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A crise da política externa: autonomia ou subordinação?

RESENHAS

Política externa: passado e presente

Juliana Lyra Viggiano

Juliana Lyra Viggiano é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Juliana Lyra Viggiano juviggiano@yahoo.com

FERREIRA, Oliveiros S. 2001. A crise da política externa:autonomia ou subordinação? Rio de Janeiro : Revan.

As questões relacionadas à área de relações internacionais no Brasil, especialmente no que tange à análise e à elaboração da política externa, possuem a peculiaridade de terem sido objeto exclusivo de estudo de alguns órgãos oficiais do governo até pelo menos a década de 1970, quando a institucionalização de cursos de graduação e pós-graduação em algumas universidades do País inseriu tal problemática no meio acadêmico, estimulando a produção de textos científicos preocupados com o tema. Essa produção, entretanto, polarizou o debate para as questões de política externa, com prioridade na análise da posição que o Brasil assumia frente ao então recente processo de integração na Bacia do Prata, que se iniciou em meados dos anos 1980 e, posteriormente, foi batizado de Mercosul. O destaque da obra de Oliveiros Ferreira deve-se, em parte, ao foco bastante limitado que apresenta a notória maioria dos textos publicados até o momento. Distingue-se por uma análise da política externa a partir do conjunto integrado de políticas que a compõe, isto é, a partir da posição do governo brasileiro, tanto em termos de ação quanto em termos teóricos, diante de situações variadas no contexto internacional. Concomitantemente, seu trabalho oferece um panorama mais amplo do posicionamento do Brasil nesse cenário, devido à sua preocupação em evidenciar diferentes aspectos que influenciaram na formulação das diretrizes estabelecidas pela política externa.

Este livro consiste em uma coletânea que reúne artigos escritos entre 1971 e 1982, mais um polêmico prólogo no qual faz um balanço extremamente crítico da política externa dos anos pós-regime autoritário. Eles subsidiam, por meio da análise da reação do governo brasileiro frente a acontecimentos marcantes no sistema internacional, a tese da continuidade na condução das linhas centrais que guiaram a política externa durante o regime militar – continuidade rompida com os novos encaminhamentos incorporados após a redemocratização do país na década de 1980.

Oliveiros Ferreira atribui às diretrizes da política externa adotada durante o regime militar três características centrais que lhe permite lançar a hipótese da continuidade. A primeira delas diz respeito ao papel predominante das Forças Armadas no processo de formulação das diretrizes de atuação externa no período. Sob responsabilidade única dos Estados-Maiores das Forças Armadas, e com completa autonomia de decisão, a política externa desses anos refletiu singularmente a compreensão que o estamento militar detinha da situação brasileira nas relações de poder mundial. Essa leitura da realidade do sistema internacional, e das relações a ele subordinadas, utilizava como interlocutor o paradigma geopolítico, que oferece contornos definidos de objetivos a serem alcançados pela política externa e de meios disponíveis para alcançá-los. Reconhecendo o Estado como ator prevalecente no sistema internacional, a perspectiva geopolítica considera as relações interestatais determinantes; subjacente à relação entre estados, responsáveis pelo funcionamento e pela dinâmica do sistema, encontra-se a problemática da guerra, que aparece como recurso último na definição das relações de poder.

