Resumos
Existem evidências de que drogas tripanossomicidas em pacientes chagásicos crônicos em uso de corticosteróides previnem a reativação parasitológica da doença de Chagas, mas por outro lado existem poucos relatos de reativação clínica desta doença associados ao uso dessas drogas. Quimioprofilaxia primária com tripanossomicida nessa situação não deve ser recomendada sem uma avaliação prévia por estudo controlado randomizado.
Doença de Chagas; Corticosteróides; Quimioprofilaxia
There is evidence that trypanosomicide drugs prevent the parasitological reactivation of Chagas' disease in patients under corticosteroid therapy. On the other hand there are few reports of clinical reactivation of this disease associated with the use of these immunosuppressive drugs. Primary chemoprophylaxis with trypanosomicide in this situation should not be recommended before being assessed by a randomized controlled trial.
Chagas' disease; Chemoprophylaxis; Corticosteroids
ARTIGO DE OPINIÃO
Benznidazol na quimioprofilaxia primária da reativação de doença de Chagas em chagásicos crônicos em uso de corticosteróides em doses imunodepressoras: há evidência suficiente para a recomendação do seu uso?
Primary chemoprophylaxis in the reactivation of Chagas' disease with benznidazole in chronic chagasic patients under immunosuppressive corticosteroid therapy: is there evidence for its recommendation?
Sérgio de Andrade Nishioka
Resumo Existem evidências de que drogas tripanossomicidas em pacientes chagásicos crônicos em uso de corticosteróides previnem a reativação parasitológica da doença de Chagas, mas por outro lado existem poucos relatos de reativação clínica desta doença associados ao uso dessas drogas. Quimioprofilaxia primária com tripanossomicida nessa situação não deve ser recomendada sem uma avaliação prévia por estudo controlado randomizado.
Palavras-chaves: Doença de Chagas. Corticosteróides. Quimioprofilaxia.
Abstract There is evidence that trypanosomicide drugs prevent the parasitological reactivation of Chagas' disease in patients under corticosteroid therapy. On the other hand there are few reports of clinical reactivation of this disease associated with the use of these immunosuppressive drugs. Primary chemoprophylaxis with trypanosomicide in this situation should not be recommended before being assessed by a randomized controlled trial.
Key-words: Chagas' disease. Chemoprophylaxis. Corticosteroids.
Rassi et al11 demonstraram um efeito protetor do benznidazol contra a reativação parasitária em pacientes chagásicos crônicos tratados com corticosteróides. Esse estudo corrobora os achados experimentais em camundongos de que uma droga tripanossomicida (no caso o nifurtimox) previne a reativação da doença quando usada em associação com drogas imunossupressoras6. Vale a pena notar que camundongos e ratos infectados cronicamente pelo Trypanosoma cruzi e tratados com corticosteróides e/ou imunossupressores sem receber simultaneamente um tripanossomicida sistematicamente reativam a infecção crônica e apresentam aumento da parasitemia1 4 5 6 7 8 12. Rassi et al já haviam demonstrado anteriormente que também em humanos o uso de corticosteróides aumenta a intensidade parasitária em pacientes chagásicos crônicos9, e que o uso do nifurtimox associado ao corticosteróide evita este aumento da parasitemia10.
Não obstante o número de pacientes incluído no estudo de Rassi et al aqui comentado11 ser relativamente pequeno quando se pensa em uma amostra com poder (1 - ß) suficiente para demonstrar uma diferença estatisticamente significativa, as evidências de que realmente houve uma diminuição da parasitemia nos pacientes chagásicos que receberam benznidazol durante seu tratamento com corticosteróides quando se compara com o período em que eles não recebiam o tripanossomicida são inquestionáveis. Quando se compara, por exemplo, as proporções de pacientes do grupo I que apresentaram xenodiagnóstico positivo antes (8 em 12) e após (2 em 12) o tratamento, a diferença é estatisticamente significativa (p = 0,038, teste do qui quadrado). Mesmo quando se analisa o grupo II, no qual se incluíram apenas seis pacientes, na comparação das proporções de xenodiagnósticos positivos entre o período onde os pacientes recebiam apenas corticosteróides (4 em 6) e o período sob corticoterapia em que se adicionou o benznidazol (0 em 6), a diferença se aproxima do nível de significância (p = 0,06, teste exato de Fisher bicaudal). Quando se passa a comparar as porcentagens de triatomíneos infectados então as diferenças são ainda mais marcantes. Acredito não haver dúvida, pois, de que o benznidazol reduz a parasitemia pelo T. cruzi em pacientes chagásicos crônicos sob corticoterapia, a qual está aumentada em relação aos mesmos pacientes quando não estão recebendo corticosteróides.
