Quase tudo no candomblé se faz com comida ou passa necessariamente por ela. O banquete, que reúne o natural, o cultural e o espiritual, dá o tom dos trabalhos e ritos nos terreiros, e é isso que o antropólogo Patrício Carneiro Araújo aborda em Mesa fria: um estudo das formas hiper-ritualizadas de alimentar no candomblé (2023). O livro é resultado de seu estágio pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN). A obra, dividida em introdução e quatro capítulos, inclui um glossário, dois cadernos iconográficos e uma apresentação escrita pelo professor Luiz Carvalho de Assunção (PPGAS/UFRN).
Na Introdução, Araújo indica que a Mesa Fria está “ligada à ritualização do consumo de comidas votivas e ao gerenciamento do desperdício de alimentos intraterreiro” (:16). De forma simplificada, a Mesa Fria é o ápice de um conjunto de ritos do candomblé jeje-nagô, que começa no jogo de búzios, passa pelo orô (ritual de imolação) e culmina numa refeição hiper-ritualizada, assumindo a forma de um rito de comensalidade. A expressão geralmente se refere ao ponto culminante desse conjunto de ritos, quando o pai ou a mãe de santo, acompanhados pelos filhos e filhas da casa e algumas pessoas convidadas, comungam através da comida, que naquela ocasião está fria e deve assim ser consumida. Além disso, Araújo sublinha que o termo “mesa” pode ser polissêmico no mundo das religiões afro-brasileiras. No caso estudado no livro, “mesa” representa uma configuração ritual momentânea na hora do comer, “já que o rito não requer a presença de uma mesa - no formato que conhecemos corriqueiramente fora dos terreiros - e toma vez no chão, sobre esteiras” (:40).
O preparo da comida, o ato de comer e o manejo do que resta da refeição seguem uma ordem e uma lógica próprias do candomblé. Segundo o autor, na hora do comer, revelam-se, entre outras coisas, a divisão sexual do trabalho religioso e a hierarquia iniciática. No entanto, como o texto ressalta em diversos momentos, o tema da Mesa Fria é pouco pesquisado e/ou compreendido. Nem todas as casas ou nações de candomblé fazem esse ritual, e mesmo entre aquelas que o fazem, as práticas variam. A discussão que Araújo propõe centra-se na relação dos terreiros com o mundo contemporâneo, ou externo, na qual, por um lado, se busca a preservação da tradição e, por outro, se realizam negociações e adaptações rituais.
Junto a isso, o autor compartilha seus passos metodológicos, os conceitos que orientam sua análise e os recortes geográficos e cronológicos utilizados. O livro é fruto de pesquisa de campo que realizou entre 2020 e 2022 em terreiros de Salvador (BA), Caucaia (CE), João Pessoa (PB), Diadema (SP) e Natal (RN). Outro aspecto que merece destaque na Introdução é a questão ética-metodológica relacionada ao awô (segredo) no candomblé. Nem tudo pode ser perguntado, visto ou publicado por qualquer pessoa. Enquanto pesquisador insider, Araújo maneja muito bem a ética antropológica e a ética candomblecista. O cuidado com o awô permeia sua escrita.
No primeiro capítulo, “O orô e os ritos que precedem a Mesa Fria”, o autor nos conta sobre o abate religioso (orô), ou a sacralização da carne animal, que é um rito precípuo no candomblé, sendo o ponto de partida do ritual da Mesa Fria, o antes, onde tudo começa. O sacrifício é a base dessa cadeia alimentar ritual. O processo de preparar o orô é lento e artesanal, pautando-se em princípios sanitários de alimentação, que incluem pureza ritual e asséptica. Ao longo dessa seção, ele explora a ubiquidade da comida no candomblé, revelando como várias questões pertinentes a esse universo se relacionam com a alimentação.
No segundo capítulo, “O rito da Mesa Fria no candomblé”, Araújo demonstra que uma refeição pode refletir as fronteiras sociais e as características coletivas de um determinado grupo. O autor apresenta os interlocutores da pesquisa e começa a se aprofundar no assunto a partir de suas narrativas. Ao discutir brevemente as nações no candomblé, ele destaca que a trajetória pessoal e religiosa das lideranças é um dado etnográfico importante para compreender e analisar a Mesa Fria. Diferenças e similitudes são apontadas entre os formatos que a Mesa Fria assume nas diversas casas, representadas por suas lideranças. Há, portanto, uma unidade na diversidade. A Mesa Fria é uma sucessão de ritos de comensalidade, que, como Araújo enfatiza, constitui um complexo ritualístico que valoriza a comunhão entre divindades, humanos e não-humanos.
