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Imposto alto para quem? Uma análise da desigualdade na tributação estadual a partir de renda, gênero e raça

High taxes for whom? An examination of inequality in state taxation by income, gender, and race

RESUMO

Introdução:

A estrutura tributária brasileira compõe a face conservadora do pacto social celebrado pela Constituição de 1988. O artigo analisa o impacto do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) na distribuição de renda no Brasil.

Materiais e métodos:

A partir da Pesquisa de Orçamento Familiar de 2017-2018 são estimados os gastos anuais com ICMS e IPVA de cada família e calculado o percentual gasto nos impostos por cada decil de renda, pelo sexo e raça da pessoa de referência e pela composição familiar. Calcula-se ainda o índice de progressividade de Lerman-Yitzhaki para estimar o grau de regressividade desses dois impostos separadamente e em conjunto.

Resultados:

Há uma alta regressividade no ICMS e relativa proporcionalidade no IPVA quando considerada toda a população, e regressividade, quando consideradas apenas as famílias pagantes. Há regressividade tanto do ponto de vista da equidade vertical (níveis de renda), quanto horizontal (gênero e raça).

Discussão:

O sistema de tributação estadual afeta de forma desproporcional os mais pobres, negros e mães solteiras, devido à natureza indireta dos impostos e suas taxas. Esse impacto é intensificado pelas particularidades nos gastos e na escolha de produtos por esses grupos vulneráveis. Apesar dos esforços para diminuir essa regressividade fiscal, uma verdadeira mudança só será alcançada ajustando a relação entre impostos diretos e indiretos na arrecadação e incorporando de forma efetiva considerações de gênero e raça nas políticas tributárias.

Palavras-chave
tributação; regressividade; desigualdade; ICMS; IPVA

ABSTRACT

Introduction:

The Brazilian tax structure embodies a conservative facet of the social pact established by the 1988 Constitution. This article examines the effects of two specific taxes, the ICMS (Tax on Sales of Goods and Services) and the IPVA (Tax on Vehicle Ownership), on income distribution in Brazil.

Materials and methods:

Drawing on data from the 2017-2018 Family Budget Survey, our study estimated the annual expenditure on ICMS and IPVA for each family. We then calculated the percentage spent on these taxes by each income decile, as well as by the gender and race of the reference person, and by family composition. Additionally, we calculated the Lerman-Yitzhaki progressivity index to assess the degree of regressivity of these two taxes individually and collectively.

Results:

Our findings revealed a high regressivity of the ICMS and a relative proportionality of the IPVA when examining the entire population, and regressivity when considering only paying families. This regressivity was observed across both vertical (income levels) and horizontal (gender and race) equity dimensions.

Discussion:

The state-level taxation system disproportionately affects the most economically vulnerable people, Black individuals, and single mothers due to the indirect nature and rates of these taxes. This impact is exacerbated by the spending patterns and product choices of these vulnerable groups. Despite efforts to alleviate this tax regressivity, meaningful progress can only be achieved by rebalancing the relationship between direct and indirect taxes and by effectively incorporating considerations of gender and race into tax policies.

Keywords
taxation; regressivity; inequality; ICMS; IPVA

I. Introdução

Sumário executivo

Contexto da pesquisa

Mesmo após avanços nas políticas de distribuição de renda no Brasil após a ditadura militar, o sistema tributário do país ainda se apoia fortemente em impostos indiretos, como o ICMS, que são mais regressivos e afetam desproporcionalmente os grupos mais vulneráveis. Essa questão é particularmente crítica diante das persistentes desigualdades sociais no Brasil. A dependência dos tributos indiretos pelo sistema tributário nacional chama atenção para a necessidade de investigar as desigualdades tributárias sob as óticas de renda, gênero e raça, especialmente no contexto da recente reforma tributária que mantém essa dependência, apesar de introduzir medidas para mitigar sua regressividade.

Evidências anteriores ao estudo

Tradicionalmente, estudos sobre a regressividade tributária no Brasil têm adotado uma visão ampla, categorizando os impostos em diretos e indiretos e analisando seu impacto sobre diferentes faixas de renda. Essas análises, fundamentadas em dados da Pesquisa de Orçamento Familiar, visam entender como a carga tributária se distribui entre os cidadãos. A maioria desses estudos enfoca a equidade vertical, isto é, como diferentes níveis de renda são tributados, e tende a agrupar todos os tributos indiretos. Recentemente, algumas pesquisas passaram a incorporar dimensões adicionais como gênero e raça, evidenciando uma contrastante progressividade dos impostos diretos em comparação com a alta regressividade dos indiretos, reforçando a insuficiência do sistema em promover uma redistribuição eficaz de renda.

Valor agregado do estudo

Este artigo utilizou dados da mais recente Pesquisa de Orçamento Familiar (2017-2018) do IBGE para analisar especificamente a regressividade do ICMS e do IPVA no Brasil. Por meio da Tabela de Recursos e Usos do IBGE, estimou-se as alíquotas efetivas do ICMS, permitindo avaliar a distribuição da carga tributária com base em renda, sexo, raça e composição familiar. Ao adotar uma abordagem interseccional, o estudo fornece uma análise mais rica e inclusiva, destacando o peso dos impostos sobre diferentes segmentos da população.

Implicações dos resultados

Os achados indicam que os principais impostos estaduais, ICMS e IPVA, falham em cumprir um papel distributivo adequado, exacerbando ou, no mínimo, não atenuando as desigualdades pré-existentes. O estudo aponta para a injustiça desses impostos, ressaltando seu impacto desproporcional sobre grupos já vulneráveis, como negros e mulheres chefes de família. Apesar de reformas tributárias visarem a eficiência e simplificação, a recente proposta aprovada não trata de forma efetiva a regressividade inerente aos impostos indiretos. O estudo sugere maior ênfase nos impostos diretos, ligados à renda e propriedade, para promover uma tributação mais justa e equitativa. Nossa visão é que incluir considerações distributivas nas discussões sobre reforma tributária é crucial para enfrentar a desigualdade estrutural no Brasil.

O Brasil caracteriza-se por níveis elevados e persistentes de desigualdades, que afetam várias dimensões da distribuição de recursos e oportunidades - renda, propriedade, educação, inserção no mercado de trabalho - e cujos efeitos atingem mais os públicos já vulnerabilizados sob outros critérios, em que se destacam os marcadores de raça e gênero, o que demanda uma abordagem interseccional do fenômeno. De um lado, o processo de democratização, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, contribuiu para a redução de várias dimensões da desigualdade econômica, incluindo acesso aos serviços de saúde e de educação, saneamento e energia elétrica e, com mais intensidade durante os governos liderados pelo PT, da renda (Arretche, 2018aArretche, M. (2018a) Democracia e redução da desigualdade econômica no Brasil: a inclusão dos outsiders. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33(96), pp. 1-23. DOI
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, 2018bArretche, M. (2018b) Trinta anos da Constituição de 1988: razões para comemorar? Novos Estudos CEBRAP, 37(3), pp. 395-414. DOI
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). Este processo resultou da tendência heterogênea de adensamento, ampliação e universalização do nosso Sistema de Proteção Social, ampliação de suas bases orçamentárias, da vinculação do valor de vários benefícios ao Salário Mínimo, à ampliação e institucionalização de políticas de transferência não contributiva aos mais vulneráveis (Jaccoud, 2021Jaccoud, L. (2021) Democracia, conflitos distributivos e reforma da proteção social no Brasil. In: C.R. Etulain (org) Política pública no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de Políticas Públicas, pp. 53-80.).

