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Apresentação

DOSSIÊ "GLOBALIZAÇÃO"

Apresentação

Giovanni AlvesI; Francisco Luiz CorsiII

IGiovanni Alves é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília

II Francisco Luiz Corsi é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Giovanni Alves giovanni.alves@uol.com.br

A chamada "globalização" da sociedade capitalista, até pouco tempo atrás, era vista com enorme otimismo. A nova fase do capitalismo mundial abriria múltiplas perspectivas de desenvolvimento econômico, social, cultural e político para a humanidade. Estaríamos no umbral de uma nova era da história da sociedade moderna.

Muitos enxergavam a globalização de maneira exageradamente simplificada. Concebiam-na como a abertura das fronteiras nacionais, o que terminaria na formação de uma sociedade mundial cada vez mais integrada e regulada pelo mercado. A queda das barreiras comerciais, a livre circulação de capitais, a nova onda de inovações tecnológicas, a rapidez da circulação das informações etc., marcariam o início de uma nova etapa civilizatória, que levaria o capitalismo para um mundo sem fronteiras, auto-regulado pelos mercados, onde os Estados nacionais teriam seu papel diminuído e tenderiam, quando muito, a transformarem-se em meros condutores da administração de problemas e interesses locais. As políticas neoliberais, que enfatizavam a adoção da estabilidade monetária e cambial, a redução do papel do Estado na economia e a liberdade para a circulação de mercadorias e capital, seriam as mais adequadas para alcançarmos esse novo estágio da economia mundial. Esse estágio abarcaria todas as regiões do mundo e garantiria a prosperidade geral. As inovações tecnológicas e organizativas do processo de produção, sob a égide da III Revolução Tecnológica e do toyotismo, libertariam os trabalhadores do trabalho alienado, recuperando sua criatividade, imaginação e iniciativa, abrindo espaço para a auto-realização e para o ócio. Esse processo, inexorável,e representaria o ápice da história da humanidade. Restaria aos países adequarem se às transformações em curso e conformarem-se aos altos custos sociais, inevitáveis, da adaptação das economias à nova realidade mundial.

Essa visão otimista da globalização, ideológica, dissolveu-se no ar. Na última década, a situação mundial parece bem distante desse quadro. Mas não se podem desprezar as mudanças que ocorreram nesse período. Elas foram, sem dúvida, profundas e contraditórias. Ao mesmo tempo em que muitos processos se "globalizaram", outros reforçaram sua dimensão local: veja-se, por exemplo, o ressurgimento das tradições regionais e dos nacionalismos.

A esperada prosperidade e integração mundial estão longe de acontecer. Observa-se, hoje, uma profunda desigualdade entre as várias regiões do planeta, sendo que muitas delas encontram-se à margem desses processos de globalização. A miséria, o desemprego, a precari-zação dos estatutos salariais e a falta de perspectiva abarcam grandes parcelas da população mundial, e não só na denominada periferia do sistema capitalista, mas também nos países desenvolvidos, embora em menores proporções. Os problemas ecológicos também se avolumam e denotam os limites do capital em sua etapa globalizada. A atual fase do capitalismo mundial caracteriza-se pelo baixo crescimento econômico e pela instabilidade permanente que atinge o sistema mundial, não apenas em sua dimensão econômico-financeira, mas em seus aspectos geopolítico-militar.

Os limites e as inconsistências do conceito "globalização" nos levam, baseados em François Chesnais (1996), a designar esse conjunto de transformações como correspondendo, num sentido mais preciso, à etapa da mundialização do capital. Trata-se de uma nova fase do processo de internacionalização do capital sob a hegemonia do capital financeiro e que tende a abarcar as regiões do mundo que apresentam abundância de recursos, desenvolvimento prévio, amplos mercados, políticas voltadas ao favorecimento de investidores externos etc., enfim, todas as facilidades para a rentabilidade da massa de capital-dinheiro. As demais regiões do globo encontram-se fora desse processo ou apenas marginalmente dele participam. O que significa que a globalização como mundialização do capital incorpora, em si, as próprias características da lógica do capital, isto é, ela é excludente, desigual e seletiva.

