunidades até os projetos de desenvolvimento de longo prazo. A organização do Conselho Quilombola também tem propiciado o fortalecimento das escolas nas comunidades, a organização de núcleos produtivos, a promoção de eventos festivos e a revitalização do patrimônio cultural e terapêutico.

Nas comunidades do entorno do Kaonge a etnicidade quilombola afrocatólica é nutrida na umbanda, que mobiliza a “hierarquia” da ancestralidade que, para Juvani, frequentemente é presentificada nos sonhos (quando ela recebe orientações de antepassados e de entidades).15 15 Pedro, do Engenho da Praia, descreveu a experiência onírica com São Cosme, no caruru que ele ofereceu anos atrás, quando o altar pegou fogo em razão de não ter “agradado” todas as entidades. Comparece também nas entidades e orixás que “descem” no Terreiro, mas que não se limitam a esse espaço religioso, espraiando-se pelo território.

É o que pode ser visto não apenas nessas comunidades, mas atravessa muitas outras por ocasião dos oferecimentos de caruru que acontecem entre setembro e janeiro, quando a possessão religiosa é esperada como garantia da realização da roda de samba após o banquete festivo (Iyanaga 2010IYANAGA, Michael. (2010), “O samba de caruru da Bahia: Tradição pouco conhecida”. ICTUS - Periódico do PPGMUS-UFBA| ICTUS Music Journal, vol. 11, nº 2: 120-150.; Tavares et al. 2019aTAVARES, Fátima et al. (2019a), Inventário das festas e eventos na Baía de Todos os Santos. Salvador: EDUFBA.). A realização do caruru não é exatamente um ato voluntário, mas implica numa contraprestação com as entidades que “cobram” esses eventos.16 16 Como pondera Neide, do Engenho da Praia: “Eu dei porque eu às vezes tomava susto, tinha insônia…eu mesma senti dor de cabeça, senti vontade de correr…”. Além das casas, durante os “carurus de samba”, as manifestações de entidades podem se presentificar por caminhos e lugares de seu agrado, como no “Pé do Velho”.17 17 Local de devoção mobilizado também na Festa de São Roque, que apresentaremos adiante. Essas disposições religiosas vão além da festa e se espraiam também nas situações cotidianas que envolvem o cuidar das crianças (muitas mulheres aprendem a benzer seus filhos como parte dos cuidados maternos) e nos agenciamentos da saúde, em que se destacam os cuidados por meio das terapias tradicionais, notadamente, as “folhas” e as rezas (Tavares et al. 2019bTAVARES, Fátima et al. (2019b), Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas. Salvador: EDUFBA .).

A ancestralidade afrocatólica no Kaonge e seu entorno também se recria na “invenção” (no sentido de Wagner 2018WAGNER, Roy. (2018), A invenção da cultura. Ubu Editora: São Paulo .) de referentes culturais patrimonializados, como a “Festa da Ostra” e a “Rota da Liberdade”, roteiro de turismo étnico de base comunitária. Iniciada em 2009, a festa, recentemente renomeada de “Festival Cultural e Gastronômico da Ostra”, é um evento anual, realizado no Kaonge, de três dias de duração, que atrai jovens da região nas longas programações musicais que se estendem por toda a noite, e pessoas “de fora”, de Salvador e outros locais, políticos e gestores públicos. A festa entrelaça política, cultura, moda, gastronomia, religião e produção solidária (azeite de dendê, farinha, apicultura, agricultura, artesanato, ostra, pesca, turismo comunitário), ativando referentes da cultura afro-brasileira numa dinâmica moderna de festival e fazendo circular a etnicidade quilombola (Bassi & Tavares 2017BASSI, Francesca Maria Nicoletta & TAVARES, Fátima. (2017), “Preparando o banquete, sonhando a festa: memória e patrimônio nas festas quilombolas (Cachoeira-Bahia)”. ACENO-Revista de Antropologia do Centro-Oeste, vol. 4, nº 7: 15-32.). Mobilizada a partir do “caruru de Vungi”,18 18 Vungi remete à tradição angola das divindades infantis que, no Ketu, são os Ibejis. evento ocorrido em 2005, quando a comunidade recebeu autoridades do governo federal para conversar sobre seus desafios, a feitura afrorreligiosa do caruru (numa ritualística intragrupo) sustenta o banquete devocional de cada edição da festa. A Rota da Liberdade compreende a apresentação de algumas comunidades aos visitantes em roteiros diferenciados que disponibilizam referentes da cultura quilombola a estrangeiros e brasileiros (dependendo do roteiro mais ou menos extenso): visitas à casa de farinha, ao cultivo de ostras, a igrejas e capelas católicas, ao Terreiro “21 aldeias de Mar e Terra”, ao “Pé do Velho”, a vestígios de antigos engenhos e áreas de calabouço; observação da produção de azeite de dendê, farinha e artesanato; benzimento com terapeutas do Kaonge e venda de “remédios” das folhas,19 19 Sendo o “xarope da Vardé” o mais famoso, cuja receita foi passada à Vardé (pessoa mais idosa da comunidade, atualmente com 97 anos) em sonho por uma entidade indígena, especialmente para a Rota da Liberdade. sempre iniciando ou finalizando no Kaonge (Silvera & Tavares 2021SILVERA, Iacy; TAVARES, Fátima. (2021), “O xarope de Dona Vardé e outras receitas de resistência no quilombo Kaonge, Bahia”. ACENO - Revista de Antropologia do Centro-Oeste , vol. 8, nº 17: 331-344.).

