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Reformas liberalizantes nos países periféricos: estruturas, atores e processos

RESENHAS

Reformas liberalizantes nos países periféricos: estruturas, atores e processos

Karen Fernandez Costa

CRUZ, Sebastião Carlos Velasco e. 2007. Trajetórias : capitalismo neoliberal e reformas econômicas nos países da periferia. São Paulo : Unesp.

A visão neoliberal do papel do Estado - predominante na América Latina, durante os anos 1990 - começa a ser colocada em xeque com a emergência de governos alinhados à esquerda nos anos 2000. Nesse contexto, por que voltar ao tema tão debatido das reformas liberalizantes1 1 Apenas para citar parte da bibliografia nacional que toca no tema central do livro de Cruz: Fiori e Tavares (1996; 1998), Fiori (1998; 2000), Bresser Pereira (1998a; 1998b), Sader e Gentili (1995; 2004); Moraes (2001), Ayerbe (1998), Diniz (1999; 2000), Boito Jr. (1999), Petras (1999) e Soares (2001). ? Mais do que isso, é possível ainda dar alguma contribuição original a um tema tão discutido? Esses são alguns dos desafios que se colocam ao livro de Sebastião Carlos Velasco e Cruz.

A proposta de Cruz é ambiciosa tanto do ponto de vista dos problemas aos quais se propõe a responder como do método adotado para conduzir a investigação. O autor busca compreender a adesão quase universal à retórica do liberalismo econômico, a relação entre as mudanças nos países periféricos e as transformações em curso nos desenvolvidos e as diferenças entre os casos nacionais, no que se refere ao conteúdo, profundidade e temporalidade das reformas, além dos pontos de tensão, tendências e cenários nesses países. De modo geral, o objetivo é explicar a ruptura que ocorre nos países periféricos e as mudanças nas políticas de desenvolvimento empreendidas.

Em relação ao método, o principal anseio do autor é construir uma análise que integre o nacional e o internacional, evidenciando as relações de poder e os conflitos, lutas e desigualdade de forças envolvidas no processo, assim como os recursos, escolhas e percepções dos atores que dele participam. Daí, a insatisfação de Cruz com as análises correntes que ora centram-se nas variáveis internas (esgotamento do modelo de substituição de importações e gigantismo e crise do Estado), ora enfatizam o caráter imperativo dos fatores externos (condicionalidades impostas pelos Estados Unidos, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e diplomacia econômica do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) ou do determinismo econômico (a tendência inexorável à globalização financeira, tecnológica e produtiva, que submete os estados periféricos à lógica da economia global) na definição das escolhas ou acontecimentos. De acordo com Cruz, as reformas inserem-se num processo global de reestruturação em curso na economia mundial desde a década de 1970, que envolveu a supremacia militar de uma superpotência, os avanços na integração européia, a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o fortalecimento de alguns Estados periféricos. No entanto, esse processo não é visto como espontâneo e homogeneizador, pelo contrário, é apreendido como aberto, indeterminado e movido por projetos contraditórios e pelo choque de interesses incompatíveis.

Para elucidar os aspectos propostos no método e responder às questões e inquietações que orientam a pesquisa, trilha-se um caminho trabalhoso, minucioso e pouco convencional, no qual a análise comparativa éum dos pontos centrais. É comum a utilização da comparação na Ciência Política contemporânea, mas a perspectiva de Cruz distancia-se das análises recorrentes. Para exemplificar, basta lembrar do já clássico livro de Lijphart (2003), Modelos de Democracia, no qual foram examinadas, a partir de variáveis institucionais, trinta e seis democracias, com o objetivo de avaliar sua qualidade e desempenho. A realização de um simples levantamento dos artigos publicados nos periódicos mais respeitados da área também revelará que o método de comparação é muito usado, mas mostrará que ele está centrado no empiricismo e nos arranjos institucionais adotados por diferentes países.

Na obra de Cruz, a análise comparativa é de natureza histórica e seus elementos são estruturas, atores e processos. Envolve um exaustivo trabalho de levantamento de dados empíricos sobre as estruturas econômicas e sociais dos países periféricos estudados, assim como sobre as reformas liberalizantes neles implementadas, mas busca fundamentalmente identificar a organização do aparelho de Estado e sua relação com a sociedade; o regime político; as características dos modelos prévios de desenvolvimento; os grupos e classes que o sustentavam; os conflitos de vontades e os impasses; os cálculos e dilemas enfrentados pelos atores; o papel dos fatores externos e os êxitos e malogros da trajetória percorrida até o início das reformas e as conseqüências que delas emanam.