Do ponto de vista da economia política, porém, esses resultados foram alcançados por políticas distributivas que, ainda que resultem em redistribuição de recursos, se dão principalmente pela inclusão de públicos antes excluídos de direitos sociais. A inclusão majoritariamente ocorreu por meio da provisão pública de renda, bens e serviços, sem uma alteração significativa das bases tributárias regressivas herdadas do período autoritário. Em uma sociedade em que a desigualdade social e econômica é elevada, a tendência é que ela se traduza também em desigualdade política, dando aos grupos mais privilegiados os recursos políticos para vetar políticas que lhes imponham custos concentrados, como o caso das políticas ostensivamente redistributivas. Assim, a maneira de compatibilizar as pressões pela expansão de direitos sociais, regime democrático e desigualdade política foi por meio da adoção de políticas que, ainda que impliquem efeitos líquidos redistributivos, possam se apresentar na forma de políticas distributivas, ou seja, que combinam benefícios concentrados nos mais vulneráveis e custos difusos, financiados por meio de um orçamento público cujas bases arrecadatórias não se alteraram.

De fato, o sistema tributário do Brasil se destaca não tanto pela sua carga tributária total, mas pelo pouco que ela contribui para a redistribuição, conforme mostram vários trabalhos. As razões para isto são muitas: tributação concentrada sobre produção, consumo, baixa tributação de capital e propriedade, tributação da renda pouco progressiva, especialmente sobre os estratos superiores, resultado de isenções e exceções tributárias que os beneficiam (OCDE, 2021OCDE (2021) Global revenue statistics database. Disponível em: <https://www.oecd.org/tax/tax-policy/global-revenue-statistics-database.htm>. Acesso em: 5 de set. 2021.
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). Além disto, estudos recentes vêm demonstrando problemas de equidade horizontal, apontando vieses de gênero e raça da tributação brasileira, ressaltando a necessidade de uma abordagem interseccional da desigualdade tributária (Gomes et al., 2022Gomes, J.P. de F., Rada, R.P. di, Cardomingo, M.R. & Nassif-Pires, L. (2022)Nota de política econômica n° 027: privilégio branco na estrutura tributária brasileira: uma análise interseccional de impostos diretos e transferências. São Paulo: MADE Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades. Disponível em: <https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/npe-27-sistema-impostos-brasileiro-racismo-estrutural/>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
https://madeusp.com.br/publicacoes/artig...
; INESC, 2023INESC (2023) Impactos distributivos da tributação e das transferências monetárias públicas: um olhar sobre gênero e raça, Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos. [online] Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos. Disponível em: <https://inesc.org.br/wp-content/uploads/2023/06/estudo-tributacao-raca-genero.pdf?x96134>. Acesso em: 1 de jun. 2023.
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).

O principal imposto sobre bens e serviços no país é o ICMS, de competência estadual. Os estados têm a competência sobre o Imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCD), Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e o Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS), sendo este o imposto que representa a maior parcela da carga tributária no país, 21,2% do total da arrecadação de tributos em 2018 (OCDE, 2021OCDE (2021) Global revenue statistics database. Disponível em: <https://www.oecd.org/tax/tax-policy/global-revenue-statistics-database.htm>. Acesso em: 5 de set. 2021.
https://www.oecd.org/tax/tax-policy/glob...
). O ICMS é a principal fonte de financiamento da maioria dos estados, representando mais de 60% da receita total em alguns estados (Brasil, 2021Brasil (2021) Tesouro Nacional. Sistema de informações contábeis e fiscais do setor público brasileiro - contas anuais, 2021. Disponível em: <https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/index.jsf>. Acesso em: 14 de nov. 2021.
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). Percebe-se então o importante papel dos estados na estrutura tributária do país - e nos seus efeitos distributivos.

Assim, a arquitetura e a gestão da tributação no Brasil ajudam a explicar a persistência da desigualdade econômica, mesmo após a democratização e expressam os problemas da economia política da redistribuição em democracias muito desiguais, que faz com que sejam parte indissociável de um pacto social assimétrico expresso na Constituição e nas políticas que engendrou.

Este artigo contribui para o debate sobre tributação e desigualdade avaliando como os principais tributos estaduais - ICMS e IPVA - afetam distintos segmentos da população, a partir de uma perspectiva interseccional, ou seja, avaliando os efeitos combinados de renda, gênero e raça sobre o ônus tributário dos cidadãos. Para a análise, foram utilizados os microdados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017/2018 do IBGE. A estimação da despesa com o ITCD não foi possível devido a limitação dos microdados da POF, o que não significa uma grande limitação para o estudo, já que este imposto significa apenas 0,54% da receita bruta estadual realizada em 2019, enquanto o ICMS representou 42,28% e o IPVA, 3,37% (Brasil, 2021Brasil (2021) Tesouro Nacional. Sistema de informações contábeis e fiscais do setor público brasileiro - contas anuais, 2021. Disponível em: <https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/index.jsf>. Acesso em: 14 de nov. 2021.
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).

II. Tributação e impacto distributivo

II.1. O princípio da equidade na tributação

A influência dos impostos na distribuição de recursos é preocupação na literatura de finanças públicas, ao apontar o “Princípio da equidade” como um dos princípios para um sistema tributário ideal. Ele diz respeito à distribuição do montante pago em impostos dentro da população. Segundo Stiglitz & Rosengard (2015)Stiglitz, J.E. & Rosengard, J.K. (2015) Economics of the public sector. 4th ed. New York: W.W. Norton & Company, Inc., parte da noção de que um sistema de impostos deve tratar aqueles em circunstâncias similares de maneira similar (equidade horizontal) e impor taxas maiores àqueles que podem arcar melhor com o ônus da taxação (equidade vertical).

Tributos diretos são aqueles adaptáveis às características individuais do contribuinte, em que as taxas podem ser personalizadas segundo aspectos sociais e/ou econômicos do indivíduo/empresa a ser tributado, como impostos sobre renda, patrimônio ou heranças. Já impostos indiretos são aqueles cobrados sobre transações, independente das características dos lados da transação, sem possibilidade de uma personalização (Atkinson, 1977Atkinson, A.B. (1977) Optimal taxation and the direct versus indirect tax controversy. The Canadian Journal of Economics, 10(4), pp. 590-606. DOI
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), como ICMS ou IPI.

Os impostos podem ser classificados quanto à distribuição da carga tributária entre diferentes segmentos populacionais, sendo a abordagem por níveis de renda da população a mais comum; entretanto, há uma crescente atenção para análise de segmentos vulnerabilizados, incorporando, raça, gênero e regiões, entre outros.