Em quilombos menores também existem templos evangélicos. No Engenho da Cruz temos católicos e evangélicos, e em menor medida, afrorreligiosos, mas ainda predomina a visibilidade do catolicismo. A principal festa é a da Nossa Senhora do Bom Parto, que inicia com a “lavagem” (25 de dezembro), seguida das orações do tríduo (29 de dezembro).20 20 No início, as mulheres participavam da festa descalças e com trajes brancos; hoje não mais. No primeiro dia do ano temos a missa com batizados; no dia seguinte, a procissão que se estende até outro quilombo próximo. A devoção à Santa decorreu das inúmeras mortes de parturientes, levando um pequeno grupo de mulheres a se mobilizar em torno da construção da primeira capela (posteriormente reconstruída) e dar início à festa, em meados do século passado. Em 2024 pudemos acompanhar a festa, que foi marcada pela inauguração de uma nova capela, bem maior que as duas anteriores. Temos ainda na comunidade “O Milagre de Santa Bárbara”, uma devoção afrocatólica iniciada por volta da mesma época que a festa católica, e que acontece num local onde está situada uma rocha com fendas e aberturas nas quais, segundo relatos, alguns teriam visto a imagem de Santa Bárbara. Ednalva, liderança da comunidade, explicita essa singularidade: “É um lugar que você vai e que você sente aquela presença, aquela coisa forte da presença de Santa Barbara... de Deus. Você se sente muito fortalecido.” No dia 4 de dezembro (dia da Santa) acontece a “reza”, seguida do oferecimento de mugunzá e do “samba”, quando entidades e orixás se juntam aos humanos para celebrar.

Diferente do Engenho da Cruz, em outros quilombos há forte diminuição de católicos e crescimento da presença evangélica, notadamente Igreja Batista Missionária, Assembleia de Deus e Deus é Amor, denominações com templos em comunidades grandes e pequenas, além do pertencimento a outras igrejas, como as Testemunhas de Jeová, que não tem templo nessa região. A comunidade do Kalolé é marcadamente evangélica;21 21 Na parte da comunidade conhecida como Alto do Kalolé ainda há menção a casas afrorreligiosas. na Imbiara, a presença dos evangélicos ainda não destronou a maioria católica, que recentemente conseguiu reconstruir a pequena capela de Santo Antônio. Nossos interlocutores católicos e evangélicos concordam que a chegada dos evangélicos transformou a sociabilidade local, com o enfraquecimento dos eventos comunitários marcados pelas festas de santo e dos candomblés, que se extinguiram. Lourival, do Kalolé, faz menção a duas casas religiosas afro-brasileiras (uma delas de seu tio) que tinham “sessões” e “consultas” para resolver suas aflições. Raimundo, também do Kalolé, relata que ouvia dizer que numa das casas se cantava e tocava tambores e que havia a realização de “despachos” (oferendas para entidades e orixás). Mas são relatos de um passado distante, de memórias nebulosas, não alcançado pelos mais jovens. Por outro lado, apesar do diagnóstico que marca, entre os católicos, certa saudade do passado festivo, as diferenças religiosas intracomunidade não produzem tensões explícitas em torno da legitimidade da etnicidade quilombola construída pelo Conselho Quilombola.22 22 É claro que pode haver desacordos cotidianos estimulados por diferenças religiosas, mas nunca presenciamos qualquer referência deslegitimadora à identidade quilombola evangélica, tanto nas nossas conversas com interlocutores, quanto nas posições veiculadas “para fora” da comunidade nas reuniões mensais e iniciativas políticas do Conselho Quilombola.