Interessante observar que, atribuindo completa autonomia de decisão aos setores militares responsáveis pela formulação da política externa, Ferreira não considera em seus artigos se houve algum tipo de influência no processo de elaboração da política externa por parte dos representantes da diplomacia. Como sugere Maria Regina Soares de Lima (1994, p. 32-33): "En el presidencialismo brasileño el parámetro que regula los grados de libertad o autonomía relativa retenida por la diplomacia es la autorización presidencial sea por omisión o por delegación como en los gobiernos de Médici (en algunas áreas de la política exterior) y de Figueiredo o por afinidad de puntos de vista como en los casos de los Gobiernos de Geisel y Sarney". Considerado tradicionalmente como o locus na formulação da política externa até aproximadamente os últimos anos da década de 80, Ferreira não relata nem discute explicitamente o papel da Chancelaria na definição da política externa durante o regime militar. No entanto, é possível que o autor tenha feito menção às linhas de pensamento defendidas pelo Itamaraty dentro daquilo que descreve como doutrinas da sociedade civil, visto que tal termo não assume conceituação definida no texto. Embora apresente com clareza a influência que as diretrizes de política externa tenham sofrido dessas três principais correntes da sociedade civil que menciona1 1 São elas: 1) o "esplêndido isolamento", caracterizado pela defesa de uma política não-associativa, "isolacionista", que rejeitava qualquer ação cooperativa com os países latino-americanos, e voltava suas atenções especialmente aos países genericamente considerados "civilizados", isto é, os Estados Unidos e os principais países europeus; 2) a "função mediadora", cujos princípios atenuavam o distanciamento presente na doutrina anterior, reconhecendo uma certa unidade latino-americana na qual seu papel era o de intermediador entre os países do Sul e a potência do Norte, e, finalmente, 3) a "política externa independente", que, ao invés de salientar as diferenças, enaltecia as características que marcavam com particularidade todos os países da América Latina, principalmente aquelas de natureza econômica e política, criando uma identidade entre eles. , a falta de precisão quanto ao termo "sociedade civil" sujeita-se a diversas interpretações, abrindo possibilidades de se especular se a Chancelaria encontra-se de fato representada em sua argumentação. Explicitar as divergências e convergências entre as idéias e os objetivos do estamento militar e da Chancelaria, embora não comprometa significativamente a tese proposta da continuidade (uma vez que não afeta diretamente o papel protagonista exercido pelas Forças Armadas na condução da política externa), apresenta-se como um ponto importante, tanto para aprimorar o conhecimento acerca dos fatores envolvidos na formulação da política externa no período quanto para a discussão relativa ao desenvolvimento político e histórico do papel ocupado pelo Itamaraty.

A segunda e a terceira características presentes nas premissas que direcionaram a atuação brasileira na esfera internacional entre 1964 e 1982 são interdependentes e referem-se: 1) à predominância dos interesses nacionais como foco da política externa, e 2) à autonomia de decisão do Estado no contexto internacional como meio de garantir a satisfação desses interesses.

Os interesses nacionais traduziam-se, nas palavras do Gal. Castelo Branco, no "robustecimento do Poder Nacional, em particular, dos instrumentos que permitam alcançar o pleno desenvolvimento econômico e social" (p. 107). Nesses termos, o fim a que se propunha a política externa funcionava como um instrumento de mediação que sustentasse os objetivos estabelecidos no âmbito interno. A política externa e a política interna, portanto, eram complementares e perseguiam um só interesse, "o pleno desenvolvimento econômico e social" do país. Contudo, para que esse processo de desenvolvimento seguisse o modelo desejado, isto é, que fosse gerido e condicionado prioritariamente pelas diretrizes estabelecidas nos programas de política interna, era preciso que o governo brasileiro trabalhasse em prol da ampliação de sua margem de autonomia de decisão no cenário internacional. Essa estratégia visava fundamentalmente a redefinir a relação entre Brasil e Estados Unidos, procurando limitar o grau de dependência do Brasil frente à maior potência financeira do continente americano, resguardando a esfera política tanto quanto possível.

Segundo o autor, dois pontos marcaram distintamente a política brasileira quanto à sua aspiração de autonomia frente aos Estados Unidos. O primeiro foi a recusa por parte do governo brasileiro em assinar o Tratado de Não-Proliferação (Nuclear) (TNP), proposto pelo comitê de desarmamento da ONU em 1968, cujo caráter discriminatório levaria ao congelamento de poder no sistema internacional2 2 O Tratado de Não-Proliferação tinha por objetivo impossibilitar o desenvolvimento de tecnologia atômica por países que não houvessem detonado artefatos nucleares até janeiro de 1968, garantindo dessa forma o monopólio da tecnologia por apenas alguns estados. O TNP foi assinado em 1998 pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, sob a alegação de que os interesses nacionais brasileiros não mais se pautavam pela pretensão de produzir energia atômica. . O outro ponto diz respeito à intenção do governo de criar um Dispositivo Estratégico de Defesa (DED), apostando no fortalecimento das Forças Armadas como elemento-chave de barganha nas relações interestatais, concepção fortemente arraigada nos preceitos geopolíticos.

