Open-access Exumado: o que resta de Michel de Certeau

CERTEAU, Michel de. La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle – II. 2013. Gallimard, Paris: 390

Desde sua morte, em 1986, Michel de Certeau tem na figura de Luce Giard uma espécie de exumador-chefe responsável pela edição do disperso de suas publicações. Giard é mais conhecido do público brasileiro por via de A invenção do cotidiano, publicado pela editora Vozes. Isto também se dá com Michel de Certeau, o que pode fazer com que o conteúdo desta resenha pareça resultado de mistificação dado o vínculo da trajetória do pesquisador com a ciência mística, trajetória esta simplesmente ausente de sua recepção no Brasil, fazendo com que o mesmo Michel de Certeau seja compreendido como um teórico da prática cuja prática de pesquisa nunca deu as caras por aqui. Assim, tenho minhas dúvidas se os ares de mistificação não são o efeito primeiro do revirar dos ossos de um morto pouco frequentado, efeito este que se transforma no primeiro obstáculo da atividade de edição que, ao mesmo tempo, analisa e produz restos, como num urbanismo feito com ruínas. O jogo de remontar o corpo de Certeau, que agora se manifesta pelos restos mortais, prosseguiu em 2013. Com a publicação do segundo volume de La fable mystique, a edição das obras de Certeau deu mais um passo na direção da produção de um arquivo destinado à coleção dos escritos do historiador jesuíta. Desse modo, projeta a imagem de uma figura que não é outra coisa senão um compósito de relações que, por falta de nome melhor, convém chamar de autoria.

O livro em questão conta com doze capítulos: a introdução discute o problema da historicidade da mística e seus aportes metodológicos; o último leva o discurso místico ao paroxismo em um estudo sobre a glossolalia, cumprindo um arco de pesquisas a respeito da enunciação sobre, e do, indizível. Este é, em linhas gerais, o elenco dos temas desenvolvido pelo livro de 1982, o primeiro volume de La fable mystique. E é na sucessão de analogias temáticas que uma certa imagem autoral é composta. Ainda que bastante mais heteróclito quanto ao seu conteúdo e escopo cronológico, cobrindo publicações dispersas em periódicos entre 1970 e 1985, a edição de Giard reúne neste segundo volume a persistência de Michel de Certeau em lidar com a mística na reunião dos seus detalhes. Respeita do começo ao fim a circunscrição formal do problema, assim como revela uma obsessão que caracteriza a relação entre editor e editado, Giard e Certeau, ambos reconhecíveis pelo signo da missão tecida tanto nas franjas da história quanto nos excessos da Companhia de Jesus cuja trajetória não é outra senão um enorme entrelaçamento entre editores e editados. E é esta trama, em que a experiência intransferível é matéria a partir da qual se funda toda uma instituição que serve como matriz da reflexão, que dá contornos de identidade ao pensamento, editado, de Michel de Certeau. Afinal, a experiência mística, uma vez cunhada na forma de relato impresso, serve como moeda de troca em toda a Companhia de Jesus. É esta economia que a empreitada de La fable mystique tenta reconstituir ao mesmo tempo em que, à sua forma, acaba por participar. Se as diversas atividades litúrgicas e rituais podem ser sintetizadas na fórmula donner à voir, o empreendimento editorial em questão, em que se sintetizam boa parte dos principais movimentos das religiões cristãs a partir do século XVII, faz de si mesmo o objeto capturado no recurso de donner à lecture, cujo silêncio característico indica não ser menos ritual que sua alternativa.