A presença evangélica produziu outros desdobramentos na dinâmica religiosa desses territórios, como o processo de revitalização da Festa de São Roque, que foi “retomada” em 2009, em reação à chegada de uma igreja batista na comunidade do Engenho da Ponte (Bassi & Tavares 2017BASSI, Francesca Maria Nicoletta & TAVARES, Fátima. (2017), “Preparando o banquete, sonhando a festa: memória e patrimônio nas festas quilombolas (Cachoeira-Bahia)”. ACENO-Revista de Antropologia do Centro-Oeste, vol. 4, nº 7: 15-32.). A missa católica, realização de batizados e procissão ocorrem num domingo da festa, sendo antecedidos pela caminhada e peditório lúdico-festivo que é a Esmola Cantada, realizada por quatro domingos consecutivos no mês de janeiro.23 23 Embora o dia dedicado ao Orixá Obaluaê seja no mês de agosto, por exigência do pároco local a comemoração foi antecipada para fevereiro em razão das frequentes chuvas e má condição das estradas na época do inverno. Chama a atenção as origens da festa, que condensa devoção religiosa, memória e ancestralidade, e tem como destacado ponto de intensidade devocional um local na mata conhecido por “Pé do Velho”.24 24 O local em que já existiu uma gameleira de grande porte é objeto da devoção desde os tempos da escravidão. Selma, liderança quilombola, conta que os “antigos” do Engenho da Ponte diziam que todo mês de agosto aparecia um homem idoso descalço andando lentamente pela comunidade com um saco de linhagem, uma cabaça na costa e uma cuia na mão pedindo esmola nas casas. A devoção ao “Velho” surgiu a partir da grande mortandade de crianças e adultos provocada pelas epidemias de cólera no início do século XX, que fez com que as pessoas desse lugar reconhecessem naquele velho um sinal da devoção ao velho orixá, Omolu, também chamado Obaluaê, sincretizado com São Roque. Os moradores se reuniram, então, ao “Pé do Velho” e fizeram uma promessa a São Roque, pedindo para pôr fim à mortandade e prometendo a realização da festa em seu louvor. Próximo dali fica o quilombo Kaonge, local de irradiação da autenticidade quilombola assentada no terreiro de umbanda. É de lá também que surgiu a iniciativa de realização da “Caminhada Ancestrais”, evento anual do Kaonge em que os participantes refazem as trilhas que os antepassados percorriam para a venda de produtos em feiras de localidades quilombolas de Santo Amaro da Purificação, município vizinho. Considerando essas notas de pesquisa, a pergunta que nos orienta é como compatibilizar uma abordagem não essencialista dos modos de vida quilombola e, ao mesmo tempo, considerar criticamente as relações marcadas por tensões que apontam para um pertencimento problemático da presença evangélica na paisagem cotidiana desses territórios? Seguir uma abordagem não essencialista é levar em conta que a relação só pode ser “reconhecida” como projeto parcial - não há como tomar posição de fora dessa relação. Assim, veremos que da perspectiva de católicos e afrorreligiosos existem diferenças fortes na encruzilhada com as percepções evangélicas sobre o que seja a etnicidade quilombola contemporânea.

Perda, exoticidade e diferença nas transformações religiosas

Em evento online sobre tradições religiosas e terapêuticas em comunidades quilombolas do Recôncavo baiano, ocorrido em 2020, em plena pandemia da covid-19, pudemos compartilhar observações com alguns interlocutores sobre a presença crescente dos evangélicos em territórios quilombolas. Mesmo cientes que não se tratava de um evento estritamente acadêmico, mas organizado em articulação com ativistas das comunidades quilombolas com quem temos parceria há uma década, buscamos fazer uma apresentação equidistante das posições a favor ou contrária à presença evangélica. No entanto, com certa surpresa, tivemos que lidar com uma emocionada contra-argumentação vinda de Ananias, do Kaonge, com quem temos muito proximidade. Sua indignação se amparava na recusa em colocar no mesmo nível de legitimidade étnica as tradições religiosas locais afrocatólicas e a presença evangélica nos quilombos. Embora pudéssemos discordar dos seus argumentos, alguma coisa em sua fala nos levou a repensar o que havia se passado ali, as pontas soltas que aquele “ruído” lançara na conversa - o que significava aquela indignação?25 25 Uma ponderação de Meyer (2019) sobre os contornos agudos do sentimento de ofensa que desencadeia fricções e interferências nas arenas públicas de pluralismo religioso foi uma pista para repensarmos o problema. Ela sugere atenção para as “altas sensibilidades e fortes emoções”, fazendo das tensões momentos de aprendizagem, mas afastando-se do relativismo para apostar num “encontro sério e crítico com a diferença” (Meyer 2019:197).