Talvez os grandes paradigmas desse tipo de análise sejam os estudos de Marx (1984; 1987; 2002) ou mesmo os de Tocqueville (1989; 2005). Ainda que a comparação pareça esquisita, considerando os lados opostos em que esses autores estavam e as distintas tradições teóricas em que estão inseridos, em ambos, os processos históricos eram elementos centrais, assim como as decisões e possibilidades dos agentes no curso dos acontecimentos, sem desconsiderar a importância das estruturas e do poder na sua definição. A diferença está em Marx e Tocqueville depreenderem desses estudos uma visão da história, enquanto Cruz não constrói uma perspectiva geral e totalizante dela, além de ressalvar que os processos de reformas nos países da periferia não seguem a uma mesma lei geral: "Os casos expostos no livro mostram que os padrões nacionais são muito diferentes, a definição de seus contornos é determinada por fatores de ordem diversa, mas se expressam conjuntamente nas relações de força entre classes e grupos sociais - aí incluída a alta burocracia estatal - mobilizados, em cada momento, para promover e/ou vetar tal ou qual tipo de política" (CRUZ, 2007, p. 413).

No entanto, o fato de não construir uma lei geral não significa deixar de notar tendências e identificar regularidades: "Com diferenças sensíveis no tocante ao conteúdo, à forma e aos custos sociais das mudanças impostas, num caso e em outro - no centro e na periferia - , essas políticas tinham como norte o reforço dos direitos de propriedade, a remoção de entraves ao 'livre' funcionamento dos mercados, a criação de condições próprias à maior lucratividade do capital. Em ambos os casos, aqui como lá, essas políticas envolveram alterações sensíveis na composição das classes sociais e nas relações de forças entre elas, fenômeno expresso entre outras coisas no debilitamento sensível do trabalho organizado e na preponderância marcante dos interesses financeiros no âmbito da burguesia. Em toda a parte, tais políticas têm produzido concentração de renda, exclusão, aprofundamento das desigualdades sociais" (idem, p. 414).

O livro divide-se em três partes e nove capítulos. A primeira conta com quatro sessões e tem caráter mais exploratório, embora sejam também delimitados a perspectiva teórica e o método adotados na pesquisa. Apresenta-se o conjunto de dados que fundamentou a escolha dos países estudados e define-se conceitualmente as reformas liberalizantes, expondo seu conteúdo e demarcando o momento em que foram implementadas. Nasegunda parte, o autor analisa as trajetórias da Índia, Coréia do Sul e Argentina e destaca as peculiaridades do padrão de desenvolvimento adotado, o contexto em que as reformas foram implementadas, assim como suascaracterísticas e particularidades. É especialmente nessa parte que a perspectiva teórico-metodológica da obra torna-se absolutamente clara ao leitor, não por haver uma referência explícita a ela, mas por ficar nítido seu uso na compreensão dos casos estudados. Na terceira, expõem-se os processos em curso no sistema internacional na área da segurança e no âmbito econômico, frisando as configurações de poder e suas conseqüências e (im)possibilidades para os países periféricos, valendo-se de teóricos das Relações Internacionais para compreendê-los.

Apesar do grande número de países em desenvolvimento, a conjugação de critérios como tamanho da população (média e grande), nível de riqueza (desigualmente situados na escala de distribuição internacional de renda do Banco Mundial) e localização (pertencentes a diferentes regiões geoeconômicas e geopolíticas)restringiu a 24 o número de aptos a participar do estudo, sendo estes: Índia, Indonésia, Brasil, Paquistão,Nigéria, México, Filipinas, Turquia, Irã, Etiópia, Egito, Tailândia, Coréia, África do Sul, Colômbia, Argentina, Tanzânia, Argélia, Sudão, Marrocos, Venezuela, Malásia, Chile e Zâmbia. Deles foram reunidos os números do Produto Interno Bruto (PIB), da renda per capita e indicadores sociais como taxa de urbanização, expectativa de vida ao nascer, taxa de mortalidade infantil, taxa de analfabetismo de adultos, percentual de matrículas escolares por faixa etária, composição setorial do PIB e estrutura da indústria manufatureira. Considerou-se também a trajetória inflacionária, o padrão de inserção internacional e o desempenho econômico, o que exigiu que se levasse em conta o volume do comércio exterior, a importância do investimento estrangeiro na economia e em relação ao PIB e à formação bruta de capital.