O imposto é regressivo quando o montante da renda comprometido é maior entre públicos vulnerabilizados do que entre os mais bem posicionados socialmente e progressivos quando o montante da renda total pago aumenta à medida que o estrato social aumenta (Stiglitz & Rosengard, 2015Stiglitz, J.E. & Rosengard, J.K. (2015) Economics of the public sector. 4th ed. New York: W.W. Norton & Company, Inc.). A progressividade, ao retirar relativamente mais dos ricos, contribuiria para a redução da desigualdade, contrastando com a regressividade, que impacta mais os vulneráveis, aumentando a disparidade. Impostos diretos possibilitam maior progressividade, ao possibilitar o vínculo de alíquotas à condição socioeconômica, mas podem ser regressivos quando não consideram parte expressiva da renda de determinadas classes, por exemplo. Impostos indiretos tendem à regressividade (Afonso et al., 2004Afonso, J.R., Araújo, E.A. & Vianna, S.T.W. (2004) Carga tributária indireta no Brasil: análise da incidência efetiva sobre as famílias. Série de Estudos Econômicos e Sociais, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: <https://publications.iadb.org/pt/carga-tributaria-indireta-no-brasil-analise-da-incidencia-efetiva-sobre-familias>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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), podendo ser mitigados pela seletividade, impondo alíquotas menores à bens essenciais e maiores à artigos de luxo, ou adoção de modalidades de cashback (Domingues et al., 2023Domingues, E.P., Cardoso, D.F., Hianni, O. & Simonato, T. (2023) Propostas de reforma tributária dos impostos sobre o consumo no Brasil com medidas de compensação para famílias de baixa renda. Textos para discussão Cedeplar 653. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. [online]. Disponível em: <https://ideas.repec.org/p/cdp/texdis/td653.html>. Acesso em: 19 de nov. 2023.
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), conforme previsto na proposta em apreciação no Senado Federal (Brasil, 2019Brasil (2019) Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n° 45, de 2019. Altera o sistema tributário nacional e dá outras providências. Brasília Senado Federal. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158930>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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), visando maior equidade fiscal.

II.2. O ICMS e o IPVA

O ICMS é um imposto sobre vendas - portanto, indireto - de competência estadual, denominado "imposto sobre o valor adicionado" (IVA), consistindo na aplicação do imposto sobre o valor adicionado em cada estágio de produção/distribuição, buscando contornar a cumulatividade de impostos sobre o valor total. Por ter uma base ampla e representar parte significativa da arrecadação dos estados, costumeiramente estados aplicam alíquotas elevadas em serviços básicos como telecomunicação e energia elétrica, visto seu potencial arrecadatório. Junto a alta oneração de bens supérfluos como bebidas alcoólicas e cigarros - consumidos amplamente nos diferentes níveis de renda - potencializa a tendência já regressiva do imposto como indireto (Benegas & Alves, 2014Benegas, M. & Alves, L.F. (2014) Uma análise sobre o efeito final do ICMS e do IRPF na distribuição de renda do estado do Ceará. Planejamento e políticas públicas. IPEA. [online]. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/3396>. Acesso em: 24 de abr. 2024.
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).

O IPVA é um imposto direto, incidente sobre a propriedade de veículos, em que a base de cálculo difere conforme tipo de aquisição, estando vinculado ao valor de aquisição, preços tabelados, entre outros. A constituição não prevê a possibilidade de aplicação de alíquotas progressivas nos veículos, sendo também inconstitucional a tributação de veículos de luxo como iates, helicópteros etc. (Brasil, 2007Brasil (2007) Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n° 378.572/RJ - Rio de Janeiro, recurso extraordinário. tributário. 2. Não incide Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações (Art. 155, III, CF/88e Art. 23, III e § 13, CF/67 conforme EC 01/69 e EC 27/85).), potencializando um caráter regressivo do imposto (Carvalho Jr., 2021Carvalho Jr., P.H.B.D. (2021) Progressividade dos tributos diretos nas Pesquisas de Orçamentos Familiares (POFS) 2008-2009 e 2017-2018. Texto para discussão 2645. [online] Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10569>. Acesso em: 24 de abr. 2024.
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).

II.3. Tributação e desigualdade no Brasil

é evidente que os altos índices de desigualdade observados no Brasil não derivam apenas do sistema tributário, tampouco apenas a classificação dos impostos em diretos ou indiretos basta para qualificar o perfil de progressividade ou regressividade da estrutura tributária e menos ainda de tributos específicos. Para tanto, já houve vários trabalhos discutindo esse ponto, resultando em conclusões diversas, apresentadas a seguir.

A maioria dos trabalhos agrupa os impostos em diretos e indiretos, analisando sua regressividade ou progressividade. Rodrigues (1998)Rodrigues, J.J. (1998) Carga tributária sobre os salários. Brasília: Coordenação-Geral de Estudos Econômicos Tributários, Secretaria da Receita Federal, Ministério da Fazenda. utiliza o salário bruto dos indivíduos como parâmetro de avaliação e, a partir da POF de 1995-96, conclui que os impostos indiretos eram regressivos e os diretos eram progressivos, tornando o Sistema tributário brasileiro levemente progressivo. A partir da mesma POF de 95-96, Vianna et al. (2000)Vianna, S.T.W., Magalhães, L.C.G. de, Silveira, F.G. & Tomich, F.A. (2000) Carga tributária direta e indireta sobre as unidades familiares no Brasil: avaliação de sua incidência nas grandes regiões urbanas em 1996. Texto para discussão - IPEA 757. [online]. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/2357>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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, utilizando como parâmetro o Rendimento total mensal familiar per capita e analisando apenas as regiões metropolitanas, chega às mesmas conclusões quanto à regressividade dos impostos indiretos e a progressividade dos direitos, destacando a insuficiência da progressividade desses últimos, dados os elevados índices de desigualdade do país, concluindo que o Sistema Tributário é regressivo. Paes & Bugarin (2006)Paes, N.L. & Bugarin, N.S. (2006) Parâmetros tributários da economia brasileira. Estudos Econômicos, 36(4), pp. 699-720. DOI
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, buscando verificar a correspondência entre as alíquotas estatutárias e efetivas dos impostos no Brasil, a partir da POF de 2002-2003, concluíram que os impostos indiretos são proporcionais e os diretos progressivos, não trazendo conclusões sobre o sistema geral. Silveira (2008)Silveira, F.G. (2008) Tributação, previdência e assistência sociais. Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. DOI
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, utilizando a POF 2002-2003 e analisando os índices de desigualdade nos distintos estágios de renda, aponta para a regressividade dos impostos indiretos e progressividade limitada e pouco eficaz dos impostos diretos. Pintos-Payeras (2010)Pintos-Payeras, J.A. (2010) Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico - IPEA, 40(2), pp. 153-186. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5097>. Acesso em: 19 de nov. 2023.
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, a partir da POF 2002-2003, analisou a regressividade do sistema tributário brasileiro, usando o RICMS de cada estado para diferenciar as alíquotas. Identificou que os impostos indiretos, principalmente o ICMS, são regressivos, enquanto os diretos são progressivos, apesar da baixa participação destes na renda. Avaliando a progressividade com base na despesa, o sistema torna-se praticamente proporcional; porém, ao considerar a renda, é identificado como regressivo