A ruptura nos encaminhamentos de política externa a partir de 1985 é atribuída por Oliveiros Ferreira ao abandono do projeto de elevar o grau de autonomia do Estado brasileiro no contexto internacional, como efeito da crise econômica que então assolou não só o Brasil, mas a América Latina. A retomada desse projeto aparece então para o autor como o grande desafio a ser enfrentado pelos formuladores da política externa atual. Ou melhor, mais do que a retomada, Ferreira propõe o redirecionamento das estratégias adotadas para que o país possa vislumbrar novamente um projeto construtivo de autonomia no plano internacional. A questão essencial levantada por Ferreira é se os atuais formuladores da política externa têm os meios e a vontade política (expressa em valores) para sustentar essa virada para o passado.

Tentando contestar essa questão, Ferreira leva a crítica a fundo. Assumindo uma concepção de autonomia contrária à postura defendida firmemente até 1982, que apostava no desenvolvimento econômico como a alavanca que impulsionaria o Brasil à situação desejada, os governos da década de 1990 apostaram na adesão ao "pensamento único" como a forma mais justa e direta de fazer parte do mainstream de poder mundial, considerando que seu alinhamento incondicional concederia ao Brasil um crédito de confiança que facilitaria sua inserção nos centros decisórios internacionais. Embora reconheça a complexidade do problema e, conseqüentemente, as dificuldades em se encontrar uma alternativa a um projeto de política externa autônoma, o autor aborda, ao longo do prefácio do livro, algumas questões relevantes para serem consideradas à luz do momento histórico atual. Destaca-se a crítica à forma com que o governo lida com o Mercosul e a proposta em reintroduzir o DED como uma estratégia para restabelecer uma política de autonomia externa.

O Mercosul é o resultado de um processo de aproximação mais formal entre o Brasil e a Argentina em meados da década de 1980, que, de acordo com o autor, ultrapassou danosamente seu propósito inicial, calcado no estabelecimento de relações amigáveis entre os dois países. O acordo vigente do Mercosul apresenta-se como uma barreira para o Brasil por limitar-se a um acordo econômico que, na prática, prende o país "às variações da crise e do humor argentinos, correndo o risco de que a esse humor cambiante se associem os governos de Montevidéu e Assunção" (p. 17). O Brasil prejudica-se, portanto, ao lidar erroneamente com o Mercosul como unidade política, utilizando-o como instrumento de negociação internacional. Obriga, dessa forma, o país mais forte a sujeitar-se às dificuldades enfrentadas pelos estados mais instáveis.

Essa é uma constatação pertinente que traz à discussão a viabilidade e a eficiência em substituir, em determinados momentos, o papel cumprido pelo Brasil no contexto internacional pelo Mercosul, uma vez que sua consolidação enquanto unidade política apresenta uma série de obstáculos, dentre outros, a dificuldade em garantir uma coerência representativa nos processos de tomada de decisão e a disparidade no grau de desenvolvimento econômico entre seus membros. Essas dificuldades, propõe o autor, deveriam ser remediadas pelo planejamento (inicial) de um desenvolvimento econômico associado entre os países que compõem o bloco. Mais do que o atraso causado pelo tratamento político que o Brasil dispensa ao Mercosul – visto que inevitavelmente o país mais forte do bloco acaba fazendo maiores concessões do que os demais –, o argumento de Oliveiros Ferreira revela que a desvantagem mais contundente está em utilizar como interlocutor, em detrimento do próprio Estado, um organismo que, da maneira como se conduz seu processo de formação, não percorrerá todas as etapas necessárias para alcançar uma união política. Em outras palavras, é um mecanismo de atuação externa que não traz benefícios significativos nem a curto nem a longo prazo para o país.

No que se refere ao Dispositivo Estratégico de Defesa (DED), a idéia de equipar as Forças Armadas de modo a transformá-las em um elemento real de dissuasão foi uma iniciativa que não se concretizou no regime militar. A validade da proposta de retomar esse dispositivo como estratégia central de inserção no sistema internacional, tal como sugere o autor, requer uma leitura atenta da conjuntura que se apresenta no plano internacional nos dias de hoje, que passa pelas questões: que tipo de ator, médio ou grande, quer ser o Brasil, e qual é o papel que quer desenvolver no sistema internacional?