O autor distingue basicamente dois formatos de Mesa Fria a partir das descrições fornecidas pelos interlocutores. No primeiro, a comida sacralizada, arriada aos pés dos orixás, é consumida no dia seguinte à festa, sendo esse momento o clímax da Mesa Fria, o que propriamente a representa. No segundo, a Mesa ocorre no mesmo dia em que a comida é arriada para os orixás, antes da festa pública. Em ambos os formatos, quem come primeiro são as divindades. Depois, os humanos se servem e, por fim, a natureza, a terra e os seres que habitam as matas e os rios recebem a comida que restou, descartada ritualmente. Ao tratar do Olubajé, cerimônia caracterizada por um grande banquete em honra ao orixá Omolu, o autor observa que a noção de desperdício é externa aos terreiros, pois o que vai ser descartado, na verdade, também será consumido, mesmo que destinado a outros tipos de seres. Assim, o descarte ritual se configura como uma oferenda.
Esse descarte ritual é o tema do capítulo 3, “O Eru e os ritos que sucedem a Mesa Fria: o destino final das sobras”. Nele, a análise se volta ao que acontece após o rito, detendo-se no “lixo sagrado”, expressão adotada pelo autor. O capítulo se inicia com a afirmação de que o candomblé possui princípios ecológicos próprios, caracterizando-se como uma religião da natureza (:101) e, por isso, privilegia os espaços e elementos naturais durante seus ritos. Sobre esse aspecto, o autor nota uma migração das casas de candomblé para áreas menos urbanizadas, com mais verde e matas, tendo em vista a ligação íntima dos povos de terreiro com a natureza e seus elementos. No entanto, os ritos costumam gerar resíduos que precisam ser descartados, os chamados carregos, os quais podem ser vistos como poluição. Araújo sugere, então, que a categoria “lixo” seja relativizada quanto relacionada às religiões afro. A partir disso, ele comenta que o chamado carrego encena um conflito ou diálogo entre as noções de “sujeira” e “limpeza”.
Nesse ponto da narrativa, o autor subverte o sentido do que é comumente entendido como carrego, afirmando que este também é alimento, já que nutre outras bocas não-humanas. O carrego, ou eru, seria um rito de saída, de encerramento do complexo alimentar que se iniciou no orô. Araújo insiste ainda que o carrego é polissêmico e requer atenção e cuidado, pois pode evocar perigo aos humanos. Todo ciclo ritual produz carrego, e aqui Araújo mobiliza o binômio “morte” e “vida”, pois ambas se alternam no trânsito que a comida tem dentro dos ritos (:111-112), mas enfatiza que esse deslocamento favorece sempre a manutenção da vida. O carrego é liminaridade, é fronteira. As pessoas, as divindades e a natureza são alimentadas entre o orô e o eru, sendo este último uma forma de administrar a morte enquanto alimenta a vida.
O autor defende, ainda, que a cozinha de um povo é uma linguagem que expressa aquilo que ele é. Portanto, se quisermos entender o que é o candomblé, a alimentação se revela um tema privilegiado. A questão do descarte ritual é característica dos terreiros, e os ritos associados à Mesa Fria representam uma comunhão tanto intra quanto extraterreiro. Come-se tanto dentro quanto fora do terreiro, devolvendo à natureza aquilo que ela deu. Afinal, a natureza é vista como um complexo orgânico vivo do qual se extrai o alimento.
No último capítulo, “O que a Mesa Fria ensina: a dimensão pedagógica do rito”, Araújo conclui que o complexo ritualístico analisado oferece ocasiões para entendermos como se aprende e se ensina sobre a religião dos orixás. Além de ser um rito ecológico é também pedagógico (noção de humbê), pois enfatiza questões do cotidiano, treinando a atenção dos iniciados para aspectos importantes da religião, como a hierarquia horizontal, a preferência culinária dos orixás, suas quizilas e o valor da comunhão intraterreiro. A educação que se opera pelos ritos transmite e reforça mensagens específicas da religião. No candomblé, aprende-se comendo, observando, ouvindo e vivendo. Quem só vê a comida (ajeum) no final das festas, não imagina o trabalho que dá preparar tudo aquilo. A comida está no antes, no durante e no depois da festa, sendo o evento festivo uma dimensão fundamental do candomblé.