As evidências apontadas pelo estudo de Rassi et al aqui discutido11, assim como pelos demais estudos experimentais e em humanos citados anteriormente sugerem um possível benefício do uso de um tripanossomicida como o benznidazol na quimioprofilaxia primária da reativação de doença de Chagas em pacientes chagásicos que vierem a necessitar o uso prolongado de corticosteróides. Mas quais as evidências já existentes na literatura que corroboram tal indicação, e quais os possíveis riscos associados a ela?
A interação entre doença de Chagas e imunodepressão foi revista recentemente3. Reativação da doença de Chagas tem sido observada em situação de comprometimento da imunidade celular em pacientes portadores de neoplasias hematológicas, em transplantados, e em portadores da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). A maioria dos indivíduos dentre eles que usaram corticosteróides tinham pelo menos mais uma causa de imunodeficiência, fosse ela a própria doença de base (leucemia ou linfoma) ou o uso concomitante de outros imunossupressores. Só é de meu conhecimento um relato na literatura médica de reativação de doença de Chagas associada apenas ao uso de corticosteróide, que foi o caso de uma criança com a forma congênita da doença que apresentou reativação presumivelmente pelo uso de dexametasona indicado por ter sido ela vítima de traumatismo craniano13.
Considerando a freqüência relativamente elevada do uso prolongado de corticosteróides em doses imunodepressoras, observada em indivíduos com asma, doenças do colágeno, processos alérgicos etc (infelizmente não consegui obter nenhuma estimativa numérica de tal freqüência) e a prevalência de doença de Chagas no Brasil, também relativamente alta, é certo que haja alguma superposição entre esses dois grupos populacionais. Seria então de se esperar um número consideravelmente maior de casos de reativação de doença de Chagas entre esses indivíduos, do que tem sido observado, se o risco de reativação clínica (e não apenas parasitológica) associado ao uso de corticosteróides fosse alto. É possível que alguns casos não estejam sendo detectados, confundidos com (e tratados como) infecções bacterianas, mas mesmo que isso ocorra não há nenhuma evidência de que seja freqüente.
Por outro lado, a recomendação de profilaxia primária com benznidazol nesse grupo de indivíduos está longe de ser inócua no que diz respeito aos efeitos adversos desta droga. Na própria série de 18 casos estudada por Rassi et al11, quatro (22%) pacientes apresentaram efeitos adversos de importância, dois deles com neuropatia e outros dois com dermopatia, isso não obstante estarem em uso de corticosteróides, drogas que costumam ser indicadas para o tratamento desta última complicação2. Muito embora a alta freqüência observada possa ser explicada pela dose elevada de benznidazol (10mg/kg/dia) utilizada nesse estudo, a ocorrência de efeitos adversos associados ao benznidazol, que incluem ainda neutropenia, agranulocitose e púrpura trombocitopênica2 podem ultrapassar em muito os possíveis benefícios do uso desta droga na profilaxia primária de reativação de doença de Chagas nesse grupo de indivíduos.
Rassi et al concluem seu trabalho sugerindo que seus resultados respaldam a adoção de condutas quando, como decorrência de imunodepressão, ficar temido o agravamento da infecção pelo T. cruzi, capaz de causar comprometimentos orgânicos11. Embora a conclusão me pareça correta, ela é vaga. Devemos ter muito cuidado em utilizar resultados que evidenciaram reativação parasitária como evidência de que haja risco de reativação clínica de magnitude suficientemente grande para justificar o uso de uma droga não isenta de efeitos adversos potencialmente graves. O trabalho de Rassi et al11 justifica, porém, a realização de um ensaio clínico duplo cego randomizado para avaliar se a quimioprofilaxia primária em indivíduos chagásicos crônicos que necessitam o uso de corticosteróides em dose imunodepressora é realmente eficaz, e se o número de casos de reativação de doença de Chagas prevenido justificaria a incidência de efeitos adversos graves observados. Tal estudo exigiria um número grande de pacientes, tendo em vista que o efeito da quimioprofilaxia na prevenção de reativação clínica deve ser baixo (porque a probabilidade de reativação é baixa), e provavelmente teria que durar vários anos para que todos esses pacientes fossem recrutados. Por esse motivo só seria viável na forma de um estudo multicêntrico que envolvesse múltiplas instituições de todo o Brasil e, se possível, de outros países latino-americanos. Soa como um projeto muito ambicioso, mas é o único caminho a ser seguido se quisermos basear nossas recomendações terapêuticas, ou profiláticas, como nesse caso, em evidências concretas.
Centro de Ciências Biomédicas, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
Endereço para correspondência: Dr. Sérgio de Andrade Nishioka. Al. Sosthenes Guimarães 667, 38411-160 Uberlândia, MG, Brasil.
Tel: 55 34 218-2246; Fax: 55 34 218-2349
E-mail: snishioka@hc.ufu.br
Recebido para publicação em 10/11/98.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jul 2000 -
Data do Fascículo
Fev 2000
Histórico
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Recebido
10 Nov 1998