Ao analisar os indicadores econômicos, o autor não ignora as especificidades políticas dos países, isto é, os tipos de Estado (unidades políticas independentes, Estados novos e impérios tradicionais, Estados antigos), o regime político (democracia ou autoritarismo) e as características geopolíticas. Considera que o que se sobressai no estudo são as diferenças em quase todas as esferas (políticas, culturais e geopolíticas), com exceção da sensibilidade às transformações da economia, o que seria comum a todos: "Compulsoriamente integrados, em momentos diferentes, na economia capitalista mundial, e tendo mantido relações mais ou menos adaptativas com ela, em distintos períodos históricos, todos eles permanecem muito sensíveis às transformações que nela se operam. As reformas empreendidas por esses países em passado próximo nos falam da maneira como eles tentaram responder a esse desafio" (CRUZ, 2007, p. 72).

Em relação às reformas, Cruz resgatou o contexto de sua implementação e recuperou dados da conjuntura econômica (PIB, déficit orçamentário, inflação, balança da conta corrente e dívida externa) de todos os países em análise, no início do processo de reformas. Coletou ainda informações detalhadas sobre a experiência de cada um nas políticas de abertura comercial e cambial, liberalização financeira, liberação de preços e salários, liberalização do regime de investimento estrangeiro, privatização, reforma tributária, reforma da seguridade social e reforma das relações de trabalho. Todos esses dados ajudam a desenhar mais precisamente qual o cenário em que se inserem as reformas liberalizantes e é um grande adianto e ganho para os futuros estudos de Ciência Política e Relações Internacionais, sejam aqueles específicos sobre as reformas liberalizantes, sejam os que pesquisarão algum dos países selecionados na pesquisa.

Na apreensão das reformas, o autor destaca alguns aspectos importantes que devem ser observados com atenção. O primeiro é o papel das organizações internacionais na coordenação da economia capitalista, assim como de suas prescrições para lograr o desenvolvimento - nesse sentido, o Banco Mundial teria papel destacado. O segundo refere-se à necessidade de incorporar a dimensão temporal à análise das reformas, isto é, o período que decorre da declaração formal de intenção de efetivá-las até os compromissos assumidos com organizações multilaterais e a aplicação efetiva das políticas anunciadas. Esse critério define Chile, Argentinae Turquia como reformadores precoces; África do Sul, Brasil, Colômbia, Coréia, Egito, Etiópia, Índia, Sudão e Zâmbia como retardatários e os demais como conformados. O terceiro aspecto apontado por Cruz diz respeito ao caráter contínuo ou descontínuo das reformas. Chile e Brasil passaram por um processo ininterrupto, aocontrário da Argentina, Venezuela, Argélia e Índia, países em que ele foi intermitente. Por fim, deve-se examinar se elas ocorrem num contexto crítico e sob as condicionalidades de organizações internacionais, caso da maiorparte dos países da América Latina e África Subsaariana, ou se ocorreram devido à percepção das possíveis vantagens alcançadas, contexto dos países asiáticos.

Da amostra variada de países e do extenso trabalho empreendido, Cruz nota que só o Irã não empreendeu as reformas orientadas para o mercado, o que o leva a reafirmar a imprecisão do argumento que identifica nas variáveis internas (crise do Estado e esgotamento da substituição de importações) a razão da mudança no modelo de desenvolvimento: "Se países em tudo diferentes, em circunstâncias tão distintas, quebram seus antigos padrões de política econômica e passam a adotar modelos de idêntica inspiração, fatores internos a esses países não explicam esta mudança. Para entendê-la, temos que nos voltar para condições que os afetam conjuntamente" (CRUZ, 2007, p. 130). O autor constata que, em países como Argentina, Brasil, México, Venezuela e na maior parte dos africanos, as reformas liberalizantes deram-se no contexto de crises e negociações com agências internacionais (FMI e Banco Mundial) e/ou grupos de credores, que as incluíam entre as suas condicionalidades. Percebe também que, no Chile, Argentina, Brasil, México e Coréia, os tecnocratas afeitos ao pensamento neoliberal tiveram um papel importante e que o FMI, o Banco Mundial, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e a Divisão de Pesquisa e Consultoria do grupo The Economist exerceram a função de monitoramento das reformas.