Silveira et al. (2013)Silveira, F.G., Rezende, F., Afonso, J.R. & Ferreira, J. (2013) Fiscal equity: distributional impacts of taxation and social spending in Brazil.Working Paper 115. Brasília: International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC - IG). Disponível em: <https://ipcig.org/publication/26521>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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destacam, ao comparar as POFs de 2002-03 e 2008-09, que a regressividade da tributação persiste, apesar de uma leve redução na regressividade dos impostos indiretos. Siqueira et al. (2017)Siqueira, R.B. de, Nogueira, J.R.B., Souza, E.S. de & Luna, C.F. (2017) O sistema tributário brasileiro é regressivo? In: J.R. Afonso, M.R. Lukic, R.O. Orair, F.O. Giger Silveira (orgs) Tributação e desigualdade. Belo Horizonte: Letramento, pp. 501-528., a partir da POF de 2008-09 e da PNAD de 2009, ajustam a renda pelo consumo, visando contornar distorções nos dados dos mais pobres. Apontam para a progressividade dos impostos diretos e proporcionalidade dos indiretos e do sistema tributário como um todo.

Focando em impostos indiretos, Afonso et al. (2004)Afonso, J.R., Araújo, E.A. & Vianna, S.T.W. (2004) Carga tributária indireta no Brasil: análise da incidência efetiva sobre as famílias. Série de Estudos Econômicos e Sociais, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: <https://publications.iadb.org/pt/carga-tributaria-indireta-no-brasil-analise-da-incidencia-efetiva-sobre-familias>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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, utilizando a POF de 95-96, aponta para regressividade dos impostos indiretos, se diferenciando de outros estudos ao utilizar as alíquotas efetivas e não estatutárias para as estimativas da despesa com impostos indiretos.

Portanto, tendo em vista a literatura disponível, este trabalho se diferencia ao selecionar um recorte específico do sistema tributário nacional - os impostos de competência estadual - e em discutir também aspectos horizontais, relativos a gênero e raça, em sua distribuição. Além disso, utiliza de dados mais recentes da POF, traz resultados mais atualizados e adequados à estrutura de consumo das famílias, que pode ter se alterado significativamente entre as pesquisas.

III. Metodologia

III.1. Base de dados utilizada

Para estimativa da carga tributária do ICMS e do IPVA nas famílias foram utilizados os microdados da POF de 2017-2018. A Unidade de análise utilizada é a “Unidade de consumo”, que consiste em um morador ou um conjunto de moradores de um domicílio “que compartilham da mesma fonte de alimentação ou compartilham as despesas com moradia” (IBGE, 2021IBGE (2021) Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018 - Perfil das despesas no Brasil. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101844.pdf>. Acesso em: 4 de set. 2021.
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). Como sinônimo de Unidade de consumo pode-se adotar o termo “família”. A amostra é composta por 58.039 domicílios e famílias, totalizando 178.369 moradores.

Para estimação da despesa com os impostos foram utilizados os questionários de despesa coletiva, despesa individual e a caderneta coletiva. Para divisão das famílias em níveis renda foi utilizado como parâmetro a Renda familiar mensal per capita.

III.2. Estimativa da despesa com impostos

Para estimar a despesa das famílias com ICMS, foi preciso definir se o trabalho trataria de carga tributária potencial ou efetiva. Optou-se pela carga tributária efetiva, que confronta a base de cálculo com o que foi arrecadado pelo Estado daquele imposto específico (Rodrigues, 1998Rodrigues, J.J. (1998) Carga tributária sobre os salários. Brasília: Coordenação-Geral de Estudos Econômicos Tributários, Secretaria da Receita Federal, Ministério da Fazenda.), dado que a potencial desconsidera elisões fiscais, cobranças em cascata e sonegação (Silveira, 2008Silveira, F.G. (2008) Tributação, previdência e assistência sociais. Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. DOI
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). Para utilização da carga tributária efetiva foi calculada a alíquota efetiva para os produtos. Optou-se pela utilização de metodologia semelhante à de Afonso et al. (2004)Afonso, J.R., Araújo, E.A. & Vianna, S.T.W. (2004) Carga tributária indireta no Brasil: análise da incidência efetiva sobre as famílias. Série de Estudos Econômicos e Sociais, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: <https://publications.iadb.org/pt/carga-tributaria-indireta-no-brasil-analise-da-incidencia-efetiva-sobre-familias>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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que, baseado na metodologia utilizada por Siqueira et al. (2001)Siqueira, R.B. de, Nogueira, J.R. & Souza, E.S. de (2001) A incidência final dos impostos indiretos no Brasil: efeitos da tributação de insumos. Revista Brasileira de Economia, 55(4), pp. 513-544. DOI
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, utiliza a Tabela de Recursos e Usos (TRU) para estimar o valor da alíquota efetiva. O método utilizado por Afonso et al. (2004)Afonso, J.R., Araújo, E.A. & Vianna, S.T.W. (2004) Carga tributária indireta no Brasil: análise da incidência efetiva sobre as famílias. Série de Estudos Econômicos e Sociais, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: <https://publications.iadb.org/pt/carga-tributaria-indireta-no-brasil-analise-da-incidencia-efetiva-sobre-familias>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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considera que “as alíquotas efetivas são equivalentes à divisão da arrecadação setorial pelo consumo final das famílias”, assumindo que o ICMS, por se tratar de um IVA, não incide sobre os insumos, de maneira que o efeito sobre o preço do ICMS incidente inicialmente sobre a demanda intermediária é desconsiderado no cálculo. Além disso, ao utilizar a TRU produzida pelo IBGE para o cálculo das alíquotas, só é possível obter as médias nacionais.

Para compatibilização dos produtos da POF com os do Sistemas de Contas Nacionais presente na TRU foi utilizado o documento contendo a tradução das categorias utilizadas na POF para os setores da TRU disponibilizado pelo IBGE. Foram então selecionadas as atividades que registraram arrecadação do ICMS e aquelas em que o consumo das famílias compõe parcela significativa da demanda final. Calculou-se então o ICMS efetivo a partir da divisão da arrecadação setorial do ICMS pelo consumo das famílias. Aquelas atividades que tiveram um resultado superior a 1, indicando que a arrecadação setorial foi maior que o consumo das famílias, foram excluídas. Restaram 26 atividades.

Com relação aos produtos da POF, foram retirados todos os produtos referentes a serviços, juros, empréstimos, taxas, contratação de mão de obra, aluguel, ingressos, hospedagem, consultas médicas, cursos e aulas e relacionados. Restaram 4.500 tipos de produtos. Após classificar os 4.500 produtos dentre as 26 atividades econômicas selecionadas, restaram 4.054 produtos para aferição da despesa com ICMS.

Calculou-se então a despesa anual por famílias em cada um dos 4.054 produtos, considerando apenas as formas de aquisição monetárias. Foi então aplicada a alíquota efetiva em cada despesa. Assim, foi possível estimar o gasto total anual com ICMS de cada uma das 58.039 famílias pertencentes à amostra na POF 2017-2018, e, em seguida, o gasto mensal per capita.