A questão da ofensa, sentida por nosso interlocutor, e que implica no não reconhecimento de “formas sensoriais”26 26 As formas pelas quais se produz o engajamento de grupos, coletivos e comunidades religiosas em disposições estéticas compartilhadas. (Meyer 2019MEYER, Birgit. (2019), Como as coisas importam: uma abordagem material da religião. Porto Alegre: Editora da UFRGS.) dos evangélicos nos territórios quilombolas, pode ser um caminho produtivo para sair de uma oposição entre tradições “autênticas” (afrocatólicas) e a “inautenticidade” dos evangélicos. Como vimos nas seções anteriores, sua presença nos quilombos tem sido interpretada como perda (da tradição), exotismo (“chegaram”, mas são estrangeiros) e desconfiança (das consequências para a etnicidade quilombola).

Seria então possível se afastar da armadilha de “avaliadores” da autenticidade? Pensamos que sim, mas ao mesmo tempo isso não nos libera de tomar posição no reconhecimento dessas transformações para os modos de vida quilombolas, que se fazem nos agenciamentos corporais, religiosos, estéticos e territoriais diferenciados como um devir quilombola. Para isso, como sustenta Sauma (2016SAUMA, Julia. (2016), “Palavras carnais: sobre re-lembrar e re-esquecer, ser e não ser, entre os Filhos do Erepecuru”. Revista de Antropologia, vol. 59, nº 3: 150-173.), temos que nos afastar da perspectiva sociológica, por demais atrelada às narrativas recentes da etnicidade quilombola ancoradas no projeto estatal, para vasculhar os desafios etnográficos implicados nos “mundos possíveis” das identidades negras, de emaranhados da tradição e invenção: “[...] um mundo em que a agência da palavra e, portanto, do conhecimento e da memória não necessariamente produz a continuidade e a coletividade” (Sauma 2016:153).

Abordar as “tradições religiosas” como processo em curso pode ser um primeiro passo na problematização das abordagens do catolicismo festivo e do sincretismo afrocatólico como tradições entesouradas que sustentam certas configurações religiosas como legítimas da etnicidade quilombola. Isso não significa colocar em suspeição a potência dos agenciamentos religiosos afrocatólicos (certamente isso seria uma tolice) em comunidades quilombolas, mas problematizar a naturalização dessas afinidades como identidades essencializadas da cultura negra. É compreender como se estruturam os processos autoritativos em torno das tradições religiosas num contexto de crescente pluralidade e potencial conflito nesses territórios. É mapear os processos pelos quais as tradições se legitimam como autênticas, desviando-se das armadilhas do dualismo da autenticidade e inautenticidade (Meyer 2019MEYER, Birgit. (2019), Como as coisas importam: uma abordagem material da religião. Porto Alegre: Editora da UFRGS.).

Seguir esse caminho nos leva a reconsiderar a postura denunciativa da evangelização em quilombos, que discrimina identidades “mais” ou “menos” verdadeiras. A convivência entre católicos, afrorreligiosos e evangélicos se faz na política da etnicidade, reconhecendo certos canais autoritativos das experiências religiosas como legítimos em detrimento de outros. Da perspectiva dos evangélicos, outras possibilidades de performar a condição quilombola e seus desdobramentos identitários encontram-se em curso, como já apontava Boyer (1996BOYER, Véronique. (1996), “A etnicidade dos quilombolas e a religião dos Evangélicos: um exemplo do Baixo Amazonas”. Boletim Rede Amazônia, ano 2, nº1: 29-36.:33): “[...] Apesar da incompatibilidade parecer naquele momento insuperável, os crentes na verdade não se negam a ser quilombolas. Simplesmente eles não aceitam as modalidades da sua atual definição”. Parece-nos, assim, que do ponto de vista dos evangélicos, religião e etnicidade quilombola são referentes que operam em descontinuidade.