Ao concluir o trabalho exploratório, Cruz observa "que os casos nacionais não são independentes, que as experiências nacionais de reforma são transmitidas e replicadas; mais importante ainda - que o processo de propagação de modelos de política econômica é impulsionado por ações emanadas de instituições vinculadas aos interesses predominantes em um sistema internacional fortemente hierarquizado" (idem, p. 135). Se o trabalho acabasse aí e o resultado da pesquisa fosse essa conclusão, ter-se-ia avançado bastante na produção de dados sobre o objeto de estudo, mas não tanto na sua compreensão ou na construção de uma perspectiva inovadora. O próprio autor reconhece que a análise empreendida nessa etapa do trabalho e os resultados dela inferidos não permitem compreender as especificidades e diferenças que caracterizam os processos de reformas econômicas. Considera que nesse momento os estudos de caso tornam-se imprescindíveis e o método comparativo será utilizado com o objetivo de "instruir a análise do processo global de mudança, demarcando diferenças pertinentes entre trajetórias nacionais e introduzindo na discussão do problema geral das reformas econômicas informações sobre dimensões significativas comumente silenciadas nas análises correntes" (idem, p. 136).

Para compor a amostra dos estudos de caso, o país deveria contar com uma população numerosa e um Estado sólido, além de ter tradição industrial e peso econômico e político para exercer papel importante noplano regional. Dos 24 países, somente Brasil, México, Tailândia, Turquia, Índia, Coréia e Argentina cumprem todos os pré-requisitos. Os três últimos são minuciosamente analisados pelo autor.

Ao examinar o caso da Índia, Cruz percebe que os fatores externos decisivos para a efetivação das reformas foram o descrédito do keynesianismo e ascensão do neoliberalismo nos países centrais, o fim da Guerra Fria e impossibilidade de contar com o respaldo da URSS e a reformulação das bases normativas da economia internacional na Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Nem a globalização financeira, nem a pressão do BID e do FMI foram determinantes para o desencadeamento das transformações econômicas. Do ponto de vista interno, as condições que alçaram as mudanças foram a existência de uma crítica econômica de corte liberal e sua convergência com as transformações no plano internacional, além da fragilização das instituições políticas indianas e da ineficiência do planejamento econômico, bem como das experiências precedentes de liberalização econômica.

No início dos anos 1990, ocorre a abertura cambial e a reforma tarifária, mas são mantidos níveis de proteção muito altos quando comparados com outros países. As barreiras não-tarifárias permanecem e valem para a importação de bens de consumo e produtos agrícolas. A liberalização financeira também foi gradual e as taxas de juros foram liberalizadas paulatinamente. Houve redução das exigências para investir-se em papéis do governo, os mecanismos de supervisão e regulação das práticas bancárias foram modernizados e fortalecidos e a concorrência no setor foi incentivada mediante a remoção de barreiras às operações de crédito de instituições não-bancárias, além da concessão de licenças a bancos privados, nacionais e estrangeiros. No entanto, não transferiram ao setor privado nenhum banco estatal e, mesmo depois das reformas, o governo ainda controlava 80% dos ativos dos bancos comerciais. O setor de serviços foi aberto ao investidor estrangeiro, mas mantendo a diferenciação entre investimento produtivo e aplicações financeiras de curto prazo e permanecendo a reserva de certas classes de produtos às indústrias de pequena escala. Somente em 1998, com a vitória da Aliança Nacional Democrática (partido do nacionalismo hindu), o tema das privatizações entrou efetivamente para a agenda, mas de forma pragmática: empresas lucrativas não seriam privatizadas, empresas lucrativas em situação de monopólio seriam analisadas, empresas deficitárias seriam vendidas. Cruz destaca que, naÍndia, as reformas foram implementadas pela percepção das vantagens que se poderia alcançar e não por desespero. Em relação ao debate, este deu-se em torno da disputa entre a ortodoxia e a heterodoxia e, apesar do cosmopolitismo dos tecnocratas, esteve mais à esquerda do que o habitual. O gradualismo e o pragmatismo dos gestores são os traços mais salientes do processo indiano de reformas.