O baixo dinamismo econômico do atual período deve-se, sobretudo, à superprodução crônica que se estende desde a crise de meados da década de 1970 e que abriu espaço para o predomínio do capital financeiro. A lógica desse capital passou a dominar os investimentos aplicados na produção, levando a um entrelaçamento das várias formas de capital. Do ponto de vista da base material, esse parece ser o aspecto chave que caracteriza essa nova fase do capitalismo.

Contudo, a mundialização do capital não se restringe a esse aspecto único. A mundialização funda-se em processos concomitantes e intimamente interligados, quais sejam: (i) a formação de oligopólios transnacionais em importantes setores; (ii) a formação de mercados de capitais, de câmbio e de títulos de caráter global; (iii) a formação de um mercado mundial cada vez mais integrado; e (iv) a instituição de uma divisão internacional do trabalho baseada na relativa desconcentração industrial. Esses processos são acompanhados por uma onda de inovações tecnológicas, concentrada na biotecnologia e na informática. É o que se convencionou chamar de a III Revolução Tecnológica e que atinge os mais diversos aspectos da vida social.

Esses processos são, de um lado, fruto da antiga tendência à internacionalização do capitalismo e, de outro, da crise estrutural do capital aberta no final dos anos 1960, marcada por intensa luta de classes. A resposta que o capital deu ao avanço do socialismo, à crítica da cultura burguesa, à redução das taxas de lucro, à crise da hegemonia norte-americana e ao avanço das forças de esquerda no centro e na periferia do sistema geraram as condições para um complexo de reestruturações em várias dimensões — produtiva, econômico-financeira, política e, inclusive, cultural —, que desembocaram na mundialização do capital.

O dossiê que apresentamos pretende resgatar alguns aspectos da "globalização" como mundialização do capital. Serão abordadas transformações na esfera da economia política e da produção capitalista no Brasil e na América Latina.

O artigo de Francisco Corsi procura abordar os impasses do desenvolvimento na atual fase da chamada globalização do capital.Realiza, nesse momento de desenvolvimento da globalização e de sua crise sistêmica, uma reflexão sobre os impasses do desenvolvimento, principalmente em países capitalistas subalternos à nova ordem do capital e que buscaram, nos últimos anos, através de políticas neoliberais, inserir-se de forma dinâmica na mundialização do capital. O trabalho baseia-se fundamentalmente no estudo da extensa bibliografia publicada recentemente. Em que medida a retomada do desenvolvimento para diversas áreas estagnadas da periferia coloca-se como uma possibilidade palpável? O que significa pensar o problema do desenvolvimento nas condições da nova etapa do capitalismo denominada "globalização"? Essas são questões tanto mais estratégicas quando se considera que o momento atual encontra-se sob a hegemonia do capital rentista-parasitário, que está muito pouco preocupado com investimentos produtivos. O artigo de Corsi pretende mostrar que a estagnação econômica vivida por inúmeros países não desenvolvidos decorre, em parte, de uma crise social e econômica aberta na década de 1970 e que se estende até os dias de hoje, apesar das tentativas de reestruturação da sociedade capitalista. As estratégias e as políticas de cunho neoliberal também teriam contribuído sobremaneira para essa situação, à medida que reforçaram as amarras financeiras que sufocaram boa parte das economias periféricas. Sobrepondo-se a esses problemas, esses países também se defrontariam com os limites ecológicos do capitalismo. O artigo sugere que a retomada do desenvolvimento em um novo patamar, que requer crescimento econômico, justiça social e preservação da natureza, implicaria, na verdade, em ruptura com o capitalismo.