Por outro lado, diferente das tradições do cristianismo, em que as palavras anunciam a presença do sagrado, a devoção afrocatólica dos quilombos depende do encadeamento adequado da presença das coisas sagradas e dos lugares em que se habita. Assim, da perspectiva de afrorreligiosos e católicos, etnicidade quilombola e devoção afrocatólica encontram-se numa relação de continuidade transformacional, em que se imiscuem corpos abertos ao devir de encantados, orixás, entidades da umbanda, espíritos e antepassados, que se presentificam nesses territórios de ancestralidade marcada pela coabitação de humanos e não humanos. A profundidade temporal da ancestralidade como referente da etnicidade pode ser percebida na intenção de Ananias (mencionada conosco e com outros “parceiros” em 2019) de postular junto ao Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a patrimonialização da extensão contínua do território em que estão situadas as comunidades dessa região buscando, assim, ativar essas memórias vividas numa espécie de decalque geográfico.27 27 Em 20 de novembro de 2023, foi publicada a Portaria do Iphan de tombamento constitucional desses territórios.

Comentários finais

Com base na bibliografia especializada e nas notas de pesquisa sobre as comunidades quilombolas de Cachoeira, é possível identificar diferentes arranjos da relação entre religiões, identidades e etnicidade quilombolas. Mas, como apontamos, muitos trabalhos estão marcados pela clivagem sobre as “verdadeiras” identidades religiosas que legitimam a etnicidade quilombola. Católicos e afrorreligiosos têm sido compreendidos sob a chave da tradição e da autenticidade. Por outro lado, a presença evangélica apresenta deslizamentos interpretativos acerca da “exoticidade” de sua presença: como sintoma da “perda” da cultura (da tradição afrocatólica) até a sua suspeição como referente legítimo da etnicidade quilombola. Nos poucos contextos empíricos de hegemonia evangélica abordados pela literatura, temos interpretações conflitantes. Mencionamos o caso-limite do “quilombo protestante” Mel da Pedreira, AP. Mas esses processos também podem passar pelo silenciamento, dissociação e ressignificação das referências afrocatólicas, condensadas em símbolos religiosos transformados em “cultura” (Carneiro da Cunha 2018CUNHA, Manuela Carneiro da. (2018), Cultura com aspas. Ubu Editora: São Paulo. ), como nas comunidades dos municípios fluminenses de Campos e Búzios.

Indicamos também que reconhecer a diferença entre afrocatólicos e evangélicos não significa assumir, enquanto pesquisadores, uma posição equidistante de ambas as experiências religiosas. A partir de nossas observações, consideramos necessário explicitar nosso lugar de proximidade com católicos e afrorreligiosos na compreensão dos referentes que sustentam cada diferença para situar o problema das religiões nesses territórios embebidos pela profundidade temporal da ancestralidade das experiências negras.

Assim, vimos que, para os evangélicos, os processos de ressignificação da etnicidade quilombola apresentam desdobramentos variados. Já da parte de católicos e afrorreligiosos, a continuidade entre etnicidade e devoção afrocatólica tem na ancestralidade um ponto focal das narrativas, ancorada não apenas na dimensão geracional dos antepassados, mas sobretudo no “tempo da escravidão”. A devoção afrocatólica não se reduz, portanto, aos espaços institucionais de igrejas, terreiros e roças, mas se faz num território que se tornou prenhe de experiências que não podem ser apagadas ou “ressignificadas” pela conversão evangélica. Pensamos ser essa a diferença que motivou a indignação do nosso interlocutor naquele evento online...