No caso da Coréia, o primeiro ensaio de liberalização ocorreu em 1979, com a elaboração de um plano de estabilização que buscava pôr fim à inflação de mais de 30 anos. Os grandes grupos econômicos (chaebols) e parte dos tecnocratas criticavam duramente o modelo fortemente estatista e nacionalista, mas tal convergência não implicava a defesa de programas similares. Os tecnocratas queriam a diminuição do poder dos chaebols, os quais reclamavam mais espaço para decidir sobre seus negócios, além de aumentos de preços para os seus produtos e liberalização financeira - incluindo a privatização dos bancos comerciais e a não-intervenção do Estado em suas decisões de investimento. A Coréia conseguiu sair da crise com relativa facilidade, pois contava com condições favoráveis de acesso ao crédito e substantiva capacidade exportadora.

A partir de Reagan, o apoio político e financeiro norte-americano permaneceu, mas exigiram-se mudanças na organização econômica do país. Os Estados Unidos e os chaebols reclamavam a liberalização financeira e a redução da presença do Estado, embora os últimos quisessem apenas uma maior liberdade para a condução dos seus negócios, enquanto os primeiros desejavam a internacionalização do mercado financeiro coreano. A reforma do setor financeiro ocorreu entre 1981 e 1983, com a privatização dos principais bancos públicos. No entanto, o governo permanece por um bom tempo controlando o crédito bancário e nomeando os dirigentes das instituições já privatizadas. A liberalização financeira desdobrou-se em várias etapas: 1988, 1991, 1993, 1995, mas o auge da pressão ocorreu na década de 1990, quando investidores passaram a reclamar a abertura do mercado coreano de ações. Mesmo com o plano de liberalização financeira anunciado em 1995, o sistemapermanecia entre os mais reprimidos da Ásia. Em 1983, teve início a reforma comercial e, em maio de 1986, a Coréia comprometeu-se a aceitar os padrões e certificados definidos internacionalmente. Em junho de 1990, assinou o código de compras governamentais da Rodada Tóquio, obrigando-se a liberalizar algumas políticas de compras, especialmente no campo das telecomunicações.

Cruz destaca que é possível identificar na Coréia dois padrões de reformas. O primeiro é caracterizado pelo gradualismo e esteve presente na década de 1980 e também no período 1993-1997, durante o governo de Kim Young Sam. O segundo, empreendido no mandato de Kim Dae Jung, foi marcado pelo radicalismo e velocidade, traços relacionados à crise asiática de 1997. O desfecho da crise envolveu a assinatura de um acordo com o FMI e a aceitação de uma receita que implicava reformas estruturais como a abertura externa, além de mudanças profundas no sistema público, financeiro, produtivo e no mercado de trabalho. Todas as reformas visavam a internacionalização da economia e o reforço da disciplina do mercado. Com a aplicação da fórmula, a recuperação da economia coreana foi muito rápida e, em 2000, ela já crescia, ainda que com taxas inferiores às do passado. No entanto, a Coréia saía da crise com o perfil drasticamente alterado: houve aumento do desemprego, da informalidade e da desigualdade de renda. Além disso, a internacionalização da economia foi radical.

Cruz avalia que a moderação, presente até 1997, foi conseqüência das divergências no aparelho de Estado. O conflito entre liberais e intervencionistas era muito forte e o Conselho de Planejamento Econômico (EPB) - representante do ultraliberalismo - conflitava com o Ministério das Finanças. Nem a unificação das instituições, em 1994, implicou o predomínio da EPB e a abertura financeira radical só ocorreu após 1997. A partir daí, os grandes grupos econômicos coreanos perderam poder: "A reforma liberal da economia coreana resultou inicialmente de um jogo complexo de pressões, à frente do qual - junto com os tecnocratas liberais - estavam os chaebols com seus representantes intelectuais e políticos. No segundo tempo, o jogo se inverte, os grupos econômicos são colocados na berlinda e a reforma passa a ser conduzida por Kim Dae Jung, um crítico notório de suas práticas obscuras e suas ligações constitutivas com o Estado" (CRUZ, 2007, p. 282).