Para o IPVA, a POF conta com uma despesa referente ao imposto em seu cadastro de produtos. Para tornar a análise mais robusta, à semelhança do que foi feito por Silveira (2008)Silveira, F.G. (2008) Tributação, previdência e assistência sociais. Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. DOI
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, foram também considerados encargos incidentes sobre veículos, arrecadados pelo Estado, como licenças, emplacamentos, multas, transferências, carteira de habilitação etc. Tais despesas também foram identificadas através da POF, que conta uma série de códigos referentes à Taxas dos Departamentos Estaduais de Trânsito, e agregadas ao valor gasto pelas famílias com o IPVA.

III.3. Impacto distributivo dos impostos

Para verificar a regressividade ou progressividade dos impostos, as famílias foram divididas em decis de renda. Para todas as análises que se seguem, a carga tributária de cada imposto foi calculada a partir da média da razão entre a despesa mensal per capita com os impostos e a renda mensal per capita de cada família, em cada grupo. A renda, e não despesa, foi utilizada devido a sua capacidade em representar o padrão de vida ao longo do tempo, em avaliar a capacidade de pagamento e por ser o parâmetro mais indicado de avaliação para atingir objetivos redistributivos de maneira eficaz, conforme destacado por Afonso et al. (2004)Afonso, J.R., Araújo, E.A. & Vianna, S.T.W. (2004) Carga tributária indireta no Brasil: análise da incidência efetiva sobre as famílias. Série de Estudos Econômicos e Sociais, Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: <https://publications.iadb.org/pt/carga-tributaria-indireta-no-brasil-analise-da-incidencia-efetiva-sobre-familias>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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e Silveira (2008)Silveira, F.G. (2008) Tributação, previdência e assistência sociais. Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. DOI
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. Para classificação das famílias entre os decis e estimação da carga tributária dos níveis de renda foi utilizada a renda mensal per capita, possibilitando verificar o quanto os impostos incidem nas famílias com menor renda e maior renda.

Já para verificar a carga tributária dos impostos analisados entre os sexos, raças, utilizou-se como parâmetro a característica da pessoa de referência da família. A pessoa de referência é aquela responsável pelo aluguel, prestação do imóvel ou outras despesas de habitação.

A intensidade da regressividade ou progressividade foi medida a partir do índice de Lerman-Yitzhaki (Hoffman, 2009Hoffman, R. (2009) Desigualdade da distribuição da renda no Brasil: a contribuição de aposentadorias e pensões e de outras parcelas do rendimento domiciliar per capita. Economia e Sociedade, 18(1), pp. 213-231.), também utilizado nas pesquisas de Silveira et al. (2013)Silveira, F.G., Rezende, F., Afonso, J.R. & Ferreira, J. (2013) Fiscal equity: distributional impacts of taxation and social spending in Brazil.Working Paper 115. Brasília: International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC - IG). Disponível em: <https://ipcig.org/publication/26521>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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, Silveira (2008)Silveira, F.G. (2008) Tributação, previdência e assistência sociais. Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. DOI
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e Pintos-Payeras (2010)Pintos-Payeras, J.A. (2010) Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico - IPEA, 40(2), pp. 153-186. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5097>. Acesso em: 19 de nov. 2023.
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. O índice consiste no coeficiente de concentração do imposto - definido com base na ordenação da renda após aplicação do imposto - menos o índice de Gini da Renda após aplicação do imposto, dado pela seguinte fórmula:

π h = C h G

πh retornará o grau de progressividade de um determinado imposto, que pode ser interpretado como o quanto o Gini é afetado com o aumento da proporção desse imposto na renda total da população. Um valor positivo desse índice significa que o Imposto em questão é progressivo, valores negativos apontam para regressividade do imposto e quanto mais próximo de 0, mais proporcional é seu efeito (Pintos-Payeras, 2010Pintos-Payeras, J.A. (2010) Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico - IPEA, 40(2), pp. 153-186. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5097>. Acesso em: 19 de nov. 2023.
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).

IV. Resultados e análise

A Tabela 1 apresenta os dados referentes aos 10 decis de renda. Percebe-se a grande diferença entre as rendas do 1° e 10° decil, em que o último ganha cerca de 18 vezes mais que o primeiro.

Tabela 1
Características dos decis de renda familiar mensal delimitados pelo estudo - Brasil, 2017-2018

IV.1. Carga tributária dos impostos

O Gráfico 1 mostra o resultado da média da razão entre a despesa mensal per capita com cada um dos impostos e a renda mensal per capita de cada um dos decis de renda. Foram representados nos pontos as barras de erro, calculadas de acordo com o desenho da amostra da pesquisa.

Gráfico 1
Despesa mensal per capita com IPVA e ICMS em relação à renda mensal per capita das famílias por decis de renda - Brasil, 2017-2018

Mesmo considerando o erro padrão, o ICMS se mostra um imposto regressivo, em que as famílias do primeiro decil pagam em média 20,01% da sua renda nesse imposto, enquanto as famílias do décimo decil gastam em média 4,96%, uma diferença de 15,05 pontos percentuais em comparação com a primeira classe, quatro vezes menos que os mais pobres. Já o IPVA apresenta um caráter proporcional. Quando somados os dois impostos, a classe mais pobre se mantém como a que paga maior parcela da renda em impostos, com 21,59%, assim como os mais ricos se mantêm como os que pagam menos, apenas 6,02%, menos de um terço do que o primeiro decil gasta.

Com relação ao resultado encontrado para o IPVA, como a propriedade de um veículo depende de um poder aquisitivo maior para sua aquisição e manutenção, é esperado que os decis de renda iniciais gastem menos com esse imposto na média, por disporem de menos recursos para aquisição de veículos. Para averiguar essa suposição foram analisadas as propriedades de veículos das famílias por decil através dos microdados referentes ao inventário na POF. No 1° decil, 37.95% das famílias possuíam veículos, com uma média de 1,205504 veículos por domicílio. A proporção de veículos e o número aumentam à medida que se avança nos decis de renda, em que 54,06% das famílias do 5° decil de renda dispõe de um veículo, com uma média de 1,35 veículos. No último decil o percentual de famílias com veículos chega a 81,98% de domicílios, com uma média de 1,607190 veículos por domicílio.

Tendo em vista o crescimento do percentual de famílias com algum veículo, é esperado que o IPVA apresentasse um caráter proporcional ou progressivo quando considerada a despesa média com o imposto no universo de famílias (que incluiu na análise aqueles que não tiveram nenhuma despesa com IPVA). Já quando se analisa a carga tributária entre o conjunto de famílias que tiveram alguma despesa com IPVA, conforme Gráfico 2, o cenário muda.

Gráfico 2
Despesa mensal per capita com IPVA em relação à Renda mensal per capita das famílias pagantes por decis de renda - Brasil, 2017-2018

Neste cenário, o imposto se mostra altamente regressivo, com maior diferença nas extremidades. O 1° decil paga cerca de 11,31% da sua renda mensal em IPVA enquanto o 10° paga 1,35%, quase 10 vezes menos. Em artigo do IPEA, Carvalho Jr. (2021)Carvalho Jr., P.H.B.D. (2021) Progressividade dos tributos diretos nas Pesquisas de Orçamentos Familiares (POFS) 2008-2009 e 2017-2018. Texto para discussão 2645. [online] Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10569>. Acesso em: 24 de abr. 2024.
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atribui a razão para essa estrutura altamente regressiva, também identificada em seu trabalho, ao aumento do número de proprietários de veículos nos estratos mais baixos de renda, com o aumento nos últimos anos das alternativas de financiamento e de crédito, por exemplo.