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  • TAVARES, Fátima et al (2019a), Inventário das festas e eventos na Baía de Todos os Santos Salvador: EDUFBA.
  • TAVARES, Fátima et al (2019b), Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas Salvador: EDUFBA .
  • TAVARES, Fátima & CAROSO, Carlos. (2023), “Contracolonialismo, etnopolítica e políticas públicas: cartas e etnogovernança quilombola”. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, vol. 55, nº 3: 1-26.
  • VIDAL, Rogério Lima. (2013), No chão do terreiro: tradições religiosas e festivas, aprendizagens e identidade étnica no Povoado do Mucambo, Oeste da Bahia Salvador: Dissertação de Mestrado em Educação e Contemporaneidade, UFBA.
  • WAGNER, Roy. (2018), A invenção da cultura Ubu Editora: São Paulo .
  • 1
    Utilizamos o termo “evangélicos” para abarcar denominações protestantes e pentecostais. Nas citações dos trabalhos buscamos reproduzir os termos utilizados pelos autores, seja com categorias genéricas como evangélicos” ou “pentecostais”, seja com a menção à denominação específica.
  • 2
    Merece menção a “Associação Cultural da Missão Quilombo”, fundada em 1991, por Ernani da Silva, da igreja pentecostal Brasil para Cristo, em São Paulo.
  • 3
    Sem a pretensão de recobrir quantitativamente a totalidade da produção sobre o tema, ainda assim o levantamento bibliográfico realizado em 2019 e 2020 pelas então bolsistas de iniciação científica Gisele de Deus Souza e Lídia Bradymir dos Santos foi extenso. Reuniu 78 trabalhos disponibilizados na internet por meio do motor de busca Google Acadêmico, na plataforma Lilacs e na plataforma de teses e dissertações da Capes (artigos, trabalhos em anais, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso), além de livros autorais e coletâneas. O recorte foi a abordagem do tema das religiões e/ou religiosidades em quilombos como questão central do trabalho ou em articulação com outros temas e questões, nos casos em que o tema da religião alcançava relevância. Foram considerados todos os trabalhos que incorporaram a categoria “quilombo” e “comunidades negras rurais”, sendo o material dividido pela religião abordada ou em associação ao tema principal do trabalho, organizado em quatro “categorias”: catolicismos (19 trabalhos); afrocatolicismos e afro-brasileiros (17 trabalhos); evangélicos (26 trabalhos); outros agenciamentos religiosos (6 trabalhos). Como exceção do trabalho de Véronique Boyer, de 1996 (que será mencionado adiante), todos os trabalhos são posteriores aos anos 2000, intensificando-se a partir de 2010 (o levantamento se estendeu até 2021, acrescido de alguns trabalhos publicados posteriormente) e compreende as áreas do conhecimento e programas de pós-graduação: antropologia, ciências sociais, sociologia política, estudos étnicos e Africanos, educação, história, ciências da religião, teologia, geografia, comunicação, literatura, interdisciplinar (para trabalhos publicados em anais).
  • 4
    Alguns trabalhos abordam aspectos da cultura católica para além da festa, como a relação entre identidade religiosa e étnica em quilombo do Paraná (Porto, Kaiss & Cofré 2012) e diferentes movimentos do catolicismo: atividade missionária católica em quilombos do Vale da Ribeira (D’Almeida 2019D’ALMEIDA, Sabrina Soares. (2019), “‘Para que todos tenham vida, e vida em abundância’: a atividade missionária católica em defesa dos direitos de comunidades negras e quilombolas”. Religião & Sociedade, vol. 39, nº 2: 100-121.), Comunidades Eclesiais de Base em quilombos amazônicos (Maués 2010MAUÉS, Raymundo Heraldo. (2010), “Comunidades ‘no sentido social da evangelização’: CEBs, camponeses e quilombolas na Amazônia Oriental Brasileira”. Religião & Sociedade , vol. 30, nº 2: 13-37.), confluência entre devoção mariana e política como “percurso inacabado” do devir quilombola no Ceará (Machado 2020MACHADO, Cauê Fraga. (2020), “Religião, política e a re-existência quilombola na Serra do Evaristo (CE)”. ACENO - Revista de Antropologia do Centro-Oeste , vol. 7, nº 15: 19-40.).
  • 5