O fim da Guerra Fria, ocasionada pelo colapso do regime comunista, redefiniu a clássica noção de amigo-inimigo, exposta por Morgenthau (1985), calcada no embate ideológico entre os princípios que norteavam os estados do Leste e do Oeste. A noção de inimigo assumiu um caráter transnacional representado por diversas atividades e situações que ameaçam o status quo da sociedade ocidental, democrática e capitalista. São portanto identificados nos dias atuais principalmente pelo tráfico de drogas, pelo terrorismo, pela imigração ilegal e pela devastação da natureza, que repercute perniciosamente no espaço físico em que essas sociedades encontram-se assentadas. Da mesma forma, Hobsbawm (2002) recentemente atentou para o fato de que essas imposições também imputam novo sentido à clássica noção de guerra, que deixa de ser primordialmente uma disputa entre estados e assumem características transnacionais para ameaçar a estabilidade política, cultural e econômica de variadas regiões do globo que, no sentido ideológico, são bastante homogêneas. É considerando essa nova configuração mundial que se questiona até que ponto as Forças Armadas ainda se apresentam como um instrumento fundamental para a ampliação da margem de autonomia do país no sistema internacional. Ainda que essa instituição possa constituir dispositivo efetivo de combate a questões de natureza transnacional, adequando seus procedimentos ao objetivo, dificilmente ela se constituirá em um dispositivo de dissuasão eficiente para garantir a autonomia da política externa brasileira. A conformação de uma política externa autônoma, seguindo a linha de pensamento de Hobsbawm, parece relacionar-se à estabilidade interna dos países nos âmbitos político, econômico e social. Partindo desse pressuposto, as Forças Armadas ainda desempenham importante papel em garantir essa estabilidade, mas atuam como coadjuvantes na estrutura. É possível pensar que também deveriam assumir o mesmo papel em se tratando do direcionamento da política externa.

As riquezas do livro vão muito além daquelas expostas nesta resenha. A crise da política externa: autonomia ou subordinação? apresenta uma enorme quantidade de dados históricos e análises conjunturais que oferecem ao leitor uma ampla compreensão do período a que se refere. É, sem dúvida, uma referência indispensável para aqueles que, de alguma forma, interessam-se pela área, e também uma proveitosa leitura para os atuais decison-makers da política, já há muito tempo carentes de luz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOBSBAWM, E. 2002. A epidemia da guerra. Folha de S. Paulo, 14.abr. Caderno Mais!, p. 4-10.

LIMA, M. R. S. 1994. Ejes analíticos y conflictos de paradigmas en la política exterior brasileña. América Latina Internacional, Buenos Aires, n. 1, v. 2, p. 27-46, otoño-invierno.

MORGENTHAU, H. 1985. Politics Among Nations. The Struggle for Power and Peace. 6th ed. New York : McGraw-Hill.

Recebido em 5 de maio de 2002.

Aprovado em 2 de setembro de 2002.

  • Endereço para correspondência
    Juliana Lyra Viggiano
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    São elas: 1) o "esplêndido isolamento", caracterizado pela defesa de uma política não-associativa, "isolacionista", que rejeitava qualquer ação cooperativa com os países latino-americanos, e voltava suas atenções especialmente aos países genericamente considerados "civilizados", isto é, os Estados Unidos e os principais países europeus; 2) a "função mediadora", cujos princípios atenuavam o distanciamento presente na doutrina anterior, reconhecendo uma certa unidade latino-americana na qual seu papel era o de intermediador entre os países do Sul e a potência do Norte, e, finalmente, 3) a "política externa independente", que, ao invés de salientar as diferenças, enaltecia as características que marcavam com particularidade todos os países da América Latina, principalmente aquelas de natureza econômica e política, criando uma identidade entre eles.
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    O Tratado de Não-Proliferação tinha por objetivo impossibilitar o desenvolvimento de tecnologia atômica por países que não houvessem detonado artefatos nucleares até janeiro de 1968, garantindo dessa forma o monopólio da tecnologia por apenas alguns estados. O TNP foi assinado em 1998 pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, sob a alegação de que os interesses nacionais brasileiros não mais se pautavam pela pretensão de produzir energia atômica.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2003
    • Data do Fascículo
      Nov 2002
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