Já para compreender o resultado relativo ao ICMS, foi construído o Gráfico 3, que traz a média da razão entre a despesa mensal per capita e a renda mensal per capita de cada um dos decis. Ele evidencia a diferença entre o 1° decil, em que as despesas ultrapassam o total da renda, representando 150,48% da renda mensal per capita familiar, enquanto no último decil a despesa representa 58,88% da renda mensal per capita. Este resultado já ajuda a entender a diferença entre a porcentagem gasta em ICMS nos dois extremos, ao indicar que o consumo tem muito mais peso na renda do primeiro decil do que do último, implicando que o gasto com o imposto que incide sobre ele também representará proporção maior da renda. Essa proporção decresce continuamente na medida em que se avança nos decis.

Gráfico 3
Proporção média da Despesa mensal per capita na Renda mensal per capita das famílias por decis de renda - Brasil, 2017-2018

Analisando a composição da despesa dos decis a partir da classificação dos produtos em atividades econômicas foi possível verificar que “Energia Elétrica, gás natural e outras utilidades” - atividade com alíquota efetiva de 42,12% - representou 8,3% do consumo do primeiro decil, 7,8% do terceiro, 7,3% no quinto e apenas 4,6% no último. Já a atividade “refino de petróleo e coquerias”, com a terceira maior alíquota (29,10%), variou pouco entre os decis (de 9,2% no 1° decil até 11,1% no 9°). Nesse caso, a pouca variação em uma atividade com alíquota alta implica na maior regressividade nos decis extremos, tendo em vista a alta proporção do consumo na renda mensal per capita do primeiro decil.

Os resultados evidenciaram o perfil altamente regressivo do ICMS, explicado tanto pela proporção que as despesas representam da renda total das famílias com de menor rendimento, quanto pelas alíquotas altas aplicadas em produtos de primeira necessidade como energia elétrica e combustíveis fósseis. Conclui-se então que o ICMS, de maneira geral, contribui para o aprofundamento da desigualdade de renda no país.

O IPVA apresentou um perfil muito mais proporcional, quando avaliado todo o universo de famílias, resultado que pode ser atribuído ao fato de que a propriedade de veículos - base do imposto - está muito ligada ao nível de renda das famílias, apesar de não apresentar progressividade nas alíquotas. Já quando avaliada a proporção do IPVA apenas nas famílias pagantes do imposto, o IPVA se mostrou intensamente regressivo com relação à renda.

A Tabela 2 apresenta os dados da amostra e da população das famílias de acordo com o sexo e a raça da pessoa de referência. Em primeiro lugar, fica evidente que as amostras referentes à raça Amarela, Indígena e sem declaração são insuficientes para uma análise mais robusta, de modo que as análises que se seguem serão restritas às raças Branca e Negra (que agrega as pessoas pretas e pardas). As famílias chefiadas por Mulheres Negras apresentam a menor renda familiar mensal, de R$ 3.546,00 mensais, seguidas dos Homens Negros, com R$ 4.290,00. As famílias chefiadas por Homens Brancos foram as que apresentaram a maior renda mensal total, com R$ 7.940,00.

Tabela 2
Características das famílias agrupadas pelo sexo e raça da pessoa de referência - Brasil, 2017-2018

Foi calculada então a carga tributária de cada imposto em cada grupo de sexo e raça. Os resultados podem ser consultados no Gráfico 4. Observa-se inicialmente que as diferenças entre os grupos são menores do que na avaliação pelos níveis de renda, principalmente quando considerado o erro padrão nos cálculos. No caso do ICMS, as famílias chefiadas por pessoas negras são as que arcam com o maior ônus, em que as chefiadas por Homens têm 9,65% da renda comprometida com as despesas em ICMS e as chefiadas por Mulheres comprometem 9,88% de seus rendimentos comprometidos. Já os domicílios chefiados por pessoas brancas têm, em média, 8,46% (Mulheres) e 8,61% (Homens) da renda comprometida pelo ICMS. Analisando os resultados do IPVA é observada uma diferença relativa maior, em que as famílias chefiadas por Mulheres Negras apresentaram uma proporção de apenas de 0,86% da sua renda em despesas com IPVA, enquanto as famílias chefiadas por Homens Brancos tiveram 1,57% da sua renda comprometida com o imposto. Nesse caso, as famílias chefiadas por Homens gastaram relativamente mais com o IPVA. Quando somados os dois impostos, as famílias chefiadas por Homens Negros são os que tem a maior proporção da sua renda comprometida pelo ICMS e IPVA, representando cerca de 11,12%, seguidos pelas Mulheres Negras, Homens Brancos e Mulheres Brancas.

Gráfico 4
Despesa mensal per capita com IPVA e ICMS em relação à renda mensal per capita das famílias por sexo e raça da pessoa de referência - Brasil, 2017-2018

Assim como na análise dos níveis de renda, para analisar a carga tributária do IPVA nos diferentes grupos de famílias, foram analisados os dados referentes à propriedade de veículos desses grupos. As famílias chefiadas por Mulheres são as que apresentam menor presença de veículos, 37,44% para as Mulheres Negras e 52,49% para as Brancas, o que ajuda a entender a baixa carga tributária do IPVA nessas famílias em comparação com as chefiadas por Homens. O fato das famílias chefiadas por Homens Negros serem as que mais arcam com o IPVA pode ser mais bem compreendido pelo fato de que os veículos têm frequência apenas 20% menor que a dos Homens Brancos, enquanto a renda média mensal é cerca 50% menor.

Já com relação ao ICMS, quando analisada a proporção da despesa total em relação à renda total, não foram observadas diferenças significativas entre as famílias chefiadas por Homens Brancos, Mulheres Brancas, Homem Negros e Mulheres Negras, em que a despesa representou, em média, respectivamente, 77,36%, 74,52%, 79,75% e 79,24% da renda mensal per capita das famílias, sendo que as famílias chefiadas por negros despenderam de 2 a 5 pontos percentuais a mais de sua renda com consumo. Assim, visto o percentual da renda gasto muito próximo entre os grupos, o que poderia ajudar a entender melhor a diferença entre as cargas tributárias do ICMS entre as famílias seria o perfil do consumo. Em relação aos produtos com maior alíquota efetiva, referentes à “Energia Elétrica, Gás Natural e outras utilidades”, as famílias chefiadas por Mulheres Negras foram as que mais gastaram relativamente, com 7,4% da sua despesa total, enquanto as chefias por Homens Brancos, as com menor dispêndio relativo, gastaram 6%. Outra diferença relevante foi a relativa aos produtos de limpeza, cosméticos/perfumaria e higiene pessoal - com alíquota efetiva 19,20% -, que para as Mulheres Negras representaram 8%, enquanto para os homens brancos apenas 5,3%. Apresentaram diferenças no mesmo sentido os produtos alimentares, de carne, laticínios e pesca, em que as Mulheres Negras despenderam em média 8,15% da despesa total, enquanto os Homens Brancos, 6,15%. Percebe-se então que produtos com alíquotas efetivas altas e com participação relevante na despesa total impactam mais a despesa das famílias chefiadas por mulheres negras do que nos outros grupos, contribuindo com o entendimento da maior carga tributária do ICMS neste grupo.