Quanto ao aspecto pedagógico do rito, o capítulo final deixa a desejar, pois a discussão é apenas abordada superficialmente. Como os terreiros têm um modo próprio de ensinar e reproduzir saberes e práticas, um aprofundamento desse tema seria um ganho substancial para a análise da alimentação. A educação e as práticas pedagógicas, como fenômenos sociais difusos, devem ser sempre contextualizadas, e os terreiros possuem uma pedagogia própria, com regras bem definidas, etiqueta rigorosa, interditos e ritos específicos. A oralidade, que é uma das características dos terreiros, nos ensina que devemos perguntar menos e ouvir mais. No terreiro, o aprendizado não se dá pela dinâmica pergunta e resposta. É preciso ter paciência, olhos e ouvidos atentos, para compreender o significado de cada coisa.
Desse modo, é através do ouvir, do ver e da repetição que corpo e mente aprendem no candomblé. Como o próprio autor defende: “Todo rito pretende ensinar algo a alguém. Na verdade, o rito pode ser compreendido como um conglomerado de mensagens que são transmitidas tanto pelo rito em si quanto por quem o realiza” (:155). A ideia de transmissão nos remete rapidamente ao conceito antropológico de cultura, entendida como a transmissão de um complexo social entre gerações de uma determinada sociedade ou grupo. Cultura, na prática, é transmissão e reprodução; é ensinar a fazer, passar adiante mensagens que reforçam os laços sociais. Isso também define o que Brandão (1985) entende por educação enquanto fato social difuso. Portanto, as noções de pedagogia/educação e de cultura estão bem próximas enquanto práticas sociais complexas; e é pelos ritos que se ensina nos terreiros, reforçam-se valores, perpetuam-se práticas e abandonam-se outras, numa eterna dinâmica entre tradição e renovação.
A obra resenhada contribui, sem dúvida, para o estudo das religiões afro-brasileiras, sobretudo em sua relação com a alimentação. O livro levanta questões que podem ser aprofundadas por pesquisas futuras, como a questão da pedagogia do rito, e apresenta dados etnográficos relevantes para compreendermos a cozinha do candomblé. Araújo, ao transitar entre o Nordeste e o Sudeste, com ênfase no primeiro, mostra particularidades e continuidades de como se come nas casas de santo, seguindo a boa tradição etnográfica comparativa (Peirano 2014). O autor também expõe de que maneira a cozinha do candomblé pode influenciar o mundo extraterreiro, assim como é influenciada por ele. A comida se adapta e se diferencia a partir de cada casa de axé, acompanhando a sua localização geográfica. Para além da satisfação física, a comida ritual reforça o axé da casa e de quem dela se alimenta. Comer é um ato simbólico, prenhe de sentidos intrínsecos à religião, pois cada tradição religiosa alimenta seus membros e deuses de formas particulares, como mostrou o autor ao fazer breves comparações com as práticas alimentares no Judaísmo e no Islamismo.
Por fim, a análise de Araújo sobre a Mesa Fria me fez recordar minha própria pesquisa de mestrado (Rodrigues 2020), quando participava de um grupo de estudos sobre o candomblé em Fortaleza, Ceará. Em uma das aulas, tivemos uma espécie de estágio com as comidas de santo, preparando-as e, em seguida, saboreando-as. Naquela época, eu não compreendia bem a importância dos alimentos, mas hoje percebo que, no candomblé, tudo começa e termina na comida. Ela é a materialidade que une humanos e não-humanos em uma eterna “comilança”, seja na festa ou na comunhão diária. Pensar a comida no candomblé é, de certa forma, fazer uma espécie de teologia de terreiro, pois no banquete dos deuses, os homens e a natureza também comem.
Referências bibliográficas
- BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (1985), O que é educação São Paulo: editora Brasiliense S.A.
- PEIRANO, Mariza. (2014), “Etnografia não é método”. Horizontes Antropológicos, ano 20, nº 42: 337-391.
- RODRIGUES, Ozaias da Silva. (2020), A força dos que resistem e a sanha dos que atacam: casos de racismo religioso e intolerância contra candomblecistas em Fortaleza e região metropolitana Fortaleza: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFC/UNILAB.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
08 Mar 2023 -
Aceito
30 Abr 2024