Na Argentina, as reformas foram empreendidas em dois períodos: uma primeira onda, de 1976 a 1982, e outra mais ampla e radical, no final da década de 1980. Cruz observa que, embora o cenário externo fosse favorável (Hayek já havia recebido o prêmio Nobel e Thatcher ganhara o comando do Partido Conservador inglês), não foi por influência de governos, organismos internacionais ou da crise internacional que as reformas entraram na agenda no primeiro período. As mudanças econômicas vêm antes da crise e o objetivo era pôr fim ao modelo estatista, visto como responsável pelas mazelas econômicas que assolavam o país. A equipe econômica inovou no comércio exterior e na reforma financeira. As taxas que incidiam sobre a renda do setor exportador foram suprimidas e a equipe divulgou um plano de reduções tarifárias que exporia ordenadamente a economia Argentina à concorrência. O setor financeiro foi reformado, em junho de 1977, quando foram liberadas as taxas de juros bancárias e desnacionalizaram-se os depósitos. Os militares, no entanto, reservavam papel importante à empresa pública, para as quais eram canalizados subsídios. As medidas liberalizantes não contiveram a crise econômica e até agravaram-na.

O segundo período teve início com a vitória de Menem, que, após as eleições, lançou-se em campanha contra o estatismo nacional-desenvolvimentista. Reformas estruturais foram desencadeadas pela Lei da Reforma do Estado e pela Lei de Emergência Econômica. Em 1989, o governo argentino anunciou um programa amplo de reforma do comércio exterior e de liberalização financeira, com a liberdade total de entrada e saída de capitais do país e a autorização para a saída irrestrita de fundos a título de royalties, juros e dividendos. A partir de 1990, o governo desregulamentou as operações em bolsas e mercados de valores, eliminou as restrições à entrada de bancos estrangeiros e à abertura de novas agências de bancos nacionais; conquistou-se o controle inflacionário. Em 1992, reformou-se a lei que regia o Banco Central, determinando-se que seus diretores e presidentes seriam nomeados pelo Presidente da República e que estavam proibidos de financiar governos provinciais, empresas públicas ou empresas privadas não-financeiras. Outras importantes mudanças foram a reforma do regime de investimentos estrangeiros, que previa tratamento igual aos investidores externos e domésticos, e as privatizações, as quais garantiram a cobertura dos déficits comerciais e a ampliação da oferta monetária. Esse processo caracterizou-se pela rapidez e pelo predominante papel do capital estrangeiro. O país sofreu grandes transformações, pois novos padrões de gestão da administração pública foram introduzidos: houve mudanças no sistema de seguridade, os contratos foram flexibilizados e os entraves à demissão de trabalhadores, reduzidos.

As reformas na Argentina atingiram seu objetivo principal: o êxito do plano de estabilização e a retomada do crescimento; mas, em 1994, o país viveu uma grande crise, da qual conseguiu sair com a ajuda do FMI e das linhas de crédito de bancos internacionais. A crise russa e a desvalorização da moeda brasileira afetaram a Argentina, que não contava mais com o mesmo suporte financeiro, pois o governo Bush abandonara a política de socorro aos países emergentes. A convulsão econômica agravou-se e a instabilidade política piorou. As sucessivas equipes que assumiram o comando da economia fracassaram até o ápice das turbulências, quando a Argentina, em 15 dias, conheceu quatro presidentes e declarou a moratória da dívida. De acordo com Cruz, a Argentina saiu da crise contrariando os princípios do neoliberalismo.

Esta síntese do processo de reformas está muito aquém do trabalho realizado pelo autor, que buscou retratar detalhadamente, nos três estudos de caso, as estruturas, os processos políticos e econômicos, tendo como ponto de partida a perspectiva histórica e a dinâmica dos atores internos e externos. Em nenhum momento, Cruz construiu uma explicação determinista (o externo sobre o interno ou a economia sobre a política), mas quando busca uma explicação geral para as reformas liberalizantes, prioriza os processos em curso no sistema internacional - seja a crise das economias capitalistas avançadas e a reestruturação dela resultante, seja a ampliação do poderio econômico e diplomático dos países periféricos: "No final dos anos 70, o mundo estava imerso em crise. Equilíbrios antigos se rompiam. As mudanças em curso pareciam abalar as estruturas de poder vigente e abrir novo campo de possibilidade aos países periféricos. Sabemos que não foi bem assim. A crise, certamente, era profunda, mas a reestruturação dela resultante acabou por reforçar as hierarquias de poder, criando um quadro incomparavelmente mais restritivo para aqueles países, os quais, um a um, foram sendo compelidos a sacrificar suas veleidades de desenvolvimento nacional autônomo e a enquadrar-se na disciplina ditada pelos protagonistas da economia capitalista mundial" (CRUZ, 2007, p. 380).