Quando se analisam as desigualdades sociais e econômicas desde uma abordagem interseccional, é importante levar em conta as desigualdades de gênero na atribuição das responsabilidades pelo cuidado com os filhos. Tendo ou não a presença de um adulto do sexo masculino no domicílio, às mulheres acaba se impondo o grosso das tarefas domésticas e de cuidado e o acompanhamento de crianças e adolescentes. No caso de separação, divórcio ou da opção - em comum acordo ou não - dos pais em não viverem juntos, à sobrecarga de trabalho sobre as mulheres soma-se o peso de arcar com os custos mais altos da manutenção do domicílio e de seus moradores. Frequentemente, isto ocorre sem a contribuição financeira do antigo parceiro ou, quando ela ocorre, é muitas vezes comparativamente pequena e irregular.

Assim, é plausível a hipótese de que, dada uma composição nada aleatória dos domicílios, sendo muito mais frequentes os domicílios monoparentais femininos do que masculinos, a carga tributária sobre as mulheres de referência em domicílios com este arranjo seja significativamente mais alta. Para avaliar esta dimensão da desigualdade de gênero na regressividade tributária, estimou-se a carga tributária média dos impostos estaduais para esta composição do domicílio, em comparação com outros arranjos. Os resultados estão sintetizados na Tabela 3 e no Gráfico 5.

Tabela 3
Características dos domicílios da amostra segundo arranjos familiares selecionados - Brasil, 2017-2018

A observação da Tabela 3 já indica a situação desfavorável dos arranjos compostos por Mulher solteira com crianças, do ponto de vista da renda total do domicílio: A renda média destas famílias é significativamente inferior à dos domicílios compostos por Mais de um adulto com crianças, à dos demais tipos de composição familiar e à de domicílios também monoparentais, só que chefiados por homens, evidenciando também aqui outra face das desigualdades de gênero no Brasil.

Gráfico 5
Despesa mensal per capita com IPVA e ICMS em relação à renda mensal per capita das famílias por composição familiar - Brasil, 2017-2018

A esta desvantagem se soma um peso maior dos tributos estaduais sobre sua renda, conforme mostra o Gráfico 5. Esta sobrecarga é nítida no que se refere ao ICMS e, aparentemente, é compensada pelo peso menor do IPVA sobre sua renda. Mas só aparentemente, porque, esta diferença é de fato explicada pela proporção de domicílios que possuem veículos automotores. A proporção dos domicílios compostos por Mulher com filhos que possuem algum veículo automotor foi de 23,04%, não alcançando metade da porcentagem dos domicílios compostos por outros arranjos (mais de um adulto com criança com 65,01% e Homem solteiro com criança, com 55,22% dos domicílios com algum veículo), o que demonstra que esta aparente vantagem em relação ao IPVA é a mera expressão do baixo acesso a veículos particulares deste segmento1 1 Devido às características e tamanho da amostra para o arranjo domiciliar em tela, optou-se por não se calcular o peso do IPVA sobre a renda apenas para os detentores de veículos, pois o erro amostral neste caso limitaria uma comparação mais precisa das diferenças entre os grupos. .

O que a análise até aqui deixa claro é que os principais impostos estaduais atualmente em vigor apresentam caráter muito regressivo e que, para além dos problemas de equidade vertical, há também aqueles de equidade horizontal, pois os dados demonstram que além dos mais pobres, também os negros e as mulheres partilham situação particularmente desvantajosa quanto ao peso destes tributos sobre sua renda.

IV.2. Grau de regressividade

Demonstrado o caráter regressivo dos tributos estaduais, a tarefa seguinte é estimar quão regressivos estes tributos são e também qual o seu peso sobre a desigualdade da renda disponível dos cidadãos no Brasil. A partir dos dados referentes à renda total mensal per capita, à despesa com ICMS mensal per capita e à despesa com IPVA mensal per capita foi possível calcular o índice de Gini antes e após a aplicação de cada imposto, assim como os respectivos coeficientes de concentração, ordenados pela renda após sua aplicação. O valor encontrado para o índice no caso do ICMS foi de -0,1841278 enquanto para o IPVA o valor encontrado foi de -0,1077997. Quando considerados os dois impostos em conjunto, o índice encontrado foi de -0,1817120. Isso significa dizer, por exemplo, que no caso de um aumento de 1% na proporção do ICMS na renda total, o Gini da renda total terá um aumento de 0,1817120, considerando uma escala de 0 a 100 do índice de Gini.

Os valores evidenciam o que já era possível intuir dos dados apresentados anteriormente: o ICMS apresenta um grau de regressividade maior que o IPVA. é importante ressaltar que o índice não diz tudo sobre a magnitude do efeito desses impostos sobre o Gini, referindo-se apenas ao efeito marginal do imposto na desigualdade. Analisando o ICMS, por exemplo, caso a proporção deste imposto na renda total aumentasse em 1%, o Gini aumentaria em 0,15, de acordo com os resultados deste trabalho. Para verificar o efeito que os impostos analisados tiveram de fato na desigualdade de renda no brasil no período analisado, é necessário multiplicar o índice pela proporção do imposto. Realizado esse cálculo, conclui-se que o ICMS contribuiu com o aumento de 1,20 no Gini Brasileiro, enquanto o IPVA proporcionou um aumento de 0,12, considerando uma escala do Gini indo de 0 a 100.

V. Considerações finais

O estudo conclui que, de maneira geral no Brasil, os principais impostos estaduais, ICMS e IPVA, não desempenham efetivamente uma função distributiva do Estado. A análise demonstra que esses impostos não seguem o princípio da equidade, aprofundando as desigualdades observadas ou não atuam para sua redução. Além disso, observa-se o caráter iniquo dos tributos estaduais em relação a gênero e raça, impactando desproporcionalmente negros e mulheres que cuidam sozinhas dos filhos. Dado que os impostos indiretos representam quase metade da estrutura tributária do país, sendo o principal deles o ICMS, a discussão sobre o teor do sistema como um todo é essencial.

Diante da longevidade do arcabouço tributário atual e os reiterados insucessos nas tentativas de reforma, é notável que esteja em vias de aprovação no congresso uma reforma tributária que apesar de não equacionar a regressividade dos tributos indiretos, tampouco a deixa intocada. Embora propostas em discussão, como a PEC 45/2019 (Brasil, 2019Brasil (2019) Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n° 45, de 2019. Altera o sistema tributário nacional e dá outras providências. Brasília Senado Federal. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158930>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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), busquem simplificar o sistema, há uma preocupação menor em abordar a alta regressividade e buscar equidade (Musse, 2018Musse, J.S. (2018) Proposta de reforma tributária no atual governo: ainda regressiva e injusta. In: E. Fagnani (org) A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: Anfip/Fenafisco, pp. 130-136.). Nesse contexto, alternativas recomendadas incluem aumentar a participação de impostos diretos, vinculados à propriedade e renda - inclusive a de capital - e reduzir o peso dos indiretos. Deste ponto de vista, mesmo se aprovada a proposta atual, os tributos indiretos seguirão com participação elevada na arrecadação.