    “[...] podem usar turbante, resgatar o jongo mas não atribuem a isso um sentido religioso e sim cultural e estético, bem como fizeram com batizado das bonecas, com padrinhos e madrinhas, celebrado por um padre” (Carvalho 2015:92). Interessante registrar a abordagem destoante sobre a mesma comunidade quilombola fluminense, com as “perdas das práticas afrocatólicas”, como a resistência ao jongo, destacadas por Carmo (2018). A reabilitação do jongo parece, dessa forma, ser prática ainda controversa. A autora indica haver um movimento de ressignificação cultural em relação ao “batizado das bonecas”, mas isto não se passaria com o jongo: “A pertença evangélica de Rasa emerge como elemento fundamental para o afastamento de expressões culturais, como o jongo, na construção da identidade quilombola do grupo, embora sejam essas principais referências identitárias das comunidades quilombolas do sudeste ao legitimar seu reconhecimento dessas identidades” (Carmo 2018:9CARMO, Ione Maria do. (2018), “Práticas culturais afro-brasileiras e pertença evangélica na comunidade da Rasa/RJ”. XIV Encontro Nacional de História Oral. Campinas: Associação Brasileira de História Oral.).
  • 6
    A estratégia da Fundação foi a de separar “cultura afro” da “religião afro”, com a criação de centro de referência cultural apoiado pela Petrobrás para revitalização do jongo e da capoeira, movimento que não parece ter sido bem recebido pelos evangélicos.
  • 7
    “A identidade quilombola que os evangélicos do Imbé assumem, em contrapartida às atividades propostas pelo pessoal dos quilombolas, produzem dimensões paradoxais quanto à assunção de um vínculo identitário ou outro. Há, em certa medida, uma dissonância entre a identidade de macumbeiro, atribuída às formas de vida de seus antepassados e a identidade de cristãos à qual os atuais moradores estão vinculados como constitutivos de suas trajetórias históricas compartilhadas. Isso exige que os evangélicos estabeleçam limites claros, embora nem sempre simples de serem formulados, entre a assunção da identidade quilombola e a existência de outros tipos de quilombolas, diferentes deles, sendo esses sim, associados ao jongo, à capoeira e à macumba.” (Ribeiro 2011:102, grifos da autora).
  • 8
    Interessante destacar a exceção do quilombo São Jose da Serra, em Valença, RJ, apresentada pela autora. Nessa comunidade de católicos e umbandistas, a liderança aponta ser o lugar “muito pequeno para mais de duas religiões” (Almeida 2022:172), justificando, como isso, os esforços dela e de outros na manutenção dos vínculos religiosos tradicionais.
  • 9
    Vale ainda registrar outros devires das religiões de matriz africana para além dos desafios com os evangélicos, como na Comunidade Morada da Paz, em Triunfo, RS, de espiritualidade “afrobudígena”, articulando budismo tibetano mahayana, religiões de matriz africana e xamanismo Mbyá-Guarani (Flores 2020FLORES, Luiza Dias. (2020), “Um “nós” intercessor: quando a etnografia também é magia”. Mana, vol. 26: e262201. ).
  • 10
    Situadas no entorno da Resex da Baia do Iguape, São Francisco do Paraguaçu (mais de 1.000 famílias) e Santiago do Iguape (cerca de 500 famílias) são comunidades bem maiores que as demais. Dendê, Kaonge, Kalembá, Engenho da Ponte, Engenho da Praia e Tombo/Palmeira são comunidades pequenas (de 16 a 31 famílias) também situadas no entorno e áreas próximas à Resex. Kalolé, Imbiara e Brejo da Guaíba (entre 150 e 205 famílias) apresentam áreas descontínuas, distribuídas entre a parte baixa e alta do território. Tabuleiro da Vitória, Engenho da Vitória, Engenho Novo, Engenho da Cruz e Muteixo/Acutinga (entre 115 e 241 famílias) não margeiam a Resex e se encontram na parte alta do território (com exceção da última). Kaimbongo (20 famílias), também longe da Resex, é a comunidade de mais difícil acesso. As comunidades são diferenciadas no número de famílias; nas condições socioambientais; nas atividades produtivas “na maré” (pesca, produção e ostra) e na “terra” (agricultura, apicultura, azeite de dendê criação de animais); nas sociabilidades festivas e religiosas; dentre outras. Para mais informações de cada comunidade, ver Araújo e colaboradores (2019)ARAÚJO, Marcelo; DI BLANDA, Leonardo & MOLINU, Martina (orgs.). (2019), Mapeamento participativo das comunidades remanescentes de quilombo e dos conflitos ambientais do Vale do Iguape. Cruz das Almas, BA: Editora UFRB..
  • 11
    Nossa proximidade com as comunidades desse território é bastante assimétrica, com presença frequente em algumas e visitas esporádicas a outras (há comunidades que ainda não conhecemos). Além disso, desde 2014 nossa parceria junto aos quilombolas tem envolvido demandas deles(as) (relatório antropológico, assessorias etc.) e estudos sobre patrimônio, festas, saúde e religião. Os dados referentes às religiões estão emaranhados às outras dimensões da pesquisa, refletindo certos desequilíbrios, o que nos leva a apresentar situações específicas, sem a condição de esboçar algo como um quadro geral.
  • 12
    Existe outra igreja AD na periferia do quilombo.
  • 13