As considerações de Cruz sobre a ordem que nasce do período posterior à II Guerra e sobre aquela que emana da crise das economias capitalistas são bastante esclarecedoras. Enquanto a primeira buscava a superação das crises e dava aos países liberdade para edificar um modelo de desenvolvimento adequado às suas demandas, objetivos e especificidades (tivemos o padrão centrado nas exportações ou na substituição de importações, com foco na indústria pesada, leve, nos bens com potencial tecnológico), a ordem neoliberal alimenta-se da crise e busca a homogeneização de padrões e o enquadramento dos países periféricos em um mesmo conjunto de normas, regras e princípios, independentemente de suas particularidades. O autor faz uma elucidativa diferenciação entre a doutrina, o movimento e o programa político neoliberal, explicando que essas dimensões estão intimamente associadas, mas não mantêm relações necessárias entre si. Mais do que isso, o autor demonstra, por meio de exemplos, que o neoliberalismo está no cotidiano, não existe fora de nós, e compõe um conjunto de formas institucionalizadas, as quais são naturalizadas e seguidas automaticamente.

A originalidade da análise sobre as reformas liberalizantes e sua percepção sobre a ordem neoliberal faz lembrar as reflexões de Wrigth Mills (1969) sobre a imaginação sociológica, concebida como a capacidade de compreender a forma pela qual um fenômeno específico insere-se na lógica maior de uma totalidade. Nesse sentido, a Ciência Social deveria buscar a apreensão do espírito da época e das questões colocadas para a humanidade em um determinado período histórico. Essa perspectiva está presente na obra de Cruz e ajuda a entender porque é importante insistir na compreensão de questões consideradas por alguns como superadas e ultrapassadas, apesar de o autor reconhecer o esgotamento das reformas e a crise da doutrina e do movimento neoliberais: "Porque nenhuma ordem - e esta da qual falamos muito menos - cai por si própria. Pode entrar em crise e permanecer duradouramente em estado mórbido. Mas só ficará para trás quando for substituída por outra, que encarne princípios distintos e se apóie em outras bases sociais. A elaboração das condições intelectuais e políticas para esse resultado é uma obra coletiva que não tem dono, não se faz em lugar definido, nem obedece a nenhum plano previamente traçado" (CRUZ, 2007, p. 412).

Por fim, algumas últimas palavras sobre o livro. Não há dúvida de que é uma grande contribuição para o aprofundamento das pesquisas sobre a relação entre política e economia nas Relações Internacionais. Ainda que não sejam as primeiras reflexões do autor sobre a área (CRUZ, 2004), foi neste livro que ele utilizou -para a compreensão de fenômenos internacionais e de maior complexidade - o mesmo rigor e método, presentes em obras como Empresariado e Estado na transição brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977), Estado e economia em tempos de crise: política industrial e transição política no Brasil dos anos 80, ou mesmo na coletânea O presente como história: economia e política no Brasil pós-64 (CRUZ, 1995; 1997a; 1997b), os quais, de um modo geral, buscavam a elucidação das relações entre política e economia nos processos domésticos. A obra Trajetórias: capitalismo neoliberal e reformas econômicas nos países da periferia constitui, portanto, um marco no percurso do autor.

Recebida em 4 de março de 2008.

Aprovada em 20 de março de 2008.

Karen Fernandez Costa (kaka_fernandez@yahoo.com.br) é Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Campinas (Unicamp).

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    Apenas para citar parte da bibliografia nacional que toca no tema central do livro de Cruz: Fiori e Tavares (1996; 1998), Fiori (1998; 2000), Bresser Pereira (1998a; 1998b), Sader e Gentili (1995; 2004); Moraes (2001), Ayerbe (1998), Diniz (1999; 2000), Boito Jr. (1999), Petras (1999) e Soares (2001).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Nov 2008
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