Ainda assim, algumas estratégias para aumentar a progressividade dos tributos hoje a cargo dos estados estão sendo consideradas na atual proposta em tramitação. Quanto ao imposto sobre veículos, a alegada inconstitucionalidade na tributação de embarcações e aeronaves (Brasil, 2007Brasil (2007) Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n° 378.572/RJ - Rio de Janeiro, recurso extraordinário. tributário. 2. Não incide Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações (Art. 155, III, CF/88e Art. 23, III e § 13, CF/67 conforme EC 01/69 e EC 27/85).) deve ser revista, mitigando sua regressividade. A previsão de aplicação de alíquotas progressivas possibilitaria aos estados reduzir a regressividade do imposto o qual, mesmo incidindo sobre a propriedade, ao aplicar alíquotas proporcionais lineares, acaba apresentando um perfil regressivo. Finalmente, a isenção ou desconto no IPVA em veículos de menor valor, como as motocicletas, reduziria significativamente a carga sobre as famílias mais pobres, pois são relativamente mais presentes nos segmentos de renda mais baixa e, cada vez mais, um componente de sua estratégia de sobrevivência.

Quanto ao ICMS, ora em vias de unificação com outros tributos indiretos, maior progressividade requer alíquotas seletivas conforme essencialidade dos bens. No estudo, alíquotas efetivas revelam menor taxação em itens como alimentação, sinalizando seletividade. Apesar disso, itens representativos nas famílias pobres, como telecomunicações, energia e combustíveis, têm as alíquotas mais elevadas, sugerindo revisão para reduzir a regressividade (Godoi, 2016Godoi, M.S. (2016) Tributação do consumo e efeitos redistributivos: alíquotas reduzidas conforme a essencialidade dos produtos/serviços (seletividade) versus alíquotas uniformes com transferências financeiras para famílias de baixa renda. Cadernos de Finanças Públicas, 16, pp. 311-322. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3818>. Acesso em: 26 de abr. 2024.
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). Finalmente, experimentos e propostas têm adotado a devolução de impostos (cashback) às famílias mais pobres, seja de forma individualizada (com apresentação de notas fiscais) ou mais padronizada (considerando padrão de consumo e alíquotas médias das famílias). A discussão sobre a viabilidade e impactos dessas estratégias não esteve no escopo deste trabalho. A proposta em tramitação sugere ambas as estratégias, por meio da isenção ou redução de impostos sobre itens essenciais e da inclusão do cashback direcionado aos mais pobres através de futura lei complementar (Domingues et al., 2023Domingues, E.P., Cardoso, D.F., Hianni, O. & Simonato, T. (2023) Propostas de reforma tributária dos impostos sobre o consumo no Brasil com medidas de compensação para famílias de baixa renda. Textos para discussão Cedeplar 653. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. [online]. Disponível em: <https://ideas.repec.org/p/cdp/texdis/td653.html>. Acesso em: 19 de nov. 2023.
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).

é importante ressaltar as limitações deste estudo. A estimação das alíquotas efetivas dos produtos desconsiderou os efeitos da incidência do ICMS na demanda intermediária, levando a uma subestimação da regressividade devido à cumulatividade dos créditos tributários, especialmente em itens da cesta básica que impactam mais os níveis mais baixos de renda. Além disso, a compatibilização de alguns produtos da POF com os do Sistema de Contas Nacionais, embora tenha seguido critérios, pode ter gerado algumas inconsistências.

A arquitetura tributária constitui parte importante do pacto social assimétrico expresso na Constituição de 1988 e aprofundado, ainda que heterogeneamente, pelo menos até 2016, a inclusão dos outsiders por meio da provisão pública progressiva de renda, bens e serviços, a qual se combinou com uma estrutura tributária praticamente intocada e, para dizer o mínimo, muito pouco progressiva. O presente trabalho buscou trazer luz para o impacto distributivo da tributação, a partir da evidenciação do perfil altamente regressivo da tributação estadual. Pretende-se assim ressaltar a importância de inserir o aspecto distributivo nas discussões sobre reforma tributária, relegada por vezes a um papel secundário na discussão apesar de suas importantes implicações neste âmbito, principalmente em um contexto tão desigual como o brasileiro.

Executive summary

Research Context

Despite advancements in income distribution policies in Brazil since the end of the military dictatorship, the country's tax system continues to heavily rely on indirect taxes, such as ICMS, which are more regressive and disproportionately impact vulnerable demographics. This issue is particularly critical in light of enduring social inequalities in Brazil. The dependence on indirect taxes within the national tax system underscores the necessity to examine tax disparities through the perspectives of income, gender, and race, particularly in light of the recent tax reform that maintains this dependency, despite implementing measures to mitigate regressivity.

Existing evidence

Traditionally, studies on tax regressivity in Brazil have adopted a broad approach, categorizing taxes into direct and indirect categories and analyzing their impact across various income brackets. These analyses, drawing on data from the Family Budget Survey, aim to understand how the tax burden is distributed among citizens. Most of these studies focus on vertical equity, examining how different income levels are taxed, and typically lump all indirect taxes together. More recently, some research has started to incorporate additional dimensions such as gender and race, revealing a stark contrast between the progressivity of direct taxes and the pronounced regressivity of indirect taxes, reinforcing the system's failure to promote effective income redistribution.

Added value of the study

This study used data from the latest Family Budget Survey (2017-2018) conducted by the IBGE to specifically examine regressivity in the ICMS and IPVA taxes in Brazil. Utilizing the IBGE's Tables of Resources and Uses, we estimated the effective tax rates of the ICMS, enabling an evaluation of how the tax burden is distributed based on income, gender, race, and family composition. By adopting an intersectional approach, our study offers a more comprehensive and inclusive analysis, highlighting the impact of taxes on different segments of the population.

Implications of our findings

The findings indicate that the main state taxes, ICMS and IPVA, fall short of fulfilling an adequate distributive role, exacerbating or, at the very least, failing to mitigate pre-existing inequalities. Our study points to the unfairness of these taxes, highlighting their disproportionate impact on already vulnerable groups, such as Black individuals and female heads of households. Despite tax reforms aimed at enhancing efficiency and simplification, the recently approved proposal does not adequately address the inherent regressivity of indirect taxes. Our study advocates for a stronger emphasis on direct taxes, linked to income and property, to promote a fairer and more equitable tax system. We believe that integrating distributive considerations into discussions on tax reform is pivotal for tackling structural inequality in Brazil.

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    Devido às características e tamanho da amostra para o arranjo domiciliar em tela, optou-se por não se calcular o peso do IPVA sobre a renda apenas para os detentores de veículos, pois o erro amostral neste caso limitaria uma comparação mais precisa das diferenças entre os grupos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2023
  • Revisado
    23 Ago 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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