    Conflitos familiares também ocorreram envolvendo mudança religiosa - um caso significativo foi a mudança para o candomblé de uma das filhas de uma liderança da AD, há cerca de 15 anos. Após essa decisão pessoal, ela resolveu se distanciar por medo da não aceitação da família e por muitas vezes negava que tinha mudado de religião. Outro caso de “passagem” se deu na direção oposta: um pai de santo que se tornou evangélico.
  • 14
    As lutas políticas iniciadas nos anos de 1990 se intensificam na década seguinte, com a criação do CECVI (Centro de Cultura do Vale do Iguape), em 2002, e do Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape, em 2008, organização civil sem fins lucrativos que tem como principais finalidades a defesa dos direitos comunitários, a garantia do acesso à terra, a preservação dos bens materiais, imateriais e dos ecossistemas de que dependem essas comunidades para seu desenvolvimento com sustentabilidade. Os representantes (“conselheiros”) das comunidades envolvidas compõem um fórum que se reúne mensalmente (cada mês numa comunidade diferente), onde são tomadas as decisões coletivas sobre questões que envolvem desde o cotidiano das comunidades até os projetos de desenvolvimento de longo prazo. A organização do Conselho Quilombola também tem propiciado o fortalecimento das escolas nas comunidades, a organização de núcleos produtivos, a promoção de eventos festivos e a revitalização do patrimônio cultural e terapêutico.
  • 15
    Pedro, do Engenho da Praia, descreveu a experiência onírica com São Cosme, no caruru que ele ofereceu anos atrás, quando o altar pegou fogo em razão de não ter “agradado” todas as entidades.
  • 16
    Como pondera Neide, do Engenho da Praia: “Eu dei porque eu às vezes tomava susto, tinha insônia…eu mesma senti dor de cabeça, senti vontade de correr…”.
  • 17
    Local de devoção mobilizado também na Festa de São Roque, que apresentaremos adiante.
  • 18
    Vungi remete à tradição angola das divindades infantis que, no Ketu, são os Ibejis.
  • 19
    Sendo o “xarope da Vardé” o mais famoso, cuja receita foi passada à Vardé (pessoa mais idosa da comunidade, atualmente com 97 anos) em sonho por uma entidade indígena, especialmente para a Rota da Liberdade.
  • 20
    No início, as mulheres participavam da festa descalças e com trajes brancos; hoje não mais.
  • 21
    Na parte da comunidade conhecida como Alto do Kalolé ainda há menção a casas afrorreligiosas.
  • 22
    É claro que pode haver desacordos cotidianos estimulados por diferenças religiosas, mas nunca presenciamos qualquer referência deslegitimadora à identidade quilombola evangélica, tanto nas nossas conversas com interlocutores, quanto nas posições veiculadas “para fora” da comunidade nas reuniões mensais e iniciativas políticas do Conselho Quilombola.
  • 23
    Embora o dia dedicado ao Orixá Obaluaê seja no mês de agosto, por exigência do pároco local a comemoração foi antecipada para fevereiro em razão das frequentes chuvas e má condição das estradas na época do inverno.
  • 24
    O local em que já existiu uma gameleira de grande porte é objeto da devoção desde os tempos da escravidão. Selma, liderança quilombola, conta que os “antigos” do Engenho da Ponte diziam que todo mês de agosto aparecia um homem idoso descalço andando lentamente pela comunidade com um saco de linhagem, uma cabaça na costa e uma cuia na mão pedindo esmola nas casas. A devoção ao “Velho” surgiu a partir da grande mortandade de crianças e adultos provocada pelas epidemias de cólera no início do século XX, que fez com que as pessoas desse lugar reconhecessem naquele velho um sinal da devoção ao velho orixá, Omolu, também chamado Obaluaê, sincretizado com São Roque. Os moradores se reuniram, então, ao “Pé do Velho” e fizeram uma promessa a São Roque, pedindo para pôr fim à mortandade e prometendo a realização da festa em seu louvor.
  • 25
    Uma ponderação de Meyer (2019) sobre os contornos agudos do sentimento de ofensa que desencadeia fricções e interferências nas arenas públicas de pluralismo religioso foi uma pista para repensarmos o problema. Ela sugere atenção para as “altas sensibilidades e fortes emoções”, fazendo das tensões momentos de aprendizagem, mas afastando-se do relativismo para apostar num “encontro sério e crítico com a diferença” (Meyer 2019:197).
  • 26
    As formas pelas quais se produz o engajamento de grupos, coletivos e comunidades religiosas em disposições estéticas compartilhadas.
  • 27
    Em 20 de novembro de 2023, foi publicada a Portaria do Iphan de tombamento constitucional desses territórios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    23 Maio 2024
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