O artigo de Giovanni Alves apresenta um panorama dos principais contornos do mundo do trabalho no Brasil nos anos 1990 (o que ele denomina de "década neoliberal"). Nesse período, os governos Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso adotaram uma política de inserção internacional que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento de um novo complexo de reestruturação produtiva, um processo de inovações tecnológica e organizacional que atingiu os mais diversos setores da indústria, comércio e serviços no Brasil. Foi na "década da globalização", com sua ideologia da abertura comercial e da desregulação da economia, que surgiu um novo (e precário) mundo do trabalho. Instaurou-se uma crise do sindicalismo no Brasil, considerada expressão contingente da fragmentação e da precarização da classe trabalhadora organizada. O autor conclui que hoje, mais do que nunca, o maior desafio do sindicalismo na virada para o século XXI é romper com o viés burocrático-corporativo, organizar e mobilizar um contingente massivo de jovens operários e operárias, empregados e empregadas e, inclusive, trabalhadores por conta própria precarizados ou explorados pelo capital.

É possível apreender também os desafios da globalização em análises mais circunscritas, como o estudo de Ana Lúcia Guedes e Alexandre Faria sobre o investimento estrangeiro direto na indústria automotiva brasileira. Este artigo enfoca questões de governança e sustentabilidade ambiental relacionados a inversões feitas na indústria automotiva na Região Metropolitana de Curitiba. A investigação segue uma perspectiva particular sobre o fenômeno da globalização que contempla tanto mecanismos e estruturas globais como também a esfera decisória dos governos locais. Os autores concluem que as análises sobre a "globalização" devem incluir tanto aspectos sociais, quanto políticos, bem como seguir, em investigações envolvendo investimentos, estratégias e operações de empresas transnacionais no Brasil, abordagens interdisciplinares com a área de economia política internacional.

Finalmente, o estudo de Carlos A. de Mattos faz uma análise das repercussões da globalização no Chile, procurando identificar e caracterizar a "outra cidade" resultante das transformações que afetaram a área metropolitana de Santiago em função do surgimento, a partir de meados de 1970, de uma nova estratégia macroeconômica, onde tanto a crescente liberalização econômica, como a ampla abertura externa, favoreceram a progressiva globalização da economia nacional. Cabe salientar que o Chile de Pinochet, na década de 1970, foi o primeiro experimento na América Latina de políticas de mercado que, mais tarde, sob a mundialização do capital, iriam se tornar predominantes sob a denominação de "neoliberalismo". Mattos observa que, nesse contexto, junto a importantes modificações na base econômica metropolitana, começou a processar-se na grande Santiago uma radical reestruturação de seu mercado de trabalho e uma maior dispersão territorial das atividades produtivas e da população. Estamos diante de um processo social que iria caracterizar a maioria das sociedades capitalistas latino-americanas sob governos neoliberais na década passada. Mattos observa, nesse novo cenário, como as transformações que afetaram a cidade emergente incidiram na afirmação, de um lado, de uma morfologia social onde persiste a polarização social e a segregação residencial e, de outro, de uma morfologia territorial onde impera a periurba-nização e a policentralidade, transformações essas que correspondem às tendências que atualmente se verificam nas grandes áreas metropolitanas tanto dos países centrais como das economias emergentes.

Poderíamos dizer que o dossiê que apresentamos é uma tentativa de fornecer novos (e ainda preliminares) elementos sobre as implicações concretas de um processo sócio-histórico de amplo espectro que atinge as estruturas societárias de vários países capitalistas desenvolvidos e em desenvolvimento. Na verdade, o conjunto de ensaios delineiam os principais desafios da globalização ainda em andamento e que, numa situação de situação de crise sistêmica, tende a colocar novas provocações para a razão científica. Antes de mais nada, exige uma postura interdisciplinar e fundamentalmente crítica, capaz de apreender, através de uma análise concreta, as múltiplas contradições que perpassam o complexo social.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHESNAIS, F. 1996. A mundialização do capital. São Paulo : Xamã.

Francisco Luiz Corsi

flcorsi@uol.com.br

  • Endereço para correspondência
    Giovanni Alves
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Mar 2003
    • Data do Fascículo
      Nov 2002
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