Os capítulos reunidos tratam fundamentalmente da questão da mística como discurso sobre o indizível precipitado pela relação imediata com o divino. A edição aparece, então, como a formalidade prática de uma ciência mística que exerce o controle da experiência nos termos da ordem eclesiástica traduzindo, assim, o indizível num sistema de ordens de comunicação. A edição, tanto dos textos de Certeau quanto dos que compõem a matéria da ciência mística, é fruto da persistência em reunir na forma de um corpuso conteúdo experimental da trajetória de vida de alguém que, na fórmula de Michel de Certeau, é a própria figura do viajante encarnado. Desta forma, o místico é aquele que “não pode parar de caminhar e que, com a certeza disso que lhe falta, sabe de cada lugar e de cada objeto, que não é isso, que não se pode residir aqui e tampouco se contentar com aquilo” (La Fable mystique I, 1982:411). O místico orienta-se pela relação inconstante na qual sua trajetória não é fruto de trânsito num plano ordenado. É resultante da proliferação de analogias selvagens, cujo controle editorial não pode contradizer os imperativos institucionais que todavia o condicionam. Nisso, uma segunda conformação espacial do enunciado místico: o lugar. É num território especificado pelo ordenamento que toma forma a concretização da elaboração escrita de um sistema editorial dirigido por uma dada instituição, como numa dada ordem da Igreja Católica em meio ao vigor da modernidade clássica, digamos, a Companhia de Jesus, por exemplo. Os elementos formais da mística são então encarados como radicalmente distintos daquilo que é a experiência ordinária, produzindo embaraços tanto políticos quanto epistemológicos que figuram como tema reincidente de Michel de Certeau. Com isso, o enunciado místico é relegado às variações do negativo da experiência, enquanto suas personagens são deslocadas para o território da idiotia em que vigem as assíntotas do significado e o paroxismo das sensações corporais do entusiasmo próprios dos loucos, das crianças e dos selvagens. Assim, a tarefa de editar é também a de traduzir – outra arte jesuíta por excelência. Mas voltemos ao livro.

No primeiro capítulo encontramos um longo ensaio sobre Nicolau de Cusa em que o historiador discute a complexa relação da mística cusana com o conceito deolhar (regard). Nele, Certeau localiza a figura do místico renascentista no campo eclesiástico do seu tempo a partir da relação entre a instância multiplicadora das linguagens da Docta ignorantia e sua tensão constituinte com outro texto, De concordantia catholica, em que discute a hierarquia das ordens sacramentais e uma possível mediação destas por instâncias populares em busca de consenso. É na dupla tarefa de Nicolau, administrador e pesquisador, que a tensão constituinte da tarefa de escrever da ciência mística toma forma em toda a dialética que lhe é própria. Ao invés de fazer recurso a uma hierarquia dos ordenamentos, orienta-se pela tensão entre singularidades da experiência – toda experiência é singularidade – e os modos de transferência de uma singularidade para outra – o que, em grande parte, responde à discussão geral sobre os problemas da transferência tropológica e da tradução, que em Nicolau se exprime também como geometria. O binômio entre ver (regarder) e ser visto que a geometria promove por via da concretização das formas eternas é exemplar ao tratar da forma pela qual a mística é administrada. As formas de ver e as formas de dizer estão implicadas paradigmaticamente – “a figura está para a estrutura assim como o discurso está para o simbólico” (:97).

No segundo capítulo encontramos um segundo ensaio, mais curto, sobre a poética como transmissora de modos formais, em que a história se apresenta nos escritos de São João da Cruz. Aqui, ritmo e cadência são tão relevantes quanto conceito e instituição (taxinomia e norma), lembrando que constantes de ritmo e andamento se referem ao domínio da ambiência (Stimmung), mais frequentemente reconhecido como próprio da atividade musical. Há nos Cânticos o engendramento da ambiência mística em que ritmo, rima e repetição fazem recuperar e transmitir sem com isso poder circunscrever seu objeto. O mesmo São João da Cruz é alvo de uma terceira investigação dedicada aos seus Dichos em que o dito tem o valor de um conceito, em que o enunciado se alia à potência operativa (obra y virtude), conseguindo articular verbalmente a abundânciae, assim, fazer ver. A partir do quarto capítulo nos aproximamos ainda mais do empreendimento do primeiro volume de La fable mystique, dado que discute, sob a rubrica dos usos da tradição, a noção de interpretação como textorecebido (texte reçu). Aqui a trama urdida na relação entre figuras da tradição mística é posta, ela mesma, como intérprete e, portanto, herdeira da mesma tradição. São João da Cruz e Jean-Joseph Surin são postos um ao lado do outro sem usufruto do expediente da influência. O que está em jogo é a apropriação da tradição fazendo com que a obra de cada um dos envolvidos seja uma espécie de caixa de joias trancada por dentro. Entendendo que Surin é o leitor de São João, o exercício consta em compreender quem é o São João da Cruz guardado nos escritos de Surin, seu leitor ou, na verdade, seu receptáculo. Esta marca, a da leitura de um texto que é recebido de fora, de uma mensagem dita por uma relação absolutamente estrangeira e, exatamente por isso, cheia de significado sobre os quais não se pode dizer, mas que fazem dizer, também está presente nos demais ensaios do livro. É a mística como produtora de “efeitos próprios de uma ciência selvagem” (:38) que se transmite, não podemos esquecer, à própria edição dos textos místicos em que o editor é, mais uma vez, receptáculo, promovendo uma figura complexa em que a relação entre continente e conteúdo possa ser invertida; em que possuído e possessor são alternativos; em que a remissão a quaisquer diretos autorais tenha mais a ver com uma chave disjuntora do que com um conjunto de leis.

Os capítulos restantes cobrem temas que abrangem desde a noção de leitura absoluta dos livros espirituais, que assumem, por vezes, o lugar das instituições na transmissão da palavra de fé, até a fala dos anjos como conteúdo da experiência mística que estabelece uma relação imediata com o indizível que se faz presente para transmitir a mensagem que se reproduz como significante potente. A dialética entre presença e sentido está em todos os lugares e, ao mesmo tempo, em lugar algum, dado que é negativa, é puro acontecimento. São temas em que vigem os paradoxos da comunicação a partir do qual encontramos outros tantos, como a respeito dosruídos enunciativos que se conectam metonimicamente com a mística; e como a mística assume ares de ciência experimental da loucura. Esta variedade, que tem como liame a persistência de um programa de pesquisa, é abordada com alguma dose de redundância própria das obsessões e da gagueira da idiotia em que o redundar segue sem encontrar um objeto preciso, positivo e estável. E é nesta instabilidade que Certeau reconhece a historicidade da mística na trama da fala angelical e a fugacidade significativa do seu registro:

Como uma fotografia, o anjo marca, daqui por diante, as articulações instantâneas entre uma visão evanescente (a “visio disparens”) e um local estrangeiro de registro. Com efeito, o corpo não guarda mais qualquer voz ou sopro que insinuaria uma continuidade entre o anjo e a alma; ele é espaço de inscrição para o efeito e sintoma do anjo desaparecido; é um “livro” onde resta a marca disso que se perde, “um escritório” “informado” daquilo que não mais se diz (:272-273, tradução nossa).

O capítulo de introdução, cujo título é exatamente “Historicidades místicas” (publicado originalmente em 1985 na revista Recherches de science religieuse), demarca o que é possível reconhecer como sendo o domínio historiográfico e, portanto, institucional, que se dedica à ciência mística. Como objeto de historiografia, ela deve estar presente em um corpo documental cuja inscrição deve exibir o arranjo que lhe é peculiar, arranjo este que enuncia o que se presta a ser seu objeto, a fugacidade da assíntota entre a experiência e o domínio; entre communitas eecclesia. “Sem processo, não há místicos”, redigiu certa vez Michel de Certeau (:24), reconhecendo nisso o primado do território sob controle na necessidade de determinação do conteúdo místico a ser comunicado. Isto quer dizer que, sem a hostilidade oriunda de algum setor, ordem ou figura da hierarquia que produza consigo outros documentos que problematizem uma dada personagem por via das idiotices que diz, seja fazendo apologia, seja polêmica, o enunciado místico persistiria sendo uma remissão vaga a uma figura própria do “ouvir dizer” que redunda em feitiçaria. O primeiro tratamento documental é, portanto, fruto da própria instituição cristã que previne o corpo social da manifestação insensata da anarquia do amor, como bem notara Ernst Troeltsch. Não se trata, contudo, do atrelamento da mística ao seu contexto de produção. Assim como na remissão a Surin, herdeiro de São João da Cruz, o que está em questão é a forma como o texto místico se destaca do seu contexto social, uma vez que é este exatamente o efeito que faz com que o discurso de piedade seja perturbador. É preciso saber o modo pelo qual o enunciado místico está sempre fora do lugar, fora de contexto, questão para a qual uma certa tradição reconhece no editor dos escritos dispersos o porta-voz do conceito e transmissor de presença. Nisto, a relação editorial encenada por Giard e Certeau não deixa de reinserir o problema da ciência mística no mesmo curto-circuito que a precipita.

Giard relata na apresentação do segundo volume de La fable mystique que este empreendimento editorial aparentemente sem fim – Michel de Certeau tem 422 publicações devidamente inventariadas, em diversas línguas – é uma missão confiada pelo próprio historiador e por isso leva adiante a tradição na qual ele mesmo tomou parte. São João da Cruz teve Diego de Jesus. Santo Ignacio de Loyola, Luiz Gonzáles. Pierre Favre teve em Michel de Certeau editor atento e fiel ao seu repertório místico-experimental. O mesmo Certeau, mais adiante, seria o mais dedicado exumador dos escritos de Jean-Joseph Surin, jesuíta designado para conter a crise das irmãs ursulinas em meados do século XVII, em Loudun – fazendo o mesmo com Lafitau e Aquaviva em ensaios menores. Desde 1986, Giard faz o mesmo com a obra de Michel de Certeau, o jesuíta a ser domesticado pela edição de suas próprias obras.

A figura de editor e curador da obra de Michel de Certeau é, à sua forma, igualmente importante na compreensão não somente deste segundo volume de La fable mystique. De uma forma geral, ela corresponde a uma tradição detextes reçus que cumpre no seu devido momento o imperativo de organizar, editar e publicar os escritos de outrem, também dispersos em arquivos. Até 2013 já podemos contar com cinco coletâneas editadas e seis livros reeditados, frequentemente acrescidos de um novo prefácio da lavra do mesmo Giard. Para além disso, Giard organizou dois colóquios em homenagem a Michel de Certeau, um publicado pela editora Cerf e outro pela editora Jêrome Millon. Em grande medida, é Luce Giard quem tem feito de Michel de Certeau algo além de um disperso de notas distribuídas entre publicações mais ou menos reconhecidas, fazendo da inconstância um nexo coerente da instituição da história contando com, pelo menos, lombada, capa e índice remissivo. O que parece uma caricatura é, na verdade, a história de uma relação que se faz presente e que, a muito custo, busca, também, fazer sentido.

É da conectividade entre as partes que a literatura mística parece viver, produzindo conexões que gerem conexões futuras – o que fica evidente no comentário de Michel de Certeau à obra de Nicolau de Cusa. A cada singularidade, a cada acontecimento, um acontecimento singular correlato, relação por relação, o que é próprio da paisagem mística em que cada lugar são todos os lugares e, assim, lugar algum. Isso faz com que o conjunto de singularidades só seja reconhecível por meio das formas eternas, este recurso neoplatônico. A ciência mística transforma-se, deste modo, em um instrumento de captura propositadamente falho no qual, ao mesmo tempo em que aprisiona a presa, indica o caminho de sua fuga. Esta contradição exprime a inextinguível história do problema da experiência em que a mística é, por sua vez, um capítulo singular que tem como um de seus momentos a relação fugaz entre editor e editado; Luce Giard e Michel de Certeau, ambos autores de uma história que não pertence a nenhum dos dois.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
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